RECURSO DE APELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I. No caso dos autos, não se verifica a invocada preterição pelo tribunal a quo da formalidade legalmente prevista no art. 655.º, n.º 1, do CPC, nem a invocada violação do princípio da cooperação.
II. De acordo com a jurisprudência prevalecente do STJ não é admissível a prolação de convite ao aperfeiçoamento no âmbito do recurso da decisão da matéria de facto.
III. Este entendimento não se mostra violador do princípio de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. Generous Ways Unipessoal, Lda. instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Região do Fundão e Sabugal, CRL, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 280.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, existir responsabilidade pré-contratual da R., no contexto das negociações de um contrato de mútuo, por ter faltado injustificadamente às respectivas marcações da escritura para a celebração do contrato de compra e venda conexo.

A R. contestou, invocando a ineptidão da petição inicial e alegando que o processo de crédito nunca esteve totalmente instruído, sendo alheia às ditas marcações.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção suscitada.

Por sentença de 23.01.2022, a acção foi julgada improcedente, absolvendo-se a R. do pedido.

Inconformada, interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito. Por acórdão de 28.09.2022 o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.


2. Veio a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando as seguintes conclusões:

«1. O acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto, porquanto a recorrente não indicou quaisquer passagens da gravação com interesse para o recurso e não transcreveu excertos dos invocados depoimentos, incumprindo o ónus previsto no artigo 640.º do CPC;

2. Tal decisão contende com os artigos 7.º e 655.º, n.º 1, do CPC e com o artigo 20.º da CRP;

3. O presente recurso é admissível ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC;

4. Não se verifica a dupla conforme, consagrada no n.º 3 do artigo 671.º do CPC;

5. Como o recurso interposto pela recorrente assentava apenas na reapreciação da matéria de facto, a decisão do Tribunal a quo reconduziu-se ao não conhecimento do objeto do recurso,

6. Pelo que se impunha o cumprimento do artigo 655.º, n.º 1, do CPC,

7. O que implica a anulação do acórdão recorrido, ao abrigo do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, na medida em que assenta na omissão de ato prescrito por lei;

8. Ao julgar improcedente a apelação da recorrida com base na inobservância do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, o Tribunal a quo violou o artigo 7.º do CPC e, por conseguinte, o artigo 20.º da CRP;

9. O princípio da cooperação é fundamental à dinâmica do processo e está intimamente ligado ao dever de gestão processual, consagrado no artigo 6.º do CPC;

10. Ao exercer o dever de cooperação, o magistrado está a gerir o processo, eliminando os formalismos desnecessários, facilitando e estimulando o envolvimento das partes no procedimento, e esclarecendo dúvidas quanto às questões suscitadas, por forma a garantir a justa composição do litígio, em tempo breve e de modo eficaz;

11. O princípio da cooperação impõe quatro poderes-deveres ou deveres funcionais: de esclarecimento [artigo 7.º, n.º 2, do CPC]; de prevenção [artigos 590.º, n.º 2, alínea b) e artigo 591.º, n.º 1, alínea c), do CPC]; de consulta [artigo 3.º, n.º 3, do CPC]; e de auxílio das partes [artigo 7.º, n.º 4, artigo 418.º, n.º 1, e artigo 754.º, n.º 1, alínea a), do CPC];

12. Ora, ao rejeitar o recurso interposto pela recorrente, o Tribunal a quo violou os deveres de esclarecimento e consulta que lhe eram impostos pelo princípio da cooperação, na medida em que:

a) Não convidou previamente a recorrente a corrigir as suas alegações, cumprindo o ónus que lhe era imposto pelo artigo 640.º do CPC;

b) Não assegurou à recorrente o direito de se pronunciar previamente quanto à eventual rejeição da impugnação da matéria de facto.

