IMPEDIMENTO
IMPEDIMENTO DO JUIZ
IMPARCIALIDADE
Sumário

Os casos a subsumir à 2ª parte da alínea c) do nº 1 do art. 115º do Cód. de Proc. Civil reconduzem-se àqueles em que o juiz dá parecer ou se pronuncia quanto ao objeto de determinado processo atuando fora do exercício da sua judicatura.

Texto Integral

Proc. n.º 358/22.0T8SJM.P1

Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto

Relatório:
O “Condomínio do prédio sito na rua ..., ..., S. João da Madeira”, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, viúva, residente na rua ..., ..., 8º direito traseiras, S. João da Madeira, perante o juízo de competência genérica de S. João da Madeira (J1).
Alegou o autor, em súmula, na petição inicial, que, sendo a ré proprietária de uma fracção autónoma do edifício que integra o condomínio autor, em Junho de 2019 interveio na deliberação desse condomínio em realizar obras de requalificação e manutenção, designadamente traduzidas na tapagem de buracos existentes nas fachadas cuja existência não possuísse fundamento legal, obras que se iniciaram em Fevereiro de 2000.
Invoca ter sido constatado que a fracção autónoma pertença da ré apresentava 7 buracos abertos para o exterior, abertos pela ré ou alguém a seu mando e sem autorização da administração do condomínio, cuja tapagem se impunha nos termos deliberados, trabalho cuja execução foi iniciada a 27 de Maio de 2020 pela empresa para o efeito contratada pela administração do condomínio através da colocação de cimento.
Alega que, nesse mesmo dia 27 de Maio de 2020, a ré ou alguém a seu mando procedeu à reabertura de tais buracos através do interior da fracção, sem dar qualquer satisfação ao autor.
Afirma que novamente o autor instruiu a referida empresa para a tapagem de tais buracos, acção que foi realizada a 29 de Maio de 2020, mas que, nesse mesmo dia, novamente a ré ou alguém a seu mando procedeu à sua reabertura pelo interior da fracção; o que voltou a suceder a 09 de Junho de 2020.
Alega que com fundamento em tais factos apresentou queixa-crime contra a ré, distribuída pelo juízo de competência genérica de S. João da Madeira (J1) como processo comum singular nº 550/20.2T9SJM, no âmbito do qual formulou pedido de indemnização civil contra a ré pelos danos resultantes da conduta acima descrita, nesse processo sendo as partes remetidas para os tribunais civis ao abrigo do disposto no artigo 82º do Código de Processo Penal.
Invoca que da conduta da ré resultaram danos patrimoniais cujo valor fixa em € 33 740,00, e conclui pedindo a condenação da ré no pagamento deste valor, acrescido dos respectivos juros de mora.
Citada, a ré apresentou contestação, na qual, em súmula, impugna os fundamentos de facto e de direito invocados pelo autor.
Alega ter sido proferida sentença de mérito no âmbito do processo nº 550/20.2T9SJM, já transitada em julgado, que julgou não demonstrada a prática pela aqui ré dos factos que a autora agora lhe imputa, absolvendo a ré do crime por que havia sido acusada.
Invoca a excepção de caso julgado nos termos do artigo 624º do Código de Processo Civil.
Conclui pedindo a sua absolvição.
O autor pronunciou-se quanto a esta excepção dilatória, defendendo a sua improcedência.
Teve lugar a audiência prévia, após a qual pelo autor foi apresentado requerimento [a 24 de Janeiro de 2023, referência nº 14052716] em que suscita o impedimento da Exmª. Juíza actualmente Titular do juízo de competência genérica de S. João da Madeira (J1) no âmbito dos presentes autos, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil, por ter sido quem proferiu decisão de mérito no âmbito do processo comum singular nº 550/20.2T9SJM e ter na audiência prévia antecipado a decisão final neste processo.
A ré não se pronunciou.
A este propósito é então proferido despacho [datado de 13 de Fevereiro de 2023, referência nº 125885975] com o seguinte teor: «Indefere-se o requerido por não se verificar a situação prevista no artigo 115º/1 alínea c) do Código de Processo Civil, uma vez que a signatária não interveio na causa como Mandatária ou Perita, nem deu Parecer ou se pronunciou ainda que oralmente sobre questão a decidir além do que foi exposto a ambas as partes quando da tentativa de conciliação e consta dos autos, designadamente da cópia da Sentença crime, em que a aqui Ré foi absolvida do crime de dano, explicando-se à autora que tendo fundamentado única e exclusivamente o pedido na prática do ilícito pela Ré, se da audiência cível, resultar, como resultou do julgamento crime, que não foi a Ré, mas o seu falecido marido, o autor dos danos, a acção não poderá proceder.»
É desta decisão que, inconformada, o aqui autor vem interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- Por sentença transitada em julgado no processo 550/20.2T9SJM que correu termos no Juízo de Competência Genérica -J1 de São Joao da Madeira foi decretado o seguinte:
2- “O ofendido Condomínio constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização pedindo a condenação dos arguidos a pagarem a quantia de 34.440,00 € a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento, com as demais consequências legais. Fundamenta o pedido nos danos patrimoniais sofridos em consequência dos ilícitos praticados pelos arguidos. Indicou como meios de prova além dos constantes nos autos, seis testemunhas. A arguida apresentou contestação na qual em síntese sustenta não ter praticado os ilícitos e pugna pela sua absolvição. Indicou testemunhas. No decurso da audiência foi junta cópia de um orçamento solicitado pela arguida com valores propostos para a reparação bastante inferiores aos alegados pelo demandante. Constatou-se estar em causa não apenas a reparação dos “buracos”, mas também a pintura e uniformização das fachadas do prédio e a manutenção da garantia. Seria assim necessário produzir prova sobre o custo da reparação, necessidade da pintura da fachada ou fachadas inteiras do prédio e respectivo custo e ainda do necessário para se manter a garantia. Para precisar o valor necessário conclui-se que seria necessário proceder a uma perícia ou mais perícias. As questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizam pois uma decisão rigorosa e são susceptíveis de gerar incidentes que iriam retardar intoleravelmente o processo penal. Pelo exposto, e nos termos previstos no artigo 82º/3 do Código de Processo Penal, remetem-se as partes para os tribunais civis.
3- No processo 550/20.2T9SJM que correu termos no Juízo de Competência Genérica -J1 de São Joao da Madeira foi a Exma. Sra. Dra. Meritissima Juiza a julgar e a decidir, tendo proferido a respetiva sentença conforme supra.
4- Nos presentes autos está em causa o julgamento sobre o pedido de indemnização formulado pela A. contra a R., o qual o mesmo foi realizado no processo crime mencionado supra.
5- Ora, na audiência prévia realizada em 18-01-2023 o julgador já deu um parecer, ainda que oralmente, sobre a decisão que virá a proferir nos presentes autos.
6- Veio o tribunal a indeferir com o seguinte fundamento: “Indefere-se o requerido por não se verificar a situação prevista no artigo 115º/1 alínea c) do Código de Processo Civil, uma vez que a signatária não interveio na causa como Mandatária ou Perita, nem deu Parecer ou se pronunciou ainda que oralmente sobre questão a decidir além do que foi exposto a ambas as partes quando da tentativa de conciliação e consta dos autos, designadamente da cópia da Sentença crime, em que a aqui Ré foi absolvida do crime de dano, explicando-se à autora que tendo fundamentado única e exclusivamente o pedido na prática do ilícito pela Ré, se da audiência cível, resultar, como resultou do julgamento crime, que não foi a Ré, mas o seu falecido marido, o autor dos danos, a acção não poderá proceder.”
7- Face ao supraexposto, deverá ser declarado o impedimento nos termos do artigo 115º nº1 alinea c) do CPC.
Termos em que deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, considerando nula e sem qualquer efeito o despacho proferido pelo tribunal e em consonância ser revogada o despacho do qual se recorre.
Pela ré não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação por despacho proferido a 21 de Março de 2023 [referência nº 126545926], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - Fundamentação
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões dos recorrentes, mostra-se colocada à apreciação deste tribunal a seguinte única questão – a situação de impedimento da Exmª. Juíza titular do juízo de competência genérica de S. João da Madeira (J1) ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil.
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A matéria de facto relevante mostra-se já enunciada no relatório da presente decisão, e resulta da simples análise da tramitação processual.
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Resultará óbvio que o respeito pelas exigências de imparcialidade e equidistância do julgador face aos interesses em jogo num concreto litígio constitui um dos pilares da administração da Justiça.
«Se o empenho da parte é fazer triunfar um determinado interesse, o empenho do juiz tem de ser e deve ser assegurar o triunfo do interesse da justiça. A justa composição da lide, na fórmula de Carnelutti, é o fim último da função processual; ora, para que o juiz esteja em condições de resolver o conflito em conformidade com a justiça, torna-se necessário que sobre o seu ânimo e sobre o seu espírito nenhuma influência possa exercer qualquer dos interesses particulares em conflito. (…) De maneira quando, por qualquer circunstância especial, os interesses particulares em litígio são susceptíveis de comprometer a imparcialidade do julgador, de o afastar da linha honesta da justa composição da lide, estamos em presença de um caso de inidoneidade ou incapacidade do órgão jurisdicional» [Prof. Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, volume I, 2ª edição, Coimbra Editora, 1960, página 388].
Obviamente que a total indiferença do julgador aos concretos interesses que no processo se enfrentam é realidade que não existe – o juiz é naturalmente pessoa com um passado e um contexto, tem as suas propensões e inclinações, as suas opiniões e visões sobre o que é e o que deve ser.
Mas não é disso de que o artigo 115º do Código de Processo Civil trata.
O que procura é criar uma linha de protecção à confiança no idóneo exercício da judicatura, prevenindo casos em que reconhecidamente se reconheça que as circunstâncias em presença são susceptíveis de perturbar a rectidão e o juízo de imparcialidade e equidistância do julgador, turbando-o na procura da simples aplicação do Direito como meio para a realização da Justiça.
Nessa sequência, a alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil assim dispõe: «Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente».
O recorrente coloca o acento tónico da sua visão quanto à alegada parcialidade da Exmª. Juíza titular do juízo de competência genérica de S. João da Madeira (J1) no segmento final desta alínea – quando haja de decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente.
Isto pela circunstância, segundo alega, de a mesma magistrada ter proferido decisão de mérito no âmbito de processo crime em que foi apreciada a conduta da ré também em causa nos autos, em conjugação com a posição que oralmente manifestou, na audiência prévia, quanto ao objecto do presente processo.
Com todo o devido respeito, a posição da recorrente não possui qualquer fundamento.
É que manifestamente a lei processual civil não considera [ao contrário da lei processual penal – artigo 40º do Código de Processo Penal], como regra, o facto de o mesmo juiz de primeira instância, no exercício das suas funções, ser chamado a apreciar questão já anteriormente por si decidida como susceptível de o desviar da procura da justa composição do litígio, beneficiando ou prejudicando, ainda que de forma não intencional, os interesses em conflito – veja-se como nada obsta à reforma da decisão pelo mesmo juiz que a proferiu (artigo 616º do Código de Processo Civil); à intervenção no julgamento de mérito da causa principal do juiz que decidiu uma providência cautelar deste, ainda que o objecto da providência totalmente coincida com o da causa principal; à repetição do julgamento pelo mesmo juiz que proferiu a decisão anulada [artigo 683º do Código de Processo Civil; cfr, a este propósito, o decidido pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 324/2006, de 17 de Maio de 2006, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060324.html]; ou como a arguição de nulidade deve ser feita no processo em que foi cometida, independentemente de o juiz titular ser ou não quem tinha o processo a seu cargo no momento em que foi cometida; e ainda, de forma mais flagrante, veja-se como o recurso de revisão [artigos 696º a 702º, todos do Código de Processo Civil] é expressamente dirigido ao tribunal que proferiu a decisão a rever (nº 1 do artigo 697º do Código de Processo Civil), independentemente de nele ainda prestar ou não funções o juiz que proferiu a decisão impugnada.
Apenas no caso dos juízes dos tribunais superiores se entendeu ser de limitar a intervenção do que, nessa qualidade, tenha proferido a decisão recorrida ou nesse processo tomado posição sobre questões suscitadas no recurso [alínea e) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil] – a diferença da solução relativamente à posição do juiz de 1ª instância surge evidente.
Daqui facilmente resulta, conforme jurisprudência pacífica [cfr, por todos, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 09 de Fevereiro de 2021, processo nº 246/20.5T8MTS-A.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.jstj.pt/, bem como as referências jurisprudenciais aí feitas], que os casos a subsumir à alínea c) do 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil reconduzem-se àqueles em que o juiz dá parecer ou se pronuncia quanto ao objecto de determinado processo actuando fora do exercício da sua judicatura – o que notoriamente não sucede no caso.
Pelo contrário, aliás, o que o recorrente precisamente afirma é que a Exmª. Juíza titular do juízo de competência genérica de S. João da Madeira actuou no exercício das suas funções ao proferir decisão de mérito no âmbito processo 550/20.2T9SJM, bem como actuou no exercício das suas funções ao presidir à audiência prévia no âmbito dos presentes autos.
Não ocorre o impedimento consagrado na alínea c) do nº 1 do artigo 115º do Código de Processo Civil.
O recurso improcede.
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III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Mais se condena o recorrente “Condomínio do prédio sito na rua ..., ..., S. João da Madeira” nas custas do recurso – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.

Porto, 20/4/2023
António Carneiro da Silva
Isabel Ferreira
Deolinda Varão