DIREITO DE PROPRIEDADE
PROPRIEDADE
ESTADO
BALDIOS
Sumário

I - As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado em baldios são propriedade deste e ficam afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
II - As parcelas de terreno baldio em que foram implantadas tornam-se participantes da destinação pública, não sendo admissível a devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I-Relatório

A Junta de Freguesia de B..... intentou a presente acção com processo ordinário contra o Estado Português – Direcção Geral do Património, peticionando que os povos da freguesia de B....., representados pela Autora, sejam declarados proprietários do terreno baldio denominado C....., sito em B.....-D....., com a área de 615 ha, a confrontar de norte com a Junta de Freguesia de D....., nascente com a Junta de Freguesia de E....., sul com a Junta de Freguesia de F..... e a poente com o Rio..... e a Câmara Municipal de D..... e que se declare que os referidos povos, representados pela Autora, adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio urbano correspondente à casa de habitação do guarda-florestal, identificado no art. 5º da p. i., por acessão industrial imobiliária, com a obrigação de pagarem o valor que o prédio tinha ao tempo da implantação do mesmo no referido baldio que vier a ser apurado em audiência de julgamento.
Fundamentou o pedido alegando, em resumo, que:
Os povos da freguesia de B....., concelho de D....., são donos e legítimos possuidores do terreno baldio denominado C....., ....., ..... e ...., eucaliptal, pinhal, mato e pastagem, sito em B..... – D....., com a área de 615 hectares, inscrito na matriz rústica da freguesia de B..... sob o artigo 390, e não descrito na Conservatória;
Desde tempos imemoriais e há mais de 200 anos, têm as populações da freguesia de B..... e a Junta de Freguesia de B....., aqui Autora e legal representante dos povos desta freguesia, possuído o referido baldio, cortando nele pinheiros e eucaliptos, roçando matos, apanhando lenhas, apascentado gados, sem qualquer interrupção, à vista de todos, sem violência ou oposição de quem quer que seja, na convicção de serem proprietários do referido prédio e de que com a sua posse não lesavam outrem, antes exerciam um direito próprio de proprietários;
Tem sido a Junta de Freguesia Autora quem tem administrado o referido baldio;
Nesse terreno baldio encontra-se construída há mais de 20 anos uma casa destinada a habitação do guarda-florestal, composta de rés-do-chão com a superfície coberta de 90 m2, anexo com a área de 48 m2 e logradouro com a área de 116 m2, a confrontar de norte e poente com a estrada nacional, sul baldio e escola primária, e nascente com estradão florestal, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de B..... sob o artigo 368 com o valor patrimonial de € 34.020, não descrita na Conservatória;
O referido prédio urbano não pertence ao Réu Estado Português – Direcção Geral do Património, já que a referida habitação sempre se destinou ao uso do guarda-florestal da freguesia de B....., cujas funções eram as de vigilância do identificado baldio pertencente aos povos desta freguesia, estando o referido prédio urbano implantado no mesmo baldio, de boa fé, já que era o Estado, por intermédio dos Serviços Florestais, quem administrava, ao tempo da implantação os baldios nacionais, incluindo o baldio aqui em causa;
Foi construído em 1957 e aquando da sua construção tinha um valor de € 200, tendo o terreno baldio, à data da implantação nele do dito prédio urbano, um valor de, pelo menos, € 5000;
Por isso, os povos da freguesia de B....., por intermédio da Autora, sua legal representante, adquiriram o direito de propriedade sobre o mencionado prédio urbano por acessão industrial imobiliária, nos termos do artigo 1340º n.º 3 do Código Civil e do art.º 39º, nº2, da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, com a obrigação de pagarem o respectivo valor ao tempo da incorporação, que a Autora entende ser de 200 euros, estando disposta a pagar, no entanto, ao Réu o valor que este Tribunal apurar que o prédio urbano tinha ao tempo da implantação, mesmo sendo diferente do antes indicado;
Os baldios são bens que se encontram fora do comércio jurídico, sendo insusceptíveis de serem adquiridos por qualquer forma ou título, incluindo a usucapião e sendo o terreno onde está implantado o prédio urbano um terreno baldio, parte do baldio mencionado, e no qual, antes da implantação da habitação, os povos da freguesia de B..... exerceram os alegados actos de posse, nunca poderia o Estado Réu ter adquirido por qualquer forma ou título o terreno onde se encontra implementado o prédio urbano em causa.