13. Chama-se à colação o artigo 639.º, n.º 3, do CPC, que versa sobre o ónus de formular conclusões, que impende sobre o recorrente;

14. Apesar de o artigo 640.º do CPC não conter formulação idêntica, existe uma identidade que impõe o recurso à analogia;

15. Esta é a solução mais consentânea com o princípio de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da CRP;

16. Ao rejeitar, sem mais, a impugnação da matéria de facto constante da apelação da recorrente, o Tribunal a quo suprimiu a sua faculdade de ver reapreciada uma decisão desfavorável,

17. Pelo que deve a decisão recorrida ser substituída por outra que ordene a notificação da recorrente para aperfeiçoar as suas alegações.».

Não foram apresentadas contra-alegações.


3. Por despacho do relator do Tribunal da Relação de 14.01.2023 o recurso não foi admitido com fundamento em verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias.

Tendo a Recorrente reclamado de tal decisão para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da previsão do art. 643.º do Código de Processo Civil, veio a mesma a ser julgada procedente, por decisão da relatora de 01.03.2023, com fundamento em que as questões suscitadas no recurso correspondem à alegação da violação de disposições processuais no exercício dos poderes do Tribunal da Relação relativamente à reapreciação da decisão de facto, considerando-se, de acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, que tais questões não se encontram abrangidas pelo obstáculo da dupla conforme à admissão da revista.

Cumpre apreciar e decidir.


II – Objecto do recurso


O presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

- Da preterição pelo tribunal a quo da formalidade legalmente prevista no art. 655.º, n.º 1, do CPC e da inerente violação do princípio da cooperação;

- Da (in)admissibilidade de prolação de convite ao aperfeiçoamento no âmbito do recurso da decisão da matéria de facto.


III – Fundamentação de facto


1) A A. é uma sociedade comercial unipessoal que tem como objeto social: “Comércio de Produtos Alimentares, bebidas e tabaco. Venda de pneus. Compra, venda e arrendamento de bens imobiliários. Serviços de auditoria e contabilidade”.

2) O imóvel designado “Quinta ...”, sito na Estrada ..., ..., ..., ..., foi adquirido pela A. em novembro de 2016, no âmbito do Processo de Insolvência de A..., Lda., com recurso a crédito bancário junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (CCAM) da Beira Baixa (Sul), em Castelo Branco.

3) A propriedade do imóvel referido em 2) encontra-se registada a favor da A..

4) A A., obteve a avaliação da Quinta ... através da CCAM da Região do Fundão e Sabugal - cf. Relatório de Avaliação datado de 13.11.2018, elaborado pelo Perito Avaliador, Eng. AA, e na qual despendeu o valor de € 624, conforme fatura/recibo, onde foi atribuída àquela propriedade o valor global de € 358 500.

5) Em novembro de 2018, foi constituída a designada W...-UNIPESSOAL, LDA., com sede na Rua ... e que iniciou a sua atividade fiscal a 06.11.2018.

6) BB procedeu ao Registo Central de Contribuinte em nome individual a 30.10.2018.

7) No seguimento das reuniões com o Presidente da Câmara Municipal ..., foi reconhecido o interesse municipal da empresa W... com base no futuro projeto empresarial para a Quinta ..., nomeadamente com a aprovação da redução em 50 % sobre o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas (IMT) para aquisição da referida Quinta.

8) A 26.3.2019, a A., através do seu então sócio gerente, solicitou junto da Repartição de Finanças do Fundão a retificação das áreas da Quinta ....

9) A 29.3.2019 a empresa W... solicitou à Ré um pedido de financiamento que consistia na concessão de um mútuo, no valor de € 144 000 (inicialmente) para a aquisição da Quinta ... e posteriormente aumentou para € 280.000.

10) A empresa W... contratou junto da Ré o Seguro Multiriscos que tinha como objecto o imóvel - Quinta ..., cujo valor seguro era de € 300 000, - a este veio a corresponder a Apólice n.º ...35 da Companhia de Seguros Tranquilidade, com um prémio anual de € 86, valor este que foi pago, e seguro válido de 30.3.2019 a 29.3.2020.

11) BB contratou junto da Ré o seguro de Vida contratado em nome individual junto da Companhia de Seguros Tranquilidade no dia 30.3.2019, com o capital seguro de € 280 000, tendo também como beneficiária a Ré, com a Apólice n.º ...19, com o prémio anual de € 1 382,44, pago mensalmente o valor de € 115,24, tendo pago os meses de abril a agosto, num total de € 576,20.

12) Na sequência do pedido de financiamento formulado, recebeu a W..., a 03.4.2019 carta de aprovação do empréstimo da Ré no montante de € 280 000.

13) Com vista a aquisição de tal imóvel, não foi pago IMT, pela W... estar isenta.

14) Foi liquidado Imposto de Selo no valor de € 2 400.

15) Os representantes da Ré não compareceram nas datas marcadas para a realização da Escritura de Compra e Venda do imóvel supra pela W...- UNIPESSOAL, LDA, quer a 03.7.2019, quer a 05.8.2019, o que veio a dar origem ao atestado emitido pelo Dr. CC na Declaração Certificada emitida a 23.12.2019.

16) O único sócio e gerente da W..., BB faleceu no dia .../.../2019.

17) A A. fez seu o valor entregue pago a título de sinal inicial, no montante de € 10 000 e mencionado em 21).

18) Aquando e logo após a sua aquisição, a A. tencionava valorizar a mesma e proceder à sua exploração (mormente no negócio das águas), sendo que, a determinada altura, abandonou tal fim, passando a diligenciar por tentar negociar a venda da “Quinta ...” a eventuais interessados, mormente junto do Sr. BB.

19) Entre os potenciais interessados com quem a A. reuniu, encontrava-se um brasileiro, que tinha uma participação numa empresa de águas, A..., o Sr. BB, o qual pretendia adquirir a Quinta ..., para aí montar uma empresa de águas; um projeto turístico e eventualmente aí residir.

20) Para tanto o mesmo criou a empresa identificada em supra (W...- UNIPESSOAL, LDA) e chegaram, a A. e o sócio gerente da W... a um acordo para a aquisição da “Quinta ...”, que culminou na outorga a 20.12.2018 de Contrato Promessa de Compra e Venda da Quinta ... entre a A. e a empresa W...- UNIPESSOAL, LDA., no acto representada por DD.

21) O negócio celebrado em dezembro de 2018, tinha os seguintes moldes essenciais:

• Valor da Compra e Venda - 300,000€;

• Sinal na assinatura contrato - 10.000€;

• Compradora assume o crédito da A. no valor de 144,000€;

• O sócio gerente da A. e mulher mantinham a fiança pessoal;

• Reforço do Sinal a 01.3.2019 - 10.000€

• Remanescente preço de 136.000€ pago em 13 parcelas de 10.000€, vencendo a primeira a 01.6.2019 e as demais a cada 90 dias, e a 1 de 6.000€ com vencimento no dia 02.01.2022;

• Com o pagamento do Sinal a compradora tomaria posse efetiva do imóvel;

• A compradora requereria à Ré um crédito para o pagamento da quantia remanescente.

22) Na sequência, e para os efeitos de aquisição da sobredita “Quinta…”, a 29.3.2019 (até antes) a empresa W... solicitou à Ré um pedido de financiamento que consistia na concessão de um mútuo, no valor de € 144 000 (inicialmente) para a aquisição da Quinta ... e posteriormente aumentou para € 280 000.

23) O então sócio gerente da A., EE, participou em todas as negociações para a obtenção do financiamento com a Ré, quer na qualidade de fiador (a título pessoal), quer na qualidade de sócio gerente da sociedade promitente vendedora; a Ré e o então sócio gerente da A. (EE) acordaram como sendo uma das condições para aceder à concessão do financiamento/empréstimo que aquele EE e mulher figurassem na qualidade de fiadores.

24) No âmbito das negociações efetuadas, a Ré fez saber ao EE (fiador) que teria de estar assegurado o distrate/cancelamento da hipoteca de que era beneficiária a CCA da Beira Baixa Sul de Castelo Branco, sendo que o conexo pagamento poderia ser feito no ato da escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca.

25) O pagamento do sinal de 10.000€ acordado no Contrato Promessa de Compra e Venda foi efetuado pela W... de forma não totalmente apurada e documentada, mas pelo menos parcialmente através do pagamento de prestações relativas ao empréstimo de que era titular e devedora a autora (que serviu para a aquisição da “Quinta”), no valor de 1 170,92€ mensais, quanto ao pagamento das conexas prestações de janeiro e fevereiro de 2019.

26) O prazo para a outorga da escritura pública de compra e venda, foi de comum acordo entre as partes - W..., o então sócio da A. e fiador - prorrogado por forma a permitir à Ré a aprovação do financiamento/empréstimo e posterior obtenção de toda a documentação inerente e necessária à escritura.

27) Quer a W..., quer a A., em particular o Sr. EE, remeteram e facultaram vários documentos solicitados para tanto (mas não todos) e que serviram inclusivamente de base à aprovação do crédito em causa, com condições, nos termos patenteados no documento de 03.4.2019, da Ré (fls.75 verso).

28) O financiamento solicitado à Ré para a celebração do negócio não chegou a ser concretizado pois os representantes da mutuária e os fiadores não apresentaram a totalidade dos documentos solicitados.

29) A Escritura de Compra e Venda foi marcada para o dia 03.7.2019 pelo Sr. Notário, na sequência de um contacto da Sr.ª Solicitadora FF, que, no âmbito do “processo” em causa, atuou no interesse e sob incumbência do Sr. EE, à data sócio gerente da A., sendo tal marcação alheia à Ré.

30) No dia 03.7.2019, a Escritura de Compra e Venda não se realizou, apesar de estar marcada; sendo que não estava instruída toda a documentação necessária e solicitada pela Ré, sem embargo de os impostos se mostrarem liquidados, A. e W... estiverem presentes, na qualidade de vendedora, compradora e fiadores.

31) Posteriormente, veio a ser outorgada por BB, enquanto gerente da mutuária, uma procuração com plenos poderes de representação, naquela qualidade, para o substituir na escritura, a qual veio a ser outorgada nesse mesmo dia, no mesmo Cartório Notarial onde se realizaria a escritura de compra e venda, procuração essa a conferir plenos poderes a EE para o efeito; mas não com poderes para representar BB a título pessoal.

32) A referida Escritura de Compra e Venda foi então adiada para o dia 05.8.2019, sendo tal adiamento alheio à Ré.

33) Em virtude do decesso do BB a compra e venda já não se poderá realizar, uma vez que viúva GG, com quem este era casado no regime de comunhão parcial de bens não está interessada em continuar com o prometido negócio celebrado com o falecido marido.


Factos dados como não provados:

a) A aprovação (de fls. 75 verso) perdeu a validade 15 dias depois da sua concessão.

b) Posteriormente, a Ré, através do Sr. HH, responsável da agência do ... da Ré, justificou o sucedido porque não tinham os advogados disponíveis, que os representavam para a outorga da escritura, e com vista a sua celebração futura aconselhou a outorga de procuração com plenos poderes de representação para o substituir na escritura.

c) Chegados ao dia 5 de agosto, duas horas antes da hora marcada para a realização da escritura, o sócio gerente da A. foi contactado telefonicamente pelo Sr. HH, funcionário da Ré, a informar que a escritura não se iria realizar nesse dia, mais uma vez, não apresentando qualquer justificação para o facto.

d) A não celebração da escritura de compra e venda nas datas acordadas nos termos supra, 03.7.2019 e 05.8.2019, deveu-se única e exclusivamente a ausência da Ré, através dos seus representantes.

e) Sendo tal sem qualquer fundamento que o justificasse.

f) Bem sabendo a Ré que com tal conduta impediria a realização de acto notarial/negócio.

g) O que causou à A. prejuízos no montante de € 280 000.

h) Qualquer facto relativo a litigância de má fé.



IV – Fundamentação de direito


1. Da preterição pelo tribunal ‘a quo’ da formalidade legalmente prevista no art. 655.º, n.º 1, do CPC e da inerente violação do princípio da cooperação

O acórdão recorrido considerou que a apelante, ao não ter indicado, no corpo das alegações de recurso, nem nas respectivas conclusões, as passagens da gravação que sustentam a pretensão de modificação da matéria de facto, incumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto consagrado na alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, em conjugação com a alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito. Entendeu, a este respeito, que a apelante indicou “apenas, esparsamente, o que entende ter sido referido por determinadas testemunhas”, acrescentando que a mesma “denotou o seu pretenso inconformismo através de uma exígua e inconsequente “narrativa” e descurando a prova pessoal produzida em julgamento - que se antolha adequadamente analisada pelo Mm.º Juiz a quo.”.

Verifica-se assim que o Tribunal da Relação, não obstante ter considerado não restar “alternativa à total rejeição do recurso da decisão sobre a matéria de facto apresentado pela A., com a consequente manutenção da factualidade dada como provada (e não provada)”, não deixou de apreciar, a título de fundamentação subsidiária, o mérito da impugnação apresentada, como se extrai da fundamentação que ora se transcreve:

“Porém, se porventura observados os aludidos ónus da impugnação de facto, afigura-se que nem assim seria possível acolher a posição da A., desde logo, ante a factualidade dada como provada em II. 1. 28), supra, não impugnada, sabendo-se da interligação entre o contrato de mútuo e o mencionado contrato de compra e venda e que cabe habitualmente aos interessados no financiamento o ónus de facultar à entidade financiadora os documentos necessários à celebração do contrato de mútuo, providenciando ainda pela assunção das correspondentes garantias. Ademais, muito do que a A./recorrente afirma incorretamente julgado em sede de facto ou dever ser alterado, afigura-se respeitar a aspetos (secundários) concretizadores dos factos essenciais [como por exemplo, a sugerida alteração aos pontos 24) e 25) dos factos provados], o que sempre seria insuficiente para a pretendida modificação da decisão de mérito. Porque a A./recorrente não logrou ver modificada a decisão de facto proferida em 1ª instância e não coloca quaisquer questões relacionadas com a decisão de mérito (tendo o Tribunal a quo concluído pela não verificação de todos os pressupostos inerentes à ´culpa in contrahendo` relativamente à ré), resta, pois, concluir pela total improcedência das “alegações” de recurso.”

Na sequência de tal apreciação de fundo, o segmento decisório do acórdão recorrido (“Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida”) contempla, não a rejeição da impugnação da matéria de facto apresentada pela apelante, mas a improcedência do recurso de apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida.

No recurso de revista, insurge-se a A. contra o facto de, não tendo o tribunal a quo conhecido do objecto do recurso, ter incumprido o disposto no art. 655.º, n.º 1, do CPC, pugnando pela “anulação do acórdão recorrido, ao abrigo do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, na medida em que assenta na omissão de ato prescrito por lei.”.

Ora, como tem sido assinalado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, “a violação do preceituado no art. 655.º, n.º 1, do NCPC (2013) – normativo que visa evitar as decisões surpresa –, só gera nulidade processual quando a falta possa influir no exame ou na decisão da causa nos termos do art. 195.º, n.º 1, do mesmo Código” (acórdão de 09-07-2015, proc. n.º 58/2000.P2.S1), não publicado. No mesmo sentido, cfr. os acórdãos de 09-07-2015 (proc. n.º 969/03.3TBVLN.G1.S1) e de 04-05-2017 (proc. n.º 488/14.2TVPRT-B.P1.S1), ambos não publicados.

No caso sub judice, como se afirmou supra, o Tribunal da Relação, ainda que de forma subsidiária, negou provimento à apelação, conhecendo do objecto de recurso e dos fundamentos da impugnação da matéria de facto. Por esta razão, não se mostra preenchida a previsão normativa constante do n.º 1 do art. 655.º do CPC, que estipula como condição de aplicação da norma o não conhecimento do objecto de recurso.

No entanto, e ainda que o acórdão se tivesse limitado a rejeitar a impugnação deduzida contra a decisão sobre a matéria de facto com fundamento no incumprimento dos ónus a que se reporta o art. 640.º do CPC, sempre seria de concluir que o art. 655.º do CPC não seria convocável. E isto porque, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 27-10-2016 (proc. n.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt, a norma do art. 655.º rege para “o não conhecimento do objeto do recurso (que por isso não é levado a julgamento), e não para a rejeição da impugnação da matéria de facto. Neste último caso o recurso não deixa de ser conhecido (é levado a julgamento), apenas acontece que a impugnação (e não o recurso) é indeferida (rejeitada, nas palavras da lei).”.

Neste contexto, não se verifica qualquer infracção ao princípio da cooperação (art. 7.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Segundo este princípio, “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”, estipulando o n.º 2 da citada disposição que “o juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.”.

Como explica Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do Novo Código, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 187) “o apelo à realização da função processual aponta para a cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade sobre a matéria de facto e, com base nela se obter a adequada decisão de direito”. Sendo que o princípio em causa estende o seu âmbito de aplicação não apenas à matéria de facto – permitindo ao tribunal obter esclarecimentos sobre a alegação dos factos da causa, de modo a ter perfeita compreensão acerca do seu conteúdo –, mas igualmente à matéria de direito, viabilizando a elucidação do tribunal quanto aos fundamentos de direito do pedido e das excepções (ob. cit., p. 188).

Contudo, o princípio da cooperação não poderá servir para alargar os pressupostos de aplicação de normas expressamente previstas na lei, em termos de impor ao tribunal que confira contraditório às partes em situações em que não se antevê a prolação de uma decisão que se desvie do iter processualmente expectável. No caso dos autos, tendo o Tribunal da Relação, ainda que subsidiariamente, conhecido do objecto do recurso, não tem sentido invocar a existência de decisão surpresa que a auscultação prévia das partes, em cumprimento dos princípios do contraditório e da cooperação, cumprisse evitar.

Conclui-se, assim, pela não ocorrência de omissão de formalidade legalmente prescrita, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Recorrente.

2. Da (in)admissibilidade de prolação de convite ao aperfeiçoamento no âmbito do recurso da decisão da matéria de facto

Invoca a Recorrente que o tribunal a quo, ao não ter convidado previamente a recorrente a corrigir as suas alegações, violou a norma do art. 7.º do CPC, assim como desrespeitou os princípios consagrados no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Não assiste razão à Recorrente.

Antes de mais, porque, como se viu supra, a decisão recorrida acabou por conhecer do mérito da impugnação formulada, decidindo no sentido da sua improcedência. Nesta medida, o convite ao aperfeiçoamento sempre constituiria um acto inútil, não admitido pela lei (cfr. art. 130.º do CPC).

De qualquer modo, e ainda que o tribunal a quo se tivesse limitado a rejeitar a impugnação da decisão de facto com fundamento em incumprimento do ónus previsto no art. 640.º, n.º 1, alínea b), do CPC – incumprimento este que, sublinhe-se, a Recorrente não contesta que se tenha verificado –, entende-se que não lhe competia endereçar convite à apelante com vista ao aperfeiçoamento da sua alegação. Com efeito, a norma constante da alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC comina com a “imediata rejeição do recurso na respetiva parte” o incumprimento do impugnante do ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados (como sucede no caso dos autos).

No sentido da inadmissibilidade de prolação de convite ao aperfeiçoamento no âmbito do recurso da decisão da matéria de facto se tem pronunciado a jurisprudência prevalecente deste Supremo Tribunal. Entre muitos acórdãos, refiram-se apenas, a título exemplificativo, alguns dos acórdãos mais recentes:

- Acórdão de 02-06-2020 (proc. n.º 3254/16.7T8LSB.L1.S1), não publicado, assim sumariado:

“I - Em termos gerais, pode afirmar-se que, na sua jurisprudência, o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e da razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640.º do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso.  II - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões – Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pág. 165.  III - No recurso sobre a matéria de facto, se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º do CPC, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.  IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.”.

- Acórdão de 16-06-2020 (proc. n.º 3254/16.7T8LSB.L1.S1), não publicado, em cujo sumário se pode ler:

“V - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na al. c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões (…)”.

- Acórdão de 25-03-2021 (proc. n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:

“III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado nas als. a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”.

- Acórdão de 09-02-2021 (proc. n.º 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta o seguinte:

 “(…) IV - No recurso sobre a matéria de facto, se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.  V - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento”.

