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ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
CESSÃO
DIREITO DE REPRESENTAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
I - Dá-se o chamamento à herança por direito de representação quando o herdeiro originário não pôde – quando o representado faleceu antes do autor da herança; nos casos de incapacidade por indignidade declarada; nos casos de ausência; nos casos de deserdação – ou não quis aceitar a herança – nos casos de repúdio da herança –; só nessas situações os seus descendentes são chamados à herança do autor da sucessão em representação do seu ascendente, passando a ter nessa herança um direito próprio de herdeiros. II - Se um terceiro tem direito de preferência num negócio jurídico mas as partes celebram o negócio sem dar ao preferente a possibilidade de exercer o seu direito, obrigando-o a instaurar a acção de preferência após tomar conhecimento da celebração do negócio e do preço pelo qual ele foi celebrado, a preferência exerce-se pelo preço real, constituindo um abuso do direito a alteração do preço pelas partes depois da citação para a acção de preferência através de uma rectificação da escritura, mesmo que ela constitua um acto válido e não um acto simulado. III - Litiga de má fé a parte que alega factos que sabe serem falsos, por si inventados como estratégia para contestar a acção e procurar evitar o exercício do direito de preferência que sabia existir.
Texto Integral
Recurso de Apelação ECLI:PT:TRP:2023:8782.19.0T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório: AA (1), contribuinte fiscal nº ..., residente no Porto, BB (2), contribuinte fiscal nº ..., residente em Leiria, e CC (3), contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto,
instauraram acção judicial contra DD (1), contribuinte fiscal nº ..., residente na Póvoa do Varzim, EE (2), contribuinte fiscal nº ..., residente na Póvoa do Varzim, A..., S.A. (3), pessoa colectiva n.º ..., com sede no Porto, e FF (4), com domicílio no Porto,
formulando contras estes os seguintes pedidos:
«1- Ser declarado que assiste à 1ª autora o direito de preferência na cessão dos seguintes quinhões hereditários: - Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu avô DD, cedido pelo 1º réu à 3ª ré, pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, ...; - Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu avô DD, cedido pela 2ª ré à 3ª ré, pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, ....
2 - Ser declarado que assiste aos 2º e 3º autores o direito de preferência na cessão dos seguintes quinhões hereditários: - Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua avó GG, cedido pelo 1º réu à 3ª ré, pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, ...; - Quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua avó GG, cedido pela 2ª ré à 3ª ré, pelo preço de Euros 62.500,00, por escritura pública no dia 28 de Novembro de 2018, ....
3 - Condenar os réus a isso ver ser decretado;
4 - Condenar a 3ª ré a ver-se substituída pelos 1º, 2º e 3º autores nas versadas cessões de quinhões hereditários, devendo ser adjudicados, atribuídos e reconhecidos o direito de propriedade a favor dos 1º, 2º e 3º autores sobres os respectivos quinhões hereditários, nos termos supra exercidos, com as suas legais consequências.»
Para fundamentar o seu pedido alegaram, em súmula, que por direito de representação do seu falecido pai HH, são herdeiros dos seus falecidos avós GG e de DD, conjuntamente com os réus pessoas singulares, cujas heranças permanecem por partilhar, e que esses réus, por escritura pública, cederam à ré sociedade os respectivos quinhões hereditários em tais heranças sem informarem previamente os autores para estes exercerem o seu direito de preferência nessas cessões, direito que querem exercer por via da presente acção.
Os réus foram citados e, com excepção da última ré, apresentaram contestações defendendo a improcedência da acção.
Para o efeito os 1.º e 2.º réu excepcionaram a ilegitimidade dos 2º e 3.º autores por já terem cedido a terceiro os seus quinhões nas mesmas heranças, a ilegitimidade da 1ª autora por não ser herdeira legitimária, mas somente testamentária, e a caducidade do direito de acção; mais impugnou a factualidade alegada na petição inicial e pediu a condenação dos autores como litigantes de má fé.
A ré sociedade também contestou, excepcionando o erro na forma do processo, a inexistência do direito de preferência da autora AA por ser apenas herdeira testamentária, e o abuso do direito da actuação dos autores.
A título subsidiário, deduziu reconvenção, com fundamento em que o preço das cessões não foi o que os autores mencionam, mas outro superior, e pedindo a condenação dos autores «a reconhecer que o preço real da cessão dos quinhões foi de €550.000,00, correspondendo €137.500,00 a cada quinhão cedido e, por via disso, a proceder ao depósito» a favor da sociedade ré «da diferença do preço, no montante de €300.000,00; quando assim não se entenda, condenados a pagar tal quantia a título de enriquecimento sem causa.»
No despacho saneador julgaram-se improcedentes as excepções invocadas pelos réus, com excepção da caducidade, cujo conhecimento se relegou para final.
Realizado julgamento, foi proferida sentença, na qual foi decidido julgar a acção procedente e a reconvenção improcedente e em consequência, declarou-se que «assiste à 1ª autora AA o direito de preferência na cessão dos quinhões hereditários na herança aberta por óbito do avô DD, cedidos pelo 1º réu e pela 2ª ré à sociedade ré pela escritura pública de 28 de Novembro de 2018», e que «assiste aos 2º e 3ª autores, BB e CC o direito de preferência na cessão dos quinhões hereditários na herança aberta por óbito da sua avó GG, cedidos pelo 1º réu e pela 2ª ré à sociedade ré pela escritura pública de 28 de Novembro de 2018», e condenou-se a sociedade ré a «ver-se substituída pelos 1º, 2º e 3º autores, em tais cessões de quinhões hereditários, sendo adjudicados, atribuídos e reconhecidos o direito de propriedade a favor dos aludidos autores sobres os respectivos quinhões hereditários», mais se absolvendo os autores do pedido reconvencional.
Do assim decidido, a sociedade ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.- A recorrente não se conforma com a decisão de facto e de direito que impendeu sobre a causa.
2.- Existem meios probatórios constantes do processo que impunham que a matéria de facto declarada provada sob os pontos 19, 40, 41, 43 e 44 tivesse antes sido declarada não provada.
3.- No que respeita ao preço de aquisição de cada quinhão, liquidado pela recorrente A... a cada um dos réus DD e EE, deveria ter sido declarado provado que ascendeu a € 137.500,00, num total de € 550.000,00.
4.- Tal factualidade resulta, desde logo, da seguinte documentação existente ou carreada aos autos:
a) Decisão proferida nos autos de impugnação do apoio judiciário, de 12/01/2021, proferida no apenso A dos autos, que contraria a alínea w) não provada;
b) Requerimento de impugnação do apoio judiciário do co-réu DD, formulado pelos autores, em que eles admitem o recebimento pelo mesmo dos valores declarados na escritura inicial e na escritura de rectificação do preço;
c) Escritura pública de rectificação de 5 de Junho de 2019 (fls. 170 dos autos);
d) Declaração de contabilista certificado, com identificação dos pagamentos (fls.364 e seguintes);
e) Comprovativos bancários do pagamento do preço acrescido de € 300.000,00 (fls. 364 e seguintes);
5.- A escritura pública tem força probatória plena relativamente à sinceridade e eficácia das declarações dos réus e estes demonstraram ainda ter liquidado o correspondente preço, o que de resto resulta ainda da matéria provada aos artigos 28 e 29 dos factos provados.
6.- Ainda por decorrência da reapreciação de tal prova documental, a matéria das alíneas i) e w) dos factos não provados deveria antes ter sido declarada provada.
7.- Os autores/Reconvindos não produziram prova que lograsse abalar tal factualidade e preço liquidado pela ré/recorrente aos co-réus DD e EE.
8.- Por conseguinte, deveria ter sido declarada provada a seguinte factualidade: 19) A venda de cada quinhão foi pelo preço de Euros 137.500,00, de que foram pagos pela 3º ré aos 1º e 2ª réus, € 62.500,00 por transferência bancária do dia da celebração da escritura pública de cessão de quinhões hereditários e € 75.000,00, nos termos convencionados na escritura de rectificação de preço. i) O preço real de cada um dos quinhões adquiridos pela ré contestante ascendeu a €137.500,00 (cento e trinta e sete mil e quinhentos euros), num total de € 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil euros). w) Os réus venderam à empresa A..., SA, o quinhão que detinham na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG de DD, pelo preço de €550 000,00 (quinhentos e cinquenta mil euros).
9.- A matéria dos pontos 40 e 41 dos factos provados deveria antes ter sido declarada não provada: 40) Em 03 de Fevereiro de 2019, a A. AA cruzou-se, no prédio sito na Praça ..., pela primeira vez, com um representante legal da A.... 41) Surpreendida com essa presença, uma vez que, inicialmente, não sabia de quem se tratava, foi-lhe comunicado os termos do negócio realizado com os réus DD e EE – pagamento dos quinhões pelo preço global de Euros 250.000,00, sem qualquer menção do alegado “contrato sob condição” e possibilidade do preço subir.
10.- A expressão “representante legal” encerra um conteúdo jurídico-conclusivo que nunca poderia ter sido declarado provado pelo Tribunal recorrido.
11.- Estas declarações e depoimento da autora AA, desacompanhado de qualquer outro meio de prova, é manifestamente insuficiente para que tivesse sido declarada provada a matéria dos pontos 40 e 41 dos factos provados.
12.- O princípio de prova é o grau de prova mais débil, significando que a prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova
Sem prescindir,
13.- Também a matéria de artigos 43 e 44 deveria antes ter sido declarada não provada: 43) Só, com a entrada da presente acção, em 12 de Abril de 2019, após a A... ter sido citada, é que os réus DD, EE e A... engendraram esse plano, fabricando o documento, apondo-lhe um conteúdo e uma data falsa. 44) O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores
14.- Estava vedado ao Tribunal recorrido o recurso a conceitos de direito e a juízos valorativos ou conclusivos, tais como “engendraram”, “conteúdo e data falsa”, “intuito de enganar os autores”.
15.- Inexiste qualquer prova, directa, indirecta ou indiciária, em que o Tribunal pudesse ter encontrado arrimo para alcançar tal factualidade que declarou provada.
16.- Existem meios probatórios constantes do processo que impunham que a matéria de facto declarada não provada sob as alíneas a), g), h), i), j), k), l), m), o, p), s), t), w) e x) tivesse antes sido declarada provada.
17.- Deveria ter sido declarada provada a seguinte factualidade: 22.º Os autores, pelo menos os autores BB e CC, ou já cederam efectivamente, ou têm um acordo de cedência, dos seus quinhões hereditários à empresa “B..., UNIPESSOAL, LDA”, com o número de pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ... PORTO, sendo gerente da referida empresa-II, residente na Rua ..., ..., ... Porto. 23.º E já estabeleceram com tal empresa as condições e o preço dos quinhões que lhes transmitiram ou irão transmitir.
18.- Desde logo porque tal matéria não foi impugnada especificadamente pelos autores/reconvindos na réplica.
19.- e ainda com recurso à reapreciação dos seguintes meios de prova:
a) Confissão/Assentada da autora CC (acta de audiência de 04/07/2022);
b) Confissão/Assentada da autora AA (acta de audiência de 30/05/2022);
c) Contrato promessa de compra e venda de quinhão hereditário de CC a fls. 276;
d) Descritivo da transferência de € 10.000,00: “sinal quinhão hereditário” a fls. 283;
e) Contrato promessa compra e venda de quinhão hereditário BB a fls. 418;
f) Descritivo da transferência de € 10.000,00: “sinal quinhão hereditário” a fls. 430;
g) Reapreciação do depoimento/declarações de parte da autora AA: [nota: segue reprodução do depoimento];
h) Escritura de venda de quinhão hereditário de BB a AA - Fls. 265, através do qual AA e BB declaram que parte do preço, no montante de € 3.875,00 foi pago em 18/11/2018 (data anterior à promessa de venda à B..., que revela a falsidade das declarações dos autores.
i) Ainda com recurso à reapreciação de tal prova testemunhal e depoimento de parte da autora AA, deveria ter sido declarada provada a seguinte matéria de facto: “g) Porque os autores sabiam que os 1.º e 2.ª rés iriam vender a terceiro – a sociedade contestante - os seus quinhões, decidiram adiar a formalização do seu negócio e em conluio com esse terceiro, e por forma a adquirirem para esse terceiro o quinhão dos 1.º e 2.º réus, transmitido à 3.ª ré, postergar tal escritura, instaurando os presentes autos funcionando eles autores como figura de palha ou testa de ferro da B..., para, depois, e uma vez reconhecida a preferência e o direito, transmitir a esta B... os quinhões em cuja aquisição pretendem agora preferir. h) E terá sido a B... ou a sua gerente, II, a entregar aos autores as quantias necessárias a fazer o depósito dos €250.000,00 indispensáveis ao exercício da preferência destes autos, pois que é essa sociedade, representada por tal gerente, que irá adquirir os quinhões preferidos. t) E, apesar de terem alienado, ou prometido alienar, os seus quinhões a tal sociedade, terão ajustado com a mesma que iriam exercer a preferência no negócio dos réus, como se tal negócio entre eles autores não tivesse existido, por forma a posteriormente virem a transmitir os quinhões preferidos à B..., LDA., que assim ficaria a deter todos os quinhões.”
j) Também com recurso à reapreciação do depoimento da testemunha JJ deveria ter sido declarada provada a seguinte factualidade: j) Em Julho de 2018 a Câmara Municipal ... havia condicionado a autorização da construção de fracções com área inferior a 52 metros quadrados apenas nos casos em que fossem criados e associados a tais fracções lugares de estacionamento. k) Tal condicionante limitava o aproveitamento construtivo do referido prédio, tal como a 3.ª ré pretendia explorá-lo e reconstrui-lo. l) E foi por tal motivo que a 3ª ré, nas negociações que promoveu com os 1º e 2º réus, acordou e ajustou com os 1º e 2º réus que o preço de €62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros) seria aumentado para € 137.500,00, caso viesse a confirmar que não se verificava tal condicionante construtiva, que, a existir, lhe imporia custos construtivos bastante elevados, com a necessidade de remodelar completamente o edifício, e localizando e reestruturando a caixa de escadas e criando uma caixa de elevadores. m) E foi com essa condição que todos os 1.º, 2.º e 3.º réus celebraram a escritura de cessão de quinhões hereditários, tendo todos assinado o contrato sob condição, na mesma data, e em momento contemporâneo com a celebração da escritura. o) O prédio da Praça ..., que é propriedade de uma sociedade liquidada que integra a herança, tem um valor superior a € 1.500.000,00 (um milhão e meio de euros). p) Os quinhões hereditários cedidos pelos 1º e 2º réus ao 3º réu têm um valor superior a €750.000,00 (setecentos e cinquenta mil euros). x) E nesse mesmo dia celebraram o primeiro e segunda ré com a terceira, um contrato sob condição, referido em…
k) E mais deveria ter sido declarado provado que o valor do prédio da Praça ... que integra a herança é de pelo menos € 1.500.000,00, quer com recurso à reapreciação do depoimento de tal testemunha, quer pela confissão e assentada da autora CC, por referência ao artigo 54.º da Contestação da ré A....
l) Por conseguinte, a matéria das alíneas j), k), l), m), o), p) e x) dos factos não provados, deveria antes ter sido declarada provada.
20.- Foram violadas, na sua interpretação e aplicação, as seguintes disposições legais: Artigo 30.º, n.º1 e Artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC do C.P.C.; Artigo 334.º do Código Civil; Artigo 414 e seguintes do C.C.; Artigo 2130.º, n.º 1 do Código Civil; Artigo 473.º do Código Civil.
21.- Em virtude da venda operada pelo autor BB, dos seus quinhões, através da escritura de fls. 265, deve julgar-se verificada a excepção peremptória inominada, de conhecimento oficioso (artigos 576.º, n.ºs 1 e 3 e 579.º do CPC), de ilegitimidade material (ou substantiva) do autor BB, absolvendo-se a ré/recorrente do pedido por ele formulado contra si, de preferência na venda à ré/recorrente, por banda do seu tio DD do quinhão que àquele pertencia por óbito da sua avó GG.
22.- Tendo os autores BB e CC prometido vender os seus quinhões a uma sociedade estranha à herança e aos herdeiros, depois de conhecerem a aquisição dos quinhões pela ré A..., e antes de terem instaurado os presentes autos de preferência, agem os mesmos em manifesto e clamoroso abuso de direito, preenchendo os requisitos do artigo 334.º do C.C..
23.- Além disso, o espírito da lei, que pretende a dispersão dos direitos da herança por diversos titulares, acaba por ser defraudado com a tutela de um direito a quem já o alienou ou prometeu alienar a favor de terceiro. No fundo, tutelar o direito de preferência aos autores BB e CC é conceder-lhes o direito de adquirirem por via unilateral quinhões, quando eles já prometeram vender os seus próprios, ou os venderam efectivamente (no caso do autor BB), e, por isso, já não são nem podem ser beneficiários da tutela legal.
24.- Para além disso, e declarando-se que o preço de cada quinhão liquidado pela ré A... foi de € 137.500,00, ainda e caso venha a ser concedido o direito de preferência a qualquer um dos autores, sempre os mesmos terão que depositar o remanescente da diferença do preço de € 62.500,00 para € 137.500,00 de cada quinhão.
25.- Sendo certo que constituindo o depósito do preço a que se alude no artº 1410, nº 1, uma condição ou pressuposto do exercício da acção de preferência (cfr, por todos, Ac. do STJ de 17/6/1999, in “CJ, Acs, do STJ, Ano VII, T2- 150”), a mesma não se mostra totalmente preenchida face ao depósito da importância que os autores efectuaram para o efeito, devendo o reconhecimento de tal direito ficar na dependência do depósito do preço remanescente.
26.- Acresce que admitir-se a possibilidade de os autores preferirem na aquisição dos quinhões por um valor inferior ao valor real de aquisição pela ré A... traduzir-se-ia num injustificado locupletamento dos autores, o que viola, na sua interpretação e aplicação, o disposto ao artigo 473.º do Código Civil.
Face ao exposto, deve julgar-se procedente a apelação e, assim, revogar-se a sentença recorrida, e substituir-se a mesma por outra que absolva a ré do pedido ou, em alternativa, que condicione a preferência dos autores ao depósito do preço de € 137.500,00, devido por cada quinhão e, por isso, no valor de mais € 75.000,00 por cada quinhão que lhes venha a ser reconhecido o direito a preferirem, num total de mais € 300.000,00.
Os recorridos responderam a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.
ii. Se os autores BB e CC são herdeiros dos seus avós e por inerência titulares do direito de preferência na cessão a terceiros dos quinhões de outros herdeiros.
iii. Por que preço deve ser exercida a preferência.
iv. Se a recorrente litiga de má fé.
III. Impugnação de decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pedindo a modificação dessa decisão quanto a vários pontos concretos da fundamentação de facto.
Mostram-se cumpridos os requisitos específicos desta impugnação, nada obstando ao conhecimento da mesma.
Os primeiros factos visados pela impugnação prendem-se com o preço pelo qual os réus DD e EE cederam os respectivos quinhões nas heranças abertas por óbito dos pais à ré sociedade recorrente: se o preço foi o de €62.500 por cada quinhão, num total de €250.000, conforme declarado na escritura de cessão, ou de €137.500, por cada quinhão, num total de €550.000, conforme declarado à posteriori na escritura de «rectificação da escritura».
O Mmo. Juiz a quo acolheu o preço declarado na escritura de cessão, desprezando o valor da chamada rectificação. Para o efeito julgou provado que «a venda de cada quinhão foi pelo preço de Euros 62.500,00, que foram pagos pela 3º Ré aos 1º e 2ª Réus, por transferência bancária do dia da celebração da escritura pública» - ponto 19 - e não provado que «o preço real … ascendeu a €137.500,00 …, num total de € 550.000,00 …» - alínea i) dos factos não provados - e que «os réus venderam à (ré sociedade) o quinhão que detinham na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG (e) de DD, pelo preço de €550 000,00 …) - alínea w) do mesmo elenco -.
Auscultada de novo a prova produzida, afigura-se-nos que a decisão impugnada é correcta e de modo algum pode ser alterada no sentido preconizado pela recorrente.
Nos termos do artigo 371.º do Código Civil as escrituras apenas fazem prova plena das declarações prestadas perante o notário, não da veracidade dos factos objecto dessas declarações, ou seja, fazem prova plena que os declarantes declararam ao notário o que na escritura se diz que declararam, não que os factos objecto dessas declarações são verdadeiros.
Por isso mesmo, a impugnação do valor probatórios desses documentos, mediante a arguição da respectiva falsidade, prevista no artigo 372.º do mesmo diploma, era necessária para afastar a demonstração do teor das declarações, mas não é necessária para afastar a prova dos factos declarados.
Também por isso, a escritura celebrada depois pelas mesmas pessoas e na qual declararam que procediam à rectificação da escritura de cessão dos quinhões, aumentando preço de 250.000€ para 550.000€, apenas faz prova plena das declarações; não faz prova plena dos factos declarados.
Em segundo lugar, porque os actos praticados no apenso A em sede de impugnação da decisão da segurança social de concessão de apoio judiciário ao réu DD não produzem qualquer efeito nos presente autos, nem formam caso julgado material que aqui houvesse que ser acatado para efeitos de prova.
Não obstante sempre se dirá que a recorrente treslê o que consta da impugnação mencionada.
O que os aqui autores ali alegaram para impugnar a decisão de concessão do apoio judiciário foi que «o impugnado vendeu à A... … pelo montante global de 125.000,00 Euros, os quinhões hereditários …» (artigo 3.º), repetindo, mais à frente, que «como já dito supra, o impugnado vendeu os seus quinhões hereditários pelo valor global de 125.000,00 Euros» (artigo 8.º), referindo sim que foi o aqui réu DD que na sua «contestação … deduziu a defesa que mais entendeu conveniente» (artigo 4.º), e que nela «admite a venda dos seus quinhões hereditários no valor global de 125.000,00 Euros, já recebidos, e ainda que iria receber mais 150.000,00 Euros». Depois, na decisão sobre aquela impugnação, o que o tribunal julgou provado foram as declarações constantes das escrituras públicas cujas cópias foram juntas aos autos, não os factos objecto dessas declarações. As extrapolações que depois o Mmo. Juiz a quo fez para decidir a impugnação tem por objecto exclusivo essa decisão, não tendo qualquer valor de caso julgado para fora da mesma.
Em terceiro lugar, porque a alegada «declaração de contabilista certificado» junta com o requerimento de 06/04/2022 não pode ser aceite como meio de prova bastante do pagamento aos cedentes do valor dos €550.000, já que não passa de um papel que não corresponde a qualquer documento previsto no plano oficial de contabilidade, cuja fabricação é desconhecida, cuja assinatura não foi comprovada e cuja origem ou fonte de conhecimento está por demonstrar. Para ter credibilidade e valor probatório era indispensável que a junção do documento fosse acompanhada da produção do depoimento da pessoa que, com submissão ao contraditório, pudesse explicar as circunstâncias da emissão do documento, a respectiva autoria, fonte e segurança.
Aliás, este documento apresenta um conteúdo incompreensível ao incluir na listagem valores alegadamente pagos por assunção de uma dívida do credor cuja data é anterior à própria escritura de «rectificação», ou seja, considera que dois meses antes de se ter tornado devedora do preço rectificado (o que só ocorreu em 5 de Junho de 2019), a sociedade ré já havia assumido (em 9 de Abril de 2019) uma dívida do seu credor em pagamento daquele preço … rectificado, o que é bem ilustrativo da velha imagem do cobertor que é curto.
Essa incongruência, digamos, amplia-se quando se compara o teor da escritura de cessão de quinhões outorgada em 28/11/2018 com o teor do contrato de «cessão de créditos e acordo de pagamento» em prestações com data de 09/04/2019.
Na primeira declarou-se que o «preço foi pago por transferência hoje da conta da ordenante ... a favor da conta dos beneficiários, ...». Portanto, se o facto contido nessas declarações fosse verdadeiro, o preço dos quinhões cedidos encontrava-se já pago aos cedentes/credores por transferência bancária. O que, aliás, logo se demonstrou ser falso, evidenciando a falta de credibilidade dos documentos elaborados pelos réus mesmo perante notário, porque segundo o extracto bancário junto aos autos (cf. requerimento de 17/09/2021) na conta do réu DD mencionada na escritura só entraram por transferência da ré recorrente os montantes de €50.000 e €29.808,91 (!).
Todavia, no contrato de cessão de créditos declara-se que o aqui réu DD «por si e na qualidade de procurador de EE, são credores da [aqui ré sociedade] na quantia de €85.000,00 … referente à compra que a segunda outorgante fez ao primeiro e à sua representada do quinhão hereditário que possuíam na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG e de DD, … , transacção essa efectuada no dia 28 de Novembro de 2018 …». E declara-se por aqueles réus que «com a cedência deste crédito nada mais lhes é devido pela [aqui ré sociedade] relativamente à transacção efectuada no dia 28 de Novembro de 2018 … e com a presente cessão de créditos revogam a declaração efectuada e assinada no dia 28/11/2018 … em que [a aqui ré sociedade] declarou que o produto da sua parte … seria entregue a KK, …, filha de DD, ou seja, a segunda outorgante nada terá que entregar ao primeiro outorgante ou a alguém por este indicado porque com celebração deste contrato nada mais lhe é devido, nem à sua representada».
A incompatibilidade entre os documentos é notória. Numa está pago o que na outra não está pago; num o pagamento está feito na totalidade aos próprios credores, no outro faz-se menção à obrigação de pagar uma a um terceiro, no caso uma filha do credor, conforme declaração efectuada na data da escritura de cessão de quinhões, mas que não é nem a própria escritura de cessão nem o intitulado contrato condicional porque nenhum deles alude a essa obrigação!
Por outro lado, se essa assunção de dívida «pagava» em definitivo o valor ainda devido ao abrigo da escritura de cessão outorgada em 28/11/2018, ou seja, liquidava o remanescente alegadamente em dívida dos €250.000 estipulados na escritura como preço da cessão, esse valor não podia, obviamente, ser imputada depois como pretende o «contabilista», para pagamento dos €300.000 resultantes do engrossamento do preço na escritura de «rectificação» outorgada em 05/06/2019!
Acresce que os demais documentos juntos com o requerimento de 06/04/2022 não demonstram quem efectuou o levantamento dos cheques e de que modo o fez, não sendo bastante a apresentação de cheques sem a demonstração bancária da identidade da pessoa que levantou as respectivas quantias.
Note-se que no meio das muitas contradições que se detectam nos autos e cuja razão de ser se prende nitidamente com a tentativa de ajustar os factos às estratégias processuais, perante a segurança social e para efeitos do incidente de apoio judiciário, o aqui réu DD chegou a afirmar em 24 de Janeiro de 2020 que «o valor de €125.000 pela venda do quinhão hereditário destinou-se ao pagamento de dividas, não tendo no momento qualquer montante desse valor e os €150.000 a receber, tal montante não foi ainda recebido», quando, na tese da ré sociedade aqui recorrente, por essa altura, do valor resultante do preço rectificado, o réu cedente dos quinhões já teria recebido, directamente, pelo menos €105.000 por meio de cheques. Certamente não por acaso, o único dos vários cheques mencionados na escritura de «rectificação» do qual se sabe o destino é o primeiro deles e conforme documento junto ao apenso A pelo Banco 1... (oficio de 22/09/2020) o respectivo montante foi levantado em dinheiro ao balcão de modo a que tal dinheiro e o respectivo beneficiário não deixasse rasto.
Existe ainda uma razão insuperável para descrer em absoluto da tese dos recorrentes e que denuncia à saciedade a respectiva razão de ser. Para ser verosímil essa tese repousa numa hipótese possível: fazer-se um contrato de transmissão de um imóvel por um preço fixado com base num determinado pressuposto e prever-se que o preço possa ser ajustado se esse pressuposto não se verificar ou se alterar. Todavia, de acordo com as mais elementares regras da experiência, celebrado o contrato, só uma alteração firme e definitiva desse pressuposto fará actuar essa cláusula: nenhum contraente que não seja tonto aceitará pagar um preço superior ao que o contrato fixa sem ter a certeza de que a hipótese prevista se verificou ou se vai verificar e dela resulta a modificação do preço estabelecida no contrato.
Ora no caso, nenhum dos réus produziu o mais ténue indício ou prova da verificação da hipótese prevista no documento particular intitulado «contrato sob condição». Nesse documento diz-se que «é condição essencial do preço atribuído à cessão de quinhões … a condicionante construtiva imposta pela Câmara Municipal ..., desde Julho de 2018, para o prédio …, que determina que fracções com área inferior a 52 m2 apenas sejam autorizadas e licenciadas na construção, desde que sejam criados e associados às mesmas lugares de estacionamento», situação que «restringe a capacidade construtiva do dito edifício, não podem ser projectadas e/ou desenvolvidas mais do que uma fracção de tipologia T-2 ou T-l+1, em cada piso, e com a necessidade de remodelar completamente o edifício, relocalizando e reestruturando a caixa de escadas e criando uma caixa de elevadores», motivo pelo qual acordam que «caso venha a ser alterada esta condicionante construtiva, ou confirmado que a mesma não é imposta pela Câmara Municipal ...; ou ainda, caso a segunda outorgante venha a obter o licenciamento e autorização de construção de mais do que uma fracção por piso, e com as dimensões mínimas necessárias, de forma a não ser obrigatória a criação de aparcamentos, o preço de cada quinhão hereditário será alterado de €62.500 para €137.500».
Como se vê, segundo o próprio contrato a referida condicionante existiria há cerca de …4 meses. Não foi produzida qualquer prova de que nesse intervalo de tempo a Câmara Municipal ... tivesse deixado de impor essa condicionante. Aliás, o que na contestação a ré alega a esse propósito é somente (artigo 46.º da contestação) que o preço se alterava se «se viesse a confirmar que não existia tal condicionante construtiva, o que veio efectivamente a ocorrer», sem explicar como, de que forma ou porquê!
De referir que o arquitecto JJ, que a pedido da ré terá avaliado o imóvel para lhe dar valores para o negócio, afirmou no seu depoimento ter confirmado junto da Câmara que havia a intenção desta de obrigar a criar estacionamento quando as tipologias fossem pequenas, exigência que segundo apurou já teria sido feita noutra situação, e quando lhe foi perguntado expressamente se sabia «se a Câmara ... alterou essa orientação» respondeu que «passado… eu julgo … cerca de 1 ano», soube que a Câmara já não tinha feito essa exigência numa operação em que o promotor estava a renovar uma «ilha».
Resulta deste depoimento que a ré não pediu nenhum pedido de informação prévia nem tinha ainda nenhum projecto para o prédio que tivesse submetido à Câmara para saber se e o que esta iria exigir. E o arquitecto estava convencido que a exigência era feita e só cerca de um ano depois teve conhecimento de uma situação em que ela não foi feita, mas que não tinha absolutamente nada a ver com o prédio dos autos por se tratar de uma operação urbanística de recuperação de uma «ilha».
O que daí se deve concluir é que em Junho de 2019, meio ano depois da escritura de cessão de quinhões, a ré não podia considerar verificada a situação prevista no contrato que faria aumentar o preço da cessão ou ter qualquer segurança sobre isso. Tal significa, segundo as regras da experiência comum, que este contrato foi efectivamente concebido e criado exclusivamente para servir de fundamento à contestação e para contornar a acção de preferência dos demais herdeiros na cedência dos quinhões.
Acresce que é absolutamente inverosímil que uma mera alteração do género da que foi congeminada como «condição» do preço pudesse permitir elevar o preço dos quinhões de 125.000 para 275.000 ou seja para … mais do dobro (!) do preço inicial, quando, seguramente, o imóvel não veria aumentadas as suas dimensões e áreas construtivas e quando muito haveria alterações ao nível do número de fracções em que o mesmo seria dividido. O que demonstra bem que o engenho inventivo de quem se lembrou desta estratégia é tão ténue quanto a capacidade intelectual que alardeia e que, debalde, fantasiou ser capaz de induzir em erro o tribunal.
Por tudo isso, a decisão de julgar provado o facto do ponto 19 e não provados os factos das alíneas i) e w) do elenco respectivo é inteiramente correcta porque corresponde a uma interpretação e avaliação adequadas dos meios de prova produzidos e da respectiva credibilidade, sustentação e valor indiciário.
Diga-se que tal matéria, ao contrário do que a recorrente defende não se encontra provada nos pontos 28 e 29 da fundamentação de facto da sentença recorrida: o que está julgado provado em tais pontos são as declarações constantes dos documentos referidos, não os factos objecto dessas declarações.
No tocante aos factos dos pontos 40 e 41 a impugnação da decisão do tribunal a quo é igualmente improcedente.
Ao contrário do que a recorrente sustenta, tais factos não foram somente afirmados pela própria autora AA no seu depoimento de parte. Foram ainda corroborados pela testemunha LL, marido da autora e genro do réu.
Este afirmou que por alturas de Fevereiro, num Domingo, estava em casa com a mulher e esta recebeu uma chamada telefónica de um sistema de alarme a dizer que uns senhores estavam a querer entrar no prédio; deslocaram-se os dois ao local, tendo chamado a Polícia, conforme instruções recebidas do seu advogado, e quando chegaram lá encontraram uns senhores que se apresentaram como sendo da A..., os quais disseram que tinha comprados os quinhões do pai e da tia da mulher da testemunha e queriam entrar no prédio; acrescentou que se tratou de uma conversa bastante cordial, tanto que depois disso até houve uma reunião entre a mulher, os senhores da A... e os advogados das duas partes para tentar um entendimento.
Este meio de prova em conjugação com o depoimento de parte da autora e a afirmação circunstancial da chamada da Polícia e da posterior realização de uma reunião com advogados das partes é perfeitamente suficiente para julgar provados tais factos, com excepção apenas da qualidade de «representante legal» que foi levada à redacção do ponto 40 e que necessitava de ser provada por documento que não se mostra junto. Por conseguinte a redacção do ponto 40 passa a ser a seguinte:
40) Em 03 de Fevereiro de 2019, a autora AA cruzou-se, no prédio sito na Praça ..., pela primeira vez, com pessoas que se apresentaram como representantes da A....
Depois, a recorrente impugna a decisão de julgar provados os factos dos pontos 43 e 44, sustentando por um lado que tais pontos contém «conceitos de direito e a juízos valorativos ou conclusivos» que devem ser eliminados e, por outro lado, que não foi produzida qualquer prova de tais factos.
Não se subscreve nenhuma destas afirmações.