Contestou o Réu Estado Português, excepcionando a ilegitimidade da Autora e pugnando, no que respeita ao mérito da acção, pela total improcedência e pela sua, consequente, absolvição do pedido.
Alegou, em resumo, que:
Por Decreto publicado no Diário do Governo, de 21 de Fevereiro de 1933, foram submetidos ao regime florestal parcial os terrenos baldios da freguesia de B..... e, em consequência, à semelhança do que aconteceu noutros terrenos baldios submetidos ao regime florestal, o Estado construiu a referida casa do guarda-florestal;
Tal casa e respectivo logradouro sempre se destinou a residência do guarda-florestal, funcionário do Estado, cujas funções eram as de vigilância do baldio onde fora implantada, tendo tal casa sido construída pelo Estado Português, a expensas suas, há mais de 50 anos, que desde então tem possuído o dito prédio e respectivo logradouro como coisa sua;
A dita casa passou a ser considerada como fazendo parte do património do Estado, sem oposição de quem quer que fosse e quando necessário, o Estado procedeu às necessárias reparações da mesma;
Já em Janeiro de 1947 era habitada por guarda-florestal, mantendo-se sempre ocupada até finais de 1999, data em que deixou de haver candidato à sua ocupação, facto de que a Autora tem conhecimento;
Conforme o Parecer n.º 6/99, de 24-06-99, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (publicado no Diário da República, II Série, n.º 274, de 24 de Novembro de 1999, pp.1720 e segs.) o Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos ao regime florestal, com afloração na Base VI da Lei nº 1971, de 15 de Junho de 1938, que lhe confere a posse dos imóveis correspondentes a esse direito;
As casas de guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios são propriedade deste e ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal;
As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente participantes da destinação pública a que estas foram afectadas, mercê da qual, e por força do direito real público aludido, ficaram exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do Decreto – Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro;
O Decreto -Lei n.º 40/76, de 19 de Janeiro, visou exclusivamente regular as situações resultantes de actos e negócios jurídico-privados de particulares sobre os baldios, sendo por isso o n.º 2 do seu artigo 1º inaplicável às casas de guarda e ao solo em que foram edificadas;
A disposição transitória do artigo 39º da Lei nº 68/93 de 4 de Setembro - "Lei dos Baldios"-, com a redacção da Lei n.º 89/97 de 30 de Julho, teve em vista regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais em face dos Decretos-Leis n.ºs 39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro, sendo por isso outrossim inaplicável às mencionadas casas de guarda e parcelas de terreno em que foram edificadas.

A Autora respondeu defendendo a improcedência da deduzida excepção da ilegitimidade.

Findos os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a invocada ilegitimidade da autora e conhecendo do mérito da causa julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se o Réu do pedido.
Inconformada a Autora interpôs o presente recurso de apelação, tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:
1- Quer o terreno do baldio identificado no art. 1º da p. i., quer a casa nele construída pelo Estado e identificada no art. 5º da mesma petição devem ser considerados como pertencentes ao domínio privado, respectivamente da freguesia e do Estado, ao tempo em que a casa foi edificada – 1947;
2- Sendo bens privados quer o terreno quer a casa nele implantada pelo Estado, esta pode ser adquirida por acessão industrial imobiliária;
3- A douta sentença recorrida violou os artigos 388º, 389º e 395º do Código Administrativo de 1940, aplicável ao caso, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra na qual se ordene o prosseguimento dos autos, nomeadamente para que se prove o valor que a apelante terá de pagar ao apelado pela aquisição, por acessão, da dita casa.

O Réu contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.

Em face das conclusões da apelante a única questão a decidir consiste em saber se o identificado prédio urbano pode ser adquirido pela Autora, por acessão industrial imobiliária.

Corridos os vistos cumpre decidir.

II – Fundamentos
1. De Facto
Por não terem sido impugnados e por não haver fundamento para a sua alteração no quadro da enumeração taxativa do n.º 1, do art. 712º do CPC, têm-se como assentes os seguintes factos:
1. O terreno denominado C....., ....., ..... e ....., eucaliptal, pinhal, mato e pastagem, sito em B.....-D....., a confrontar de norte com Junta de Freguesia de D....., nascente Junta de Freguesia de E....., sul Junta de Freguesia de F..... e poente com o Rio G..... e Câmara Municipal de D....., com a área de 615 hectares, inscrito na matriz rústica da freguesia de B..... sob o artigo 390, e não descrito na Conservatória, é terreno baldio.
2. Nesse terreno baldio encontra-se construído há mais de 20 anos o seguinte prédio urbano: casa destinada a habitação do guarda florestal, composta de rés-do-chão com a superfície coberta de 90 m2, anexo com a área de 48 m2 e logradouro com a área de 1162 m2, a confrontar de norte e poente com a estrada nacional, sul baldio e escola primária, e nascente com estradão florestal, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de B..... sob o artigo 368 (anterior artigo 180) com o valor patrimonial de 34.020 euros, não descrita na Conservatória.
3. Por Decreto do Ministério do Comércio, Indústria e Agricultura, publicado no Diário do Governo, II Série, nº 43, de 21 de Fevereiro de 1933, foi decretada a inclusão, por utilidade pública, no regime florestal parcial, também dos terrenos baldios da freguesia de B....., determinando a realização do inquérito a que se refere o artigo 14º do Decreto de 24 de Dezembro de 1903, que aprovou o regulamento para a execução do regime florestal, tendo o Decreto do Ministério da Economia, publicado no Diário do Governo, II Série, nº 284, de 7 de Dezembro de 1940 decretado submeter ao regime florestal parcial os terrenos baldios que constituem o perímetro florestal de D......
4. Através do edital, cuja cópia está junta a fls. 11 a 13 v. e de anúncios publicados no "Jornal de Noticias" de 27 e 28 de Novembro de 2003, o Réu Estado Português – Direcção Geral do Património moveu um processo de justificação administrativa alegando pertencer-lhe o prédio urbano descrito em 2.
5. A referida habitação sempre se destinou ao uso do guarda-florestal, cujas funções eram as de vigilância do baldio referido em 1.
6. Era o Estado, por intermédio dos Serviços Florestais, quem administrava, ao tempo da implantação, os baldios nacionais, incluindo o baldio aqui em causa.
7. O prédio urbano referido em 2. foi construído em 1947 pelo Estado Português, a expensas suas, há mais de 50 anos.
8. Desde 1957 até finais de 1999, a casa referida em 2. esteve ocupada com guardas florestais, que pagavam uma renda mensal ao Estado.
9. Em 15-03-2001, G....., na qualidade de guarda-florestal, desempenhando funções para o Instituto Florestal do Ministério da Agricultura, e três pessoas do seu agregado familiar, habitavam o imóvel referido em 2., o qual funcionava como sua casa de função, atribuída no interesse exclusivo do Estado, pagando o aludido guarda a renda de 1.043$00 e encontrando-se o imóvel em bom estado de conservação.
10. Em 30 de Maio de 2003, a Directora-Geral da Direcção-Geral do Património, do Ministério das Finanças, designou e autorizou o Chefe de Serviços de Finanças de D....., ou quem o substituir nos seus impedimentos legais, a requerer o registo a favor do Estado Português-Direcção Geral do Património, na Conservatória do Registo Predial de D....., da área do imóvel referido em 2.

2. De Direito
As questões colocadas pela recorrente resumem-se no essencial à questão de saber se a casa do guarda-florestal, implantada no identificado baldio é susceptível de aquisição, por acessão industrial imobiliária, pelos povos da freguesia de B....., representados pela Autora.
A sentença recorrida, baseando-se no parecer da Procuradoria da República n.º 6/99, de 24-06-99 (publicado no DR. II Série de 24-11-99), abordou exaustiva e proficientemente, não só a questão objecto do recurso, como todas as demais questões com interesse para a decisão da causa e decidiu-as, em nosso entendimento, com inteiro acerto.
Mostra-se bem estruturada e fundamentada, não sendo a mesma merecedora de qualquer reparo. Daí que não haja necessidade de repisar aqui os fundamentos dela constantes.
Merecendo a decisão recorrida, bem como os respectivos fundamentos, total unanimidade por parte deste Tribunal, nos termos do n.º 5 do artigo 713º do CPC, remete-se para os fundamentos da decisão recorrida.
Como nela bem se refere, apoiando-se no citado Parecer da Procuradoria da República, o Estado tornou-se titular de um direito real, sujeito à disciplina do direito público, sobre os baldios submetidos ao regime florestal.
As casas dos guardas florestais edificadas pelo Estado nesses baldios ficaram afectadas aos fins de interesse e utilidade pública implicados no regime florestal.
As parcelas de terreno dos mesmos baldios em que foram implantadas as casas de guarda tornaram-se indissociavelmente participantes da destinação pública a que estas foram afectadas, daí que tenham sido exceptuadas da devolução ao uso, fruição e administração dos baldios aos compartes, nos termos do artigo 3º do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro.
O Dec. Lei n.º 40/76, de 19 de Janeiro, visou exclusivamente regular as situações de actos e negócios jurídico-privados de particulares sobre os baldios, sendo por isso o n.º 2, do seu artigo 1º inaplicável às casas de guardas e respectivos assentos.
A disposição transitória do art. 39º da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro – Lei dos Baldios –, com a redacção da Lei n.º 89/97, de 30 de Julho, teve em vista regularizar e legalizar construções e empreendimentos privados ilegais em face dos Decretos-Leis n.ºs 39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro, sendo por isso inaplicável às mencionadas casas de guarda e parcelas de terreno em que foram edificadas.
Assim, não foram violadas as normas invocadas pelas apelantes, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo, improcedendo as conclusões da apelante.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas, por a apelante, a cargo de quem deveriam ficar, delas estar isenta.

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Porto, 22 de Fevereiro de 2005
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves