RECURSO DE REVISTA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
Sumário


A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é residual, sendo apenas admissível no recurso de revista apreciar a (des)conformidade com o Direito probatório material, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, e o modo de exercício, pelo Tribunal recorrido, dos poderes-deveres que lhe são atribuídos pelo artigo 662.º do CPC.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorridos: BB, CC, DD e EE

1. FF intentou, em ... .07.2020, a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra AA, tendo alegado que, em 12.05.2018, por temer pela sua segurança, saiu da casa de morada de família e desde então o autor e a ré não mais viveram sob o mesmo tecto, fizeram refeições em conjunto ou partilharam o leito conjugal. Mais acrescentou que não pretende reatar a vida em comum com a ré.

O autor veio a falecer em ... .10.2020, tendo-se habilitado a prosseguir com os autos para efeitos patrimoniais, em sua representação, os filhos BB, CC, DD e EE.

2. Em sede de tentativa de conciliação a ré declarou não pretender o divórcio.

Notificada, a ré contestou, alegando que o seu falecido marido nunca se quis separar dela, nem se divorciar. O que ocorreu foi que em reunião familiar os filhos do casal propuseram que o pai fosse para casa do filho GG, por aí usufruir de melhores condições habitacionais, o que foi aceite. A ré teria a visita dos filhos e poderia visitar o falecido autor todos os dias na casa do filho GG. Os filhos BB e EE passaram a querer controlar os dinheiros do falecido autor e levaram o pai para a casa deles, data a partir da qual não mais conseguiu contactar com o marido, por tal não lhe ter sido permitido pelos referidos filhos. Alega ainda que o falecido marido não teve vontade de se separar da ré, sendo que a separação de facto foi contra a vontade deste.

3. Realizou-se audiência prévia e foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.

Efectuou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, decretou o divórcio entre o falecido autor FF e a ré AA, com a consequente dissolução do casamento.

4. Inconformada, a ré apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que, em 25.10.2022, proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida”.

5. Inconformada ainda, a ré interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Resulta das suas alegações que interpõe “recurso de revista excepcional” e, subsidiariamente, “recurso de revista ordinário”.

 Defende, a final, o seguinte:

- Reconhecendo a grande relevância jurídica e social da questão que se discute nos autos, deve o presente recurso de revista excecional ser admitido, nos termos requeridos supra, porquanto,

- É de suprema relevância quer ao nível da aplicação do direito, das soluções jurídicas em dissídio e da sua relevância social e tendo em vista a boa decisão da causa ressaltando a verdade material.

- Deve suprir o Venerando Supremo Tribunal as nulidades da decisão sindicada

- E revogar a decisão do Acórdão de considerar provado factos para decretar o divórcio, considerando, ao invés inexistirem provados tais factos nem matéria suficiente para decretar o divórcio, julgando assim improcedente a ação,

- Caso assim se não entenda deve ser julgada verificada a inconstitucionalidade supra arguida, fazendo uma interpretação restritiva, como pugnada, com todas as consequências legais, fazendo-se como sempre justiça”.

As conclusões do recurso, excessivamente extensas e circulares, são as seguintes:

1ª A questão jurídica e de facto que se discute nos autos é de suprema relevância quer ao nível da aplicação do direito, das soluções jurídicas em dissídio e da sua relevância social.

2ª- Sobretudo tendo em conta que na aplicação do direito este deve ser sempre ligado a uma jurisprudência dos interesses que faça da norma uma interpretação que sustente a teleologia dos lídimos interesses da comunidade a quem se destina, no fim de tudo, o direito material.

3ª-E prende-se com uma ponderada e sapiente decisão que pesando todos os factos, mormente os instrumentais e que ajudam a decidir os factos essenciais, repare os erros e omissões cometidas na decisão sobre a matéria de facto, não deixando de atentar que a vontade do Autor, falecido, não é a vontade dos Requerentes interessados nos bens patrimoniais, fazendo assim o Supremo Tribunal uma aplicação da lei aos factos que consiga revelar a verdade material.

4ª- O direito de prosseguimento da ação pelos filhos que, o Código Civil na sua redação original decretava a impossibilidade de ser continuada pelos herdeiros dos cônjuges ou prosseguir contra eles ação de divórcio com a justificação de que o direito ao divórcio é um direito pessoal, é um direito inereditável.

5ª-Por força das alterações de 1977 o legislador não deixou de ter em conta o caracter pessoal do direito ao divórcio, e assim não permitiu que os herdeiros pudessem ter a iniciativa de intentar a ação.

6ª- Mas por outro lado permitiu que, intentada a ação, pudessem os herdeiros prosseguir com a ação já intentada, pois, o divórcio era baseado na culpa permitindo sancionar o cônjuge culpado.

7ª- Até 2008 o divórcio era baseado na culpa, teriam que ser alegados e provados factos para declarar o cônjuge culpado, a ação corria com a produção de prova de factos culposos, não existia, em termos litigiosos, um divórcio sem culpa.

8ª-Logo, seria legitimo que os herdeiros prosseguissem com a ação para sancionar um comportamento culposo e evitar que este, apesar da sua culpa na rutura do casamento ainda viesse a beneficiar desse estado.

9ª- Porém, o regime atual do divórcio, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, mantido pela Lei nº49/2018 de 14.08, é de um divórcio sem culpa.

10ª- E, ao invés do regime de pretérito cujo art.1787 CC foi expressamente revogado, passou a ser permitido um divorcio com fundamento em causas objetivas apesar de não prescindir da vontade de se divorciar.

11ª- Significa que, a vingar a decisão das instâncias, se permite em termos práticos, como é o caso dos autos em que o Autor nem sequer esteve pessoalmente em Juízo no ato pessoalíssimo de declarar, na tentativa de conciliação, a sua vontade, como que uma presunção de vontade do falecido servindo os interesses patrimoniais egoísticos e quiçá perversos, como é o caso dos autos em que a Ré foi casada em regime imperativo de separação de bens.

12ª- Mais, tem que haver uma especial ponderação na apreciação dos factos carreados para os autos, todos os factos incluindo os instrumentais, mormente documentos que não foram considerados e depoimentos do lado da Ré que são frontalmente opostos ao dito pelos Requerentes.

13ª- Por isso é convocado o estipulado nos arts.414º do CPC e arts.341º, 342º e 393º todos do CC, porquanto na apreciação da prova na dúvida insanável deve decidir-se contra quem alegou o facto, sendo certo que sobre o estado de saúde do falecido, constante de documento junto aos autos, a documentar o seu estado de demência em 2015, contra tal prova é inadmissível prova testemunhal.

14ª- Ora, o Tribunal Supremo não pode deixar que possa uma ação concertada de um grupo de herdeiros interessados nos bens patrimoniais do pai, no caso, contra a vontade de outro irmão que não quis tal, “deserdem” a Ré por via de um divórcio que não foi vontade do falecido que assinou um documento cujo teor e uma procuração com poderes especiais para mandatária forense.

15ª-Por isso, no caso dos autos, ocorre violação do direito fundamental que consagra a inereditabilidade dos direitos pessoais, o que releva na apreciação do elemento subjectivo do divórcio, no caso, e violando-se a teleologia da norma do art.1785ºdo CC.

16ª-E assim, a interpretação da norma do art.1785, nº3 do CC. para efeitos patrimoniais, tem que ser restritiva, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, cujos termos atuais do regime do divórcio, Lei nº49/2018 de 14.08, é um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, cujo art.1787 CC foi revogado.

17ª- E tal interpretação restritiva tem que ver com o facto de não se permitir como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais, que é afirmada pelos interessados requerentes visando obter um melhor pecúlio hereditário eliminando o cônjuge sobrevivo.

18ª- E assim invoca-se a inconstitucionalidade da interpretação simples e literal da norma tal como o Tribunal “a quo” faz porquanto tal viola a estabilidade das relações pessoais e as normas do direito sucessório que só permitem “deserdação” nos casos nela expressamente previstos.

19ª-Pelo que a decisão das instâncias viola os princípios constitucionais ínsitos nos arts.17º e 36º, nº2 ambos do CRP e o estatuto dos direitos fundamentais, pela interpretação literal da norma permite-se o divórcio formal, por representação, prescindindo da culpa na violação do direito, pelo que deve ser declarada a inconstitucionalidade da aplicação e interpretação do art. 1783, nº3 CC sufragada nos autos, pugnando-se por uma interpretação restritiva que imponha o consenso dos interessados e que o requerente do divórcio tenha estado presente em juízo.

20ª- Acresce a violação do direito substantivo probatório por se considerar como que verificada como que “uma presunção de vontade” por parte do Autor, e omitindo uma pronúncia sobre documentos essenciais e que infra se alegam.

21ª- Face ao expendido, é um facto notório a suprema injustiça da aplicação do direito feita pelas instâncias, não atentando nos princípios actualistas na interpretação da lei, de acordo com a boa-fé, a equidade e os “boni mores” que uma aplicação de acordo com a jurisprudência dos interesses deve dar acolhimento ao sentimento comum da sociedade em que se inserem sapientemente a jurisprudência dos Tribunais.

22ª- Pelo que deve ser admitido o recurso ao abrigo do art.672, nº1, a) e b) do CPC, recurso excecional de revista que se impetra.

23ª- A recorrente AA foi casada com FF, cujo casamento contraíram em 28.04.1970, sob o regime imperativo da separação de bens.

24ª- Em ... .07.2020 foi intentado divórcio sendo Autor FF a requerer o Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge contra a sua esposa, a Ré AA, alegando factos fundamento de um divórcio litigioso por culpa da Ré.

25ª- Foram arroladas como testemunhas os dois filhos EE e BB e foi designado o dia 13.10.2020 para tentativa de conciliação.

26ª- Compareceu a Ré e a MD mandatária do Autor aludindo a procuração junta com a p.i.com poderes especiais, não tendo o autor comparecido pessoalmente.

27ª- Foi proferido despacho a julgar sem efeito a diligência designando o dia 24.11.2020 em substituição, cfr. Ata.

28ª- Em ... .10.2020 o Autor faleceu.

29ª- Em 12.11.2020 vieram aos autos os seguintes filhos do Autor:

a. BB;

b. CC;

c. DD; e

d. EE

requerer o prosseguimento do processo para efeitos patrimoniais,

e. Não o tendo feito o filho GG.

30ª- Depois de habilitados nos autos tais 4 (quatro) filhos e tendo sido designado dia o 02.06.2021 para a tentativa de conciliação, nela a Ré declarou não se querer divorciar.

31ª- A Ré contestou a ação de forma motivada, cujo teor se dá por reproduzido alegando que o seu falecido marido nunca se quis separar dela nem se divorciar e que o que ocorreu foi que os filhos BB e EE passaram a querer controlar os dinheiros do falecido A. , levaram-no para casa deles e a partir daí a Ré não mais conseguiu contactar com o marido por tal não lhe ter sido permitido pelos referidos filhos e que o falecido marido ficou cerceado e não teve vontade de se separar da Ré e de se divorciar , o que ocorreu contra a vontade dele , não estando ele cônscio de declarações nesse sentido e do processo de divórcio, tendo tudo tido por base razões patrimoniais tidas em vista por determinados filhos do casal , atento avultado património financeiro angariado pelo casal mas que estava em nome do marido da Ré ,casados em separação de bens, tendo ainda como última ratio retirar a Ré como herdeira.

32ª- A Ré, no exercício do contraditório a requerimento dos habilitados AA, aduziu, em requerimento junto aos autos em 10.09.2021, ref. ...04, que aqui se dá por reproduzido, ainda mais factos importantes e decisivos, destacando-se dos factos carreados para os autos pela Ré os constituídos por documentos e adquiridos processualmente por também juntos aos autos e que são os seguintes:

A) Testamento Público do A. outorgado em 19.05.1986, junto como doc.1 com a contestação;

B) Relação de bens apresentada pela Ré em processo de inventário pendente intentado pelo filho GG que não é requerente do prosseguimento do divórcio;

C) Doação feita em 25.06.2019, pelo A. quando já estava em casa da EE e com os filhos que requereram o prosseguimento do divórcio, a beneficiar filha interessada e procurando subtrair esse bem a futura partilha, doc.1 do requerimento da Ré ... de 10.09.2021.

D) Documento junto aos autos em 09.09.2020, por ofício do MP Procuradoria do Juízo Local Cível de SM Feira, ressaltando-se desse documento que quanto ao Sr. FF - “Foram solicitadas informações clínicas - fls. 31- resultando das mesmas que «foi diagnosticado demência em 2015, neste momento ainda preserva as suas capacidades mentais e físicas, mas no futuro irá agravar-se». Sublinhado nosso.

33ª- Foi realizado o julgamento cuja prova consistiu, a do A.:

1. Inquirição de funcionária judicial sobre documento junto aos autos e relativo a declarações prestadas pelo falecido FF na fase de instrução de um processo de Maior Acompanhado, documento junto aos autos em 12.10.2021.

2. prestação de depoimentos de parte dos Autores habilitados EE e BB e dos respetivos cônjuges, e de um neto, filho da filha do falecido beneficiária da doação DD, enteada da Ré. e da Ré que consistiu na seguinte:

3. depoimento e declarações da Ré;

4. depoimentos das oito (8) testemunhas arroladas; 5. documentos juntos aos autos.

34ª- Na sentença prolatada foi dado como provado:

1- O A. FF e a Ré AA contraíram entre si casamento no dia 28.04.1970, no regime imperativo da separação de bens.

2- O A. faleceu em ... .10.2020.

3- Desde maio de 2018 até à data da entrada em juízo do processo de divórcio (... .07.2020), e mesmo até ao falecimento do A. (... .10.2020), ininterruptamente, o A. e a Ré não viveram debaixo do mesmo teto, não fizeram refeições em conjunto e não partilharam o mesmo leito conjugal.

4- No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.

5- A conselho dos filhos o falecido A. ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018, na sequência de desentendimentos ocorridos entre o casal devido ao mau ambiente familiar decorrente de consumos de álcool em excesso por parte da Ré.

35ª- Na sequência foi proferida sentença a julgar a ação totalmente procedente a decretar o divórcio entre o falecido A. FF e a Ré AA, com a consequente dissolução do casamento.

36ª- Foi interposto recurso de Apelação pela Ré sindicando a matéria de facto dada como provada, o direito aplicado, arguindo erro na sua aplicação e ainda inconstitucionalidade na decisão.

37ª- A douta decisão do Venerando Tribunal da Relação pronunciando-se sobre a matéria de facto, considerou “o recurso às declarações prestadas nos Serviços do Ministério Público pelo autor falecido, em 1.9,2020, como meio probatório, encontra-se inviabilizado por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art.421º, nº1 do Cód. de Proc. Civil.” e “Situação que,, a nosso ver, por ser implícito que os depoimentos e perícias a considerar para efeitos do art. 421 do Cód. De Proc. Civil devem ser provenientes de processo jurisdicional, é igualmente obstativa da valorização daquelas declarações nos presentes autos, nem sequer como principio de prova.” que a 1ª instância deu indevido relevo a declarações constantes de auto nos Serviços do Ministério Público.

38ª- Dando assim razão à recorrente que questionou este meio de prova e a sua valorização na sentença, eliminando este meio de prova a considerar na apreciação da matéria de facto.

39ª- Contudo, apesar de ficar assim cingida quanto á prova do A. aos depoimentos orais dos Requerentes, cônjuges e filho, a Relação manteve como provado o ponto 4 dos factos dados como provados na sentença, “No período de tempo mencionado em 3.o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré”

40ª- Mas já quanto ao ponto 5 dos factos dados como provados A Relação considerou não haver prova que o sustentasse.

41ª- E alterou a sua resposta passando o ponto 5 dos factos provados a dizer: “O falecido autor ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018”.

42ª- O Tribunal “a quo”, desconsiderando os documentos juntos aos autos, julgou a Apelação improcedente.

43ª- O Código Civil na sua redação original decretava a impossibilidade de ser continuada pelos herdeiros dos cônjuges ou prosseguir contra eles ação de divórcio com a justificação de que o direito ao divórcio é um direito pessoal, é um direito inereditável.

44ª- Contudo existiam teses na doutrina que defendiam que seria de permitir aos herdeiros do cônjuge falecido que tivessem um interesse legitimo em que o casamento fosse dissolvido por divórcio e não por morte, mormente a forma como se faz a partilha, art.1790 e a atribuição de benefícios patrimoniais, art.1971 e mesmo danos não patrimoniais, v.g.

45ª- Por força das alterações de 1977 o legislador não deixou de ter em conta o caracter pessoal do direito ao divórcio e não permitiu que os herdeiros pudessem ter a iniciativa de intentar a ação.

46ª- Mas por outro lado permitiu que, intentada a ação, por existir a iniciativa do titular do direito pessoal, compreendendo as consequências de uma dissolução por divórcio, permitindo que pudessem os herdeiros prosseguir com a ação já intentada, sendo dados pela doutrina vários exemplos de tal justeza de paradigma da ação intentada.

47ª- Mas tal tinha presente que até 2008 o divórcio era baseado na culpa.

48ª- A ação corria com a produção de prova de factos culposos, não existia, em termos litigiosos, um divórcio sem culpa.

49ª- Logo, seria legitimo que os herdeiros prosseguissem com a ação para sancionar um comportamento culposo e evitar que este pudesse, apesar da sua culpa na rutura do casamento, ainda beneficiar desse estado.

50ª- Porém, o regime atual do divórcio, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, é de um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, e cujo art.1787 CC foi expressamente revogado.

51ª- Significa que se permite em termos práticos, como é o caso dos autos em que o Autor nem sequer esteve pessoalmente em Juízo no ato pessoalíssimo da tentativa de conciliação, como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais egoísticos.

52ª- Por isso tem de haver uma especial ponderação na apreciação dos factos carreados para os autos, mormente documentos que não foram considerados.

53ª- Daí ser convocado o estipulado nos arts.414º do CPC e arts.341º, 342º e 393º todos do CC, pois na apreciação da prova, na dúvida insanável, deve decidir-se contra quem alegou o facto, e sobre o estado de saúde do falecido, conforme de documento junto aos autos, a documentar o seu estado de demência em 2015, contra tal prova é inadmissível prova testemunhal, cfr. art.393 CC.

54ª- Ora, o Tribunal Supremo não pode deixar que possa uma ação concertada de um grupo de herdeiros interessados nos bens patrimoniais do pai, no caso, contra a vontade de outro irmão que não quis tal, “deserdem” a Ré por via de um divórcio que não foi vontade do falecido que assinou uma procuração com poderes especiais para mandatária forense.

55ª-Por isso, no caso dos autos, ocorre violação do direito fundamental que consagra a inereditabilidade dos direitos pessoais, o que releva na apreciação do elemento subjectivo do divórcio, no caso, violando-se a teleologia da norma do art.1785ºdo CC.

56ª- E assim, a interpretação da norma do art.1785, nº 3 do CC. para efeitos patrimoniais, tem que ser restritiva, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, cujos termos atuais do regime do divórcio, Lei nº49/2018 de 14.08, é um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, cujo art.1787 CC foi revogado.

57ª- E tal interpretação restritiva tem que ver com o facto de não se permitir como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais, que é afirmada pelos interessados requerentes visando obter um melhor pecúlio hereditário eliminando o cônjuge sobrevivo.

58ª- Invoca-se a inconstitucionalidade da interpretação simples e literal da norma tal como o Tribunal “a quo” faz porquanto que tal viola a estabilidade das relações pessoais e as normas do direito sucessório que só permitem “deserdação” nos casos nela expressamente previstos.

59ª- Violando, tal interpretação literal, os princípios constitucionais ínsitos nos arts.17º e 36º, nº2 ambos do CRP e o estatuto dos direitos fundamentais pois por esta norma permite-se o divórcio formal, por representação, prescindindo da culpa na violação do direito, deve ser declarada a inconstitucionalidade da aplicação e interpretação do art.1783,nº3CCsufragadanosautos,pugnando-seporumainterpretação restritiva que imponha o consenso dos interessados e que o requerente do divórcio tenha estado presente em juízo.

60ª- Acresce a violação do direito substantivo probatório por se considerar como que verificada “uma presunção de vontade” por parte do Autor.

61ª- Face ao expendido, é um facto notório a suprema injustiça da aplicação do direito feita pelas instâncias.

62ª- Com efeito não se atenta nos princípios atualistas na interpretação da lei, de acordo com a boa-fé, a equidade e os “boni mores” que uma aplicação de acordo com a jurisprudência dos interesses deve dar acolhimento ao sentimento comum da sociedade cuja ordem jurídica é sapientemente enformada pelos Tribunais.

63ª- Por isso no caso dos autos ocorre violação do direito fundamental que consagra a inereditabilidade dos direitos pessoais, o que releva na apreciação do elemento subjectivo do divórcio, no caso, e violando-se a teleologia da norma do art.1785ºdo CC.

64ª- Pelo que se impetra a inconstitucionalidade da norma do art.1785, nº3 do CC. para efeitos patrimoniais, atenta a redação que foi dada pela Lei nº61/2008 de 31-10, e mantida pela Lei 49/2018 de 14.08, cujos termos atuais do regime do divórcio é um divórcio sem culpa, ao invés do regime de pretérito, cujo art.1787 CC foi revogado, permitindo como que uma presunção de vontade para meros interesses patrimoniais egoísticos.

65ª- E assim impetra-se a inconstitucional da interpretação simples e literal da norma tal como o Tribunal “a quo” faz porquanto tal viola a estabilidade das relações pessoais e as normas do direito sucessório que só permitem “deserdação” nos casos nela expressamente previstos.

66ª- Pois ocorre uma violação dos princípios constitucionais ínsitos nos arts.17º e 36º, nº2 ambos do CRP e o estatuto dos direitos fundamentais pois por esta norma permite-se o divórcio formal, por representação, prescindindo da culpa na violação do direito, devendo ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação sufragada nos autos, pugnando-se por uma interpretação restritiva que imponha o consenso dos interessados e que o requerente do divórcio tenha estado presente em juízo.

Acresce que, atenta a Revista ordinária,

67ª- Na exegese dos factos carreados para os autos, tendo o douto Acórdão do Tribunal da Relação eliminado dos meios de prova e das provas o relevo avassalador dada pela 1ª instância à declaração junta aos autos proveniente de um processo administrativo nos Serviços do Ministério Público, ficou a decisão despida dessa prova que foi considerada essencial e que contagiou toda a apreciação da prova.

68ª- Contudo, padece o douto Acórdão das Nulidades infra referidas ressaltando ostensivo na decisão da matéria de facto que no ponto 4 dos factos provados ocorre um notório erro.

69ª- Ora tal ponto 4. dado como provado representa um enorme erro de facto porquanto, pelos próprios Requerentes é dito nos autos que só em finais de 2019 o pai lhes disse que se queria divorciar.

70ª- Mas sobretudo são desconsiderados os documentos juntos aos autos e supra descritos, Testamento, Relação de bens e Doação.

71ª- E sobretudo o documento junto aos autos em 09.09.2020, por ofício do MP Procuradoria do Juízo Local Cível de S M Feira, ressaltando-se desse documento que quanto ao Sr. FF - “Foram solicitadas informações clínicas - fls. 31- resultando das mesmas que «foi diagnosticado demência em 2015, neste momento ainda preserva as suas capacidades mentais e físicas, mas no futuro irá agravar-se». Sublinhado nosso.

72ª- Do teor de documento referido o falecido era pessoa enferma já em 2015, com demência diagnosticada e que apesar de nesse ano de 2015 ainda ter capacidade mental, tal estado de saúde se iria agravar.

73ª- Logo, é um claro erro de julgamento da matéria de facto que confunde o momento da saída do falecido de sua casa para casa do filho GG, por motivos de saúde, com um posterior momento em que ele foi levado pelos requerentes para a casa de um deles.

74ª-Pelo que o facto provado em 4. dos factos provados enferma desse erro que contamina toda a decisão.

75ª- Ressalta ainda dos autos, objetivamente, que o Testamento junto não foi revogado pelo falecido e não foi tido em conta na exegese da matéria de facto revelando o inverso do dado como provado.

76ª- Da conjugação dos documentos referidos supra com os depoimentos das testemunhas da Ré o falecido Autor estava sem vontade livre e consciente, estava manietado, cerceado e condicionado.

77ª- Ora, o douto Acórdão da Relação, eliminando meios de prova que foram essenciais para o juízo sobre a matéria de facto na decisão da 1ªinstância, ficou atido aos depoimentos dos Requerentes, dos seus cônjuges e um filho.

78ª- Face a isso emerge uma situação em que os meios de prova, os documentos referidos e testemunhos, todos interpretados de acordo com as regras da experiência comum não são de molde a poder ser dado como provado que “No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.”

79ª- Com efeito, não se pronunciando sobre os documentos referidos e não fazendo a sua exegese com todos os depoimentos, verifica-se uma nulidade decisiva para o erro de julgamento nos termos do art.615º, n1, d) do CPC, invocável nesta sede ex vi art.674º, nº1, c) do CPC.

80ª- Acresce uma nulidade invocável ibidem porquanto, ocorrendo uma situação de dúvida quanto á matéria de facto, pois a prova feita pela Ré, constituída pelos documentos juntos pela Ré e os depoimentos transcritos na impugnação da matéria de facto e com as contradições insanáveis invocadas, a decisão da matéria de facto só poderia ser contra a pretensão dos AA. nos termos do art. 341 e 342º do Código Civil.

81ª-Daí ser convocado o estipulado nos arts. 414º do CPC e arts. 341º, 342º e 393º todos do CC, porquanto na apreciação da prova, na dúvida insanável, deve decidir-se contra quem alegou o facto, sendo certo que sobre o estado de saúde do falecido, constante de documento junto aos autos, a documentar o seu estado de demência em 2015, contra tal prova é inadmissível prova testemunhal, cfr. art.393 CC.

82ª- Ergo, argui-se a NULIDADE DO ACÓRDÃO por força das Nulidades invocadas na apreciação da prova.

83ª- Para integrar RECURSO DE REVISTA, ordinário, por se entender não se verificar a dupla conforme e existirem vícios de nulidades e erros de julgamento que em substância fundamenta a revista, arts.629º, nº1, 671, nº1 e 3, 675, nº1, 676, nº1, 631, nº1, 638, nº1 e 637, nº2 todos do CPC, por economia processual, dá-se por reproduzido o alegado supra quanto a Nulidades de que padece o Acórdão, invocando-as para fazerem parte d recurso de Revista.

84ª- Os depoimentos da Ré e do filho GG, bem como das testemunhas por si arroladas revelam que o falecido nunca era deixado só.

85ª- Não é considerado pelo Tribunal o documento essencial que revela a demência do falecido já em 2015 e este documento é nuclear para contextualizar os factos e entender o que sucedeu com o falecido.

86ª- E a prova do estado de saúde do falecido, revelado por tal documento cuja autenticidade não foi impugnada ou impugnado de falso o seu teor, não pode ser infirmada por prova testemunhal , representando isso uma violação do disposto nos arts.392 e 393 do CC, pois a prova por testemunhas contra o que consta do documento relativo á saúde do falecido em 2015, é proibida e como tal nula.

87ª- A omissão de uma ponderação deste documento representa uma nulidade, nos termos do art.615º, nº1, d) e nº4 ex vi art.674, nº1, c), na apreciação da matéria de facto que este Supremo Tribunal pode conhecer com relevância na decisão da matéria de facto, o que se invoca, implicando que se dê como não provada vontade do A. em se divorciar.

88ª- O divórcio foi intentado tendo por base procuração a favor de M... com poderes especiais para inúmeros fins, sem especificar o caso de intentar ação de divórcio, e na qual não consta a morada do Autor, cfr. documento junto com a P.I.

89ª- Ora, pelas razões supra, considerando a eliminação dos meios de prova feita pelo Venerando Tribunal da Relação e a alteração do Ponto 5 dos factos provados, o ponto 4 mantido como vinha da 1ªinstância, s.d.r. que é muito, enferma de erro por omissão de tomar em devido relevo os documentos descritos supra e com a relevância que deles se extrai, constituindo uma Nulidade nos termos do art. 615, nº1, c) do CPC que afeta toda a decisão e implica que devia ter sido dado como NÃO provado o ponto 4 dos factos considerados provados pela 1ªinstância.

90ª-Nulidade que afeta a decisão também por força da apreciação da prova sem ter em conta, a descrição de factos frontalmente opostos pelas testemunhas da Ré e cuja credibilidade não foi posta em causa respaldados e complementados pelos documentos descritos supra.

91ª- Atento o descrito e alegado sobressai uma situação em que os meios de prova, os documentos referidos e os testemunhos, todos conjugados e interpretados de acordo com as regras da experiência comum não são de molde a poder ser dado como provado que “No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.”

92ª- Com efeito, o Tribunal “a quo”, s.d.r., não se pronuncia sobre os documentos referidos e não fazendo a sua exegese com todos os depoimentos, incorre a decisão prolatada de Nulidade nos termos do art.615º, n1, d) do CPC, invocável nesta sede ex vi art.674º, nº1, c) do CPC, e que, pelo seu relevo implica a Nulidade da decisão quanto á matéria de facto, anulando-se o ponto 4. dos factos dados como provados.

93ª- Acresce uma nulidade invocável ex vi art.615º, n1, d) do CPC e art.674º, nº1, c) do CPC, porquanto, ocorrendo uma situação de dúvida quanto á matéria de facto, pois a prova feita pela Ré, constituída pelos documentos juntos pela Ré e os depoimentos transcritos na impugnação da matéria de facto e com as contradições insanáveis invocadas, a decisão da matéria de facto só poderia ser contra a pretensão dos AA. nos termos do art.341 e 342º do Código Civil.

94ª- Pelo que se argui a NULIDADE DO ACÓRDÃO por força das Nulidades invocadas na apreciação da prova, revogado o Acórdão da Relação por força da eliminação do ponto 4 dos factos provados e consequente improcedência da ação.

6. Por seu turno, os autores habilitados produziram contra-alegações, que concluem dizendo:

Atento o exposto, deve:

- rejeitar-se o recurso de revista excecional, por falta de verificação dos requisitos (relevância jurídica e interesses de particular relevância social) previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do CPC;

- sem prescindir, e caso assim se não entenda, rejeitar-se o recurso de revista excecional, por falta de cumprimento do ónus de alegação previsto nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 672º do CPC, dado que a recorrente, nas suas motivações de recurso, se limitou a referir meras generalidades, e de acordo com a doutrina mais relevante e a jurisprudência consolidada do STJ, o requerente tem de concretizar, com argumentos concretos e objetivos, o relevo jurídico e social das questões em causa;

- sem prescindir, e caso se admita o recurso de revista excecional, ser o mesmo julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido, nos seus precisos termos, atenta a correta aplicação do Direito, constitucionalidade da decisão e inexistência dos invocados vícios/nulidades do acórdão recorrido;

- rejeitar-se o recurso de revista ordinário, atenta a verificação de dupla conforme, quer quanto à aplicação do direito, quer no que tange à matéria de facto;

- sem prescindir, e caso se admita o recurso de revista ordinário, ser o mesmo julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido, nos seus precisos termos, decretando-se o divórcio sem consentimento do outro cônjuge por separação de facto, entre o decesso FF e a recorrente, por inexistência dos invocados vícios/nulidades do acórdão recorrido, assim se fazendo justiça”.

Concluem, eles também, de forma excessivamente extensa, assim:

A – Quanto ao Recurso de Revista Excecional:

a) Da admissibilidade do recurso excecional:

1. A recorrente fundamenta a revista excecional no artigo 672º, nº 1, al.

a) do CPC (Relevância jurídica, a qual implica que a questão suscitada apresente um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, que seja controversa ou, porventura, inédita, reclamando para a sua solução uma reflexão mais alargada) e al. b) do mesmo preceito legal (Interesses de particular relevância social, os quais devem ser considerados interesses importantes da comunidade e valores que se sobrepõem ao mero interesse das partes, isto é, com invulgar impacto para o tecido social e para a comunidade, em geral).

2. O requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC, implica a controvérsia da questão jurídica na doutrina e na jurisprudência, por debatida, a sua importância, para propiciar uma melhor aplicação do direito, por estar em causa um segmento jurídico relevante, a sua complexidade, ou, finalmente a sua natureza inovadora, em termos de se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar dissonâncias interpretativas a porem em causa a boa aplicação do direito.

3. O requisito da alínea b) do n° 1 do artigo 672º do CPC tem ínsita a aplicação de preceito ou instituto a que os factos sejam subsumidos e que possa interferir com a tranquilidade, a segurança, ou a paz social, em termos de haver a possibilidade de descredibilizar as instituições ou a aplicação do direito.

4. No caso vertente, não se encontra preenchido o requisito da alínea a) do nº 1 do artigo 672º do CPC, porquanto a questão jurídica em apreço - prossecução de ação de divórcio pelos herdeiros para fins patrimoniais e verificação dos requisitos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge - pese embora a sua inegável importância, não implica controvérsia entre a doutrina e a jurisprudência dominantes; não tem, in casu, especial complexidade técnica e dificuldade de resolução, nem é uma questão jurídica inovadora, do ponto de vista dos intervenientes e decisores judiciários e das entidades e estruturas judiciais, que justifique a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar divergências interpretativas que ponham em causa a boa aplicação do direito.~

Nesse sentido, o Ac. STJ de 09.01.2014, relatado pelo Conselheiro Silva Salazar no Proc. 605/08.1TBFAF.G1.S1, in sumários Acórdãos de Apreciação Preliminar – Revista excecional – Secções Cíveis – Supremo Tribunal de Justiça – Janeiro, Fevereiro e Março de 2014 – Acessória Cível.

5. O requisito da alínea b) do nº 1 do aludido preceito legal, só ocorre se “vexata quaestia” recair sobre preceito, ou instituto, cuja interpretação e aplicação possa pôr em causa interesses de particular relevância social, o que não acontece quando se pretende, como no caso dos presentes autos, apurar se os Recorridos, na qualidade de herdeiros do de cujus, podem prosseguir com a ação de divórcio para fins patrimoniais e se estão preenchidos os requisitos legais para a decretação do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, fundado em separação de facto.

6. Tratando-se, in casu, de questão (divórcio sem consentimento do outro cônjuge) de índole pessoal e banal na atual realidade social, não há perigo da decisão proferida nestes autos colidir com os valores socioculturais dominantes que a devam orientar, pelo que não se vislumbra o interesse social generalizado na reapreciação de tal decisão por este Venerando Tribunal! Tanto mais que, a decisão proferida em 1ª instância e o Acórdão recorrido, é do conhecimento apenas da Recorrente e Recorridos, e, eventualmente, seu núcleo restrito de conhecidos, familiares e amigos, não tendo uma abrangência lata. Nesse sentido, Ac. STJ de 29.03.2012, relatado pelo Conselheiro Silva Salazar no Proc. 2895/09.3TBLLE.E1.S1, in sumários Acórdãos de Apreciação Preliminar – Revista excecional – Secções Cíveis – Supremo Tribunal de Justiça – Boletim Anual - 2012 – Acessória Cível.

7. Pelo que, não se tendo comprovado a verificação dos requisitos do artigo 672, nº 1, alíneas a) e b), do CPC, é de rejeitar a revista excecional.

8. Por outro lado, a recorrente, enquanto requerente da revista excecional, ao abrigo do disposto no artigo 672º, nº 1, alíneas a) e b) do CPC, deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, nos termos do nº 2, alíneas a) e b) do mesmo preceito legal, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e as razões pelas quais os interesses em causa são de particular importância/relevância social.

9. Não cumpre estes ónus, quem se limita a referir meras generalidades, pois de acordo com a doutrina mais relevante e a jurisprudência consolidada do STJ, o requerente tem de concretizar, com argumentos concretos e objetivos, o relevo jurídico e social das questões em causa. Nesse sentido, o Ac. STJ de 11.05.2022, relatado pelo Conselheiro Pedro Branquinho Dias, in www.dgsi.pt.

10. Com efeito, deveria o recorrente ter devidamente fundamentado por que entende dever ser superada a barreira da dupla conformidade, nomeadamente, por que acha que está em causa uma questão, cuja apreciação pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e, por outro lado, quais os interesses de particular relevância social que estão em causa.

11. Como tem sido sublinhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça -, não basta o mero interesse subjetivo do recorrente, sendo necessário que o mesmo concretize com argumentos concretos e objetivos.

12. Ora, nada disto fez o recorrente, a qual se limita a enunciar as razões da discordância em relação ao decidido, a salientar os vícios que imputa à decisão recorrida e a aludir genericamente à relevância social e jurídica da questão em apreço, mas não cumpre o ónus das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 672º do CPC, o que conduz necessária e inelutavelmente à rejeição do recurso.

Sem prescindir, e caso assim se não entenda,

b) Da errada aplicação do direito aos autos, inconstitucionalidade da decisão, e nulidades do acórdão em crise:

13. A factualidade a considerar é a seguinte:

a) em ... .07.2020, o Autor intentou contra a ré, seu cônjuge, a presente ação de divórcio sem o consentimento desta, fundando-se para tal efeito no disposto no artigo 1781º, als. a) e d) do Cód. Civil;

b) Entretanto, o Autor veio a falecer no dia ... .10.2020, na pendência da referida ação de divórcio por si interposta;

c) Após o decesso do Autor, tal ação prosseguiu a sua tramitação, impulsionada pelos Recorridos, seus herdeiros, ao abrigo do disposto no artigo 1785º, nº 3 do CC;

d) A recorrente não impugnou a decisão proferida pela 1ª instância em 17.05.2021, em que simultaneamente com a decisão de habilitação de herdeiros - que julgou habilitados a prosseguir os termos da demanda, para efeitos patrimoniais, na qualidade de Autores, BB, CC, DD e EE, aqui Recorridos -, se determinou, implicitamente, o prosseguimento dos autos, com o agendamento de tentativa de conciliação para o dia 02.06.2021.

14. O carácter pessoal da ação de divórcio, se não permite que a ação seja proposta pelos herdeiros do cônjuge falecido, já não exclui que, tendo a ação sido proposta por este, e mostrando-se, pois, que o próprio cônjuge falecido manifestara o propósito de pedir o divórcio - intenção comprovada no caso em apreço, não só com a propositura da ação pelo finado A. em ... .07.2020, como pelo facto deste não ter posteriormente desistido do pedido -, a ação venha a ser continuada pelos respetivos herdeiros ou por determinados familiares (artigo 1785º, nº 3 do CC, na redação introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31.10), como acontece, de resto, com outras ações pessoais.

15. Os “herdeiros” do cônjuge autor, a quem o artigo 1785º, nº 3, do CC, permite a prossecução da ação de divórcio, só podem ser os sucessíveis que, no caso de a ação proceder e o divórcio vir efetivamente a ser decretado, serão chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros legais ou testamentários [os sucessíveis que sejam chamados à sucessão do cônjuge falecido como seus herdeiros legais ou testamentários no caso de a ação proceder e o divórcio vir efetivamente a ser decretado; além dos sucessíveis efetivamente chamados, poderão continuar a ação as pessoas que como tal serão chamadas com o afastamento do cônjuge demandado], ou seja, os sucessíveis cuja designação se converterá em vocação se se verificar a referida eventualidade. Cfr Acórdão do STJ de 21.5.1981, in BMJ 307º, 210, e Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1987, pág. 487.

16. Com efeito, são esses sucessíveis os titulares dos interesses patrimoniais que o artigo 1785º, nº 3 do CC pretende tutelar, a fim de que a partilha dos bens do casal e a sucessão do cônjuge sobrevivo não sejam alteradas (ou não sejam significativamente alteradas), pela circunstância fortuita/imprevista de um dos cônjuges ter falecido na pendência da ação de divórcio.

17. Trata-se de possibilitar que o cônjuge sobrevivo seja excluído como sucessor, da herança do cônjuge falecido, do mesmo modo que dela seria excluído se o falecimento se tivesse verificado já depois de decretado o divórcio; titulares naturais deste interesse, os sucessíveis que forem chamados à herança do falecido se a ação de divórcio proceder, devem por isso ser admitidos a continuar a ação intentada para que seja atingido o objetivo da lei, como efetivamente acontecerá se a ação continuar, e vier a ser proferida sentença que decrete o divórcio, quer se trate de sucessão legítima (artigo 2133º, nº 3, in fine, do CC), quer se trate de sucessão testamentária (artigo 2317º, alínea d), in fine, do CC). Veja-se, neste sentido, Ac. TRC de 16.12.2015, relatado pelo Desembargador Fonte Ramos, in www.dgsi,pt.

18. Assim, na sucessão legítima, se o cônjuge autor falecer e deixar cônjuge e descendentes - como sucede no caso vertente -, estes devem ser admitidos a continuar a ação, para que, se o divórcio for decretado, não sofram a concorrência do cônjuge, para que a sucessão seja deferida tal como o seria se o falecimento do cônjuge autor se tivesse verificado já depois de ter sido proferida a sentença que decretou o divórcio.

19. E é a estes sucessíveis (descendentes), que deve ser reconhecida legitimidade para deduzirem o incidente de habilitação em vista do prosseguimento da ação de divórcio, porquanto titulares de interesses patrimoniais que justificam a legitimidade para o incidente de habilitação. Vide, sobre todo o ponto II. 5., F. M. Pereira Coelho, RLJ, 121º, págs. 89, “nota 2” e 116 e seguintes.

20. Face ao descrito enquadramento jurídico, será de concluir, por um lado, que os quatro filhos Recorridos, tinham legitimidade para o incidente de habilitação com vista ao prosseguimento da ação de divórcio, e, por outro lado, que, na concretização do artigo 1785º, nº 3 do CC, não estavam impedidos de exercer o direito por eles mesmos, desacompanhados dos demais sucessíveis, porquanto dotados da necessária legitimidade (advinda da sua habilitação como herdeiros do falecido autor).

21. Ou seja, trata-se, pois, de um caso de litisconsórcio voluntário (artigo 32º, nº 2, do CPC), bastando que os Recorridos, BB, CC, DD e EE, exerçam o direito em causa, para assegurar a legitimidade.

22. E dizendo a lei que “a ação pode ser continuada pelos herdeiros do autor”, daí não se poderá extrair que a continuação haja de ser requerida por todos os herdeiros (sucessíveis efetivamente chamados) e também, eventualmente, os que serão chamadas com o afastamento do cônjuge demandado, mas sim, e apenas, que qualquer dos habilitados poderá requerer a sua continuação.

23. Pelo que, na atuação do artigo 1785º, nº 3 do CC, qualquer dos sucessíveis tem legitimidade para deduzir a habilitação e requerer o prosseguimento da ação de divórcio. Nesse sentido, Ac. TRC de 16.12.2015, relatado pelo Desembargador Fonte Ramos, in www.dgsi.pt.

24. E tal interpretação do artigo 1785º, nº 3 do CC, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, nem constitui qualquer violação do direito substantivo probatório, considerar-se como que verificada “uma presunção de vontade” por parte do Autor, no que à vontade de se divorciar concerne.

25. Por outro lado, o artigo 1781º, al. a) do CC estabelece a separação de facto, como fundamento do divórcio sem consentimento do outro cônjuge, e o artigo 1782º, nº 1 do CC, densifica o conceito de separação de facto como causa de divórcio, dispondo que “Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”

26. A separação de facto constitui uma das causas objetivas do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, presumindo-se dessa separação a rutura definitiva do casamento.

