REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
ESCRITURA PÚBLICA
UNIÃO DE FACTO
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE
Sumário


O reconhecimento de uma sentença de um tribunal brasileiro que reconheceu a existência de “união estável” entre os requerentes, ainda que o pedido de reconhecimento tenha como finalidade a obtenção da nacionalidade portuguesa, não é atentatória dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português (art. 980º, alínea f) do CPC).

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 

AA, portuguesa e brasileira, e BB, brasileiro, ambos residentes no Brasil, intentaram a presente ação de revisão de sentença estrangeira, pedindo a confirmação da sentença de 26-08-2022 proferida pela ... Vara de Família da Comarca ..., Estado de São Paulo, Brasil, que reconheceu a existência da união estável havida entre as partes desde 26-10-2017.

Para tanto alegaram, em síntese, que “porque mantêm uma união reconhecida desde, pelo menos, 26/10/2017, decidiram solicitar a sua homologação pelo Tribunal da Comarca de São Paulo”, e que “a união foi confirmada pela ... Vara de Família da Comarca ...”, decisão essa que, acrescentam, transitou em julgado. Finalmente declaram que “A Requerente é cidadã portuguesa e pretende que os efeitos atribuídos pela decisão proferida pelo Tribunal da Comarca de São Paulo produza plenos efeitos em Portugal”.

Juntaram certidão do processo em que foi proferida a sentença revidenda, que inclui o teor integral da petição inicial de tal ação, e da qual consta que nesse articulado os ora requerentes alegaram que “(...) o ordenamento legal português não reconhece a escritura pública como um título judicial, portanto, mesmo que a união estável seja reconhecida por escritura pública, como é o caso no Brasil, em Portugal não há consenso nas cortes daquele país sobre a validade da escritura pública como documento hábil para o reconhecimento da união estável, a fim possibilitar ao primeiro requerente a obtenção da cidadania junto ao Estado Português”.

Os AA foram notificados para se pronunciarem sobre a possibilidade de ser proferida decisão que julgue verificada a excepção de falta de interesse em agir, nada tendo dito.


O Ministério Público apresentou alegações no sentido da procedência da acção.


Por acórdão de 24.01.2023 da Relação de Lisboa, com um voto de vencido, foi a acção julgada improcedente.


Inconformados com tal decisão, os AA interpuseram recurso de revista, no qual formulam as seguintes conclusões:

A. A previsão legal de “decisão” que consta do artigo 978º do CPC deve ser interpretada como abrangendo as decisões proferidas quer pelas autoridades judiciais quer pelas autoridades administrativas;

B. A ação especial de revisão de sentença estrangeira é uma ação de natureza meramente declarativa, de simples apreciação.

C. Por via de uma revisão de sentença estrangeira operam-se na ordem jurídica nacional os efeitos jurisdicionais de lhe conferir força Jurídica.

D. A revisão de uma sentença é, no ordenamento jurídico Português de natureza formal, orientada para a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença revidenda, não pressupondo nem implicando a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.

E. O Tribunal a quo, ao introduzir uma análise da lei substantiva, no caso da lei da nacionalidade, criou novos requisitos e exigências que, em nenhum momento, estão adstritos à análise processual que compete aos Tribunais.

F. Aferir se um cidadão estrangeiro cumpre, ou não com os requisitos para obter a nacionalidade portuguesa é uma competência que a lei portuguesa atribuiu a uma autoridade administrativa própria, no caso, tratando-se da nacionalidade de cônjuges e pessoas que vivam em situação análoga à dos cônjuges a competência é exclusiva da Conservatória dos Registos Centrais.

G. Os Requerentes interpuseram a presente ação de revisão de sentença estrangeira para obter a eficácia da declaração de que já houve o reconhecimento judicial da sua condição de conviventes de fato, e de esta ser análoga à dos cônjuges e pelo período de tempo que lhes é exigido pela Lei da nacionalidade.

H. A ação judicial que correu termos num Tribunal Brasileiro reconheceu a existência da união dos Requerentes, a convivência em situação análoga, e o período de tempo em que a mesma já existe.

I. Ao ter esse direito (previamente) reconhecido por uma sentença estrangeira, cumprem os Requerentes as exigências do art.º 978º do CPC e deveria o Tribunal a quo ter revisto e confirmado os efeitos da sentença estrangeira.

J. As partes têm interesse em agir e o meio processual é o adequado.

K. Estão cumpridos os requisitos do art.º 980º do CPC.

L. Sendo que, por estarmos perante uma decisão, para ser eficaz em Portugal, precisa de ser revista e confirma.

M. Conforme Acórdão do Supremo Tribunal de justiça proferida no processo 585/22.0YRLSB.S1 “ (…) para a revisão da sentença não podem ser adicionados, e como tal exigíveis, outros requisitos para além dos indicados no art. 980º do CPC, como a exigência da adequação da acção à finalidade pretendida pela parte, irrelevando, assim, aferir da idoneidade da decisão revidenda para obtenção da nacionalidade portuguesa.”

N. Mas o referido Acórdão vai bastante mais longe quando acrescenta “só tem cabimento a exceção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública” e, ambos os ordenamentos ao possuírem e regulamentarem a união de facto “embora com efeitos e contornos não exactamente coincidentes … “ tais diferenças não afectam os princípios da ordem pública internacional do EstadoPortuguês” permitindo portanto que a decisão revidenda seja confirmada.

O. Termos em que, o Acórdão recorrido, ao não reconhecer a sentença declarativa da união estável Brasileira dos Requerentes afasta-se da interpretação vigente nos nossos tribunais e dos requisitos estabelecidos pelo art.º 980º do CPC.


Na resposta, o Ministério Público pronunciou-se pelo provimento da revista.


Constitui objecto da revista o acórdão da Relação de Lisboa que negou a confirmação da sentença revidenda por o reconhecimento de tal decisão ser incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. 


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Fundamentação.

A decisão recorrida assentou no seguinte acervo factual:

1. A requerente AA nasceu em .../.../1982 e é filha de CC e de DD.

2.  O requerente BB nasceu em .../.../1983 e é filho de EE e de FF.

3. Os assentos de nascimento dos requerentes não ostentam quaisquer averbamentos relativos a casamento.

4. No dia 26-10-2017, na cidade ..., Estado de São Paulo, Brasil, os requerentes compareceram perante Tabelião do 7º Tabelião de Notas da mesma cidade, e celebraram a “escritura de declaração de união estável” cuja cópia certificada se acha a fls. 62 v-63;

5. Da escritura referida em 4- consta que os requerentes declararam que “resolvem celebrar, de comum acordo, como resolvidos estão, a presente escritura de união estável, a qual passa a vigorar a partir desta data, e que seja reconhecida como unidade familiar, nos termos do disposto no artigo 226 da Constituição Federal e artigo 1.723 do Código Civil Brasileiro (...).”

6.  Os requerentes intentaram “ação declaratória para o reconhecimento de união estável” que correu termos na ... Vara de Família da Comarca ... do Estado de São Paulo, Brasil, pedindo que “seja reconhecida a união estável entre os requerentes, assim homologada, para que produza seus jurídicos e legais efeitos, o acordo celebrado entre os requerentes, declarando a união estável existente entre os requerentes desde 2017.”

7. Na ação referida em 6- não indicaram os requerentes qualquer entidade ou pessoa para ali intervir na qualidade de ré ou requerida.

8. No âmbito do processo referido em 6-, em 26-08-2022 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “ (...) junto PROCEDENTE o pedido inicial para reconhecer a união estável entre AA e BB, desde 26 de outubro de 2017 (...) ”.

9. A sentença referida em 8- transitou em julgado em data não posterior a 31-08-2022.


O direito.


Está em causa saber se a Relação – a quem está deferida tal competência (art. 979º do CPC – ajuizou bem ao negar a revisão e confirmação da sentença proferida em 26.08.2022, pela ... Vara de Família da Comarca ... do Estado de São Paulo, Brasil, que reconheceu a união estável entre os Recorrentes.


Para negar a revisão e confirmação da sentença brasileira ponderou o Acórdão recorrido:

“No caso dos presentes autos resulta de forma cristalina que a ação em que foi de 26.09.2022. proferida a sentença revidenda foi instaurada a fim de habilitar o requerente BB a requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos na Lei da Nacionalidade.

Na análise de tal pretensão releva o disposto nos arts. 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade, e 14º, nº 2 do Regulamento da Nacionalidade23.

Estas disposições legais estabelecem expressamente que o estrangeiro que coabite com cidadão nacional em condições análogas às dos cônjuges pode requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa, desde que obtenha previamente o reconhecimento judicial da situação de união de facto.

Esse reconhecimento judicial da situação de união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa só pode fazer-se através de ação judicial a interpor na ordem judiciária nacional, em tribunal cível (de primeira instância)24, contra o Estado Português.

Uma tal ação pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, razão pela qual a presente ação de revisão de sentença estrangeira não constitui o meio próprio para atingir tal desiderato. Neste sentido cfr. acs. RL 25-10-2018 (Adeodato Brotas), p. 25835/17.1T8LSB.L1-6, RP 18-12-2018 (Ana Paula Amorim), p. 184/18.1YPRT; e RL 25-05-2021 (Isabel Fonseca), p. 398/21.7YRLSB-1.

A esta luz, e considerando que os requerentes declararam expressamente que a revisão e confirmação da sentença revidenda se destina à obtenção, pelo requerente GG, da nacionalidade portuguesa, verifica-se que a presente ação é absolutamente inidónea à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura, visto que a situação de união de facto que os requerentes invocaram não foi objeto de apreciação por Tribunal português, nem o Estado Português teve qualquer possibilidade de exercer o contraditório.

Aqui chegados poder-se-ia questionar se não se verifica a exceção dilatória de falta de interesse em agir.

A questão foi objeto de apreciação no ac. RL 17-12-2020 (Adeodato Brotas), p. 1904/20.0YRLSB-6 onde se concluiu pela verificação desta exceção, ali considerada como exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que dá lugar à absolvição do réu ou requerido da instância ou, não os havendo, impede o Tribunal de apreciar o mérito da causa, nos termos previstos nos arts. 278º, nº 1, al. e), 279º, 576º, nºs 1 e 2 (1ª parte), 577º (corpo), e 578º todos do CPC.

Não é, contudo, esse o entendimento que sufragamos.

Com efeito, cremos que nas ações de simples apreciação, como é o caso da ação de revisão de sentença estrangeira, o interesse em agir deve aferir-se em função de uma necessidade de clarificação decorrente de uma situação de incerteza relativamente a determinada situação jurídica. Ora, sendo controvertida na jurisprudência a questão de saber se os atos proferidos por tribunais e outras entidades públicas de Direito estrangeiro que reconhecem situações qualificáveis como de união de facto podem ser objeto de revisão mediante ação de revisão de sentença estrangeira, a questão está longe de ser pacífica e inequívoca na nossa ordem jurídica, o que inviabiliza a conclusão de que a situação não carece de clarificação.

Daí que consideremos que não se verifica o vício da falta de interesse em agir.

Em nosso entender, a questão da inadequação da sentença cujo reconhecimento os requerentes peticionam para alcançar o efeito pretendido pelos mesmos na ordem jurídica portuguesa prende-se antes com o mérito da causa.

Como os requerentes expressamente reconhecem, a presente ação tem como único objetivo a obtenção, pelo requerente BB, da nacionalidade portuguesa.

Simplesmente essa pretensão desrespeita frontalmente os requisitos consagrados na Lei da Nacionalidade.

Nesta conformidade, e tendo em conta a importância vital que todos os Estados atribuem às regras substantivas e procedimentais que regulam os mecanismos de reconhecimento e atribuição da nacionalidade, consideramos que o reconhecimento da escritura revidenda na ordem jurídica nacional ofende a Ordem Pública Internacional do Estado Português27.

Nos termos do disposto no art. 980º, al. f) do CPC, tal obsta ao reconhecimento e confirmação da escritura revidenda, conduzindo por isso à improcedência da presente ação.”


O acórdão teve um voto de vencido.


Apreciando.

Estando em causa, no caso sub judice, uma sentença homologatória de escritura declaratória não tem aplicação o AUJ nº 10/2022, que uniformizou jurisprudência relativamente a escritura pública de união estável.


O art. 980º do Código de Processo Civil estatui que para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

c) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a uma resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.

Como decorre da disposição legal citada, o sistema português de revisão de sentenças estrangeiras visa o reconhecimento meramente formal, o que significa que os tribunais competentes, em princípio, se limitam a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não interferindo no fundo ou mérito da causa.

 É um processo especial de simples apreciação cujo objectivo é o de verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema de origem, condicionando-se a produção desses efeitos à observância dos requisitos enunciados no art. 980º (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II, pag. 423).


No caso sub judice, a Relação considerou não verificado o requisito enunciado na alínea f), por “o reconhecimento da escritura revidenda na ordem jurídica nacional ofender a Ordem Pública Internacional do Estado Português.”


Não se acompanha este entendimento.

Escreveu Ferrer Correia, Direito Internacional Privado, pag. 410, “o conteúdo da noção de ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham a inserir-se na ordem socio-jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la.”

Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, pag. 445/446, refere que “é mister cindir a ordem pública internacional da ordem pública interna, abrangendo esta os princípios e normas que limitam a autonomia privada (art 280º/2 do CC), enquanto aquela exprime um conjunto de princípios nacionais que vedam a aceitação interna de decisões estrangeiras, por contrariedade a valores muito significativos.”


O acórdão do STJ de 21.02.2006, P. 05B4168, julgou que “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na alínea f) do art. 1096º do CPC (actual art.980º), só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro resulte contradição flagrante com, e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável, dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende.”

Mais recentemente, o Acórdão do STJ de 23.03.2021, P. 2652/19, decidiu que “os princípios de ordem pública internacional do Estado Português a que se refere a al. f) do art. 980º do CPC, dizem respeito aos princípios estruturantes da ordem jurídica portugueses reportados aos valores essenciais do Estado e que, nessa medida, não podem ceder.”

A incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional deve ser aferida no confronto com o resultado a que conduz a aplicação da sentença estrangeira a rever na ordem jurídica interna ou o direito dela emergente.

Tendo isto presente, a revisão e confirmação de uma sentença brasileira de reconhecimento de união estável não colide com os princípios estruturantes do Estado Português.


É esta a orientação pacífica do STJ, expressa nos Acórdãos de 07.06.2022( P. 641/229) , de 15.09.2022 (P. 924/22), de 31.01.2023 e de 14.03.2023, (P. nº 1764/22).


Consta do sumário do Acórdão de 15.09.2022, (Maria da Graça Trigo):

“No que se refere ao requisito enunciado na alínea f) do art. 980º do CP, considera-se que a sentença ao reconhecer a existência de uma “união estável” entre os requerentes, conceito que não se mostra absolutamente transponível para a situação de “união de facto” reconhecida pela lei portuguesa, não é atentatória dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Saber se a referida sentença é idónea ou suficiente para que o requerente concretize depois a finalidade enunciada de lhe ser atribuída a nacionalidade portuguesa é questão diametralmente distinta e sobre a qual não tem o tribunal de se pronunciar por extravasar o estrito objecto da presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira.”


Também assim entendemos.


Como o resultado da decisão revidenda - o mero reconhecimento de uma união estável – não afronta qualquer norma ou princípio que deva considerar-se intocável na ordem jurídica do Estado Português, e não se vendo que ocorra qualquer outro óbice à confirmação da sentença, deve ser deferido o pedido dos Recorrentes.


O recurso merece provimento, não podendo manter-se o acórdão recorrido.


Decisão.

Termos em que se revoga o acórdão recorrido, decidindo-se confirmar a sentença de 26.02.2022, proferida pela ... Vara de Família da Comarca ..., Estado de São Paulo, Brasil, que reconheceu a existência da união estável havida entre as partes desde 26-10-2017.

Sem custas de parte por não haver parte vencida.  


Lisboa, 25.05.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Nuno Ataíde das Neves