INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
VERIFICAÇÃO DO PASSIVO
PROVA
ACTIVO
EDIFICAÇÃO DE MORADIA
Sumário


1- No novo regime do inventário, implementado pela Lei n.º 117/2019, a audiência prévia não é um momento obrigatório de conformação do processo, como no processo comum: é uma diligência facultativa que o juiz, ponderado o caso, designa se o entender conveniente.
2- Assim, é possível ao juiz proferir despacho de saneamento do processo sem a realização de audiência prévia; mas se a designar, tem que a realizar antes de proferir tal decisão (ou justificar a sua dispensa com causa posterior).
3- Não é possível verificar-se passivo sem que exista prova documental que o suporte, por força do disposto no artigo 1106º nº 3 do Código de Processo Civil, mas tal não impede que o tribunal recorra a outros meios de prova que complementem a prova documental.
4- Na definição do ativo, na partilha determinada pela dissolução do casamento, há que ter em conta que se tem entendido que “se os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impõe-se reconhecer que se a moradia mandada edificar pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão”.
5- Assim, a mera existência de certidão do registo predial pode não ser suficiente para a determinação da propriedade de imóvel registado apenas no nome de um deles.
6- Só depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias é que o juiz deverá decidir “todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar”, (artigo 1110º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil), em despacho fundamentado (com descriminação dos factos em que se baseia).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Cabeça-de-casal e Recorrente:  AA
Requerente do inventário e Recorrida:  BB
Apelação em inventário subsequente a processo de divórcio
 
I- Relatório

O presente inventário foi instaurado no Cartório Notarial pela ora Recorrida.
O cabeça-de-casal apresentou relação de bens.
Em 13-1-2020, a Requerente veio reclamar dessa relação de bens, impugnando o valor atribuído a diversas verbas (recheios de casa de habitação e veículos automóveis), afirmando que o imóvel descrito na verba 32 é um bem próprio seu, que a conta bancária da verba 32 à data do divórcio apresentava um saldo de 0,00 €, negando que as verbas 36 a 41 constituam passivo do casal e pugnando pela omissão de relacionação de três verbas, relativas a dívida do património comum à interessada. Arrolou testemunhas.
Em 30-01-2020, o Cabeça-de-casal, notificado da reclamação à relação de bens, reiterou o que relacionara e aditou duas dívidas do património comum à interessada (verba 42 e 43) e três dívidas ao cabeça-de-casal (verbas 44 a 46). Juntou prova documental e arrolou duas testemunhas.
Em 31-3-2020, foi aberta sessão no Cartório Notarial com vista a acordo, tendo sido suspensa a instância por dois meses por tal ter sido requerido.
Em 2-3-2021, foi determinada a remessa dos autos para o Tribunal, a pedido da Requerente do inventário.
Em 7-6-2021, foi determinada a notificação do cabeça de casal para juntar certidão de registo predial da verba 32, certidão de registo automóvel da verba 35, o documento ..., junto com a relação de bens, legível, de onde conste o valor do saldo da conta bancária identificada na verba 33, à data da instauração da ação de divórcio e tradução dos documentos escritos em língua estrangeira.
Em 29-7-2021, o cabeça-de-casal requereu a junção aos autos desses documentos.
Em 27-10-2021, foi proferido despacho que designou audiência prévia, porquanto “afigura-se possível obter, desde já, acordo quanto a parte da partilha (nomeadamente quanto aos bens móveis) ou, não sendo isso viável, delimitar o objeto do litígio, determinando quais os bens que os interessados concordam integrar o acervo a partilhar.”
Em 16-11-2021, em sede de audiência prévia, pelos ilustres mandatários foi requerida a suspensão da instância pelo prazo de 15 (quinze) dias, uma vez que estariam em vias de chegar a acordo, o que foi deferido.
Em 29-6-2022, as partes vieram requerer a suspensão da instância por 30 dias por estarem a diligenciar para chegar a acordo.
Em 5-7-2022, foi declara a instância suspensa por 30 dias.
Em 10-10-2022, foi determinada a notificação das partes para esclarecer se lograram obter o acordo visado com a suspensão da instância e nada sendo requerido nesse prazo que se procedesse à conclusão imediata dos autos.
Em 18-10-2022, a Requerente do inventário veio informar que não foi obtido qualquer acordo.

Em 20-1-2023, foi proferido despacho que:

.a)  ordenou a eliminação da relação de bens o imóvel e os saldos bancários relacionados sob as verbas nºs 32 e 33;
.b)  declarou a existência da dívida comum do casal relacionada sob a verba nº 39, titulada pelo Banco 1..., S.A. e no montante em débito à data da propositura da ação de divórcio (21.08.2018);
.c) remeteu os interessados para os meios comuns quanto ao restante passivo, relacionado pelo cabeça-de-casal e reclamado pela requerente do inventário, ordenando ainda que sejam eliminadas da relação de bens as verbas nºs 36, 37, 38, 40 e 41.