27. Assim, para que a separação de facto entre os cônjuges constitua fundamento de divórcio, exige-se a verificação de dois elementos: um de natureza objetiva que consiste na cessação dos deveres conjugais impostos pelo artigo 1676º do CC, de partilha de leito, mesa e habitação, pelo prazo (mínimo) consecutivo de um ano; outro de natureza subjetiva, consistente na intenção de pelo menos um dos cônjuges, de não retomar a vida matrimonial em comum (conforme decorre do disposto no artigo 1782º do CC), independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges.

28. No que concerne ao elemento objetivo (separação pelo prazo de um ano), para o cômputo do prazo previsto nesta alínea a) do artigo 1781º do CC, conforme a posição jurisprudencial mais recente do STJ, deve ser considerado o tempo decorrido entre a interposição da ação e a data da decisão que aprecia os fundamentos de divórcio. Nesse sentido, veja-se, o Ac. do STJ de 23/02/2021, proferido no Ac. nº 3069/19.0T8VNG.P1.S1, relatado pela Conselheira Maria João Vaz Tomé, disponível in www.dgsi.pt.

29. O prazo previsto neste preceito, é um prazo de direito material e não processual, justificando-se assim a aplicação do disposto no artigo 611º, nº 1 do CPC, o qual dispõe que “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições gerais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser aletrada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos (…) que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à decisão existente no momento do encerramento da decisão”

30. Este princípio da atualidade da decisão não contende com o princípio da igualdade das partes, pois, sobre a separação e o respetivo prazo, pode o Réu deduzir oposição, invocando a sua inexistência, e, inclusive, produzir prova destinada a convencer do contrário.

31. A consideração do momento temporal verificado no decurso da ação, não significa privilegiar uma parte em detrimento da outra, mas apenas considerar todos os factos e circunstâncias relevantes para a decisão até ao momento em que esta é proferida, por forma a que tal decisão corresponda à realidade verificada na data da sua prolação.

32. É que, conforme decorre do preâmbulo do diploma legal que alterou o regime do divórcio, privilegia-se o divórcio-rutura, pelo que “O princípio da liberdade de escolha dos cônjuges postula que ninguém deve permanecer casado contra sua vontade” – conforme e refere no referido Ac. do STJ de 23/02/21.

33. No caso em apreço, o finado FF intentou a presente ação em ... .07.2020 e a sentença em crise foi prolatada em 28.02.2022, pelo que o tempo decorrido entre a interposição da ação e a data da decisão que apreciou os fundamentos de divórcio (1 ano e mais de 7 meses), já ultrapassa o prazo estipulado na al. a) do artigo 1781º do CC, estando, só por tal via, verificado o elemento objetivo.

34. Não obstante, resulta dos pontos 3. e 5. dos factos provados que a separação entre o decesso FF e a Recorrente, ocorreu em Maio de 2018 - facto aceite e reconhecido por esta -, o mesmo resultando das declarações prestadas em ... .09.2020 pelo finado FF nos serviços do Ministério Público ..., no âmbito do referido processo administrativo com vista à instrução de eventual processo de maior acompanhado (o qual veio a ser arquivado em 08.09.2020, por não se terem verificado os pressupostos de que dependia a entrada do processo – ver fls. 11 e 12 dos autos), e declarou estar separado da esposa há 3 anos, estar a viver com a filha EE … .

35. No que tange ao elemento subjetivo (intenção de, pelo menos, um dos cônjuges, em não restabelecer a vida matrimonial comum), tem sido entendido por parte significativa da Jurisprudência, que a simples propositura da ação de divórcio, revela de forma inequívoca a intenção de não restabelecer a vida matrimonial comum e constitui igualmente um índice seguro de que a relação entre os cônjuges se degradou irremediavelmente.

36. Com efeito, o “propósito” de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecer a vida em comum pode ser afirmado ou exteriorizado de forma expressa ou tácita, e que o “simples facto de o autor intentar a ação de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido” – vide Acórdãos do STJ de 5/7/2001, Col. Jur. STJ, 2001, T-II, pág. 164; e de 11/7/2006, Col. Jur., STJ, 2006, T-II, pág. 157.

37. No último aresto, a propósito do elemento subjetivo, pode ler-se: “deve ser afirmado, ou exteriorizado, por forma expressa ou tácita, sendo que, e como julgou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 3 de Junho de 2004 – 04B 1564 – o simples intentar da ação de divórcio com fundamento na separação de facto basta para caracterizar o propósito de pôr fim à sociedade conjugal (…)”.

38. De outro modo, podia questionar-se como seria viável obter do depoimento de terceiros a prova da intenção do autor de não restabelecer a vida em comum. Neste sentido, veja-se a jurisprudência dominante: Ac. do STJ de 03.06.2004, relatado pelo Conselheiro Luís Fonseca, Ac. TRC de 18.01.2022, relatado pela Desembargadora Cristina Neves, disponível in www.dgsi.pt, Ac. TRE de 27.06.2019, relatado pelo Desembargador Tomé Ramião, proc. nº 420/18.4T8FTR.E1, Ac. TRL de 12/11/2015, proferido no proc. n.º 10033/09.6TCLRS.L1, relatado pelo Desembargador Ezaguy Martins, e Ac. TRP, de 18/04/2013, proferido no proc. n.º 3003/10.3TBVNG.P2, relatado pela desembargadora Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt.

39. É certo que jurisprudência (minoritária) existe, que considera não ser este um requisito bastante para se considerar verificado o elemento subjetivo imanente ao direito que o A. pretende fazer valer, como resulta da posição expressa no Ac. do TRL 15/05/2012, relatado por Luís Lameiras, no proc. nº 9139/09.6TCLRS.L1-7, disponível in www.dgsi.pt,  que citando FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA (Curso de Direito da Família, volume I - Introdução, Direito Matrimonial, 4ª edição, páginas 638 a 639, nota 75), refere ser este “um ponto de vista que merece muitíssimas reservas; e, por isso, não aceitável, já que desconsidera a exigência normativa de que o propósito do cônjuge seja contemporâneo do início da separação e que a acompanhe; que constitua real motivação sua.”

40. Ora, não oferece dúvida que o animus de não restabelecimento da vivência matrimonial é elemento essencial para se julgar verificado este fundamento de divórcio. No entanto, que outro facto mais inequívoco deste animus de não restabelecimento da vida matrimonial existe, que a própria interposição de pedido de divórcio? É, pois, este pedido que revela que a rutura conjugal é definitiva e irreversível, consubstanciado na intenção de um dos cônjuges de dissolver o aludido vínculo.

41. Pelo que, no caso vertente, independentemente da valoração dada pelo Tribunal a quo ao depoimento das testemunhas indicadas pela recorrente e ouvidas em sede de audiência de julgamento -depoimentos esses fundados na muito própria análise e interpretação que tais testemunhas fazem do comportamento que conheciam do decesso FF - , é incontornável que este intentou ação de divórcio contra a recorrente em ... .07.2020, de cujo pedido não desistiu posteriormente, o que demonstra de forma inequívoca a sua intenção em não restabelecer a vida conjugal comum com a recorrente (ponto 4 dos factos provados).

42. Ademais, além de tal manifestação tácita por parte do finado FF, este manifestou de forma expressa a sua vontade de divorciar-se da apelante, a qual consta no aludido auto de declarações do falecido A., datado de ... .09.2020, de fls 130 a 131, do qual resulta que o falecido foi ouvido nos serviços do Ministério Público naquela data, no âmbito de um processo administrativo com vista à instrução de eventual processo de maior acompanhado (o qual veio a ser arquivado em 08.09.2020, por não se terem verificado os pressupostos de que dependia a entrada do processo – ver fls. 11 e 12 dos autos), e declarou estar separado da esposa há 3 anos, estar a viver com a filha EE, conduziu até abril de 2020, deixou de o fazer nessa data porque não renovou a carta de condução, é o próprio que trata das questões burocráticas com finanças, segurança social, bancos, etc…, compreendeu o teor da procuração que passou à sua advogada para dar entrada com o processo de divórcio, há 3 anos geria um café com a esposa, cessou a atividade devido à dependência alcoólica da esposa, o que originou vários conflitos, é sua vontade divorciar-se da esposa, nunca foi impedido de contactar com ela por quem quer que fosse.

43. Conclui-se, assim, in casu, preenchida a causa de divórcio prevista na alínea a) do artigo 1781º do CPC, tendo em consideração que não é lícito a qualquer dos cônjuges forçar o outro à manutenção da sociedade conjugal - neste sentido, Ac. do STJ de 03.10.2013 (Pº 2610/10.9TMPRT.P1.S1) e Ac. do TRL de 22.10.2013 (Pº 16/11.1TBHRT.L1-7), ambos acessíveis in www.dgsi.pt, não merecendo qualquer censura o acórdão recorrido.

c) No que tange às invocadas nulidades do acórdão recorrido:

44. Inexiste qualquer erro de facto notório no ponto 4 dos factos provados, não sendo contraditório, o facto dos Recorridos terem referido em sede de audiência de julgamento, que só em meados/finais de 2019 lhes foi dito pelo falecido, que se queria divorciar. O que, pelo contrário, demonstra que foi uma decisão ponderada do decesso autor, que tendo deixado a casa de morada de família em Maio de 2018, tomou a decisão de se divorciar em meados/finais de 2019, a qual comunicou então aos filhos, intentando a respetiva ação em 16 Julho de 2020.

45. Não tendo sido desconsiderados os documentos elencados pela recorrente (testamento, relação de bens no inventário, doação, informação clínica), os quais, todavia, não têm a força probatória que aquela lhes pretende atribuir!

46. Com efeito, o facto do finado A. não ter tido a iniciativa de, em vida, alterar ou revogar o testamento que outorgou a beneficiar a Recorrente, não significa que o mesmo não pretendia o divórcio, vislumbrando-se inúmeras razões para aquele não ter alterado/revogado tal testamento:

- pretender alterar o mesmo, e não ter tido oportunidade para o efeito, atenta a pandemia provocada pelo vírus Sars Cov II, e que lhe precipitou o decesso;

- ter-se olvidado da outorga do mesmo, atento o tempo decorrido (foi celebrado em 19.05.1986

- pretender beneficiar a apelante com a sua quota disponível, já que, sendo decretado o divórcio entre ambos, aquela deixaria de ser sua herdeira legitimária;

- pese embora a sua intenção de se divorciar, pretender proteger a Apelante, com quem teve quatro filhos, e com quem viveu mais de 40 anos.

47. Aliás, a quota disponível serve precisamente para o testador querendo, deixar liberalidade a quem não é herdeiro legítimo ou legitimário; o mesmo se podendo dizer quanto à doação com dispensa de colação efetuada pelo finado Autor à filha DD, fruto do primeiro casamento do decesso autor, dissolvido por óbito do cônjuge.

48. Já no que concerne à informação clínica datada de 2015, onde consta expressamente que “neste momento ainda preserva as suas capacidades mentais e físicas”, o teor de tal documento foi abalado pela lucidez das declarações prestadas pelo decesso FF no âmbito de processo administrativo, constituindo tal auto de declarações, um documento autêntico, nos termos do disposto no artigo 369º, nº 1 do CC. Documento esse que tem a força probatória referida no artigo 371º, nº 1, do CC, ou seja, faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador, mas não garante a veracidade das declarações prestadas.

49. Constituindo um começo de prova por escrito, a ser corroborado por prova testemunhal. O que se verificou, in casu, pois, não só a Técnica de Justiça Auxiliar HH, a qual tomou as declarações do decesso FF em ... .09.2020, validou o teor das mesmas, como aquelas declarações foram corroboradas pelas testemunhas II, JJ e KK, e pelos Recorridos, em declarações de parte.

50. Ademais, a declaração inserta em tal documento, foi livre e esclarecida, ao ponto do Ministério Público ter ordenado o arquivamento do referido processo administrativo em 08.09.2020, apenas com base nas declarações idóneas e escorreitas do falecido FF.

51. Sendo que, no artigo 6º da p.i., o decesso FF alegou, que “Desde Maio de 2018 nunca mais contactou, por qualquer meio com a Ré, nem pretende voltar a contactar …”; no artigo 18º da p.i., alegou que “… desde o ano de 2018, pelo menos, o Autor e a Ré não mais viveram em comunhão de leito, mesa e habitação”; e no artigo 20º da p.i., o finado FF alegou que “… não tem vontade de restabelecer a comunhão de vida conjugal”, factualidade confirmada por si confirmada nas declarações prestadas em ... .09.2020, bem como pelos Recorridos e testemunhas.

52. Após a informação clínica de 2015, o finado Autor:

a) outorgou doação com dispensa de colação à aqui recorrida DD, em 25.06.2019, celebrada no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária LL;

b) renovou a carta de condução em Abril de 2019, junto do IMT;

c) alterou a sua residência no Cartão de Cidadão em Junho/Julho de 2020, junto da Conservatória do Registo Civil ...;

d) viajou sozinho à ... por duas vezes.

53. Factos relatados pelos Recorridos BB e EE nas suas declarações de parte, e confirmados pelas testemunhas II, JJ e KK, em sede de audiência de julgamento, cujos depoimentos foram considerados credíveis, sinceros e espontâneos pela 1ª instância, e que oTRP não contrariou, o que demonstra que o decesso Autor manteve a lucidez e consciência até fim, não padecendo de demência.

54. Acresce que, o facto de, aquando da marcação da primeira tentativa de conciliação, o finado A. não ter comparecido pessoalmente em Juízo, e ter-se pretendido representar por advogada mandatada com procuração com poderes especiais para o efeito, não é demonstrativo de que aquele não pretendia o divórcio.

55. A marcação da tentativa de conciliação visa obter a composição consensual e equitativa do litígio. Dada essa finalidade, a lei prevê que as partes sejam notificadas para comparecer pessoalmente na diligência ou para se fazerem nela representar por mandatários especialmente mandatados para transigir (artigos 931º, nº 1, 594º, nº 2 e 45º, nº 2 do CPC).

56. No caso vertente, tal procuração com poderes especiais é datada de 15.05.2020, constando expressamente da mesma que o decesso FF mandatou a sua Ilustre Advogada para “confessar a ação, transigir, desistir do pedido ou da instância receber notificações e citações, apresentar requerimentos, reclamações, pedidos de consulta ou esclarecimento, recorrer, pagar e receber custas de parte, dar quitações, assinar recibos, solicitar registos e certidões, e, em termos gerais, praticar todos os atos que se mostrem adequados e necessários aos citados fins”, a qual foi junta com a p.i.

57. Ou seja, desde o início do processo que o A. pretendeu mandatar a sua Advogada para o representar em todos os atos no âmbito da presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, conferindo-lhe amplos poderes para o efeito. E fê-lo certamente, para evitar deslocar-se a Juízo, e não ter de se cruzar presencialmente com a recorrente!

58. Querer imputar a tal ausência na referida diligência, a força probatória de que o finado Autor não pretendia o divórcio da recorrente, é uma especulação infundada! Aliás, se o A. não quisesse divorciar-se, entre a propositura da ação (... .07.2020) e o seu óbito (... .10.2020) poderia ter desistido do pedido nos presentes autos, o que não se verificou.

59. Ademais, alega a recorrente que o finado FF, foi manietado, cerceado e condicionado pelos Recorridos, que terão obstaculizado o regresso daquele ao lar conjugal e a retomar o casamento com a recorrente. Contudo, resultou da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, que o falecido FF, após ter saído da casa de morada de família e ter passado a viver em casa da Recorrida EE, foi sempre livre de se movimentar, bem como de tomar as suas decisões, nomeadamente, saía de casa desacompanhado, dava os seus passeios, ia ao café das redondezas da casa da filha, passeou horas por ... com a testemunha MM, irmão da Ré, foi visitado pelo seu irmão NN, deslocou-se à ... duas vezes, pelo menos uma delas sozinho, tinha e usava telemóvel, foi procurado pela recorrente e pelo filho GG em casa da recorrida EE e aqueles obtiveram como resposta não pretender o A. falar e/ou estar com eles, a testemunha GG chamou as forças de autoridade para certificar que o pai não estava condicionado e a resposta que obteve dos agentes policiais, foi que o A. não pretendia falar com ele.

60. E o decesso FF prestou declarações nos Serviços do Ministério Público um nunca fora impedido de contactar com quem quer que fosse, tinha passado a procuração à sua advogada para dar entrada com o processo de divórcio, e pretendia divorciar-se.

61. Por seu turno, as testemunhas arroladas pela Recorrente, nomeadamente, GG, NN, OO, MM, PP, QQ e RR, embora manifestassem crença na teoria de que o finado FF estivesse condicionado pelos Recorridos, que o impediram de reatar a comunhão conjugal com a recorrente, conforme seria sua pretensão, acabaram por corroborar, por diversas formas e exemplos, que o decesso tinha liberdade de movimentos e de comunicação, conforme consta da sentença proferida pela 1ª instância. Pelo que tal argumento não pode vingar!

62. Inexistem as invocadas nulidades na apreciação da prova, pois o Tribunal recorrido procedeu a uma valoração conjunta da prova, fundando-se não só nas declarações de parte prestadas pelos recorridos, mas também nos documentos juntos aos autos, e no depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, como ainda, no facto do decesso A. ter intentado ação de divórcio em ... .07.2020.

63. Tendo resultado inequívoco das declarações de parte prestadas por BB, que o decesso A. se encontrava separado da recorrente desde Maio de 2018 e que tinha intenção de se divorciar da mesma.

64. Sendo que, como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, 2018, Almedina, Vol. I, págs. 529/530, as declarações de parte permitem à parte, que seja admitida a depor em casos em que não existem outros meios de prova (como o divórcio sem consentimento), e que “subjaz ao preceito a ideia de que são as partes que verdadeiramente conhecem os contornos do litígio e detêm a razão de ciência mais direta, não havendo qualquer obstáculo de ordem material que possam comparecer espontaneamente perante o tribunal para, sem intermediários, exporem a sua versão dos factos, submetendo-se ao imediato contraditório da parte contrária e ao inquisitório do tribunal, competindo ao juiz apreciar o valor probatório das declarações”.

65. Daí entenderem que, face ao princípio da livre apreciação das provas a que o juiz está vinculado, “nada obstará a que factos que, de acordo com a lei substantiva, não estejam sujeitos a prova tarifada, sejam considerados provados com base nas declarações da parte, se acaso o tribunal se convencer da sua veracidade”. (sublinhado nosso). E acrescentam: “Ainda que estejam em causa direitos indisponíveis, não há impedimento a que seja deferida tomada de declarações de parte”, sendo certo que delas não pode ser extraída uma declaração com valor confessório, por totalmente inadmissível, face ao disposto na alínea b) do artigo 354º do CC, dando como exemplo as ações de divórcio.

66. De acordo com a tese da autossuficiência/valor probatório autónomo das declarações de parte, não obstante as especificidades destas, as mesmas podem alicerçar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo.

67. Luís Filipe Pires de Sousa, in “As Declarações das Partes/Uma Síntese”, Abril 2017, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, 2018, Almedina, Vol. I, pág. 532, Professor Teixeira de Sousa, in “Para que serve afinal a prova por declarações de parte?”, https://blogippc.blogspot.com/search?q=declara%C3%A7%C3%B5e s+de+part, defendem esta orientação.

68. É óbvio que se está perante declarações interessadas no ganho da causa, mas, para tal, o Juiz irá discernir primeiro sobre a declaração, e só depois sobre a pessoa do declarante. Se a preocupação fosse apenas baseada na tendenciosidade da própria parte, no caso da prova testemunhal, iria passar-se a mesma situação, pois na prática muitas testemunhas não são isentas, abarcando em inúmeras situações, algum dos lados representados em Juízo. Portanto, julga-se primeiro a declaração, e, por conseguinte, a parte.

69. Do que se deixa dito, conclui-se inexistir razão para, in casu, não serem valoradas as declarações de parte dos Recorridos sobre os factos pessoais da vida do finado FF. A tanto não o impede a circunstância de se discutirem direitos indisponíveis, como é o caso da presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, como se entendeu no Acórdão do TRL, de 10/10/2014, proferido no proc. n.º 2022/07.1TBCSC-B.L1-2, consultável em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: “Mesmo estando em causa uma ação em que se discutem direitos indisponíveis, não pode ser rejeitado o requerimento para declarações de parte, com fundamento na sua inutilidade, por ser suscetível de levar a uma eventual confissão de factos, posto que, neste caso, tal meio de prova é ineficaz para produzir confissão, já que esta nunca poderia ser valorada com os inerentes efeitos de irretratabilidade e força probatória plena”.

70. O meio probatório em questão (declarações de parte) deverá, assim, ser livremente apreciado na sua plenitude, desde logo, pela sua essencialidade em determinados litígios (como ações de divórcio sem consentimento do outro cônjuge). A sua importância face a factualidade que apenas foi presenciada pelas partes, é meritoriamente decisiva na descoberta da verdade material e para a boa decisão da causa.

71. No caso vertente, o Tribunal de 1ª instância considerou que as declarações prestadas pelos Recorridos EE e JJ em sede de audiência final, mereceram credibilidade, pela espontaneidade e serenidade com que foram prestadas - valoração mantida pelo TRP -, e foram sustentadas pela demais prova, documental e testemunhal, pelo que devem ser valoradas autonomamente.

72. Sendo que, as declarações dos recorridos EE e JJ, foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas II, JJ e KK, que confirmaram que o decesso FF e a recorrente viveram separados um do outro, em casas distintas, desde Maio de 2018, declararam que o Autor não se deslocava à casa de morada de família desde a separação, e que este se queria divorciar.

73. Por fim, não corresponde à verdade que a relevância atribuída pela 1ª instância às declarações prestadas pelo finado Autor em sede de processo administrativo (Maior Acompanhado), tenha inquinado a apreciação da matéria de facto, designadamente, no sentido de dar-se como provado o ponto 4.

74. Pelo contrário: o TRP desconsiderou tais declarações como meio de prova por terem sido indicadas por iniciativa do Tribunal de 1ª instância, e, não obstante ter desvalorizado a força probatória das mesmas, ainda assim deu como provada a matéria constante dos pontos 3. e 4. dos factos provados, alterando o ponto 5. destes factos, no sentido de constar que “O falecido A. ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018.”

75. E, atenta a factualidade dada como provada nos pontos 3 e 4 - que se manteve inalterada após reapreciação pelo TRP -, encontram-se verificados os dois requisitos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge fundado na separação de facto, pelo que a decretação do divórcio é acertada, não padecendo de quaisquer nulidades.

B. No que tange ao Recurso de Revista Ordinário:

a) Da admissibilidade do recurso ordinário:

76. Existe dupla conforme quando a Relação confirma, sem voto de vencido e com base em fundamentação substancialmente idêntica, a decisão da 1ª instância, ou seja, quando não houver inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos aduzidos no Acórdão recorrido relativamente aos utilizados na sentença apelada, com suporte no segmento decisório, no pedido e na causa de pedir.

77. Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.

78. Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação, tenha assentado de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.

79. A dupla conformidade exige, assim, que a questão crucial para o resultado declarado, tenha sido objeto de duas decisões “conformes”. Tal não ocorre, nos casos em que é imputado ao Acórdão da Relação a violação de normas de direito adjetivo, no que concerne à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, nomeadamente as previstas nos artigos 640º e 662º, ambos do CPC.

80. Efetivamente, em tais circunstâncias, ainda que simultaneamente a Relação tenha confirmado a decisão recorrida no que respeita à matéria de direito, não se verifica uma situação de dupla conformidade no que concerne ao modo como foi reapreciada a matéria de facto.

81. No caso vertente, em matéria da aplicação do direito, o Acórdão do TRP recorrido, confirmou integralmente, e sem qualquer voto de vencido e, com fundamentação idêntica, a decisão proferida em primeira instância. Sendo idêntica quanto ao núcleo essencial da sua fundamentação jurídica, remetendo, inclusivamente, para o conteúdo da decisão da 1ª instância; no que concerne à matéria de facto, em sede recursiva, a Recorrente não suscitou quaisquer questões suscetíveis de por em causa o modo como a Relação apreciou a impugnação da decisão da matéria de facto, nem requereu, em sede de recurso de apelação, a inclusão de quaisquer pontos da fundamentação de facto na sentença proferida pela 1ª instância, ou de um conjunto de diligências de investigação que não haviam sido consideradas pelo Tribunal de 1ª instância.

82. Sendo que, a alteração da matéria de facto levada a cabo pelo TRP – que se limitou, no ponto 5 da factualidade dada como provada, a expurgar as motivações que terão levado o decesso autor a abandonar a casa de morada de família em Maio de 2018 -, em nada influiu na decisão em crise, nem o raciocínio para alcançar tal decisório.

83. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos, após reapreciação da matéria de facto impugnada (pontos 3, 4 e 5 da factualidade dada como provada):

3. Desde maio de 2018 até à data da entrada em juízo do processo de divórcio (... .07.2020), e mesmo até ao falecimento do A. (... .10.2020), ininterruptamente, o A. e a Ré não viveram debaixo do mesmo teto, não fizeram refeições em conjunto e não partilharam o mesmo leito conjugal.

4. No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.

5. O falecido A. ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018.

84. Podendo ler-se no acórdão recorrido “Deste modo, embora sem repercussão na solução jurídica do pleito, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria fáctica efetuada pela ré/recorrente, alterando-se a redação do nº 5 da factualidade provada nos termos que atrás se deixaram consignados”.

85. Por conseguinte, porque não foram suscitadas pela recorrente questões novas perante a Relação, no âmbito do recurso de apelação, invocando a violação de preceitos de natureza adjetiva e de natureza substantiva, no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados, pode afirmar-se que se verificou uma situação de dupla conformidade – nesse sentido, veja-se o Acórdão STJ de 08.02.2018, relatado pelo Conselheiro António Joaquim Piçarra, in www.dgsi.pt. Não devendo, pois, ser admitido o recurso ordinário interposto pela recorrente, por verificação de dupla conforme.

Sem prescindir, e caso assim se não entenda,

b) Das invocadas nulidades do acórdão recorrido:

86. Dão-se por integralmente reproduzidas as conclusões vertidas supra quanto às alegadas nulidades do Acórdão recorrido, invocando-se os mesmos fundamentos para demonstrar que a decisão em crise não padece de quaisquer vícios/nulidades.

87. O acórdão recorrido não violou qualquer preceito legal, adjetivo ou substantivo, bem como não padece de nulidades ou inconstitucionalidade, não merecendo censura, tendo o Julgador a quo procedido a uma correta interpretação e aplicação do direito, bem como a uma atual análise e interpretação da doutrina e jurisprudência dominantes, pelo que o presente recurso inelutavelmente de naufragar”.

7. Em 24.01.2023 foi proferido Acórdão no Tribunal da Relação do Porto em que se conclui:

“Nos termos expostos, para os efeitos do art. 617º, nº1 do Cód. de Proc. Civil aplicável “ex vi” do art. 666º do mesmo diploma legal, acordam os juízes que constituem este Tribunal no sentido de que não se verificam as invocadas nulidades”.

8. Em 2.02.2023, proferiu o Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação do Porto o seguinte despacho:

Embora o Tribunal da Relação tenha confirmado sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida na 1ª Instância, verifica-se que no recurso agora interposto para o Supremo Tribunal de Justiça são levantadas questões que, integradas pela ré/recorrente no eventual cometimento de nulidades de sentença previstas no art. 615º do Cód. de Proc. Civil, se poderão relacionar, eventualmente, com erro de aplicação da lei processual a respeito da decisão da matéria de facto.

Neste contexto, sendo possível entender-se que quanto a essas questões não se verifica uma efetiva situação de dupla conforme, porquanto as mesmas só surgiram com o acórdão da Relação, e sem prejuízo de melhor entendimento por parte do Supremo Tribunal de Justiça, admite-se o recurso de revista “normal” interposto pela ré AA.

Este sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo – arts. 671º, nº 1, 675º, nº 1 e 676º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.

Quanto ao recurso de revista excepcional, também interposto, a decisão quanto à verificação dos respetivos pressupostos incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça - art. 672º, nºs e 3 do Cód. de Proc. Civil.

Notifique e remetam-se os autos ao STJ”.


*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a apreciar no presente recurso é a de saber se, ao apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido incorreu em violação da lei, designadamente do disposto no artigo 662.º do CPC ou nalguma norma de Direito probatório material.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. O A. FF e a Ré AA contraíram entre si casamento no dia 28.04.1970, no regime imperativo da separação de bens.

2. O A. faleceu em ... .10.2020.

3. Desde maio de 2018 até à data da entrada em juízo do processo de divórcio (... .07.2020), e mesmo até ao falecimento do A. (... .10.2020), ininterruptamente, o A. e a Ré não viveram debaixo do mesmo teto, não fizeram refeições em conjunto e não partilharam o mesmo leito conjugal.

4. No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré.

5. O falecido autor ausentou-se da casa de morada de família em maio de 2018[1].

O DIREITO

Considerações prévias sobre a admissibilidade do presente recurso como revista normal

Apreciado o presente recurso, o primeiro aspecto que salta à vista prende-se com a circunstância de o Acórdão recorrido confirmar sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão do Tribunal de 1.ª instância. Existe, pois, o obstáculo da dupla conforme, que – diga-se – não é afastado pelo facto de o Tribunal recorrido ter procedido à alteração da decisão sobre a matéria de facto, mais precisamente à alteração do teor do facto provado 5. Com efeito, as alterações irrelevantes ou insignificantes para a fundamentação, como é, manifestamente, esta do facto provado 5[2], não têm aptidão para desqualificar a dupla conforme[3].

Existindo o obstáculo da dupla conforme e verificando-se que a recorrente interpôs o recurso, a título principal, como revista excepcional, tudo confluiria no sentido de se remeter os presentes autos à Formação.

Mas talvez seja de ver se a recorrente pode interpor o recurso com base no fundamento que invoca.

Formal ou literalmente, o fundamento do recurso é a nulidade do Acórdão recorrido ou, mais precisamente, as nulidades previstas nas als. c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (cfr. conclusões 68.ª, 79.ª, 80.ª, 82.ª, 83.ª, 87.ª, 89.ª, 90.ª e 92.ª a 94.ª).

Tal está ilustrado, em especial, nas conclusões finais:

87ª - A omissão de uma ponderação deste documento representa uma nulidade, nos termos do art.615º, nº1, d) e nº4 ex vi art.674, nº1, c), na apreciação da matéria de facto que este Supremo Tribunal pode conhecer com relevância na decisão da matéria de facto, o que se invoca, implicando que se dê como não provada vontade do A. em se divorciar (…).

89ª- Ora, pelas razões supra, considerando a eliminação dos meios de prova feita pelo Venerando Tribunal da Relação e a alteração do Ponto 5 dos factos provados, o ponto 4 mantido como vinha da 1ªinstância, s.d.r. que é muito, enferma de erro por omissão de tomar em devido relevo os documentos descritos supra e com a relevância que deles se extrai, constituindo uma Nulidade nos termos do art.615, nº1, c) do CPC que afeta toda a decisão e implica que devia ter sido dado como NÃO provado o ponto 4 dos factos considerados provados pela 1ªinstância (…).

90ª - Nulidade que afeta a decisão também por força da apreciação da prova sem ter em conta, a descrição de factos frontalmente opostos pelas testemunhas da Ré e cuja credibilidade não foi posta em causa respaldados e complementados pelos documentos descritos supra.

92ª- Com efeito, o Tribunal “a quo”, s.d.r., não se pronuncia sobre os documentos referidos e não fazendo a sua exegese com todos os depoimentos, incorre a decisão prolatada de Nulidade nos termos do art.615º, n1, d) do CPC, invocável nesta sede ex vi art.674º, nº1, c) do CPC, e que, pelo seu relevo implica a Nulidade da decisão quanto á matéria de facto, anulando-se o ponto 4. dos factos dados como provados.

93ª- Acresce uma nulidade invocável ex vi art.615º, n1, d) do CPC e art.674º, nº1, c) do CPC, porquanto, ocorrendo uma situação de dúvida quanto á matéria de facto, pois a prova feita pela Ré, constituída pelos documentos juntos pela Ré e os depoimentos transcritos na impugnação da matéria de facto e com as contradições insanáveis invocadas, a decisão da matéria de facto só poderia ser contra a pretensão dos AA. nos termos do art.341 e 342º do Código Civil.

94ª- Pelo que se argui a NULIDADE DO ACÓRDÃO por força das Nulidades invocadas na apreciação da prova, revogado o Acórdão da Relação por força da eliminação do ponto 4 dos factos provados e consequente improcedência da ação”.

Ora, a nulidade do Acórdão não tem autonomia como fundamento do recurso, ou seja, não tem aptidão para funcionar como fundamento exclusivo do recurso. Na verdade, a lei prevê que, não sendo admitido o recurso ordinário, as nulidades previstas nas als. b) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC só podem ser arguidas perante o Tribunal a quo e, portanto, não podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem (cfr. artigo 615.º, n.º 4, do CPC)[4].

Deveria, então, concluir-se que o presente recurso é inadmissível por qualquer via, nesta parte, já que, havendo outros obstáculos à sua admissibilidade além da dupla conforme, nem sequer poderia ser admitido, por via excepcional.

Apesar disso, num esforço de interpretação das conclusões do recurso para lá da sua forma, parece que aquilo que a recorrente questiona ainda que de modo deficiente, é a conformidade à lei da conduta do Tribunal recorrido perante a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Essencialmente, o que a recorrida parece querer alegar é que o Tribunal desconsiderou determinados factos e documentos por ela alegados e produzidos e que, se tivesse tido em devida conta esses factos e documentos (em especial, o documento com informações clínicas quanto ao estado de saúde de FF em 2015), o Tribunal da Relação teria ou deveria ter decidido de outra forma a matéria de facto.

Ora, como se aponta no despacho do Exmo. Desembargador que mandou subir os autos, isto é parece relacionar-se com erro de aplicação da lei na decisão sobre a matéria de facto, o que pode, em observância do dever de gestão processual, reconduzir-se à questão da violação do artigo 662.º do CPC. E parece relacionar-se ainda com erro de aplicação de normas do Direito probatório material (cfr. conclusões 20.ª e 60.ª), referindo-se a recorrente, repetidamente, às normas dos artigos 414.º do CPC e dos artigos 341.º, 342.º e 393.º do CC (cfr. conclusões 13.ª, 53.ª, 80.ª, 81.ª e 86.ª).

Sendo a violação da lei um dos fundamentos legalmente previstos do recurso de revista, tornar-se-ia admissível o recurso.

Sendo a violação da lei imputada ao Tribunal recorrido uma questão nova, que não está, evidentemente, abrangida pela dupla conforme, tornar-se-ia admissível o recurso por via normal.

Há que dizer, não obstante respeitar à decisão sobre a matéria de facto, a questão está dentro das competências do Supremo Tribunal de Justiça. É verdade que a intervenção deste Tribunal é meramente residual no que respeita à apreciação e à fixação da matéria de facto realizada pelas instâncias. No entanto, é consensualmente entendido que o Supremo Tribunal pode apreciar o uso que a Relação faz dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662.º do CPC, sendo o “mau uso”[5] (uso indevido, insuficiente ou excessivo) susceptível de configurar violação da lei de processo e, portanto, de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC[6]. Pode ainda apreciar a violação de normas de Direito probatório material, dispondo-se, claramente, no n.º 3 do artigo 674.º do CPC que “[o] erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Deve advertir-se que isto não significa sindicar os resultados a que chegou o Tribunal recorrido ou controlar a sua decisão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, o que já implicaria interferir na valoração da prova que este Tribunal fez segundo o critério da livre e prudente convicção – tudo coisas que estão interditas ao Supremo Tribunal[7].

Fica, assim, esclarecida a razão pela qual, num esforço de interpretação das conclusões do recurso, e ao abrigo do dever de gestão processual, se admite o presente recurso, nesta parte, como revista normal, encontrando-se a questão a apreciar delimitada nos termos acima descritos.

Do objecto do recurso

Trata-se agora, como se disse, de verificar se, na apreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo incorreu em violação da lei processual (artigo 662.º do CPC) ou da disciplina probatória material (designadamente, artigos 414.º do CPC e 342.º, 343.º e 393.º do CC).

Na apreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação alterou o teor do facto provado 5 (o que não suscita contestação à recorrente) e manteve o facto provado 4, do qual consta “No período de tempo mencionado em 3. o falecido A. nunca pretendeu reatar a vida em comum com a Ré”. É com esta última decisão que a recorrente não se conforma e em relação à qual pretende que seja reconhecida desconformidade à lei.

Veja-se, abreviadamente, a fundamentação expendida no Acórdão para justificar a decisão de manutenção do facto provado 4:

Procedemos à audição das declarações e dos depoimentos, de que foram indicados excertos, por parte da recorrente e dos recorridos (…).

Relativamente aos demais depoimentos e declarações, de que não foram indicados excertos em sede recursiva (EE; II; JJ; KK, MM e RR), teremos em atenção a síntese que dos mesmos foi feita na sentença recorrida.

Deverá a Relação alterar a decisão factual se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.

Sucede que a Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.

(…) o recurso às declarações prestadas nos Serviços do Ministério Público pelo autor falecido, em ... .9.2020, como meio probatório, encontra-se inviabilizado por não se mostrarem preenchidos os pressupostos do art. 421º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.

(…) teremos agora que cingir a nossa apreciação à prova que oralmente foi produzida na audiência de julgamento, que atrás já se deixou enunciada e relativamente à qual rege o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 607º, nº 5 do Cód. de Proc. Civil.

A questão factual que se acha no cerne do presente recurso reside em saber se no período de tempo compreendido entre maio de 2018 e a data da entrada em juízo do processo de divórcio – ... .7.2020 – e mesmo a data do falecimento do autor – ... .10.2020 – o falecido nunca pretendeu reatar a vida em comum com a ré [facto nº 4].

Ora, analisada e ponderada toda a prova, o que se constata é que surgem duas versões antagónicas sobre esta questão factual. De um lado, os que, favoráveis à posição da ré e onde esta naturalmente se inclui, transmitem a ideia de que o autor foi obrigado pelos filhos a separar-se da ré e que não era sua intenção divorciar-se. Do outro, os que dizem que o autor, plenamente autónomo, se queria efetivamente divorciar, sem que houvesse qualquer constrangimento nesse sentido da parte dos filhos e que, sendo essa a sua intenção, nunca pretendeu reatar a vida em comum com a ré.

A autonomia do autor resulta, a nosso ver, manifesta da prova produzida em audiência.

A propositura da presente ação de divórcio em ... .7.2020, encontrando-se o autor lúcido e autónomo, é sinal inequívoco da sua intenção de se divorciar, sempre havendo a sublinhar que uma decisão de tamanho significado após cerca de cinquenta anos de casamento é inevitavelmente fonte de sofrimento e de dor, tanto para o autor entretanto falecido como para a própria ré.

É, por isso, compreensível que o autor, face à sua decisão de não manter o casamento, quisesse evitar os contactos diretos com a ré.

Neste contexto, consideramos que o nº 4 se deve manter na factualidade assente”.

Verifica-se, em primeiro lugar, que o Tribunal recorrido teve em conta o disposto no artigo 662.º do CC, designadamente o seu poder-dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto se a prova produzida o aconselhasse ou impusesse.

Dispõe-se no artigo 662.º do CPC:

1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados (…)”.

Verifica-se, em segundo lugar, que o Tribunal recorrido teve presente a possibilidade e a necessidade de formar uma convicção autónoma a partir dos meios de prova admissíveis sujeitos à livre apreciação, em conformidade com o disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC.

Dispõe-se no artigo 607.º, n.º 5, do CPC:

O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes

Esta norma remete para as normas que regulam as provas, nomeadamente, as que fixam a força probatória dos meios de prova e a necessidade ou desnecessidade de certos factos serem provados por intermédio de certa prova, entre as quais se integram as normas mencionadas pela recorrente dos artigos 414.º do CPC e dos artigos 342.º, 343.º e 393.º do CC.

Ora, o que se verifica, in casu, é que todos os meios de prova admissíveis e à disposição do Tribunal recorrido estavam sujeitos à sua livre apreciação e a prova do facto provado 4 não estava limitada, tendo o Tribunal recorrido liberdade para o fixar com base na prova que entendesse.

Além disso, ao contrário do que afirma a recorrente, o Tribunal recorrido não ficou em dúvida sobre qual das partes tinha razão. Tendo consciência de que, como é natural e frequente em litígios, estavam em confronto duas versões opostas (de cada uma das partes) sobre os acontecimentos, o Tribunal tomou, claramente, uma posição, afirmando:

A autonomia do autor resulta, a nosso ver, manifesta da prova produzida em audiência.

A propositura da presente ação de divórcio em ... .7.2020, encontrando-se o autor lúcido e autónomo, é sinal inequívoco da sua intenção de se divorciar (…)”.

Tudo visto, compreende-se a irrelevância para o caso dos autos do disposto nas normas dos artigos 414.º do CPC ou dos artigos 342.º, 343.º e 393.º do CC.

Evidentemente, a recorrente pode sempre dizer que o Tribunal recorrido não teve razão, que tomou partido pela versão errada dos acontecimentos, mas o que importa para os presentes efeitos é que não foi desrespeitada nenhuma das normas relevantes – este é, como se disse de início, o único aspecto que pode ser apreciado no presente recurso de revista.

Conclui-se, assim, que o Tribunal recorrido exerceu, como devia, os poderes-deveres que lhe eram conferidos pelo artigo 662.º do CPC e procedeu em conformidade com o disposto no regime do Direito probatório material, não havendo, em suma, qualquer violação da lei ou qualquer desconformidade com princípio ou norma constitucional.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Considerando que, por existir dupla conforme (cfr. artigo 671.º, n.º 3 do CPC), não é possível neste recurso apreciar a questão subsidiária e a recorrente interpôs revista excepcional, oportunamente, remeta os autos à Formação referida no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.

Lisboa, 25 de Maio de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista

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[1] Facto provado cujo teor foi alterado pelo Tribunal recorrido.
[2] Veja-se o que diz o Tribunal recorrido a propósito da única alteração da decisão sobre a matéria de facto (do teor facto provado 5): “Já no que toca ao nº 5, supérfluo para a sorte da ação (…)” e “Deste modo, embora sem repercussão na solução jurídica do pleito, julga-se parcialmente procedente a impugnação da matéria fáctica efetuada pela ré/recorrente, alterando-se a redação do nº 5 da factualidade provada” (sublinhados nossos).
[3] Explica, por exemplo, Abrantes Geraldes [Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 364-365]: “[a] expressão 'fundamentação essencialmente diferente' pode porventura, confrontar-nos com o relevo a atribuir a uma eventual modificação da decisão da matéria de facto empreendida pela Relação, ao abrigo do art. 662.º. Todavia, tal evento não apresenta verdadeira autonomia. Uma modificação da matéria de facto provada ou não provada apenas será relevante para aquele efeito na medida em que também implique uma modificação essencial da motivação jurídica, sendo, portanto, esta que servirá de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões centrada na respetiva motivação” (sublinhados do autor). Veja-se, aplicando esta doutrina, por todos, o Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2019 (Proc. 2449/15.5T8PDL.L1.S1).
[4] Cfr., neste sentido, por exemplo, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 369 e 405 (respectivamente em comentário ao artigo 671.º e ao artigo 674.º do CPC).
[5] Partilha-se a expressão usada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.07.2015 (Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1).
[6] Sobre isto cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.05.2019 (Proc. 156/16.0T8BCL.G1.S2).
[7] Cfr., neste sentido, entre tantos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.10.2009 (Proc. 1834/03.0TBVRL-A.S1).