NULIDADE PROCESSUAL
IRREGULARIDADE
DESPACHO DO RELATOR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário


As irregularidades previstas no art. 195.º do Código de Processo Civil só determinam a nulidade desde que se verifique o elemento consequencial referido no n.º 1 — quando a lei determinar a nulidade ou, ainda que a lei nada determine, quando a irregularidade seja susceptível de influir na decisão ou no exame da causa.

Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. — RELATÓRIO


1. BB propôs a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário, contra AA, pedindo que:

a) seja declarado nulo e sem qualquer efeito o testamento outorgado pelo de cujus BB a favor da Ré em 29 de Junho de 2010;

b) seja declarado nulo o contrato de cessão de quinhão hereditário celebrado entre o Autor e a Ré em 22 de Outubro de 2010;

c) se assim não se entender, sejam declarados anulados o testamento e o contrato de cessão de quinhão hereditário;

d) seja condenada a Ré a reconhecer a herança indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte do pai BB, identificados na petição inicial;

e) seja condenada a Ré à restituição à herança de todos os bens identificados e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente os constantes das contas bancárias do de cujus;

f) em conformidade com o pedido constante das alíneas a) a c) supra, sejam declarados nulos e ineficazes todos os negócios celebrados pela Ré sobre bens da herança em datas posteriores às escrituras colocadas em crise;

g) se ordene o cancelamento das inscrições que incidam sobre os bens identificados na petição inicial, a favor da Ré e de terceiros;

h) subsidiariamente, e sem prescindir, seja declarada nula a declaração de quitação constante do contrato de cessão, por falta de pagamento do preço, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 700.000,00 (setecentos mil euros) a título de capital, acrescida dos competentes juros de mora à taxa legal, vencidos no valor de € 44.032,88 (quarenta e quatro mil trinta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) e vincendos à mesma taxa, até efectivo e integral pagamento.


2. A Ré AA contestou, defendendo-se por impugnação e excepção.


3. Deduziu a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, alegando a cumulação de causas de pedir ou de pedidos substancialmente incompatíveis, relevante para efeitos dos arts. 193º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil.


4. O Autor BB replicou, pugnando pela improcedência da excepção.


5. O Tribunal de 1.ª instância proferiu despacho saneador, em que julgou improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial e, em 3 de Fevereiro de 2014, proferiu sentença, em que julgou parcialmente procedente a acção, decidindo:

I. - anular o testamento outorgado a 29 de Junho de 2010 e a cessão do quinhão hereditário celebrada a 22 de Outubro de 2010;

II. — condenar a Ré a reconhecer a herança indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte de BB;

III. — condenar a Ré à restituição à herança de todos os bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente das contas bancárias do de cujus;

IV. — condenar a Ré à restituição à herança do correspondente valor dos bens já alienados e registados a favor de terceiros, nomeadamente o preço obtido com os veículos indicados no ponto 7 dos factos provados;

v. — ordenar o cancelamento das inscrições existentes a favor da Ré sobre os bens da herança, não alienados a terceiros.


6. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de apelação.


7. Em 6 de Novembro de 2014, o Tribunal da Relação proferiu acórdão em que decidiu:

I. — eliminar os pontos 63 a 65 e 67 do elenco dos factos provados;

II. — julgar parcialmente procedente a apelação,

a. — “revogando[…] a decisão na parte em que decidiu anular o testamento outorgado a 29.06.2010, por não considerar verificados os requisitos exigidos nos art.s 257º e 2199º do Código Civil”;

b. — “mantendo […]a anulação da cessão do quinhão hereditário celebrada a 22 de Outubro de 2010”;

c. —  “mantendo […] tudo o mais decidido”.


8. Em 22 de Março de 2018, a Ré AA interpôs recurso extraordinário de revisão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 6 de Novembro de 2014, na parte em que decidiu manter a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, com fundamento no disposto no artº. 696.º, alínea b) do Código de Processo Civil.


9. Em 26 de Abril de 2018, o Exmo. Senhor Juiz Desembargador a quem o processo foi distribuído proferiu decisão singular, ao abrigo do art. 699.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no sentido do indeferimento liminar do requerimento inicial do recurso extraordinário de revisão.


10. Fundamentou a sua decisão na incompetência absoluta do Tribunal da Relação, em razão da hierarquia.


11. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de revista da decisão singular proferida em 26 de Abril de 2018.


12. Em 20 de Setembro de 2018, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão singular, convolando o recurso de revista em reclamação para a conferência, ao abrigo do art. 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


13. Em 8 de Novembro de 2018, o Tribunal da Relação proferiu acórdão, indeferindo a reclamação apresentada pela Ré AA.


14. Inconformada, a a Ré AA interpôs recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 8 de Novembro de 2018.


15. Em 7 de Setembro de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, julgando procedente o recurso de revista, considerando o Tribunal da Relação competente para conhecer do recurso de revisão.


16. Em 8 de Outubro de 2020, a Exma. Senhora Desembargadora a quem o processo foi distribuído proferiu decisão singular, no sentido do deferimento liminar do requerimento inicial do recurso extraordinário de revisão.


17. O Recorrido BB respondeu ao recurso de revisão, pugnando pela sua improcedência.


18. Em 17 de Dezembro de 2020, o Tribunal da Relação proferiu acórdão, julgando improcedente o recurso extraordinário de revisão requerido pela Ré AA.


19. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de revista.


20. Em 13 de Maio de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, julgando procedente o recurso de revista, nos seguintes termos:

a) Declara-se anulado o acórdão da Relação datado de 6-11-2014, proferido na ação declarativa, na parte em que confirmou a sentença de 1ª instância de 3-2-2014, que, por seu lado:

— declarou a anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário celebrado por escritura pública de 22-10-2010;

— condenou a R. à restituição à herança dos bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente as contas bancárias do de cujus;

— condenou a R. a restituir à herança o correspondente ao valor dos bens já alienados e registados a favor de terceiros, nomeadamente o preço obtido com os veículos indicados no ponto 7. dos factos provados na sentença;

— ordenou o cancelamento das inscrições existentes a favor da R. sobre os bens da herança não alienados a terceiros;

— e condenou a R. nas custas processuais.

b) Determina-se que se dê seguimento ao disposto no art. 701º, nº. 1, al. b) do CPC, na parte relacionada com o pedido de anulação do contrato de cessão do quinhão hereditário e com os pedidos dependentes dessa anulação, considerando-se prejudicado o depoimento oportunamente prestado pela testemunha CC.


21. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença em que julgou parcialmente procedente a acção, decidindo:

I. — anular a cessão do quinhão hereditário celebrada a 22 de Outubro de 2010;

II. — condenar a Ré a reconhecer a herança indivisa como a única proprietária dos bens e direitos deixados por morte de BB, com excepção da quota disponível;

III. — condenar a Ré à restituição à herança de todos os bens e montantes de que se tenha locupletado, nomeadamente das contas bancárias do de cujus, com excepção do que lhe seja adjudicado por conta da quota disponível;

IV. — condenar a Ré à restituição à herança o correspondente valor dos bens já alienados e registados a favor de terceiros, nomeadamente o preço obtido com os veículos indicados no ponto 7 dos factos provados, com excepção do que lhe seja adjudicado por conta da quota disponível;

V. — ordenar o cancelamento das inscrições existentes a favor da ré sobre os bens da herança, ainda não alienados a terceiros, com excepção do que lhe seja adjudicado por conta da quota disponível.


22. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de apelação.


23. O Tribunal da Relação julgou improcedente o recurso.


24. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela Ré AA e, em consequência, confirmam a sentença recorrida, embora com fundamentação diferente da proferida pelo Tribunal de 1ª instância.


25. Inconformada, a Ré AA interpôs recurso de revista.


26. O Autor BB não contra-alegou.


27. Em 21 de Março de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão, em que decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, por se verificar a situação prevista no art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


28. Inconformada, a Ré AA vem reclamar da decisão proferida, “nos termos do artigo 615.º, n.º 4 e 616.º ex vi artigo 666.º ex vi artigo 685.º todos do Código de Processo Civil (CPC)”.


29. Fundamentou a sua reclamação nos seguintes termos:


I – QUESTÃO PRÉVIA

1. Inconformada com a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou o improcedente o recurso de apelação quanto à decisão da 1ª instância, a recorrente apresentou competente recurso de revista, nos termos dos artigos 671.º n.º 1 e 3 a contrario e 629.º n.º 1 do CPC, firmando as seguintes conclusões: […]


II – DA NULIDADE DO ACÓRDÃO

2. Por Acórdão os Exmos. Conselheiros deste Tribunal decidiram não tomar conhecimento do objeto do recurso apresentado pela recorrente, entendendo que não ficou demonstrada a diferença na fundamentação de direito entre a decisão da 1.ª instância e da Relação, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC.