É desta decisão que o Recorrente apela, com as seguintes
conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Mm. Juiz a quo, datada de 20 de janeiro de 2023, com a Ref. citius ...87.
2.  Em 27/10/2021, foi proferido despacho que designou data para a realização de audiência prévia, despacho com a ref.ª no citius ...88, no qual se delimitou os fins da daquela audiência, a saber obtenção de acordo, ou, não sendo possível, delimitar o objecto do litígio, cfr. art. 1109.º do CPC.
3. À data de 16/11/2021, conforme ata com a ref.ª no citius ...25, iniciou-se a audiência prévia e nesse ato a instância ficou suspensa, a requerimento das partes, e nos termos do disposto no art. 272.º, n.º 4 do CPC.
4. Por não terem as partes logrado chegar a acordo, veio a requerente do Inventário, disso dar conhecimento aos autos, por requerimento datado de 18/10/2022, com a ref.ª no citius ...52.
5. Tendo sido proferida a sentença de que ora se recorre e do teor da mesma, na página 2, pode ler-se que: “A quase totalidade das questões suscitadas no incidente de reclamação contra a relação de bens pode ser desde já decidida, sem necessidade de produção de outras provas para além da documental já carreada para o processo. É o que passa a fazer-se.(...)” (sublinhado nosso) 6. Salvo melhor entendimento, com a decisão em crise foi preterido o direito de defesa do aqui Recorrente, porquanto, não tendo as partes logrado chegar a acordo e tendo sido suspensa a audiência prévia, logo no seu início, levantada a suspensão, deveriam os autos prosseguir com os restantes objectivos a tratar na mencionada audiência, ou seja: delimitar o objecto do litígio.
7. Não havendo acordo, impunha-se ao Tribunal a quo ouvir pessoalmente os interessados, procedendo à realização das diligências instrutórias necessárias, nos termos gerais da produção de prova, recolhendo-se os elementos probatórios que lhe permitam, em momento subsequente, o do saneamento, decidir, cfr. artigo 1109.º, n.os 1 e 3 e 410.º do CPC.
8. Como assim não sucedeu verifica-se o incumprimento de formalidades essenciais, nomeadamente, o de dar continuidade à audiência prévia suspensa, o que configura uma nulidade processual, que aqui expressamente se invoca para os devidos efeitos legais.
9. Bem como, o estado dos autos não permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, porque não estavam suficientemente discutidas as questões de facto e de direito, com revelo para os autos.
10. Ora, ao não ter permitido às partes a discussão objectiva de facto e de direito, ao não ter permitido a continuidade da audiência prévia, e ao não ter atendido a toda a prova carreada aos autos e a outras que pudessem ainda vir a ser requeridas ou obtidas oficiosamente, a decisão em crise constitui uma decisão-surpresa, representando uma nulidade processual, em clara violação do dever de gestão processual, cfr. art. 6.º, n.º 1, do CPC.
11. Pelo que, deverá a decisão ser declarada nula e baixarem os autos para que se convoque a continuidade da Audiência Prévia para os seus ulteriores termos, em cabal cumprimento da legalidade.
12. Mais se diga que, a decisão em recurso vem a determinar a páginas 14, já após da prolação da decisão, para que sejam as partes notificadas para no prazo de 10 dias: “(...) esclarecerem se mantêm interesse na inquirição das testemunhas que arrolaram, com a advertência que, nada dizendo, o seu silêncio será interpretado como desistência desse meio de prova.” (sublinhado nosso)
13. No processo de inventário as matérias que não se encontrem expressamente reguladas aplicar-se-á o regime geral do processo declarativo comum, ex vi do artigo 549.º n.º 1, do CPC.
14. Não poderá no processo de inventário ser dada, unicamente, relevância à prova de natureza documental, como sucedeu no caso vertente.
15. A decisão em recurso não atendeu aos demais meios de prova tanto os apresentados nos autos, nos diversos articulados, como aqueles que, nos termos previstos pelo artigo 1109.º, n.º 1, do CPC, poderiam ser obtidos/apresentados na audiência prévia, designadamente, as declarações que possam ser tomadas aos interessados.
16. Ao abrigo do artigo 598.º, n.º 1, do CPC é permitida a alteração do requerimento probatório na audiência prévia.
17. Ao não convocar a Audiência Prévia, nem ter dado às partes a possibilidade de se pronunciarem, ficou vedado ao Recorrente: a apresentação de meios de prova diversos dos apresentados inicialmente, nomeadamente, vir a arrolar testemunhas ou requerer perícia, juntar mais documentos...
18. Pelo que, deveria ter tido lugar à produção de toda a prova, já carreada aos autos e a que viesse a ser requerida/produzida na Audiência Prévia.
19. A decisão em crise, vem conceder prazo, após prolação de decisão, para que as partes se pronunciem quanto à produção de prova testemunhal.
20. Não atendendo às exigências da Justiça material, a decisão em crise é também por esta via nula, por omissão de provas permitidas, por violação do princípio do dispositivo e do contraditório, da segurança jurídica e do direito à prova.