Os factos são realidades do mundo ontológico, podendo ser passados, presentes ou futuros, ter natureza objectiva ou subjectiva, serem exteriores ou exteriorizados ou pura manifestação intelectual ao nível do conhecimento, da vontade, da intenção. Os estados mentais e as intenções psicológicas são verdadeiros factos. O que os distingue no mundo do direito é a forma como eles são captados pelos meios capazes de os registar (os meios de prova) e podem ser demonstrados pelos meios que os registaram. A concertação de um plano, a intenção subjectiva e a falta de vontade real são factos, cuja demonstração pode ser feita se não por meio de prova directa, pelo menos através de prova indirecta ou indiciária.
Por outro lado, é sabido que um dos meios de prova previstos no Código Civil é a prova por presunções, que consiste na formação de ilações a partir de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (artigo 349.º). Fazendo uso deste meio de prova o julgador recorre a factos que se encontram provados (facto indiciário) e com recurso às regras da experiência inerentes ao princípio da normalidade (id quod plerumque accidit) deles faz derivar um novo facto que carece de prova (facto presumido).
Este meio de prova deve ser usado com particulares cuidados, particularmente quando o nexo lógico que permite a dedução tem por base as máximas da experiência, as quais apelam a padrões médios (cultura média, aptidão média, conhecimento médio, senso comum) sempre difíceis de definir e cuja definição é sempre temporizada e localizada. Todavia, nas situações em que não seja possível ou expectável que possa surgir um meio de prova directo do facto carecido de prova, não se pode recusar às presunções judiciais um papel decisivo na formação da convicção, sendo certo que um dos deveres deontológicos do juiz é o de ter coragem na decisão e não optar pela solução mais fácil do non liquet.
Como já se procurou explicar, o «contrato sob condição» e a escritura de «rectificação» são em si mesmos e no contexto em que surgem absolutamente inverosímeis porque a verificação da condição que alegadamente esteve na sua origem não podia estar comprovada na data que foi aposta naquele contrato, o qual por ser um mero documento particular pode ter sido feito em qualquer data e ter-lhe sido aposta uma data diferente.
A circunstância de tais documentos serem posteriores à citação para a acção denuncia em absoluto a sua orquestração e a respectiva finalidade, sendo certo que quando comunicou aos outros herdeiros ter adquirido os quinhões a ora recorrente não fez a mais pequena alusão ou ressalva a tais documentos ou a outro preço da cessão que não o levado à respectiva escritura, muito embora não devesse ignorar a possibilidade de estes pretenderem exercer a preferência na cessão e antever o interesse para si própria de apresentar o maior preço possível acordado.
Por tudo isso não podemos deixar de assinalar, enfaticamente, a nossa concordância com a decisão de julgar provados os factos dos pontos 43 e 44.
De seguida a recorrente passa à impugnação da decisão de julgar não provados um conjunto de factos, decisão que analisaremos referenciando os factos pelas alíneas que os identificam no elenco dos factos não provados.
O facto da alínea a) tem a seguinte redacção: «a autora CC [prometeu] ceder o seu quinhão hereditário à empresa “B..., Unipessoal, Lda”…».
O que a recorrente pretende que seja julgado provado não é somente esse facto, mas, em rigor, o que foi por si alegado nos artigos 22.º e 23.º da contestação, ou seja, que «os autores, pelo menos os autores BB e CC, ou já cederam efectivamente, ou têm um acordo de cedência, dos seus quinhões hereditários à B...» e «estabeleceram com tal empresa as condições e o preço dos quinhões que lhes transmitiram ou irão transmitir».
Tais factos foram confessados pelas autoras CC e AA no decurso dos respectivos depoimentos de parte, conforme assentada lavrada em acta que o tribunal não podia ignorar, e encontram-se provados documentalmente, através da junção aos autos dos contratos celebrados por documento particular entre os autores e a sociedade B..., sendo que no que respeita ao autor BB as declarações contratuais por ele emitidas foram levadas aos pontos 23, 24 e 25 dos factos provados.
De referir, de novo, que o que deve ser julgado provado é a outorga dos contratos, ou seja, a emissão dasdeclarações de vontade neles manifestada, não a correspondência dessas declarações à vontade real dos intervenientes. Isto porque foi referido pelos intervenientes que tais contratos funcionavam apenas como garantia de reembolso de valores entregues, intenção em relação à qual, face às hesitações dos próprios autores, a algumas incongruências da respectiva versão (por exemplo, na réplica impugnaram factos alegados na contestação que depois vieram a confessar nos depoimentos!) e à dificuldade que houve em obter deles os documentos (começaram por sugerir a inexistência de documentos que depois apresentaram, acompanhados de outros, também particulares, que os revogam!), o tribunal fica com as maiores dúvidas ao ponto de não conseguir julgar provada essa intenção (ou a falta dela!).
Por fim cabe referir que embora não seja mencionado pela recorrente, encontra-se também documentalmente provada nos autos (doc. junto com o requerimento de 08/10/2021) a celebração da escritura de cessão de quinhões entre os autores BB e AA, facto que deve ser igualmente aditado à matéria de facto por ter resultado da instrução da causa e ser complementar da sucessão de contratos alegada nos autos para suscitar a questão da legitimidade substantiva dos autores para exercerem o direito de preferência.
Nesse sentido julgam-se provados e aditam-se à fundamentação de facto da sentença os seguintes factos:
45. Com data de 20 de Fevereiro de 2019 a autora CC e a B... Unipessoal Lda. outorgaram documento particular intitulado «contrato-promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual aquela declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquela era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €65.000, do qual seria pago de imediato a quantia de €10.000 a título de sinal e o remanescente aquando da outorga da escritura de compra e venda.
46. Com data de 19 de Fevereiro de 2021 a B... Unipessoal Lda. e as autoras AA e CC e outorgaram documento particular intitulado «contrato de cedência da posição contratual de promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual a primeira declarou ceder à segunda a posição contratual assumida pela terceira no documento referido no ponto anterior, sendo o preço da cedência de €10.000, que seria pago de imediato por transferência bancária.
25-A. Após isso, em 29 de Janeiro de 2021, os autores BB e AA outorgaram escritura pública intitulada «cessão de quinhão hereditário» na qual aquele declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquele era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €70.000.
A seguir a impugnação tem por objecto os seguintes factos julgados não provados que por estarem relacionados entre si serão analisados em bloco.
g) Porque os autores sabiam que os 1.º e 2.ª rés iriam vender a terceiro … os seus quinhões, decidiram adiar a formalização do seu negócio e, em conluio com esse terceiro, e por forma a adquirirem para esse terceiro o quinhão dos 1.º e 2.º réus, transmitido à 3.ª ré, postergar tal escritura, instaurando os presentes autos funcionando eles autores como figura de palha ou testa de ferro da B..., para, depois, e uma vez reconhecida a preferência e o direito, transmitir a esta B... os quinhões em cuja aquisição pretendem agora preferir.
h) E terá sido a B... ou a sua gerente, II, a entregar aos autores as quantias necessárias a fazer o depósito dos €250.000,00 indispensáveis ao exercício da preferência destes autos, pois que é essa sociedade, representada por tal gerente, que irá adquirir os quinhões preferidos.
s) Os autores AA e CC, depois de terem tomado conhecimento que o preço declarado pelos réus na escritura foi de €250.000,00, ou seja, inferior em €300.000,00 ao preço ajustado entre os réus, no caso de vir a verificar-se a inexistência de impedimento construtivo ao prédio …, que se veio a confirmar, terão contactado a empresa B... … para que esta adquirisse os seus quinhões.
t) E, apesar de terem alienado, ou prometido alienar, os seus quinhões a tal sociedade, terão ajustado com a mesma que iriam exercer a preferência no negócio dos réus, como se tal negócio entre eles autores não tivesse existido, por forma a posteriormente virem a transmitir os quinhões preferidos à B..., Lda., que assim ficaria a deter todos os quinhões.
O que está em causa nestes factos, com excepção de uma passagem da alínea s) que será analisado com o bloco seguinte, é a existência de um acordo entre os autores e a B... no sentido de aqueles exercerem a preferência não para eles próprios, mas por conta e no interesse desta, da qual terão provindo os fundos necessários ao depósito do preço na acção.
Demonstrou-se efectivamente a existência de ligações entre os autores e a aludida sociedade através da outorga dos contratos já mencionados e cujo objecto são os quinhões dos autores nas mesmas heranças indivisas.
Todavia, não se demonstrou que a intenção subjacente a esses contratos fosse efectivamente transferir o prédio que integra as heranças (e que é verdadeiramente o único bem em disputa porque dos outros dois imóveis dos inventariados, um já antes tinha sido vendido e o respectivo produto repartido entre os herdeiros e o outro parece ter um valor muito pequeno) para a sociedade B... uma vez que os autores, o marido da autora AA e as demais testemunhas ouvidas foram enfáticas na afirmação de que a interessada em ficar com o imóvel é a autora AA, não apenas por ter tido com o avó um relação pessoal que o levou a instituí-la, por testamento, herdeira da sua quota disponível, como por ser proprietária de um estabelecimento comercial de restauração instalado no imóvel graças a um contrato de arrendamento de longa duração celebrado precisamente pelo avó.
Acresce que muito embora parte da quantia usada pela autora AA para depositar o preço tenha provindo não da sociedade B... mas de uma irmã da respectiva sócia gerente (a outra parte foi realizada com recursos financeiros próprios e/ou do marido, sendo essa parte a mais significativa), foi mencionado e não motivou grandes dúvidas tratar-se de um conjunto de pessoas unidas por antigos e fortes laços de amizade e convívio, contexto em que a celebração de empréstimos para acorrer a necessidades que tinham de ser satisfeitas em prazo peremptório não é inusitada ou inverosímil, mesmo que algumas dessas pessoas tenham ligação com o mercado imobiliário.
Nesse contexto, pese embora subsistam algumas dúvidas, as mesmas não são suficientes para se julgarem provados os aludidos factos, razão pela qual se mantém o decidido.
Segue-se a impugnação do seguinte bloco de factos:
j) Em Julho de 2018 a Câmara Municipal ... havia condicionado a autorização da construção de fracções com área inferior a 52 m2 apenas nos casos em que fossem criados e associados a tais fracções lugares de estacionamento.
k) Tal condicionante limitava o aproveitamento construtivo do referido prédio, tal como a 3.ª ré pretendia explorá-lo e reconstrui-lo.
l) E foi por tal motivo que a 3ª ré, nas negociações que promoveu com os 1º e 2º réus, acordou e ajustou com os 1º e 2º réus que o preço de €62.500,00 … seria aumentado para € 137.500,00, caso viesse a confirmar que não se verificava tal condicionante construtiva, que, a existir, lhe imporia custos construtivos bastante elevados, com a necessidade de remodelar completamente o edifício, relocalizando e reestruturando a caixa de escadas e criando uma caixa de elevadores.
m) E foi com essa condição que todos os 1.º, 2.º e 3.º réus celebraram a escritura de cessão de quinhões hereditários, tendo todos assinado o contrato sob condição, na mesma data, e em momento contemporâneo com a celebração da escritura.
A estes, há que acrescentar o segmento da alínea s) onde se questiona se após a cedência dos quinhões entre os réus se «veio a confirmar» a «inexistência de impedimento construtivo» no prédio. Está em causa agora, neste conjunto, saber se havia uma exigência administrativa relacionada com o estacionamento que condicionava a reconstrução do imóvel ao nível do número de área das fracções a criar de novo, se foi essa exigência que justificou o preço e a necessidade de ressalvar a hipótese de se conseguir um maior aproveitamento do imóvel e se essa exigência deixou de ser levantada pela Câmara Municipal.
Já antes se explicou que a prova destes factos é absolutamente inexistente e que a única pessoa que de alguma forma se referiu a esta questão (o arquitecto a quem a ré terá recorrido para formar uma ideia sobre o valor do prédio) deixou claro que a avaliação que realizou teve por base a matriz do imóvel e a sua observação por fora (!) e que apenas foi «com uma fotografia à Câmara e pedi[u] informações», com base nas quais deu a sua opinião ao investidor.
Só no reino da fantasia se podia admitir que estas afirmações e este meio de prova podiam ser suficientes para provar a existência de condicionantes administrativas ao aproveitamento do imóvel e quais elas são, cuja prova exigia necessariamente a apresentação de documentos da própria Câmara Municipal que os descrevesse e certificasse a sua aplicação no caso.
O mesmo vale ipsis verbis para o alegado desaparecimento da condição alegada, relativamente ao qual, pasme-se, a testemunha referida apenas afirmou ter tido conhecimento, cerca de um ano depois (o que é incompatível com as datas dos documentos outorgados entre os réus), que a Câmara não teria feito essa exigência numa operação urbanística de recuperação de uma «ilha», como se esta operação não fosse totalmente distinta e não obedecesse a regulamentação e objectivos próprios (!).
Tais factos foram por isso correctamente decididos.
Finalmente, temos o bloco respeitante aos valores de mercado do imóvel e dos quinhões. Tais factos têm a seguinte redacção:
o) O prédio … que integra a herança, tem um valor superior a € 1.500.000,00.
p) Os quinhões hereditários cedidos pelos 1º e 2º réus ao 3º réu têm um valor superior a €750.000,00.
O único meio de prova sobre esta matéria com o mínimo de consistência, excluído o depoimento do arquitecto JJ pelas razões apontadas, é o depoimento do agente imobiliário MM. Pese embora a sua ligação pessoal muito próxima com a autora, a verdade é que ele afirmou valores bem inferiores aos alegados pelos réus, razão pela qual jamais estes podem ser julgados provados nos autos.
Por fim, temos os factos relativos ao preço real acordado pelos réus para a cessão dos quinhões. A sua redacção é a seguinte:
w) Os réus venderam à empresa A... … o quinhão que detinham na herança … pelo preço de €550.000,00 …
x) E nesse mesmo dia celebraram o primeiro e segunda ré com a terceira, o contrato sob condição …
i) O preço real de cada um dos quinhões adquiridos pela ré contestante ascendeu a €137.500,00 …, num total de €550.000,00 …
A análise desta questão e dos meios de prova produzidos sobre a mesma foi feita no início do conhecimento desta impugnação a propósito da decisão de julgar provado o preço de €250.000 declarado na escritura de cessão de quinhões e depois comunicado aos autores. Tal análise que aqui se dá por reproduzida impõe naturalmente a não prova de que o preço declarado tenha sido sujeito a qualquer condição e tenha acabado por ser superior por verificação da condição.
Nessa medida, estes factos manter-se-ão julgados não provados.
IV. Os factos:
Ficam agora em definitivo julgados provados os seguintes factos:
1. No dia 31 de Janeiro de 2005 faleceu GG, casada com DD, sob o regime de comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos, com última residência na Rua ..., ..., Porto.
2. No dia 13 de Agosto de 2016 faleceu DD, no estado de viúvo de GG, com última residência na Rua ..., ..., Porto.
3. Do matrimónio de ambos resultou três filhos, a saber: DD, aqui 1º réu; EE, aqui 2º ré; HH.
4. A falecida GG não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade,
5. Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos DD, EE, HH e seu marido DD.
6. O falecido DD deixou testamento, lavrado no Cartório Notarial do Dr. NN, sito no Porto, no dia 4 de Abril de 2011, nos termos do qual institui herdeira da quota disponível da sua herança, a sua neta, AA, aqui 1ª autora,
7. Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos DD, EE, HH e a sua neta AA, tudo conforme certidão de habilitação de herdeiros e certidão de testamento juntos cfr. doc. 1 e 2.
8. No dia 14 de Setembro de 2018, faleceu HH, no estado de divorciado, com última residência na Rua ..., ..., Porto.
9. Do matrimónio tido, resultou três filhos, a saber: HH[1], aqui 2º autor; CC, aqui 3ª autora; FF, aqui 4ª ré.
10. O falecido HH não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus filhos HH, CC, FF, conforme certidão de habilitação de herdeiros junta sob doc. 3.
11. Sucedendo, desse modo, o HH, a CC e a FF em representação do pai HH nas heranças abertas por óbito da GG e do DD.
12. As heranças abertas por óbito da GG e do DD encontram-se por partilhar e, assim, indivisas.
13. A herança dos falecidos é composta pelos seguintes imóveis: a) urbano inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ..., ... e ..., concelho de Matosinhos; b) rústico inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ... e ..., concelho de Cinfães; c) quotas sociais na sociedade C... Lda., pessoa colectiva n.º ..., da qual faz parte o urbano inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto.
14. Por escritura pública, celebrada no dia 28 de Novembro de 2018, no Cartório Notarial da Dra. OO, sito na Póvoa do Varzim, o 1º réu DD e a 2ª ré EE venderam à 3ª ré A... quatro quinhões hereditários das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de GG e de DD, de que eram titulares.
15. Mais concretamente, o 1º réu vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mãe GG.
16. O 1º réu vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai DD.
17. A 2ª ré vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mãe GG.
18. A 2ª ré vendeu à 3ª ré o quinhão hereditário da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu pai DD.
19. A venda de cada quinhão foi pelo preço de Euros 62.500,00, que foram pagos pela 3º ré aos 1º e 2ª réus, por transferência bancária no dia da celebração da escritura pública, tudo conforme escritura pública de cessão de quinhões hereditários junta como doc 4.
20. Os 1º, 2º e 3º réus não deram conhecimento aos restantes herdeiros, aqui autores, dessa intenção e visada cessão, designadamente do preço de venda, da identificação do adquirente, das condições de venda, da data prevista para escritura, por forma a que os co-herdeiros, entre eles a 1ª e o 2º e 3º autores, pudessem, oportunamente, exercer o seu direito de preferência.
21. Somente, no dia 11 de Dezembro de 2018, após a recepção de carta remetida pela 3ª ré ao 2º autor, este tomou conhecimento das referidas cessões de quinhões hereditários, a qual foi anexa a escritura pública, cfr. doc. 5.
22. E, posteriormente, deu conhecimento às suas irmãs e à 1ª autora, co-herdeiras dessas heranças abertas.
23. O autor HH, em 20 de Fevereiro de 2019, prometeu ceder o seu quinhão hereditário à empresa “B..., Unipessoal, Lda.”, com o número de pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... Porto, sendo gerente da referida empresa II, residente na Rua ..., ..., ... Porto.
24. Tendo estabelecido que o preço de compra e venda a pagar pela promitente compradora seria de €70.000,00, sendo pago na data do contrato, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de €10.000,00 e a parte remanescente de €60.000,00 será paga no acto da escritura pública de compra e venda…, vide contrato promessa junto aos autos a fls. 418.
25. Em 7 de Dezembro 2020 as aludidas partes declararam revogar o aludido contrato promessa, vide Revogação de Contrato Promessa de Compra e Venda de Quinhão Hereditário de fls. 427.
25-A) Após isso, em 29 de Janeiro de 2021, os autores BB e AA outorgaram escritura pública intitulada «cessão de quinhão hereditário» na qual aquele declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquele era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €70.000.
26. Os réus procederam à rectificação do preço, através de escritura pública de 5 de Junho de 2019, e ao pagamento dos competentes impostos devidos ao Estado pela transmissão pelo correspondente preço de €550.000,00, conforme doc. 1 e 2 da contestação.
27. Consta do doc. 3 da contestação que: No dia 28 de Novembro de 2018 o 1º réu, por si e em representação da 2.ª ré, celebram um acordo com a 3.ª ré, denominado “contrato sob condição”, subordinado às seguintes cláusulas:
«Contrato sob condição
Outorgantes:
Primeiro: DD, divorciado, natural da freguesia ..., concelho do Porto, com residência habitual na Rua ..., ..., R/C, na Póvoa de Varzim, contribuinte n.º ..., CC n.º ... válido até 16/06/2021;
Intervém por si e na qualidade de procurador de: EE, divorciada, natural da freguesia ..., concelho do Porto, com residência habitual na Rua ..., ..., ..., na Póvoa de Varzim, contribuinte nº ..., no uso de poderes conferidos por procuração que é anexa a este contrato
Segunda: A..., SA, pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., sala ..., ... Porto, aqui representada por PP, solteiro, maior, natural da freguesia ..., concelho de Cabeceiras de Basto, residente no lugar ..., em ..., concelho de Cabeceiras de Basto, portador do CC n.º ..., válido até 24/10/2027, e com poderes para o acto;
Primeira
O primeiro outorgante, e a sua representada, são donos dos quinhões hereditários que compõem as heranças ilíquidas e indivisas aberta por óbito de seus pais, GG, que também usava GG e GG, e marido DD, que eram residentes na Rua ..., ..., habitação ..., na cidade do Porto; faleceram, respectivamente, em trinta e um de Janeiro de dois mil e cinco e em treze de Agosto de dois mil e dezasseis; foram casados um com o outro em únicas núpcias e no regime de comunhão geral de bens.
O autor da herança, DD, deixou testamento público, outorgado em quatro de Abril de dois mil e onze, exarado a folhas cento e sete, do livro ..., do notário NN, com cartório na cidade do Porto, no qual institui herdeira da quota disponível da sua herança a sua neta, AA, que também usa AA.
Segunda
As heranças, com os números de identificação fiscal ... e ..., são compostas actualmente pelos seguintes imóveis: a) Prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., ... e ..., concelho de Matosinhos; b) Prédio Rústico inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ... e ..., concelho de Cinfães; c) Quotas sociais na sociedade C..., Lda., pessoa colectiva nº ..., já dissolvida, mas ainda não liquidada, da qual faz parte o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto;
Terceira
Nesta data, de vinte e oito de Novembro de dois mil e dezoito, o primeiro outorgante irá celebrar com a segunda outorgante escritura de cessão dos referidos quinhões hereditários, atribuindo a cada um de tais quinhões o preço de sessenta e dois mil e quinhentos euros.
Quarta
1.- Os outorgantes acordam que é condição essencial do preço atribuído à cessão de quinhões, que nesta data irão celebrar, a condicionante construtiva imposta pela Câmara Municipal ..., desde Julho de dois mil e dezoito, para o prédio que compõe as quotas da sociedade dissolvida, mas ainda não liquidada, da herança, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., do concelho do Porto, sito à Praça ..., ..., que determina que fracções com área inferior a cinquenta e dois metros quadrados apenas sejam autorizadas e licenciadas na construção, desde que sejam criados e associados às mesmas lugares de estacionamento.
2.- Em virtude de tal condicionante camarária, e porque a mesma restringe a capacidade construtiva do dito edifício, não podem ser projectadas e/ou desenvolvidas mais do que uma fracção de tipologia T-2 ou T-1+1, em cada piso, e com a necessidade de remodelar completamente o edifício, relocalizando e reestruturando a caixa de escadas e criando uma caixa de elevadores.
Quinta
Os outorgantes aceitam, e acordam reciprocamente entre si, que caso venha a ser alterada esta condicionante construtiva, ou confirmado que a mesma não é imposta pela Câmara Municipal ...; ou ainda, caso a segunda outorgante venha a obter o licenciamento e autorização de construção de mais do que uma fracção por piso, e com as dimensões mínimas necessárias, de forma a não ser obrigatória a criação de aparcamentos, o preço de cada quinhão hereditário será alterado de sessenta e dois mil e quinhentos euros para cento e trinta e sete mil e quinhentos euros, cuja diferença, no montante de setenta e cinco mil euros por cada quinhão, a segunda outorgante se obriga a pagar ao primeiro outorgante.
Sexta
1.- No caso de se verificar a condição prevista na cláusula anterior, o primeiro outorgante poderá exigir da segunda outorgante o pagamento do remanescente do preço.
2.- Caso não acordem na forma e prazo de pagamento do referido remanescente do preço, assiste o direito à segunda outorgante de proceder ao seu pagamento ao primeiro outorgante no prazo máximo de dois anos a contar da data em que vier a confirmar-se que não existe a condicionante construtiva camarária que à presente data consideram verificar- se, ou a partir da data em que vier a ser licenciado ou autorizado um qualquer instrumento administrativo camarário para realização de obras no referido prédio que consagre tais alterações construtivas, de criação de mais do que uma fracção em cada piso, ou a inexistência de imposição camarária de criação de lugares de estacionamento para fracções com menos de cinquenta e dois metros quadrados.
3.- Caso por qualquer motivo a segunda outorgante não vier a proceder a tal pagamento ao primeiro outorgante, ou não alcançarem acordo sobre a forma e modo do mesmo, assiste ao primeiro outorgante o direito a resolver o contrato de cessão de quinhões hereditários que nesta data irá celebrar, reavendo o primeiro outorgante para si os quinhões cedidos, contra a devolução, à segunda outorgante, do preço de sessenta e dois mil e quinhentos euros que ele irá receber por cada um deles.
Sétima
Este contrato, assim como a escritura de cessão de quinhões hereditários, que hoje será celebrada, é feito por preço global, sendo que em caso de anulação ou resolução da venda de um dos quinhões, todos os demais serão anulados e/ou resolvidos.
Por corresponder à sua vontade, assim o declararam.
Feito na Povoa de Varzim, ao 28 de Novembro de 2018.
Os primeiros outorgantes:
A 3.ª ré, conforme acima declarado, comprometeu-se a pagar aos 1.º e 2.º réus o remanescente do preço, no montante de €75.000,00 (…) para cada quinhão, e por forma a perfazer o total de €550.000,00 (…), caso viesse a confirmar a capacidade construtiva do prédio que compõe as quotas da sociedade dissolvida, mas ainda não liquidada, da herança, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., ..., ..., ..., ... e ..., do concelho do Porto, sito à Praça ..., ..., Porto.»
28. Entretanto, a 3ª ré ajustou com os 1.º e 2.º réus que tal remanescente de preço, corrigido em relação ao preço originário, seria pago da seguinte forma:
- €85.000,00 (…) através da assunção da dívida que o primeiro outorgante, DD contraiu perante QQ e mulher RR, garantida por hipoteca celebrada no cartório notarial da Dra. OO em 18 de Dezembro de 2018, divida essa assumida em 9 de Abril de 2019;
- €215.000,00 (…) através da entrega de 10 cheques, com os seguintes montantes e datas de pagamento:
- €25.000,00 (…) cheque nº ... com data de vencimento o dia 05/06/2019
- €25.000,00 (…) cheque nº ... com data de vencimento o dia 05/07/2019
- €25.000,00 (…) cheque nº ... com data de vencimento o dia 05/08/2019
- €25.000,00 (…) cheque nº ... com data de vencimento o dia 05/09/2019
- €25.000,00 (…) cheque n.º ... com data de vencimento o dia 05/10/2019
- €30.000,00 (…) cheque n.º ... com data de vencimento o dia 05/11/2019
- €30.000,00 (…) cheque n.º ... com data de vencimento o dia 05/12/2019
- €30.000,00 (…) cheque n.º ... com data de vencimento o dia 05/01/2020.
29. Tendo a 3ª ré iniciado o seu pagamento, através de prestações mensais de €15.000,00 cada, que realizou em 30 de Abril de 2019, 29 de Maio de 2019 e 01 de Julho de 2019, e entregou aos 1.º e 2.º réus os cheques, de que já foi liquidado o primeiro, com o nº ..., em 05 de Junho de 2019, debitado em 14 de Junho de 2019, conforme DOC.4, 5, 6, 7 e 8 da contestação.
30. O réu DD comunicou ao Município ... se pretendia exercer o direito de preferência na aquisição do imóvel sita na Praça ..., no Porto, em virtude de este imóvel se situar em local classificado como de “Interesse Público”,
31. Tendo esta entidade por carta datada do dia 23/10/2018 referido que não estava interessada na aquisição do imóvel, conforme carta junto sob doc. 2 da contestação.
32. Em 12/11/2018, através de carta, o réu DD, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de GG de DD, notificou a autora- AA, para enviar cópia do contrato de arrendamento que havia celebrado com a empresa “C..., Lda.”, a fim de verificar a legitimidade daquela ocupar a fracção, conforme doc. 3.
33. A autora AA não enviou o contrato solicitado.
34. Os autores só tomaram conhecimento dos “acordos” com a notificação das contestações, nos presentes autos.
35. Quando os autores tomaram conhecimento da escritura pública de compra e venda do dia 28 de Novembro de 2018, em nenhum momento foi comunicado pelos réus DD, EE e A... a existência da agora “condição”, comunicando somente a concretização da compra e venda dos quinhões pelo valor global de Euros 250.000,00 e qual tal valor já tinha sido pago.
36. A primeira comunicação foi feita pelo réu DD aos AA, verbalmente, nos dias seguintes à realização da escritura pública de compra e venda dos quinhões, em que comunicou a venda pelo preço global de Euros 250.000,00, nada falando sobre o “contrato sob condição”, tão pouco sobre a possibilidade do preço da venda acrescer mais do dobro.
37. Só mais tarde, com o recebimento da carta com data de 10 de Dezembro de 2018, enviada pela ré A..., é que os autores tomaram conhecimento efectivo de todas as condições do negócio.
38. E nessa comunicação, agora escrita, nada foi falado sobre o alegado “contrato sob condição”, sobre a possibilidade de o preço da venda acrescer mais do dobro, tão pouco, foi junto o tal “contrato sob condição” à referida carta, em que tinha sido junto a escritura pública de compra e venda do dia 28 de Novembro de 2018.
39. Do texto desta carta lê-se o seguinte: “Vimos, por este meio informar que, no passado dia 28/11/2018 adquirimos o quinhão hereditário que o DD e EE detinham na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG e de DD, falecidos em 31/01/2005 e 13/08/2016, respectivamente, conforme cópia da escritura que anexamos.”
40. Em 03 de Fevereiro de 2019, a autora AA cruzou-se, no prédio sito na Praça ..., pela primeira vez, com pessoas que se apresentaram como representantes da A....
41. Surpreendida com essa presença, uma vez que, inicialmente, não sabia de quem se tratava, foi lhe comunicado os termos do negócio realizado com os réus DD e EE – pagamento dos quinhões pelo preço global de Euros 250.000,00, sem qualquer menção do alegado “contrato sob condição” e possibilidade do preço subir.
42. E nos contactos que a ré A... teve com o autor BB, no sentido de lhe comprar o seu quinhão, não mencionou nada sobre o alegado “contrato sob condição”.
43. Só com a entrada da presente acção, em 12 de Abril de 2019, após a A... ter sido citada, é que os réus DD, EE e A... engendraram esse plano, fabricando o documento, apondo-lhe um conteúdo e uma data falsa.
44. O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores.
45. Com data de 20 de Fevereiro de 2019 a autora CC e a B... Unipessoal Lda. outorgaram documento particular intitulado «contrato-promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual aquela declarou vender e esta declarou comprar os quinhões hereditários de que aquela era titular nas heranças abertas por óbito dos avós, pelo preço de €65.000, do qual seria pago de imediato a quantia de €10.000 a título de sinal e o remanescente aquando da outorga da escritura de compra e venda.
46. Com data de 19 de Fevereiro de 2021 a B... Unipessoal Lda. e as autoras AA e CC e outorgaram documento particular intitulado «contrato de cedência da posição contratual de promessa de compra e venda de quinhão hereditário» no qual a primeira declarou ceder à segunda a posição contratual assumida pela terceira no documento referido no ponto anterior, sendo o preço da cedência de €10.000, que seria pago de imediato por transferência bancária.
V. O mérito do recurso: A] do direito de preferência dos autores BB e CC:
A presente acção é a chamada acção de preferência a que faz referência o artigo 1410.º do Código Civil, isto é, a acção através da qual o titular do direito de preferência, ao qual não foi dado conhecimento do negócio jurídico onde tem preferência, exerce esse direito por via judicial, pedindo ao tribunal que o substitua na posição de adquirente nesse negócio jurídico, a troco do pagamento da contrapartida.
Como em relação a qualquer outro direito disponível, quem se pode apresentar a exercer o direito é o respectivo titular, razão pela qual o primeiro pressuposto que se deve verificar para que a acção possa proceder consiste em o autor ser titular do direito invocado como causa de pedir.
O direito em causa na acção é o direito legal de preferência previsto no artigo 2130.º do Código Civil. Segundo o n.º 1 deste preceito, «quando seja vendido ou dado em cumprimento a estranhos um quinhão hereditário, os co-herdeiros gozam do direito de preferência nos termos em que este direito assiste aos comproprietários».
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, 1998, página 211, afirmam o seguinte em comentário a este preceito: «O direito de preferência, que o artigo 2130º concede aos co-herdeiros na venda ou doação em cumprimento a estranhos do quinhão hereditário de qualquer deles nasce do interesse que a lei tem de reunir nas mãos do menor número deles a titularidade dos diversos quinhões em que a sucessão fraccionou a unidade da herança. Os termos em que o direito de preferência (no sentido do direito de prelação, ou preempção) é admitido em benefício dos co-herdeiros são exactamente os definidos nos artigos 1409.º e 1410.º, e, por força da remissão contida no primeiro destes, os dos artigos 416.º a 418.º. Tal como acontece na compropriedade, o direito de preferência não tem lugar na venda ou dação em cumprimento do quinhão hereditário feita por um dos herdeiros a qualquer dos co-herdeiros. A preferência só tem cabimento, como neste artigo 2030.º expressamente se diz, na venda ou dação em cumprimento do quinhão hereditário a estranhos. […] Concedido aos co-herdeiros (contra os estranhos à herança), ele só aproveita manifestamente, pelo seu espírito, àqueles que forem herdeiros à data da realização da venda ou dação em cumprimento em relação à qual se pretende exercer a preferência - e já não àqueles que, tendo sido anteriormente herdeiros, tiverem, entretanto, vendido (ou dado em cumprimento) o seu quinhão hereditário. Esses foram – mas já não são co-herdeiros na altura em que a venda ou dação em cumprimento do quinhão hereditário, exposta à preferência, se realizou».
Desde modo, para poderem exercer a preferência na venda a terceiros (cessão) que os réus fizeram dos respectivos quinhões hereditários nas heranças abertas por óbito de GG e DD, pais dos cedentes e avós dos autores, é necessário que os autores possuam igualmente a qualidade de herdeirosdestes: o direito de preferência só é concedido aos co-herdeiros, não, por exemplo, aos descendentes destes.
Na sentença afirma-se de uma penada que «resulta da factualidade provada que os AA. são herdeiros e nessa medida assiste-lhes o direito de preferência».
Em relação à autora AA não há dúvidas.
Ela não é herdeira da avó GG, mas é herdeira testamentária do avô DD, porque este em testamento a instituiu herdeira da respectiva quota disponível, sendo que os negócios jurídicos nos quais ela deseja preferir são apenas os de venda dos quinhões de dois outros herdeiros (filhos do inventariado e pai e tia da autora) na herança aberta por óbito do avô.
Já os demais autores alegaram no artigo 12.º da petição inicial que são herdeiros dos seus avós, GG e DD, «em representação» do pai HH, entretanto falecido.
Esta alegação encerra uma conclusão que resultará ou não da aplicação de normas e conceitos jurídicos a uma determinada factualidade (os óbitos e as relações familiares), constituindo por isso pura matéria de direito. Daí que a circunstância de os autores terem alegado, mal, nesse artigo da petição inicial a qualidade de herdeiros dos avós, de os réus terem aceite, mal, essa alegação, e de o Mmo. Juiz a quo ter transposto, mal, essa alegação para o ponto 11 da fundamentação de facto, afirmando que os autores «sucederam» «nas heranças abertas por óbito» dos avós «em representação do pai», não determina que se tenha de aceitar como correcta a conclusão jurídica que está em causa.
É juridicamente correcto afirmar que os autores BB e CC são herdeiros dos avós, por representação do pai? Salvo melhor opinião, não.
Os herdeiros de cada uma das classes de sucessíveis preferem aos das classes imediatas (artigo 2134.º do Código Civil) e dentro de cada classe os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado (artigo 2135.º do Código Civil).
Assim, porque o seu pai faleceu depois dos seus avós paternos, os autores são herdeiros do seu falecido pai e este, por ter falecido depois dos respectivos pais e avós dos autores, é que é herdeiro daqueles. O quinhão hereditário do pai dos autores na herança aberta por óbito dos avós, passou, por morte daquele, a integrar a respectiva herança, na qual são herdeiros os autores BB e CC e ainda a ré FF.
O facto de serem herdeiros legítimos numa herança que compreende o quinhão hereditário do falecido na herança de um antepassado, não torna os autores, só por isso, herdeiros legítimos na herança desse antepassado. Tal só acontece, na sucessão legítima ou testamentária, com fundamento no chamado direito de representação, regulado nos artigos 2039.º e seguintes do Código Civil.
Nos termos desse preceito, dá-se a representação sucessória, quando a lei chama os descendentes de um herdeiro ou legatário a ocupar a posição daquele que não pôde ou não quis aceitar a herança ou o legado.
Na obra acima citada, página 47, Pires de Lima e Antunes Varela, comentam que «como o próprio nome do instituto (direito de representação) de algum modo sugere e o texto da disposição claramente indica, o participante na sucessão através do direito de representação não é directa ou imediatamente chamado, mas apenas por ser descendente do herdeiro ou do legatário, que seria o imediatamente chamado, mas que não pôde ou não quis aceitar a herança ou o legado. E a página 48 comentam que «(...) o chamamento dos descendentes, representativamente, à herança de alguém não significa, de modo nenhum, que eles estejam a exercer direitos em nome ou no interesse de outrem (representado). Eles são chamados iure próprio e actuam no interesse próprio. Diz-se que são chamados por direito de representação apenas para significar eles irão ocupar, na instituição de herdeiro ou na nomeação do legatário, a posição que ocuparia o seu ascendente, se fosse este o chamado. O representado não é, neste caso, a pessoa em cujo nome se realiza o acto ou em cujo interesse se actua, mas apenas a pessoa que se toma como ponto de referência na definição do conteúdo do direito próprio de outrem (o verdadeiro chamado)».
É, portanto, pressuposto do chamamento por direito de representação que o herdeiro originário não tenha podido ou não tenha querido aceitar a herança, só nesse caso os seus descendentes são chamados à herança do autor da sucessão em representação do seu ascendente e passam a ter nessa herança um direito próprio de herdeiros. A falta, hoc sensu, do herdeiro originário (representado) que permite ao respectivo descendente ser chamado em seu lugar (representativamente) por aquele não ter podido aceitar a herança ocorre nas seguintes situações: a) nos casos em que o representado faleceu antesdo autor da herança que é a situação mais frequente; b) nos casos de incapacidade por indignidade declarada (artigo 2037.º, n.º 2); c) nos casos de ausência (artigo 120.º); d) nos casos de deserdação (artigo 2166.º, n.º 2). Já a falta por ele não ter querido aceitar o chamamento ocorre nos casos de repúdio da herança (artigo 2062.º do Código Civil) – cf. Pereira Coelho, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, n.º 2, página 231 –.
Ora na petição inicial os autores não alegam em primeiro lugar se a herança aberta por óbito do seu pai, que alegadamente representam na herança aberta por óbito dos avós, se encontra ainda por partilhar ou já foi partilhada, tal como não alegam a ocorrência de qualquer das situações em que existiria o direito de representação, sendo certo que uma delas, a mais frequente, está totalmente arredada na medida em que os avós faleceram, respectivamente, em 31.01.2005 e 13.08.2016, e o pai apenas faleceu depois dessas datas, mais propriamente em 14.09.2018, circunstância que afasta a pé-morte que faria surgir o direito de representação.
Nesse contexto, devemos concluir que os autores BB e CC não são titulares do direito de preferência que pretendem exercer por via da acção porque não são herdeiros dos avós (em representação do pai) e o negócio jurídico em relação ao qual esse direito está colocado é a cessão de quinhões hereditários na herança destes.
Se o pai dos autores HH tivesse sido titular desse direito, a acção de preferência tinha de ser instaurada conjuntamente por todos os seus herdeiros, nessa qualidade (artigo 2091.º do Código Civil), ou, se a respectiva herança já tivesse sido partilhada, pelo herdeiro ao qual tivesse cabido em partilha tal direito de preferência se porventura os herdeiros tivessem representado o direito em causa e procedido à respectiva partilha.
Ora para além de os autores BB e CC terem instaurado a acção na qualidade, que, como vimos, não possuem, de herdeiros dos avós por direito de representação do seu pai, para exercerem um direito de preferência que dizem ser próprio, e não na qualidade de herdeiros do seu pai e para exercer um direito de preferência deste, transferido para a respectiva herança, resulta dos autos que também é herdeira deste a filha FF, a qual não intervém na acção na qualidade de autora conforme seria necessário para assegurar a legitimidade judiciária.
Acresce que muito provavelmente nem essa hipótese se pode colocar.
Com efeito, o direito de preferência em causa é um direito atribuído pela lei à pessoa do herdeiro, em função dessa sua qualidade de herdeiro. No caso a cessão dos quinhões na qual se pretende exercer o direito de preferência foi celebrada no dia 28/11/2018, ou seja, foi celebrada posteriormente ao falecimento do pai dos autores ocorrido em 14/09/2018. Por outras palavras, quando o negócio jurídico cuja celebração podia dar origem à constituição de um direito de preferência de terceiro, já aquele tinha falecido.
Ora, com o falecimento de uma pessoa cessa a respectiva personalidade jurídica (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que a pessoa deixa de poder adquirir novos direitos, passando aqueles de que ele já era titular e dotados de conteúdo patrimonial a integrar a respectiva herança para efeitos de partilha pelos respectivos herdeiros.
Logo, ainda que se admita que o direito de preferência adquirido (em vida) pelo herdeiro se transfere, por morte (posterior) deste, para a herança e seja exercido pelos respectivos herdeiros, não parece compatível com as regras que regulam a personalidade jurídica da pessoa que um direito que não se chegou a constituir em vida (do herdeiro), se constitua apenas após o respectivo óbito, encabeçando-se nos respectivos herdeiros que não possuem (nem pessoalmente, nem por direito de representação) a qualidade que era pressuposto da constituição do direito.
Em suma, a acção instaurada pelos autores BB e CC tem de ser julgada improcedente.
Refira-se que a nosso ver não existe obstáculo processual ao conhecimento desta questão.
Com efeito, por um lado, trata-se de uma mera questão de qualificação jurídica dos factos alegados para afirmar a titularidade do direito de preferência dos autores da acção, titularidade que é naturalmente pressuposto jurídico do exercício do direito e, por isso, constitui matéria de conhecimento oficioso.
Por outro lado, em qualquer circunstância o recurso tem por objecto a decisão, não os respectivos fundamentos, e no recurso continua a ser colocada a questão de ilegitimidade substantiva dos autores BB e CC para o exercício do direito de preferência, ainda que com fundamento diferente (no recurso alega-se a ilegitimidade substantiva subsequente à cedência a terceiros da posição de herdeiros; a nosso ver, a ilegitimidade é prévia à instauração da acção e advém de eles não serem sequer originariamente herdeiros das heranças em relação à qual querem exercer o direito de preferência).
Diga-se, por fim, que a conclusão a que chegamos prejudica a análise da questão da ilegitimidade material ou substantiva dos autores BB e CC concretamente suscitada no recurso.
B] do preço pelo qual é exercida a preferência pela autora AA:
A recorrente sustenta que o preço pelo qual a preferência pode ser exercida pela autora AA é o preço mencionado na escritura de rectificação da escritura de cessão dos quinhões, ou seja, de €275.000,00 e não de €125.000,00.
A questão era essencialmente de facto e foi decidida aquando do julgamento da matéria de facto e da fixação da fundamentação de facto da decisão.
O preço pelo qual os herdeiros DD e EE cederam em conjunto à ora recorrente os seus quinhões na herança aberta por óbito do seu pai foi de €125.000,00, e não de €275.000,00.
Com efeito, demonstrou-se que a elaboração do documento particular intitulado contrato sob condição e a celebração, já depois da instauração da acção, de uma escritura com o objectivo de aumentar significativamente o preço declarado na escritura de cessão de quinhões que está na origem da preferência, são actos simulados, que não correspondem a uma vontade real e foram praticados com o fim exclusivo de enganar a autora e o tribunal e evitar ou dificultar o exercício da preferência.
Diga-se, aliás, que ainda que assim não fosse, a pretensão da recorrente de opor à autora a modificação do preço teria de ser impedida com recurso à figura do abuso do direito.
Com efeito, tendo a cessão dos quinhões sido acordada e depois celebrada sem se permitir à autora, como era obrigação legal dos outorgantes do contrato, exercer a sua preferência legal e tendo depois disso a recorrente comunicado à autora, antes de esta instaurar a acção, que havia adquirido os quinhões por um determinado preço, sem, na ocasião, mencionar a existência de qualquer condição contratual com relevo para a fixação do preço e/ou que permitisse que ele acabasse por ser bem maior do que aquele que foi declarado na escritura, a sua intenção de opor à autora um preço superior não se ajusta à conduta que os ditames da boa fé em sentido objectivo (do padrão de comportamento) impõem a uma contraparte exigivelmente leal, correcta e honesta.
A autora, em face da comunicação que lhe foi feita podia legitimamente confiar que o preço contratado era o anunciado sem reservas na comunicação, sendo certo que a decisão sobre o exercício da preferência é sempre influenciada decisiva e especialmente pelo quantum do preço e que para exercer a preferência tinha de reunir o capital necessário para depositar o preço, tudo razões que conduzem a que o direito deva tutelar essa confiança legítima cuja causa essencial é o comportamento da contraparte.
Não se diga que a autora sai injustificadamente enriquecida com essa solução. O direito de preferência está consagrado legalmente por referência a um concreto negócio jurídico e a aquisição do direito transmitido faz-se pelo preço acordado entre as partes daquele negócio, independentemente do seu acerto, correcção ou correspondência com o valor real da coisa transmitida. O direito de preferência é o direito de ocupar a posição de parte num determinado negócio jurídico caso o preferente aceite os termos do contrato.
Tal como não é permitido ao preferente negociar o contrato ou interferir nas negociações com terceiro, mas somente tomar a posição que este assumiria se o contrato cujas condições foram acordadas fosse concretizado, também não está compreendido na configuração legal do direito que o preferente possa requerer (defendendo que ele deve ser inferior ao acordado) ou ser-lhe imposta (pela contraparte com o argumento de que ele é superior ao acordado) o ajustamento do preço para o justo valor de mercado da coisa.
Como quer que seja, repete-se, está demonstrado o preço real, pelo que a preferência tem de ser reconhecida por referência a esse preço. Improcede por isso esta questão suscitada no recurso.
C] da litigância de má fé da recorrente:
As partes acusaram-se mutuamente de litigância de má-fé.
Na sentença recorrida apenas se conheceu da litigância de má-fé dos autores; não se conheceu da mesma questão quanto aos réus, apesar de suscitada pelos autores. Essa deficiência, que consubstancia uma nulidade por omissão de pronúncia, não foi acusada no recurso ou na resposta ao mesmo.
Esta circunstância não impede, todavia, esta Relação de se pronunciar sobre a litigância de má-fé da recorrente com fundamento em que a mesma se estende ou se manifesta também ou apenas neste recurso. Após ter sido dada oportunidade à parte para se pronunciar, passamos a analisar e decidir: a litigância de má-fé da recorrente no recurso.
O artigo 20.º da Constituição de República Portuguesa, tal como depois o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil, consagra o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O direito de acesso à justiça é assim um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais.
Nos processos judiciais as partes estão vinculadas ao dever de boa-fé processual que emana do princípio da cooperação, do qual decorre um verdadeiro dever jurídico de verdade, isto é, de apresentar os factos tal como, em sua opinião, eles ocorreram. A violação desse dever de verdade é sancionada através da qualificação da lide como litigância de má-fé e da sujeição às respectivas consequências.
Nos termos do artigo 542.º do Código de Processo Civil, litiga de má-fé a parte que, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como muito bem se menciona no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.06.2014, proc. n.º 117/13.1TBPNF.P1, in www.dgsi.pt, «o instituto da litigância de má-fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade. A concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental. Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida. Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes. Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça. Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má-fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave».
Também no Acórdão da Relação do Porto de 20.10.2009, proc. n.º 30010-A/1995.P1, in www.dgsi.pt, se escreveu com proficiência o que a seguir se reproduz e merece a nossa total adesão:
«A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, face ao uso que possa ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária. A litigância de má-fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável). Em ambas as modalidades está sempre em causa ‘um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais’ com uma das finalidades apontadas no nº 2 do art. 456º do C.P.C., circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto ‘às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais’. (…) Trata-se, como assinala Pedro Albuquerque, de uma responsabilidade com cunho próprio, que a distingue da responsabilidade civil (não interferindo uma com a outra, podendo perfeitamente coexistir), assentando em deveres de cooperação e probidade, pressupondo, por isso, violação de obrigações ou situações processuais, autónomas relativamente ao direito substantivo.
O instituto não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes acautelando um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má-fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial (…)a tutela ‘das posições substantivas ou materiais eventualmente atingidas pela parte responsável por má-fé processual caberá, por conseguinte, a outros institutos próprios do direito substantivo como o abuso do direito e a responsabilidade civil’
A condenação como litigante de má-fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que faz do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável. (…)
A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé.
Atendendo aos fundamentos do instituto (princípio da cooperação e dever de boa fé processual), aos interesses que através dele se pretende afirmar (respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça) e finalidades que se visam alcançar (moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça) e, também, à própria natureza sancionatória do instituto (dele resulta a aplicação de multa), tem de considerar-se que o critério para aferir e apreciar a negligência que ele pressupõe não pode coincidir com o critério para apreciação da culpa na responsabilidade civil extracontratual (critério de apreciação objectiva, em que a culpa se afere pelo confronto com o tipo abstracto de pessoa normalmente diligente e prudente – o bom pai de família, nos termos do art. 487º, nº 2 do C.C.). (…)
As carências pessoais, seja por falta de conhecimentos, de perícia, de forças físicas ou intelectuais, ou de particulares inaptidões são tidas em conta na configuração normativa do ilícito processual, como resulta do art. 266º, nº 4 do C.P.C.. O dever de cooperação que impende sobre a parte e que lhe legalmente exigido tem de ter correspondência nas suas naturais faculdades para o cumprir. Assim, o critério para apreciação da negligência (tanto mais que estamos a reportar-nos a uma sanção por ilícito processual, diverso do ilícito civil), não pode deixar de ser referenciado ao padrão de conduta exigível ao agente (à parte), ajustado à sua idade, às suas carências pessoais e particulares inaptidões.
A prática do ilícito processual pela parte (por aquela concreta pessoa que é parte no processo) só pode ser-lhe imputada a título de negligência quando não proceder com o cuidado e diligência (o padrão de conduta) a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e era capaz. Trata-se de um critério subjectivo e concreto, pois que as capacidades próprias da parte são o limite aos seus deveres de boa-fé processual e de cooperação – para lá das capacidades próprias da parte não existe dever de cooperação e logo, não poderá haver negligência (aliás, para lá das possibilidades de ‘diligenciar’ e ‘cuidar’ não pode haver dever de cooperação).
Na avaliação e graduação da culpa, para apurar de litigância de má-fé, deve atender-se à diligência do bom pai de família (ao padrão de conduta exigível a uma pessoa razoável, normalmente cuidadosa e prudente) mas atender ainda às circunstâncias do caso concreto. Esta aferição da culpa em função das capacidades pessoais do agente coaduna-se coma exigência legal ‘que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art. 1º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má fé’, sendo certo que a má-fé processual ‘é, actualmente, uma má-fé ética, encontrando os seus limites ou contraponto, na boa fé ética’.»
Constitui entendimento absolutamente pacífico que a mera perda da demanda nunca é suficiente para permitir concluir pela ilegitimidade da iniciativa processual e pela litigância de má-fé (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.98, 27.02.03 e 05.05.05, todos in www.dgsi.pt e Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 353).
Como se afirmou no Acórdão desta Relação de 12.05.2005, in www.dgsi.pt, «a simples proposição de uma acção ou contestação, embora sem fundamento, pode não constituir uma actuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte. A incerteza da lei, a dificuldade em apurar os factos e os interpretar, podem levar as consciências honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devem cumprir. O que releva é que as circunstâncias devam levar o tribunal a concluir que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundada (em Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, II, 263). Se na vigência da lei processual, anterior à redacção do DL 329-A/95, subjacente ao disposto no artigo 456º do CPC, existia uma intenção maliciosa, ou má-fé em sentido psicológico, e não apenas um a leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético), a lei actual apenas exige que exista negligência grave ou grosseira para censurar a parte, quando esta actua com a falta de precaução pela mais elementar prudência que deve ser observada nos usos correntes da vida. Mas só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser censurada como litigante de má fé, o que pede prudência ao julgador, sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro (a verdade absoluta só está ao alcance da divindade e a humana corre o risco da contingência e relatividade) mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico (cfr. Ac. STJ, de 11.12.2003, no proc. 03B3893, em www.dgsi.pt). Não basta que a parte não veja acolhida a sua pretensão ou a sua versão dos factos. Pode defender convicta, séria e lealmente uma posição sem dela convencer o tribunal. As circunstâncias do caso hão-de permitir se conclua que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundadas, estar-se perante uma situação em que não deva deixar dúvida razoável sobre a conduta dolosa ou gravemente negligente da parte. Por não se provar determinado facto ou factos, não poderá concluir-se pelo facto contrário (em sede de censura à parte por má fé). Nem será por a parte não provar a veracidade de determinada afirmação que pode concluir-se, só por essa situação negativa, pela falsidade ou desconformidade do alegado com a verdade. Significa apenas que não logrou convencer o tribunal dessa posição. A falta de razão não significa sempre má-fé, a não ser que a parte dela tenha consciência e, apesar disso, formule pretensão ou deduza oposição em juízo.»
É igualmente jurisprudência uniforme dos tribunais superiores o entendimento de que “a litigância de má-fé exige que quem pleiteia de certa forma tem a consciência de não ter razão” e que “a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 456º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, todavia, se não forem observados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má-fé” (cf. por todos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.09.2012, relatado por Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt).
Da mesma forma que se vem entendendo que a defesa pode ser temerária e contrária a uma realidade objectiva sem que haja litigância de má-fé pois esta deriva “da verificação de uma actuação e condutas contrárias a uma utilização adequada e correcta de um meio processual. Aquele que sabendo que usa um meio processual para atingir um fim contrário a um fim licito e desconforme ao direito, fazendo-o de forma intencional, usa de má-fé. … A conduta do agente deve ser desvaliosa e intencional, o que vale por dizer que deve apresentar-se como contrária a um padrão de conformidade da acção pessoal do sujeito processual com o dever de agir de acordo com a juridicidade e a lei” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2011, in www.dgsi.pt).
Este instituto apenas penaliza a conduta cometida com dolo ou com negligência grave, ou seja, a imprudência grosseira, que é manifesta aos olhos de qualquer um, que foi resultado da não adopção daquele mínimo de diligência que era possível e que permitiria dar conta da falta de fundamento para o acto. A negligência comum, desculpável, não basta para qualificar a litigância.
Aplicando estes dados ao caso concreto parece forçoso concluir que (ao menos) no presente recurso a recorrente litigou de má fé.
Na verdade, provou-se com total segurança que a recorrente, confrontada com a instauração da acção de preferência, inventou uma convenção sobre o preço pelo qual havia adquirido os quinhões para sustentar a sua oposição ao exercício da preferência, elaborando um documento particular com uma data falsa e um conteúdo não correspondente à vontade real das partes e outorgando depois uma escritura na qual repetiu a declaração desse facto, que bem sabia ser falso e que declarou com a única e exclusiva intenção de alterar a verdade dos factos e levar o tribunal a decidir erradamente sobre o direito de preferência, objecto da acção.
A justificação de que o comportamento da recorrente merece sem reservas esta qualificação encontra-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto, na qual se assinala a absoluta inverosimilhança e improbabilidade dos factos alegados e a inaudita tentativa de convencer o tribunal daquilo que a todos os títulos se mostra falso e inventado com intenção fraudulenta.
Por isso, ao recorrer da sentença da 1.ª instância e ao insistir despudoradamente na demonstração dos factos que bem sabe serem falsos e cuja intenção é impedir a descoberta da verdade e o exercício de legítimos direitos, a recorrente reincidiu na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento.
Justifica-se, por isso, a condenação da recorrente como litigante de má fé, considerando-se ajustada a multa de 25 UC´s.
Não se fixa indemnização a favor da autora porque esta, em devido tempo e no lugar oportuno, não a pediu.
VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que reconheceu e condenou nos efeitos do direito de preferência dos autores BB e CC na cessão dos quinhões na herança aberta por óbito da avó GG, parte em que os réus vão absolvidos do pedido, confirmando a sentença no restante. Mais condenam a recorrente sociedade, como litigante de má-fé, na multa de 25 UC’s.
As custas da acção e do recurso são da responsabilidade dos autores/recorridos BB e CC e da ré/recorrente sociedade, na proporção de metade por aqueles e metade por esta.
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Porto, 18 de Maio de 2023.
* Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 748)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
______________ [1] Proveniente da petição inicial e não corrigido na sentença, existe um erro de nomes e/ou identidades nos factos dos pontos 9, 10 e 11. Os falecidos GG e DD tiveram um filho chamado HH. Este, também já falecido, tinha um filho chamado BB, o aqui autor, que surge erradamente indicados nos aludidos factos como HH, o nome do pai. Portanto, quando nos aludidos factos se faz menção ao neto da GG e do DD, filho do filho BB, deve entender-se que se está a referir a BB, aqui 2.º autor.