3. Contudo, a verdade é que, nos termos do artigo 679.º do CPC “São aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, com exceção do que se estabelece nos artigos 662.º e 665.º e do disposto nos artigos seguintes.”, assim os termos preliminares ao julgamento do Tribunal de revista, nomeadamente quanto ao processamento da questão da admissibilidade do recurso, deve, por isso, ser cumprido o regime previsto para os recursos de apelação.

4. In casu, o Tribunal da Relação jugou admissível o recurso de revista entreposto pela recorrente, por decisão de 26.11.2022: “Por ser legal e tempestivo, admito o recurso de revista interposto pela a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigos 629.º, nº. 1, 631.º, nº. 1, 638.º, nº. 1, 671.º, nºs 1 e 3 “a contrario”, 674.º, nº. 1, al. a), 675.º, nº. 1 e 676.º, nº. 1 “a contrario” todos do CPC). Notifique. Após, subam os autos ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça.”.

5. Todavia, tendo sido distribuído o processo ao respetivo relator, o mesmo entendeu que não poderia o Supremo Tribunal de Justiça conhecer do objeto de recurso apresentado, pelo que, antes de decidir, nos termos do artigo 655.º do CPC, notificou as partes para se pronunciarem sobre aquela posição, o que as mesmas fizeram.

6. Posteriormente, de acordo com o artigo 652.º, n.º 1, aliena b) do CPC, caberia ao Exmo. Juiz relator do processo decidir sobre a questão da admissibilidade do recurso de revista.

7. Ora, dúvidas inexistem que aquela decisão deveria incorporar a forma de decisão singular, na medida em que era da exclusiva competência do Juiz relator, julgar sobre a verificação dos pressupostos de admissão do recurso, não cabendo desde logo ao colégio de juízes pronunciar-se sobre aquela matéria.

8. Acontece que, conforme resulta bem patente na decisão sob censura, aquela questão foi julgada em Acórdão pelo coletivo de juízes que compõe este Tribunal Superior, o que resultou num manifesto erro d procedimento, que coartou a possibilidade de tal decisão ser sindicada.

9. Efetivamente, encontrando-se os presentes autos na suprema instância dos Tribunais, não poderia ter sido feito uso do disposto no artigo 643.º, n.º 1 do CPC, dado que inexiste outro tribunal superior competente para quem reclamar sobre o despacho de não admissão do recurso.

10. Contudo, perante uma decisão do Exmo. Juiz relator que prejudicou os interesses da recorrente, conforme o presente caso de indeferimento, o sistema permitiria à mesma usar da possibilidade conferida pelo artigo 652.º, n.º 3 do CPC,

11. pois, de acordo com o artigo 652.º, n.º 3 do CPC, “Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.” (sublinhado nosso)

11. Efetivamente, se não tivesse ocorrido o vício que ora se invoca, a requerente poderia submeter a reapreciação a questão da inadmissibilidade à conferência, o que se tornou impossível atendendo a prolação antecipada e irregular de uma decisão coletiva ao invés de uma decisão singular do relator.

11. O Tribunal não cumpriu o preceituado no artigo 652.º, n.º 1, aliena b) e 655.º, 1ª parte do CPC, e decidiu julgar por Acórdão inadmissível o recurso, quando deveria ter sido proferida uma decisão singular apenas pelo Exmo. Juiz relator, contrariando assim as regras dos atos processuais e de distribuição de competência ente os Juízes nomeados.

12. O artigo 195.º, n.º 1 do CPC, prevê que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores (art.º 186.º a 194.º, que integram as nulidades principais), a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.” (sublinhado nosso).

13. O incumprimento do disposto no artigo 652.º, n.º 1, aliena b) e 655.º, 1ª parte do CPC, é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no referido artigo 195.º, n.º 1, pois foi praticado um ato que a lei não admite, que consistia em reservar ao Exmo. Juiz relator a decisão sobre a admissibilidade do recurso.