21. Ora, despacho proferido após a prolação de decisão está igualmente abalado pela nulidade da decisão proferida, pelo que deverá decisão e o despacho proferido após a prolação da decisão, ser considerada nulos e baixarem os autos para que se convoque a
Audiência Prévia para os seus ulteriores termos, em cabal cumprimento da legalidade.
22. Em todo o caso, data venia, sempre deverá este douto Tribunal determinar que sejam efetuadas as diligências probatórias que tenham sido requeridas, que se venha a requerer, ou que o tribunal oficiosamente determine, declarando nula a decisão em crise.
23. Tudo em homenagem aos princípios da à justa composição de litígio, ao apuramento da verdade material, e à boa decisão da causa.
24. Sem conceber, por cautela de patrocínio, sempre se diga que, a decisão de que se recorre também padece de erro de facto e de direito
25. Quanto à eliminação da Verba n.º 32 da Relação de Bens, considerou o Tribunal a quo, que “Analisada aquela certidão do registo predial, verifica-se que se encontra aí definitivamente registada a aquisição do dito imóvel a favor da interessada CC através da Ap. ...4, de 10 de Fevereiro de 2004. (...) Há, assim, que concluir que o imóvel em causa constitui um bem próprio da requerente do inventário, por ter sido por si adquirido por doação (cfr. o citado artigo 1722º, nº 1, al. b) do Código Civil). E, como tal, não integrando a comunhão, deve aquele prédio ser eliminado da relação dos bens a partilhar.” (sublinhado nosso)
26. Na constância do casamento, os pais da interessada, aqui Recorrida, doaram-lhe o imóvel melhor descrito supra, sob a verba n.º 32, sendo que, o Recorrente e a interessada aí edificaram a sua casa de morada de família, composta por ... e ... andar, coberto, adega e coberto da eira com varandão, eira e logradouro e uma cozinha regional, conforme resulta da certidão predial – documento junto aos autos pelo Recorrente sob o doc. ..., com o Requerimento com a ref.ª citius ...32, e da escritura de mútuo com hipoteca a favor do Banco 1..., S.A., – documento junto ao autos pelo Interveniente Acidental, Banco 1..., SA, com o Requerimento com a ref.ª citius ...62.
27. Analisando de perto o teor daquele documento de escritura de mútuo com hipoteca, lêse o seguinte: “ (...) ao qual atribuem o valor, após a conclusão das obras de construção da sua habitação própria e permanente.” E mais adiante: “a primeira outorgante mulher, com o necessário consentimento conjugal expresso neste acto, constitui hipoteca sobre o imóvel, atrás identificado, hipoteca que abrange todas as contruções, modificações, benfeitorias, acessões e direitos de indemnização, em caso de expropriação, que o Banco poderá receber de quem competir pagar.”
28. Consta, clara e efectivamente, deste documento, cuja dívida foi relevada pelo Tribunal a quo, como integrante do passivo, que foi levada a cabo uma construção pelo Recorrente e pela interessada, a qual constituiu a casa de morada de família.
29. E constituindo a Verba n.º 32 a casa de morada de família, na definição a que alude o art. 1673.º, n.º 1 do Código Civil, tal bem, integra a comunhão conjugal.
30. Não obstante, mesmo que assim não entenda, sem conceder, facto é que, as obras, implantações e construções efetuadas no mesmo, pelo Recorrente e pela Interessada não podem de forma alguma ser atribuídas e incorporadas, sem mais, no imóvel.
31. Pois, tal, desfavorece o Recorrente, que as fez, algumas com as suas próprias mãos, e sem que o Tribunal sequer considerasse discutir as mesmas ou valorasse a este respeito, a prova documental carreada para o processo e a prova testemunhal, apresentada pelo Recorrente.
32. De tudo isto o Tribunal a quo fez absoluta tábua rasa.
33. Posto isto, sempre se dirá que, na constância do matrimónio, celebrado no regime da comunhão de adquiridos, a doação não obstante ter sido feita em favor de um dos cônjuges, a construção de uma moradia, anexos, cozinha regional, por ambos os cônjuges não se podem só de per si subsumir no imóvel e sem mais, e concluir que tal imóvel é bem próprio da Interessada.
34. Nesta senda, salvo melhor e douto entendimento, no que concerne ao imóvel e mais concretamente à verba n.º 32 da relação de bens, a solução para o mesmo, deve ser enquadrada à luz do regime matrimonial do casamento e mais concretamente com recurso ao artigo 1726.º, do CC, que preceitua que, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” (n.º 1), mas “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão” (n.º 2). 35. Uma vez mais, mal andou o Tribunal a quo, ao eliminar a verba 32.º do activo, não atendendo à prova existente nos autos, ao facto de não se ter apurado, nem ter dado às partes a possibilidade de apurarem em sede prova, qual das prestações reveste a natureza mais valiosa.
36. Ora, o aqui recorrente, ao investir dinheiro, tempo e trabalho na construção da casa de morada de família, criou a expectativa, legítima, que tal investimento pessoal e monetário pudesse no final do casamento ser ressarcido, o que se impunha face ao regime de bens do casamento.
37. Pelo que, e por tudo exposto, pugna o recorrente pela revogação da decisão de que se recorre no que concerne à exclusão da verba n.º 32 da relação de bens e dos autos de inventário.
38. A qual em face da documentação carreada aos autos deve a VERBA N.º 32 constar da Relação de Bens, no activo, por configurar um bem que integra a comunhão conjugal o que se, submete à douta apreciação de V. Exas.
39. Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio ainda se diga que, a eliminação da Verba n.º 32 da Relação de Bens, configura a eliminação de um bem que não configura a mesma realidade jurídica existente à data da doação e à data da dissolução do casamento.
40. Assim sendo, sempre se terá de evidenciar pelo desdobramento da Verba n.º 32, sendo a mesma subdividida em duas descrições uma na qual se descreve o prédio doado à interessada, com o valor atribuído à doação e uma outra descrição relativa à edificação, construções e edificações, benfeitorias levadas a cabo pelo Recorrente, o que se submete à douta apreciação de V. Exas.
41. Quanto à eliminação da relação de bens, das verbas n.os 36 e 37, impunha-se decisão diversa pelo Tribunal a quo existem documentos nos autos comprovativos dos créditos contraídos pelo Recorrente, na ..., país onde trabalhava, na constância do casamento.
42. Documentação essa, que foi devidamente traduzida, conforme requerimento com a Ref.ª citius...35, pelo que, dúvidas não subsistem quanto à validade dos mesmos, quanto à data em que os mesmos foram contraídos, ou sequer quanto ao valor em causa. 
43. Tais documentos, comprovativos dos créditos das verbas 36 e 37, não foram impugnados pela interessada, nem aquando da notificação da relação de bens, nem aquando da junção aos autos da competente tradução.
44. Ora, entendemos, que se há comportamentos confiáveis, um é, o exercício da actividade bancária, pelo que, e nos termos conjugados dos artigos 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.C., tais documentos que sustentam a verba 36, fazem prova plena das declarações nele contidas.
45. Tanto mais, reitere-se, que, os documentos que sustentam as verbas n.º 36 e 37 nunca foram impugnados pela interessada.
46. Todavia, e se dúvidas persistissem no que tange a essas dívidas, poderiam ou deveriam ter sido dirimidas em sede de audiência prévia, por via das declarações dos interessados e de prova testemunhal, arrolada pelo cabeça de casal, aquando da apresentação da relação de bens.
47. Nesta senda, não vislumbra, recorrente, qualquer diferença, entre essa dívida e aquela que foi assumida perante o Banco 1..., S.A, a não ser, efetivamente, que o Banco 1... é uma instituição bancária portuguesa e os outros não.
48. Pelo que, considera o recorrente, que o Tribunal à quo não poderia excluir as supracitadas verbas da relação de bens, fazendo tábua rasa da prova documental junta aos autos, e da sua não impugnação por parte da interessada, dando origem a uma decisão manifestamente desajustada e injusta.
49. Face ao que se vem de expor pugna o Recorrente pela não exclusão das VERBAS n.os 36 e 37 do Passivo.
50. Quanto à exclusão das verbas n.os 40 e 41 da relação de bens, também se impunha decisão diversa pelo Tribunal a quo, porquanto, efectivamente, não reunia prova que sustente essa decisão.
51. E neste concreto haverá que referir que o Recorrente nos articulados apresentados dá conta ao Tribunal a quo, que a sua documentação ficou em posse da interessada.
52. Não pôde o Recorrente lançar mão, de outros elementos de prova, quiçá, da prova testemunhal, para a comprovação, da existência de tais dívidas e da que a mesma é dívida do património comum do extinto casal.
53. Nesta senda, e para um cabal esclarecimento, impunha-se ao Tribunal a quo ouvir pessoalmente os interessados, procedendo à realização das diligências instrutórias necessárias, recolhendo-se os elementos probatórios que lhe permitissem, em momento subsequente, o do saneamento, decidir com a necessária segurança.
54. Por via do que, tais verbas não deverão a VERBAS n.º 40 e 41 ser eliminadas da Relação de Bens por estarem sustentadas por prova, devendo a decisão ser revogada.
55. Logo, data venia, afigura-se-nos que a decisão de que ora se recorre deverá ser revogada e deverão as verbas 32, 36, 37, 40 e 41 permanecer na Relação de Bens apresentada.
56. Não tendo assim sucedido, entende-se que a decisão sob recurso violou o disposto nos arts. 6.º, n.º 1, 272.º, n.º 4, 410.º, 549.º, 598.º, n.º 1, n.º 1, 1109.º, n.º 1 e 3 todos do Código de Processo Civil e os arts. 374.º, n.º 1, 376, n.º 1, 1673.º, n.º 1, 1724.º, 1726.º, todos do Código Civil.
NESTES TERMOS, julgando o presente recurso procedente, revogando a douta decisão recorrida, por ser nula, e, em consequência, ordenando-se a realização da continuação da audiência prévia nos termos propugnados, farão V. Exas. a habitual JUSTIÇA, sem prescindir, caso V.as Ex.as assim não o entendam, julgando o presente recurso procedente, deverá ser revogada a decisão de exclusão das verbas 32, 36, 37, 40 e 41, ordenando-se que constem na Relação de Bens apresentada, farão V. Exas. a habitual JUSTIÇA!”

A Recorrida contra-alegou, com as seguintes
conclusões:

“1. O Tribunal recorrido, face ao teor da Reclamação contra a Relação de Bens e ao teor da Resposta, por se afigurar viável a obtenção de acordo entre os interessados quanto ao modo da realização da partilha, decidiu designar a audiência prévia com o objetivo de verificar se era possível a obtenção desse acordo entre os interessados ou, pelo menos, face ás posições assumidas pelos interessados naqueles articulados, para verificar se era viável o acordo quanto á generalidade das questões que constituem o objeto da Reclamação.
2. Como decorre da ata de tal audiência prévia, o que ali foi debatido foi a possibilidade desse acordo, tendo os interessados solicitado a suspensão da instância de modo a verificarem se logravam chegar a esse acordo.
3. Adquirido no autos que esse acordo se frustou e estando o Tribunal em condições de proferir decisão saneadora do objeto da Reclamação, em virtude do processo conter todos os elementos necessários a julgar com segurança e justiça as questões ali suscitadas, então, ao proferir a decisão recorrida, o Tribunal deu cumprimento ao disposto nos artigos 6.º, 590.º, n.º 2, al c) e 1110.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, não violou as normas dos artigos 272.º, n.º 4, 410.º, 549.º, 598.º, n.º 1, n.º 1, 1109.º, n.º 1 e 3 do CPC e dos arts. 374.º, n.º 1, 376, n.º 1, 1673.º, n.º 1, 1724.º, 1726.º do Código Civil, nem proferiu uma decisão surpresa.
4. Ao julgar que o prédio urbano da verba n.º 32 constitui um bem próprio da interessada BB e que, por isso, deve ser eliminada a verba n.º 32 da Relação de Bens, o Tribunal decidiu em conformidade com a prova irrefutável produzida nos autos, designadamente com a caderneta predial relativa ao art. 374, de ..., onde consta tal prédio inscrito em nome da interessada BB, com a certidão relativa á escritura pública denominada de mútuo com hipoteca, de 29-09-2010, junta aos autos em 30-202019, onde consta declarado que tal prédio urbano é um bem da interessada BB e que é ela que o deu em hipoteca como garantia do pagamento do mútuo e com a certidão do registo relativa ao prédio urbano da verba n.º 32, junta aos autos pelo cabeça de casal em 29-07-2021 como doc. ..., onde consta que o prédio urbano descrito Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...88, de ..., foi adquirido pela BB, por efeito de doação dos seus pais.
5. Da referida prova, com a força probatória que a lei lhe confere (cfr. art. 371.º do Cód. Civil e 574.º, n.º 2, do CPC) decorre pertencer á interessada BB a propriedade de tal prédio urbano e, por isso, destinando-se o presente inventário á partilha ou divisão do património comum do casal, não tem tal bem que integrar a respectiva Relação de Bens.
6. Tal decisão de julgar tal bem da verba n.º 32 como bem próprio da referida interessada e de decidir pela eliminação do bem da verba
n.º 32 da Relação de Bens, não merece censura ou reparo, devendo o sapiente Tribunal da Relação de Guimarães julgar improcedentes as conclusões 24.ª a 40.ª e 55.ª da apelação.
7. As decisões insertas na decisão recorrida onde o Tribunal recorrido, com os fundamentos e o raciocínio ali constanciados, decidiu remeter os interessados para os meios comuns relativamente ao passivo das verbas n.º 36, 37, 38, 40 e 41 não merece qualquer censura ou reparo.
8. Na verdade, da conjugação dos factos supra transcritos no corpo alegatório desta Resposta, alegados pelo interessado/recorrente AA sob os artigos 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da petição inicial da ação de divórcio que correu termos com o Proc. n.º 2031/ ..., Juízo de Família e Menores ... -  Juiz ..., onde foi decretado a extinção do casamento entre os aqui recorrente e recorrida, a que o Tribunal tem acesso oficioso, instaurada em 21-082018, com a posição assumida pela interessada DD contra a Relação de Bens, onde impugna tal passivo e em conjugação ainda com o teor do documento particular datado de 22-05-2018, denominado confissão de divida, onde consta como credora uma tal EE e como devedor o recorrente AA, decorre que o passivo das verbas 36, 37e 38 não constitui um passivo comum.
9. Na verdade, se, com referência á data da instauração da referida ação de divórcio (21-08-2018), “desde há cerca de 4 anos deixou de existir entre os cônjuges qualquer comunhão de vida” então como é que o Tribunal podia considerer ser uma divida do casal aquela divida supostamente (!) contraída pelo recorrente AA em 22-052018?
10. Quanto ao passivo das verbas n.º 40 e 41, face ao regime da comunhão de adquiridos que vigorou durante a vigência do casamento, face á sua impugnação no âmbito da Reclamação e face ao facto do prédio da verba n.º 32 constituir um bem próprio da interessada BB onde alegadamente foram feitas benfeitorias pelo casal, então, não podia o Tribunal julgar existir aquele crédito/divida a favor do interessado/recorrente AA sobre o património comum do casal, pois as obras benfeitorizantes não foram feitas em nenhum prédio do casal.
11. Face ao exposto, ao decidir remeter os interessados para os meios comuns relativamente ao passivo alegado sob as verbas 36, 37, 38, 40 e 41, o Tribunal produziu uma decisão correta que não merece qualquer reparo, devendo julgar-se improcedentes as conclusões 24 a 55 da apelação.
12. Ao julgar como julgou o Tribunal recorrido deu cumprimento aos artigos 6.º, 590.º, n.º 2, al c) e 1110.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, não violou as normas dos artigos 272.º, n.º 4, 410.º, 549.º, 598.º, n.º 1, n.º 1, 1109.º, n.º 1 e 3 do CPC e dos arts. 374.º, n.º 1, 376, n.º 1, 1673.º, n.º 1, 1724.º, 1726.º do Código Civil e não proferiu uma decisão surpresa”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face ao teor das conclusões das alegações, há que verificar se podia ser proferido despacho de saneamento (parcial) do processo sem previamente se ter designado data para a continuação da audiência prévia e realizado a produção de prova.

III- Fundamentação de Facto

Visto que a questão em apreço é apenas de direito, atendendo-se apenas aos atos processuais praticados, não se enuncia a matéria de facto provada, a qual se limitaria à reprodução do relatório supra efetuado.

IV- Fundamentação de Direito

A- Do regime processual a aplicar a estes autos

A Lei n.º 117/2019 entrou em vigor 1 de janeiro de 2020 e passou a reger os processos de inventário intentados a partir dessa data e aqueles que, pendentes nos cartórios notariais, sejam remetidos aos tribunais nos termos do disposto nos seus artigos 11.º a 13.º.
O inventário de que estes são apenso iniciou-se com requerimento de 2019 apresentado em Cartório Notarial, mas transitou para o tribunal em data posterior a 1 de janeiro de 2020, nos termos daqueles artigos: é-lhe aplicável o processo de inventário desenhado pela Lei n.º 117/2019 e inserido no Código de Processo Civil.
Estamos perante um inventário na sequência de divórcio, previsto no artigo 1133º do Código de Processo Civil, o qual é regido, por força do estabelecido no artigo 1084.º, n.º 2, desse código, pelas disposições gerais do processo de inventário (artigos 1082º a 1096º deste diploma), mas também pelo disposto nos seus artigos 1097.º a 1130.º.
Escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/06/2010 ( Pedro Brighton), no processo 113-D/2001.L1-1 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano), também seguido, entre outros, no proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo 2941/11.0TBVFR.P1, em 01/31/2013 (Maria Amália Santos): “Com efeito, a partilha do casal não se limita à partilha do património comum, antes se desdobra em várias operações distintas: entrega dos bens próprios; liquidação da comunhão, na qual se inclui o apuramento e o pagamento das dívidas; avaliação e cálculo das compensações e, por fim, a partilha dos bens comuns (art. 1689º do Código Civil)….”
Esta doutrina tem-se mantido e sido seguida pela nossa jurisprudência. Como se salientou no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/27/2016, proferido no processo 1046/13.4TJLSB-A.L1-2 (Vaz Gomes): “A partilha dos bens do casal, numa aceção ampla, compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios como operação preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do ativo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; e a partilha propriamente dita. A liquidação do património comum depende assim do cálculo de compensações, das dívidas a terceiros e das dívidas entre os cônjuges. III- Se assim é, dada a especificidade do inventário da separação de meações que comporta, a par das dívidas a terceiros e créditos sobre estes, as compensações de patrimónios (comum e próprios), as dívidas entre os cônjuges, ou seja entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, então, da relação de bens, terão de constar não só as posições ativa e passiva do património comum em relação a terceiros como as compensações entre património comum e próprios e bem assim como as dívidas recíprocas dos cônjuges se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal, isto pela simples razão de que não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer. E para tal é necessário que a relação de bens contemple esses créditos ou compensações. E só não deverá ocorrer se a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas no incidente de reclamação da relação de bens tornarem inconveniente a decisão incidental das mesmas.”
Com efeito, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/27/2022, no processo 4218/21.4T8BRG-A.G1 (Joaquim Boavida), este já ao abrigo da lei ora vigente “Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.”

.2- Princípios mais relevantes da tramitação atual do inventário com relevo para a decisão da questão em apreço
Apesar da similitude entre várias normas do atual processo de inventário com o anterior, o novo regime alterou de modo radical o arquétipo deste tipo de processo, aproximando-a da ação declarativa, dando-se agora relevo ao princípio da auto responsabilidade das partes. Este processo passou a conter três fases, sendo a primeira destinada aos articulados, onde se insere a sua instauração através de uma petição inicial, com a alegação de factos e apresentação de documento e elementos essenciais, bem como a oposição, impugnação e reclamação, sujeita a resposta dos demais interessados. Como tão lapidarmente se sumariou no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 06/15/2021, no processo 556/20.1T8CHV-A.G1 (Conceição Sampaio): “O processo de inventário é hoje uma verdadeira ação, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão.”
O artigo 1104º do Código de Processo Civil concentra as reclamações contra a relação de bens no âmbito da oposição ao inventário, pelo que a verificação do passivo se inicia ainda na fase dos articulados: ao realizar-se a conferência de interessados, nos termos do artigo 1111º do Código de Processo Civil, já têm que estar efetuados a verificação e o reconhecimento do passivo.
De harmonia com o modelo do processo de inventário trazido pela lei nova, recai sobre os interessados diretos na partilha, na subfase de oposição, um ónus de impugnação, não apenas relativamente à composição do ativo, mas também do passivo, i.e., das dívidas que se mostrem relacionadas, com a cominação de que, não o fazendo nesse momento processual, a dívida se tem, em regra, por reconhecida (art.º 1104.º, n.º 1, c), n.º 1, do CPC).” cf Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/25/2022, no processo 995/20.8T8FIG-A.C1 (Henrique Antunes).

Verificação do passivo

Atualmente, como vimos, a verificação do passivo dá-se ainda na fase dos articulados.
As dívidas relacionadas ou reclamadas que não hajam sido contestadas pelos interessados diretos no inventário consideram-se reconhecidas, se existir documento escrito (artigo 1106º nº 1 e 574º nº 2, ambos do Código de Processo Civil)
Para a verificação do passivo do passivo da herança foi estabelecido um regime específico nos artigos 1106º e 1107º do Código de Processo Civil, inovatório (não obstante a similitude de diversas normas).
Tendo em conta o interesse dos credores garantidos pelo património constituído pelo acervo a partilhar, manteve-se a essencialidade da prova documental, mas, como veremos, a mesma pode ser complementada.
Na falta de elementos probatórios que permitam a formação de uma convicção segura sobre a dívida, o juiz deve abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios judiciais comuns (artigos 1106.º, n.º 3, e 1093.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Como escreveram Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, António Geraldes e Pedro Pinheiro Torres em “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, pág. 94 “O n.º 3 continua a atribuir uma importância determinante à prova documental, dado que a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida. Se tal não suceder, nomeadamente quando se trate de relações creditórias cujos factos constitutivos se não conseguem demonstrar através de prova documental, o juiz deve abster-se de decidir o litígio acerca do débito controvertido e remeter os interessados para os meios comuns (cf. art. 1093.º, n.º 1). A exigência da prova documental não deve inibir o exercício pelo juiz dos seus poderes inquisitórios em matéria probatória (art. 411.º), desde que essa exigência não seja feita ad substantiam ou ad probationem. Assim, o juiz pode determinar a realização de diligências probatórias de outra natureza, designadamente a inquirição de testemunhas e as declarações de parte, se as considerar indispensáveis para completar, interpretar ou esclarecer os resultados decorrentes da prova documental.” (sublinhado nosso)
 Neste sentido também se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/25/2022, no processo 995/20.8T8FIG-A.C1, “A exigência da prova documental, não é, contudo, nos termos gerais, inibidora da utilização, pelo juiz, dos seus poderes inquisitórios no domínio da prova, caso não seja exigível documento ad substantiam ou ad probationem; o juiz, pode, portanto, determinar, por exemplo, a produção de provas pessoais – como a testemunhal ou por declarações de parte – destinadas a interpretar, esclarecer ou completar os resultados da prova documental (art.º 411.º do CPC )”, o qual, aliás, apresenta posição que nos parece que tem ainda maior cabimento no âmbito dos inventários na sequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, face às especialidades que lhe são inerentes, já mencionadas: “se julgasse a prova documental insuficiente para demonstrar a existência da dívida, nem por isso se justificaria, sem mais, a remessa dos interessados para os meios judiciais comuns. Nesta hipótese, teria inteira justificação a atuação dos princípios do inquisitório e da cooperação, no segmento em que se ligam com a área da prova”.
No âmbito do anterior Código de Processo Civil, tal como no atual (artigo 1135º nº 3), nos inventários para separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal ou por causa da insolvência, em que se impõe a defesa dos credores, estabelece-se que só podem ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas, para obviar ao empolamento do passivo por conluio dos cônjuges, vendo os credores os bens responder por outros pretensos créditos, logrando que o património escape à garantia das dívidas efetivamente assumidas.
Não se pode, pois, considerar que a decisão judicial que aprecie a existência e montante do passivo só pode basear-se em prova documental, impedindo a produção de qualquer outro tipo de prova. É certo que não é possível verificar-se passivo sem que exista prova documental que o suporte, por força do disposto no artigo 1106º nº 3 do Código de Processo Civil, mas tal não impede que o tribunal recorra a outros meios de prova que complementem a prova documental.