- Acórdão de 25-03-2021 (proc. n.º 1595/15.0T8CSC.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt, assim sumariado:

Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na al. c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.”.

- Acórdão de 19-12-2021 (proc. n.º 9296/18.0T8SNT.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:

“III - A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente os factos e a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual, se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação. IV - Não é admissível, quanto ao recurso da matéria de facto, convite tendente ao aperfeiçoamento das conclusões.”.

- Acórdão de 08-09-2021 (proc. n.º 5404/11.0TBVFX.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta:

“IV - Não é legalmente admissível, quanto ao recurso da matéria de facto, convite tendente ao aperfeiçoamento das conclusões.  V - A interpretação do art. 640.º do CPC no sentido de a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto não dever ser precedida de um convite ao aperfeiçoamento das conclusões não viola o art. 20.º da CRP.”.

- Acórdão de 15-09-2022 (proc. n.º 556/19.4T8PNF.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma:

“III - Os ónus ínsitos nas als. a) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, cuja falta impõe a imediata rejeição do recurso sem necessidade de prévio convite ao recorrente, constituem um ónus primário, o qual deve ser satisfeito, não apenas no corpo das alegações, mas também nas conclusões da alegação. E pela simples razão de que tais ónus têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.”.

- Acórdão de 02-02-2022 (proc. n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

“I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto. II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.”.

- Acórdão de 14-02-2023 (proc. n.º 1680/19.9T8BGC.G1.S1), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado:

“I - Em termos gerais, pode afirmar-se que, na sua jurisprudência o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e da razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640.º do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso.  II - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.  III - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.  IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.  V - A apresentação de documentos com as alegações de recurso, quando a junção se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, apenas pode ocorrer quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.”.

Assim, de acordo com a orientação jurisprudencial explanada, é de afastar a tese da Recorrente no sentido de que, aos casos de incumprimento dos ónus a que respeita o art. 640.º do CPC, há que aplicar, por analogia, o preceituado no n.º 3 do art. 639.º do mesmo diploma, que prevê a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento em caso de deficiência das conclusões de recurso.

Na verdade, quer o proémio do n.º 1 do art. 640.º do CPC, quer o corpo da alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito (aplicáveis ao caso dos autos), são expressos ao cominar a rejeição – qualificada como “imediata” pela segunda disposição – do recurso como consequência para o incumprimento dos ditos ónus de impugnação. Não se vislumbra, pois, nesta sede, a existência de qualquer lacuna susceptível de preenchimento com recurso à analogia.

Considera-se que o entendimento propugnado, diversamente do sustentado pela Recorrente, não se mostra violador do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP.

A este respeito, justifica-se convocar a argumentação expendida pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 19-12-2018 (proc. n.º 2364/11.1TBVCD.P2.S2)[1], disponível em www.dgsi.pt, que, fazendo apelo à argumentação adoptada pelo acórdão do STJ de 27-10-2016 (proc. n.º 3176/11.8TBBCL.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt, deixou exarado o seguinte:

“[P]ara além de a CRPortuguesa não garantir o direito ao recurso senão em matéria penal e (segundo alguns) relativamente a decisões que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias, e não é o que se passa no caso vertente, a verdade é que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo. Daqui que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes. Só assim não será se o legislador impuser exigências desprovidas de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessivas, não sendo em particular admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual (v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, pp. 200, 190 e 191). Sucede que a imposição do ónus processual em causa - o contido na alínea c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil - e a cominação de rejeição da impugnação da matéria de facto em caso da sua inobservância cabem naturalmente no poder de modelação do processo que assiste ao legislador, da mesma forma que a interpretação desta norma no sentido de possibilidade de tal rejeição ter lugar sem a admissão de convite ao aperfeiçoamento das conclusões não representa uma opção legal desprovida de fundamento racional e sem conteúdo útil ou excessiva. Na realidade, e parafraseando Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 134), “pretendendo o recorrente a modificação da decisão da decisão da 1ª instância em matéria de facto e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.”  A este propósito, pode ler-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de junho de 2013 (processo nº 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), e passamos a citar, «(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos. Neste sentido, refere-se no acórdão deste STJ de 6-12-2012 (…) que “são várias as decisões deste Tribunal que não julgaram violadoras da Constituição diversas normas contendo ónus processuais, cujo incumprimento conduz à rejeição de recursos, como, por exemplo, o Acórdão n.º 403/2000 (também disponível na página Internet do Tribunal, em www.tribunalconstitucional.pt e publicado no Diário da República, II Série, n.º 286, de 13 de Dezembro de 2000) - em que se apreciou a conformidade constitucional da exigência, constante do artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981, de arguição de nulidades da sentença no próprio requerimento de interposição do recurso, sob pena de extemporaneidade – ou o Acórdão n.º 122/2002 (igualmente disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – no qual o Tribunal não julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 690.°-A do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de o recorrente, sob pena de rejeição do recurso tocante à matéria de facto, dever apresentar, em separado da alegação, a transcrição dactilografada das passagens da gravação em que funda o erro na apreciação das provas.» E no acórdão de 7 de julho de 2016 (processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1, disponível igualmente em www.dgsi.pt) observa-se o seguinte: «(…) para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c). […] Por isso, bem decidiu a Relação ao considerar que a recorrente omitiu a menção à concreta decisão pretendida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que só tinha que rejeitar o recurso nesta parte. Sustenta a recorrente que ainda que assim fosse, deveria ter-se optado pelo convite à reformulação das conclusões, e não pela rejeição. Mas não tem razão.  Efectivamente, e conforme prescreve o nº 3 do artigo 639º do CPC, quando as conclusões sejam deficientes o relator deve convidar o recorrente a completá-las. Mas este normativo não é aplicável face à cominação específica que a lei prevê para quem não cumpre os ónus impostos pelo artigo 640º, pois o nº 1 é inequívoco no sentido da rejeição, sem mais, do recurso quanto à impugnação da matéria de facto. Alega ainda a recorrente que ao não apreciar as questões apresentadas na apelação no que respeita à impugnação da matéria de facto, o acórdão revidendo limitou o seu direito ao recurso, coarctando-lhe o direito de sindicar decisão desfavorável e o direito a tutela jurisdicional efectiva e direito de acesso aos tribunais, o que consubstancia inconstitucionalidade, por violação do artigo 20° da CRP. Mas também não tem razão. Efectivamente, é corolário do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Por isso que, no artigo 20º/5 da Constituição da República se determina que «Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos» No entanto, temos de distinguir as situações: de uma parte o direito de acesso aos meios judiciários com vista à salvaguarda e definição do direito para o caso concreto; e de outra, o procedimento definido pelo legislador ordinário quanto ao modo do exercício daquele direito. Nesta questão da conformação constitucional, suscita a recorrente a questão de saber se as normas ínsitas no artigo 640º, nº 1, coarctam inadequada e irrazoavelmente o direito ao recurso. Mas não tem razão. Na verdade, o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, sendo por isso, conforme à Constituição da República Portuguesa a imposição de ónus para quem impugna a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância” [negritos nossos].

Conclui-se, assim, que, ainda que o tribunal a quo se tivesse abstido de tomar conhecimento do mérito da impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus legais que incumbem ao impugnante, sem previamente ter proferido despacho de aperfeiçoamento da mesma impugnação, tal interpretação normativa não incorreria na alegada inconstitucionalidade. Do mesmo modo que não desrespeitaria o princípio da cooperação, consagrado no art. 7.º, n.º 1 do CPC, tendo em conta que, como se deixou evidenciado, no âmbito da impugnação da matéria de facto, o princípio da autorresponsabilidade das partes vigora com particular intensidade, sendo a lei expressa quanto ao carácter imediato da rejeição.

De qualquer modo – e sendo este um ponto essencial –, como se verificou, no caso concreto, o tribunal a quo acabou por conhecer do mérito da impugnação, no sentido da sua improcedência, pelo que tal convite sempre constituiria um acto inútil.

Conclui-se, também nesta parte, pela improcedência da pretensão da Recorrente.

V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25 de Maio de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

João Cura Mariano

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[1] Relatado pela relatora do presente acórdão.