14. No caso concreto dos autos, a nulidade cometida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que resultou na inobservância das regras processuais de competência e forma dos atos dos magistrados, o que levou à violação da garantia de acesso aos Tribunais, impedido a recorrente de reagir contra o Acórdão recorrido, pelo facto de aquele tomar a forma de decisão colegial ao invés de decisão singular conforme era de Direito.

15. Nestes termos a decisão sob censura, ficou inquinada de nulidade, pois, se tivessem sido cumpridos os tramites processuais previstos na lei aplicável, a decisão da causa poderia ter sido diferente, influindo, esta, assim, no exame ou na decisão da causa.

16. E não se menospreze o invocado incumprimento da forma dos atos devida, porquanto, da mesma emergiu uma situação de injustiça para a recorrente que viu barrada a hipótese de sindicar a decisão de indeferimento do recurso de revista, por ato ilegal dos Mm. º s Juízes Conselheiros.

17. A gravidade da violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil e de toda a estrutura do nosso sistema judiciário.

18. O princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, plasmado no artigo 20.º da CRP, é um direito fundamental:

“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” (sublinhado nosso)

19. Aquele princípio também encontra respaldo no artigo 2.º do CPC, o qual prevê que “1 - A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.

2 - A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.”.

20. O direito ao recurso ou sindicância de uma decisão constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa de qualquer sujeito processual, in casu, aquele direito ficou manifestamente prejudicado, tendo a recorrente sido impedida de suscitar perante a conferência (artigo 652.º, n.º 3 do CPC) a inversão da decisão sobre a inadmissibilidade do recurso.

21. Termos que, estamos perante uma irregularidade e violação processual cometida pelo Acórdão recorrido, o qual é gerador de uma inequívoca nulidade que inquina o processo, ferindo-o de nulidade.

22. Face ao exposto, por violação dos artigos 652.º, n.º 1, aliena b), 655.º, 1ª parte, 195.º, n.º 1 do CPC , o Acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade, vício que se estende à decisão dele constante, devendo a mesma ser revogada para todos os efeitos e substituída por outra que cumpra a lei e permita à recorrida sindicar a decisão que julgou inadmissível o recurso de revista apresentado.

TERMOS EM QUE, e nos demais de direito que V. Exas. douta e superiormente suprirão, deve a presente reclamação ser julgada procedente e, por via desta, ser declarado nulo o Acórdão recorrido, como aliás é de, DIREITO E DE JUSTIÇA


30. O Autor BB não respondeu.


II. — FUNDAMENTAÇÃO


31. A reclamação deduzida resume-se em três proposições:

I. — a decisão singular sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso é um acto que a lei prescreve;  II. — a ausência de uma decisão singular sobre a inadmissibilidade do recurso é uma irregularidade, III— e, dentro das irregularidades, é uma irregularidade susceptível de influir no exame ou na decisão da causa.


32. Ora, nenhuma das três proposições a que se resume a reclamação deduzida pode sustentar-se.


33. Em primeiro lugar, a decisão singular sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso não é um “acto que a lei prescreve”, no sentido do art. 195.º, n.º 1, e, em consequência, a ausência de uma decisão singular sobre a inadmissibilidade do recurso não é uma irregularidade, no sentido do art. 195.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil.


34. O art. 652.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

“O juiz a quem o processo for distribuído fica a ser o relator, incumbindo-lhe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente:

a) Corrigir o efeito atribuído ao recurso e o respetivo modo de subida, ou convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º;

b) Verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso;

c) Julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656.º;

d) Ordenar as diligências que considere necessárias;

e) Autorizar ou recusar a junção de documentos e pareceres;

f) Julgar os incidentes suscitados;

g) Declarar a suspensão da instância;

h) Julgar extinta a instância por causa diversa do julgamento ou julgar findo o recurso, por não haver que conhecer do seu objeto”.


35. Em concreto:

I. — depois de verificada uma circunstância que poderia obstar ao conhecimento do recurso, foi proferido o despacho previsto no art. 655.º do Código de Processo Civil;

II. — depois de recebida a resposta ao despacho previsto no art. 655.º do Código de Processo Civil, foi submetido um projecto de decisão ao Colectivo, para que ficasse definitivamente resolvida a questão.


36. Em termos em tudo semelhantes àqueles que foram empregues a propósito da decisão singular prevista no art. 656.º do Código de Processo Civil, dir-se-á que

“[a]nte a possibilidade de ser deduzida reclamação para a conferência, tendo por objecto a decisão individual, pode tornar-se mais eficaz e segura a intervenção do colectivo, nos termos normais.

[…] quando as circunstâncias permitam antecipar que da decisão individual será provavelmente apresentada reclamação para a conferência, pode revelar-se preferível a opção pela intervenção imediata do colectivo, porventura com dispensa de vistos (art. 657.º, n.º 4). Com efeito, ainda que a decisão individual induza mais celeridade numa primeira fase, sem sujeição a tabelas de julgamento e sem necessidade de operarem os vistos, a eventual reclamação para a conferência, além de impedir o trânsito em julgado da decisão, acaba por levar a uma duplicação do trabalho do relator e à demora decorrente da tramitação processual que envolve outros juízes.

Assim, nos casos em que o nível da litigância revelada ao longo do processo ou por quaisquer outros motivos, se torne previsível que haverá reclamação para a conferência, será preferível optar pela tramitação normal, com intervenção dos adjuntos, ficando resolvida de vez a questão com a subscrição do acórdão” [1].

 

37. Em segundo lugar, ainda que a ausência de uma decisão singular sobre a inadmissibilidade do recurso fosse uma irregularidade, nunca seria uma irregularidade susceptível de influir na decisão ou no exame da causa.

38. O art. 195.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

1. —  Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

2. — Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.

3. — Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.


39. Miguel Teixeira de Sousa explica que “[a] prática do acto ou a omissão do acto ou da formalidade não chega para determinar a nulidade processual. Além disso, é ainda indispensável a verificação do elemento consequencial da nulidade inominada. […[ Conforme resulta do disposto no n.ª 1, a nulidade só se verifica quando a lei determinar a nulidade ou quando a irregularidade cometida puder influir no exame ou na decisão da causa […]. O elemento consequencial encontra-se preenchido se, p. ex., for omitida uma notificação às partes ou entre as partes ou se a réplica for admitida num caso em que não é admissível (art. 584.º)” [2].


40. Como a nenhuma lei declara que a alegada irregularidade determina a nulidade do acórdão proferido, o problema estaria, tão-só, em averiguar se a alegada irregularidade é susceptível de influir na decisão ou sequer no exame da causa.


41. Ora não se consegue compreender como que é que uma decisão singular no sentido da inadmissibilidade poderia ter feito com que o Colectivo decidisse ou sequer examinasse de forma diferente as questões suscitadas pela Reclamante.


42 Finalmente, dir-se-á que a Reclamante alega que foram violados dois dos seus direitos: o direito de obter uma decisão singular sobre a admissibilidade do recurso [art. 652.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil] e, no caso de decisão singular no sentido da inadmissibilidade, o direito de reclamar para a conferência [art. 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil].


43. Ora, há hoje algum consenso em que, “[m]ais do que … uma forma de impugnação da decisão singular, trata-se [na reclamação para a conferência] de uma instrumento que visa a substituição dessa decisão [singular] por uma outra, com intervenção do colectivo” [3].


44. Em lugar de dois direitos, de alcançar decisão singular sobre a admissibilidade do recurso e de reclamar para a conferência de uma decisão singular no sentido da inadmissibilidade, a Reclamante tinha um único direito — o direito a que a causa em que intervém seja objecto de uma decisão, e a que a decisão seja proferida em prazo razoável [4] —, e o único direito que a Reclamante tinha foi plenamente realizado, com uma intervenção do Colectivo que apreciou e decidiu definitivamente (“de vez”) as questões suscitadas [5].


III. — DECISÃO

Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação.

Custas pela Reclamante AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Lisboa, 25 de Maio de 2023

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

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[1] António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 656.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, 6.`ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2020, págs. 312-316 (315-316).

[2] Miguel Teixeira de Sousa, CPC online — arts. 186.º-202.º, in: WWW: < https://drive.google.com/file/d/1twC1GS3bbX6JMvS6lI-1Bv2FAKisOsru/view >

[3] António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 652.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, 6.`ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2020, págs. 287-306 (302).

[4] Cf. art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

[5] Em termos em tudo semelhantes, vide o acórdão do STJ de 9 de Dezembro de 2021 — processo n.º 2743/17.0T8GMR-D.G1.S1.