Da abstenção de decisão com remessa para os meios comuns (artigo 1093º do Código de Processo Civil)

 No processo podem levantar-se questões prejudiciais que se reflitam na determinação dos bens que integram o acervo a partilhar ou na determinação do passivo relacionado com o términus das relações patrimoniais criado pelo casamento.
O juiz apenas deverá remeter a sua apreciação e decisão no processo de inventário caso a complexidade da matéria de facto subjacente à questão não permita manter as mesmas garantias a que as partes teriam acesso no processo comum, face à tramitação simplificada inerente ao processo de inventário, nomeadamente no que toca às limitações probatórias, como decorre do artigo 1093º do Código de Processo Civil (como escreveram Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, António Geraldes e Pedro Pinheiro Torres em “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020 , pág. 50).

Da audiência prévia

O artigo 1109º do Código de Processo Civil determina que “1- O juiz pode convocar uma audiência prévia se o considerar conveniente, nomeadamente por se lhe afigurar possível a obtenção de acordo sobre a partilha ou acerca de alguma ou algumas das questões controvertidas, ou quando entenda útil ouvir pessoalmente os interessados sobre alguma questão. 2 – Na convocatória o juiz indica o objetivo da diligência e as matérias a tratar. 3 – Na falta de acordo dos interessados sobre as questões controvertidas, o juiz procede à realização das diligências instrutórias necessárias para decidir as matérias que tenham sido objeto de oposição ou de impugnação.”
A audiência prévia depende, pois, da ponderação do juiz sobre a respetiva necessidade e tem em vista a tentativa de conciliação, embora também deva ser designada quando se se entender necessário ouvir pessoalmente algum ou alguns dos interessados sobre determinada questão da partilha, nomeadamente tendo em conta a simplicidade com que vêm desenhados alguns dos seus elementos, como a simples descrição dos bens a partilhar na relação de bens.
Esta audiência prévia não só não é uma diligência necessária no processo do inventário, como a sua realização está sujeita à ponderação do juiz, que averiguará se a mesma no caso concreto tem alguma utilidade.
Caso não haja acordo, seguem-se as diligências instrutórias necessárias para dirimir as questões controvertidas, como determina artigo 1109 nº 3 do Código de Processo Civil, aliás na sequência do que foi estipulado para os caso sem que se entendeu não ser necessária a realização de audiência prévia (“ A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º”) e só depois se procede ao saneamento do processo.

Do saneamento do processo

Com efeito, só depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias é que o juiz deverá decidir “todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar” (artigo 1110º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil, sublinhado nosso), proferindo o despacho de saneamento do processo.

Concretização

Postas estas noções básicas sobre o processo de inventário que dizem diretamente respeito às questões que se levantam nestes autos, podemos analisar o mérito do recurso.

Da preterição da (continuação da) audiência prévia

Vem o Recorrente insurgir-se contra a prolação da decisão que, não determinou nova data para continuação da audiência prévia (diligência que foi iniciada e interrompida com a suspensão da instância com vista a acordo), mas entendeu que “A quase totalidade das questões suscitadas no incidente de reclamação contra a relação de bens pode ser desde já decidida, sem necessidade de produção de outras provas para além da documental já carreada para o processo. É o que passa a fazer-se.(...)”
Antes de mais há que considerar que, como vimos, o processo de inventário foi desenhado para que exista a concentração num só despacho da decisão sobre todos os aspetos que possam influenciar na partilha, com especial relevo, no que aqui nos interessa, para a determinação do ativo e dos passivos  – o despacho de saneamento do processo.
Assim, apesar de o juiz poder entender que lhe permite uma melhor organização do seu trabalho ir conhecendo, desde logo, todas as questões que se levantam no processo mal entenda que já tem elementos para cada uma delas,  não é dessa forma que o Código de Processo Civil determina que devem ser tramitados os autos, com francas e boas razões, entre as quais, além de unificar numa só decisão todas as questões que podem ser sujeitas a recurso, facilitando (com consequências práticas e económicas) a possibilidade das partes defenderem as suas posições num só recurso, como permitindo que as partes produzam prova sobre questões que de uma forma mais simplista se poderia entender desnecessária, como infra se verá.
Ocorreu aqui, pois, desde logo, alguma fuga ás normas processuais.
Por outro lado, como se concluiu supra, no processo de inventário a audiência prévia não é um momento obrigatório de conformação do processo, como no processo comum: é uma diligência facultativa que o juiz, ponderado o caso, designa se o entender conveniente. Assim, nada obsta a que o juiz conheça das questões de mérito relativas ao acervo hereditário e ao passivo sem necessidade de designar audiência prévia para a prolação de decisão sobre essas matérias (neste sentido também o acórdão de 11/22/2021 proferido no processo 463/13.4TMMTS-B.P1 (Miguel Baldaia Morais)).
A nossa situação, no entanto, tem contornos diferentes, porquanto foi efetivamente considerado que era necessário designar audiência prévia, quer para tentar conciliar as partes, quer para delimitar o objeto do litígio no que tocava aos bens que integram o acervo a partilhar. Assim, importava realizar os dois atos para os quais a audiência foi designada.
Iniciada a diligência, as partes pediram a sua suspensão com vista ao acordo, mas não o lograram (quer quanto à partilha, quer quanto á definição do acervo a partilhar), tendo ficado por delimitar o objeto do litigio quanto à definição dos bens a partilhar, o que, como melhor se aprofundará no que toca ao imóvel, se mostrava de maior importância neste caso.
Enfim, marcada a audiência prévia e suspensa a instância quando ainda se não haviam realizados todos os atos para a qual a mesma havia sido designada, havia que designar data a sua continuação e ouvir as partes quanto á definição dos bens a partilhar, não se podendo, contra o que anteriormente havia sido decidido de forma vinculativa dentro do processo, vir posteriormente (tacitamente e sem fundamentação) a dispensá-la.
Assim, não podia ser proferido despacho de saneamento (mais a mais parcial) sem que se realizassem os atos da audiência prévia que haviam sido anteriormente programados.

Da dispensa de produção da prova para a prolação do despacho de saneamento (parcial)

Queixa-se igualmente o Recorrente de que o estado dos autos “não permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, porquanto a decisão em recurso não atendeu aos meios de prova apresentados nos diversos articulados”.
Diga-se, desde já, que lhe temos que dar razão.
O direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva (que decorre do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o qual impõe que seja assegurado a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a equidade do processo) tem como consequência, além do mais e no que aqui nos interessa, que a par do direito à invocação dos factos relevantes, se permita a prova dos mesmos, sob pena de se ter um processo ineficaz e injusto (sem se apurarem os factos que fundamentam o direito, não se mostra possível o seu julgamento, com a competente aplicação das normas jurídicas).
Como vimos, mesmo para a verificação do passivo, que exige sempre algum suporte documental, permite-se no novo regime o seu complemento por prova testemunhal.
Assim, não se podia de imediato proferir decisão, desconsiderando a prova testemunhal arrolada pelo cabeça-de-casal (entendendo-a despicienda sem a ter ouvido) para a demonstração dos factos que invocara, com o fundamento que a lei exige para este efeito prova documental.
Alcança-se a mesma conclusão no que toca à simples eliminação da verba 32º do ativo
A decisão recorrida, para obviar à necessidade de produção de qualquer prova, centra-se no facto do cabeça-de-casal ter invocado que o prédio era bem comum, à revelia do que se mostra registado, sem ter invocado qualquer facto que colocasse em causa a presunção que do registo advinha, pelo que este nada teria a provar. Não obstante a correção formal deste raciocínio caso nos encontrássemos em sede de ação declarativa (e se entendesse que não havia lugar ao despacho de aperfeiçoamento ou ao indeferimento liminar por falta de indicação a causa de pedir, que, como sabemos, no âmbito dos direitos reais implica a invocação do facto aquisitivo do direito, nos termos do artigo 481º nº 4 do Código de Processo Civil) a mesma esquece que face á alegação do direito sem a competente causa de pedir, cumpria pedir esclarecimentos àquele sobre essa invocação.
Por outro lado, constam dos autos elementos escritos que apontam para a celebração de um mútuo por ambos os ex-cônjuges, com vista à construção “da sua habitação própria permanente” e para garantia do qual foi constituída hipoteca sobre o prédio que foi considerado bem exclusivo da Requerente do inventário), elementos a que o Recorrente se agarra para afirmar que tais factos foram já trazidos aos autos.
Já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no processo 32/22.8T8BRG-A.G1.S1, de 10/13/2022, (Oliveira Abreu): “O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei, daí que, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impõe-se reconhecer que se a moradia mandada edificar pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão.
Veja-se que a existência de um bem próprio a garantir uma dívida que será da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges (visto que ambos aceitaram este passivo) traz um enorme desequilíbrio que não será o pretendido por estes.
Assim, impunha-se que também sobre esta matéria fossem ouvidas as partes e as testemunhas, e caso se apurasse que a construção descrita na verba 32 foi efetuada pelo extinto a casal e tem valor superior ao do solo doado, ponderar a adaptação da relação de bens, de forma a atentar no património em que tal bem se insere, mas também de forma a salvaguardar o direito da beneficiária da doação a ser ressarcida desse valor.

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Do exposto resulta que o despacho recorrido, entendendo que podia conhecer das matérias que decidiu, sem a audição das partes para proceder à delimitação do litígio como havia sido determinado e sem produzir a prova apresentada nos articulados, incorreu em erro de julgamento, tendo que ser revogado e substituído por outro que designe data para audiência prévia.
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V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a presente apelação, e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que designe data para a continuação da audiência prévia.
Custas pela Recorrida (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).
Guimarães, 25/5/2023

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes