EXTRADIÇÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
OPOSIÇÃO
TORTURA
TRATAMENTOS CRUÉIS
DESUMANOS E DEGRADANTES
DIREITOS FUNDAMENTAIS
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
RECUSA DE COOPERAÇÃO
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS PELO ESTADO REQUERENTE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Sumário


I. O artigo 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 apenas admite oposição à extradição com fundamento em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição. Sem prejuízo de a alegação dever ser considerada, a prova das más condições das prisões no Estado requerente não constitui ónus imposto ao extraditando.
II. A produção de prova sobre as condições prisionais não se inscreve na comprovação da não verificação dos pressupostos da extradição, os quais se relacionam com a medida da pena a cumprir, com os motivos de inadmissibilidade (recusa obrigatória) de extradição ou com os motivos de recusa facultativa de extradição (artigos 2.º, 3.º e 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da CPLP), pelo que a não pronúncia sobre prova que o extraditando pretendia ver produzida sobre as condições das prisões no Estado requerente não constitui nulidade do acórdão recorrido.
III. A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação e graves deficiências de organização e funcionamento pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, nas relações entre Estados, reguladas por normas de direito internacional público que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, na medida em que constituam ou apresentem sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante.
IV. A proteção da pessoa contra estas formas de tratamento, quer internamente, quer nas relações com outros Estados, no âmbito da extradição, encontra-se especificamente garantida no artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos (San José, 1969), no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985) e na  Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987), bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros (1995) e as “Regras de Nelson Mandela” (2015), das Nações Unidas.
V. A interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes contém uma proibição absoluta, insuscetível de restrições e derrogações, o que confere às normas de proteção contra estas formas de tratamento a natureza de normas imperativas de direito internacional geral, normas de jus cogens, consagrando valores absolutos que não admitem desvio, cuja derrogação não é permitida, a que são reconhecidos efeitos supralegais, com a força que lhe confere o artigo 53.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969).
VI. De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta. Como resultado, a extradição de uma pessoa por um Estado Contratante pode, sob esta disposição, envolver a responsabilidade do Estado em questão, nos termos da Convenção, quando houver motivos sérios para acreditar que, se a pessoa for extraditada, corre o risco real de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 3.º da CEDH.
VII. O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos, não sendo suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor asseguram a proteção da pessoa – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco.
VIII. Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais criados pelos Estados no âmbito das organizações internacionais, nos quais se incluem os do Comité contra a Tortura (Nações Unidas), de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio.
IX.  As recentes observações e recomendações do Comité contra a Tortura, produzidas na sequência da avaliação (2020-2023) do segundo relatório do Brasil sobre a aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes são, neste contexto, de atual e decisiva importância. Apesar de notarem aspetos positivos na situação das prisões e os esforços que estão a ser feitos nesse sentido, nomeadamente através da promoção das “Regras de Nelson Mandela”, as observações dão nota de que o sistema penitenciário brasileiro enfrenta sérios desafios, em particular no que se refere a sobrelotação e violência física e sexual no interior da maioria dos estabelecimentos prisionais, com riscos para a vida dos reclusos, condições de detenção com falta de condições sanitárias e de higiene, de acesso a água potável, a alimentos, a cuidados de saúde, e de ventilação e luz natural, tendo o Comité produzido um conjunto considerável de recomendações para se ultrapassarem essas dificuldades.  
X. Este relatório, pela caraterização que faz das condições das prisões no Estado requerente, constituiria motivo suficiente para que se solicitassem garantias – que, na sua dimensão jurídica, devendo ser tidas em devida conta, relevam do princípio da boa fé, que preside à aplicação e observância dos tratados (artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados), podendo constituir fundamento de responsabilização dos Estados – de que a pessoa procurada, uma vez  entregue, não será sujeita nem correrá o risco real de ser sujeita a esse tipo de tratamento no interior da prisão, para cumprimento da pena.
XI. Como consta da matéria de facto provada, as autoridades do Estado requerente enviaram garantias, sustentadas pela respetiva legislação interna, de que não submeterão o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas desumanos ou degradantes, as quais, embora de natureza genérica, baseadas no direito interno, não podem deixar de, nessa base, ser entendidas como um compromisso do Estado requerente de cumprimento das obrigações que lhe são impostas.
XII. Porém, não se mostra que o tribunal recorrido tenha emitido qualquer juízo sobre tais garantias, que tenha procedido à sua “adequada avaliação”, em concreto, e que tenha concluído pela sua suficiência, para que possa ser ordenada a extradição (supra, 8).
XIII. Ao não efetuar esta avaliação, o tribunal deixou de pronunciar-se sobre uma questão que devia apreciar, essencial à decisão final sobre a extradição, o que constitui a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que deve ser declarada e não pode ser suprida por este tribunal em sede de recurso.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. AA, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 26 de abril de 2023 do Tribunal da Relação de Coimbra, que autorizou a sua extradição para a República Federativa do Brasil para cumprimento das penas de 4 meses e 10 dias detenção, no regime aberto, e 7 anos, 7 meses e 27 dias de reclusão, em que foi condenado pela ... Vara de Violência Doméstica de .../..., pela prática de crimes que, verificada a dupla incriminação, correspondem, na lei portuguesa, a crimes de ofensa à integridade física qualificada, crime de ofensa à integridade física grave, de violência doméstica e de maus tratos, previstos e punidos pelos artigos 145.º, n.ºs 1, al. c) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, als. c) e d), 144.º, al. d), 152.º, n.ºs 1, al. e), 2, al. a), e 3, al. a), 152.º-A, n.ºs 1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal.

2. Apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«I.    Com a oposição são oferecidos os elementos probatórios considerados profícuos para corroborar a discordância do pedido de extradição, nomeadamente prova testemunhal, a qual deve respeitar os termos preditos no n.º 1 e 5 do art.º 55.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto que aprovou a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal;

II.      O extraditando arrolou inicialmente a sua esposa, tendo procedido a dois aditamentos em sede ulterior e em pleno respeito pelo n.º 5 do art.º 55.º daquela Lei, dado que não havia sido marcada qualquer data para produção de prova;

III.    Quatro das seis testemunhas arroladas são colegas de trabalho do ora recorrente e de nacionalidade brasileira, incidindo o objecto do seu depoimento precisamente a de atestar a realidade brasileira, face à assimetria de condições nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano existente nos mesmos, quer por parte da administração pública e/ou privada dos EPs, quer advinda dos restantes reclusos;

IV.    Consideramos que o acórdão recorrendo enferma de nulidade por omissão de pronúncia, dado que desconsiderou as testemunhas indicadas a 10 de Abril de 2023, referindo-se no acórdão apenas à testemunha indicada com a oposição (ref.ªcitius 221103) e com o requerimento probatório de 21 de abril de 2023 (ref.ª citius ...14), descurando o requerimento de aditamento ao rol de testemunhas de 10 de Abril de 2023, com a ref.ª citius ...33;

V.    Para além de descurar o requerimento de 10 de Abril presumiu a extensão do objecto das suas declarações, considerando despicienda a sua audição e inútil o cumprimento do n.º 2 do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto;

VI.    Estamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia e ainda por omissão de diligências que foram consideradas como profícuas para a defesa do extraditando, pelo que se requer a declaração de nulidade do acórdão recorrendo, com as legais consequências dos arts. 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, subsidiariamente aplicável ao presente caso concreto, devendo ser determinada a audição das testemunhas, nos termos do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto;

VII.   No acórdão recorrendo foi, em síntese, decidido que o pedido de extradição de AA fosse autorizado, por inexistir qualquer requisito formal e material que obste ao cumprimento do pedido de extradição;

VIII.  De acordo com o disposto no n.º 6 do art.º 33.º da Constituição da República Portuguesa “não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física”, mas infelizmente consideramos que ao ser extraditado tal venha a ocorrer, não pela longa manus directa do Estado, mas pelo que ocorre dentro dos estabelecimentos prisionais brasileiros – não só no que concerne à sobrelotação, mas também no que se refere aos castigos corporais sofridos e, em muitos casos, à perda da vida intencional de reclusos, pela mão de outros reclusos;

IX.    Foi assinada a Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, na Cidade da Praia, em 23 de Novembro de 2005 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 – tendo entrado em vigor em Portugal a 1 de Março de 2010, que nos diz logo no artigo 1.º que impende sobre os Estados Contratantes a obrigação de entregar as pessoas que se encontrem nos respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujojulgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente;

X.     O artigo 3.º daquela Convenção dita que não haverá extradição nos casos vulgarmente conhecidos como de excepção, o que determina uma recusa definitiva de extradição e no acórdão recorrendo é feita alusão e decisão ao disposto no art.º 4.º, alínea e) daquela Convenção, dado por ser alegado na oposição a questão da revelia – mesmo que não absoluta - vem referido que “a extradição pode ser recusada se a pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente” ;

XI.    Em parte o Colendo Colectivo de juízes concordou com a defesa no que diz respeito à garantia de um processo justo e equitativo não poder ser expugarda de quaisquer processos de extradição, no entanto não existe coincidência de sentido no que concerne ao facto de a defesa continuar a considerar que não foram respeitadas todas as garantias de defesa do extraditando, pois é inequívoco que da instrução do pedido de extradição se retira que AA teria de ser pessoalmente, ou pelo seu mandatário, intimado pelo STJ Brasileiro no sentido de colmatar a lacuna verificada numa alegada cadeia (in)completa de substabelecimento;

XII.    Não ficou evidenciado nos autos que a certidão para saneamento de óbices tenha sido regulamente notificada ao requerido, ou ao mandatário subscritor do recurso, o que determinou liminarmente que o recurso fosse rejeitado – para além de o recurso ter sido remetido para o STJ Brasileiro por email, meio considerado como inidóneo para o efeito;

XIII.   Somos de parecer que o requerido, não teve conhecimento de todas as circunstâncias atinentes à sua condenação, dado que não foi notificado das diversas decisões e resultados das mesmas, nem tampouco dos vícios formais verificados, quer no que concerne à legitimidade do mandato do Advogado subscritor do recurso, quer no que se refere ao meio inidóneo para interposição de recurso perante o STJ Brasileiro, impossibilitando que tivesse acesso a uma defesa condigna;

XIV. Quando um condenado/arguido deixa de estar representado por advogado, em qualquer fase do processo, tem de ser informado de tal circunstancialismo, com vista a poder colmatar tais falhas e poderem ser afirmadas (ou não serem negadas) as suas garantias de defesa, embora no caso em apreço tal não tenha sucedido, pelo que, se nos permitem a ousadia, estamos perante uma situação análoga à revelia;

XV.    Bem sabemos que face ao princípio da legalidade criminal – quer no que concerne à lei de foro substantivo, quer no que concerne à lei de foro adjectivo –a analogia é inadmissível – nomeadamente por questões de reserva de lei -, contudo, estamos perante uma situação que será mais favorável ao agente, logo aplicável;

XVI.    Acresce ainda que o extraditando em momento algum deu mostras de se ter tentado eximir fosse do que fosse, nomeadamente através da sua apresentação voluntária no SEF para regularizar a situação migratória do seu agregado, só então tendo conhecimento (a 23 de fevereiro de 2023) da existência de uma red notice da Interpol;

XVII.  Face ao supra exposto, não concordamos – embora ressalvado o devido respeito que é muito - com o entendimento do Tribunal a quo pois continuamos com a convicção de que estamos perante uma situação de recusa facultativa, dado que AA ao não ter acesso a uma notificação que podia perigar a viabilidade da demonstração da sua inocência, viu ser-lhe retirado um momento imprescindível da sua defesa.

XVIII.   Ora, sendo obscura a cadeia de acesso à informação que permite a existência de um processo equitativo, revela-se que foram perigadas as suas garantias de defesa, subsumindo-se o entendimento do extraditando a uma situação de revelia, logo, de recusa facultativa de extradição, nos termos da al. e) do art.º 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP;

XIX.    O Tribunal a quo, referiu, e bem, que apenas em casos de recusa de extradição é que seria cogitada a possibilidade de cumprimento de pena em Portugal, não sendo aplicável ao caso em apreço antes de se verificar tal recusa, em virtude de ser um procedimento que cumpre uma metodologia diferente e que, tal como resulta do art.º 95.º, n.º 1, 96.º e 99.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto;

XX.     Mas de facto é relevante salientar que o requerido pretende cumprir a pena a que foi condenado em Portugal, caso a mesma tenha de facto transitado em julgado, dado que tem a sua esposa em Portugal e já estabeleceu uma vida condigna aqui, podendo retomá-la, uma vez que fosse libertado;

XXI.  Em suma, considera-se que estamos perante uma situação que em nada vai perigar as nossas relações diplomáticas com a República Federal do Brasil, uma vez recusado o pedido de extradição para pelos motivos supra enunciados – de cariz material e formal –, pelo que deverá AA cumprir a pena em que tiver sido condenado a título definitivo em Portugal e não no Brasil, nos termos conjugados de recusa al. a) do n.º 1 do art.º 6.º al. b) e g) do n.º 1 do art.º 23.º e al. c) do n.º 2 do art.º 44.º; n.º 2 e 3 do art.º 31.º, 95.º, 96.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, só assim se fazendo ao vossa acostumada

3. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«(…)

2.      O extraditando, ora recorrente, invoca, fundamentalmente, em termos conclusivos, três (3) ordens de razões, que o fazem discordar do decidido, que ora se indicam:

- a omissão de pronúncia;

- a revelia, enquanto causa de recusa facultativa de extradição;

- a possibilidade de cumprimento da pena em Portugal; (…)

4.     O extraditando, ora recorrente, começa por invocar, como questão prévia, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1-c) do Código do Processo Penal, ao ter desconsiderado o rol de testemunhas que apresentou no dia 21 de abril de 2023 (cf. fls. 150), fazendo menção apenas à testemunha que indicou com a oposição (cf. fls. 144 v.) e com o requerimento probatório de 21 de abril de 2023 (cf. fls. 292), considerando, ainda, que esta omissão, por ser relativa a diligências que considera profícuas para a sua defesa, será também fundamento da nulidade do acórdão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 118.º e 120.º, n.º 2-d) do Código do Processo Penal.

5.    Tenta a abrigar-se, de seguida, como motivo de recusa facultativa de extradição [cf. art. 4.º-e) da CPLP], numa suposta por violação das suas garantias de defesa, “análoga” à situação de revelia, em virtude de, alegadamente, não ter tido acesso a uma notificação que podia perigar a viabilidade da demonstração da sua inocência, dada a lacuna verificada na cadeia (in)completa de substabelecimento, em relação à qual não foi intimado a corrigir, retirando-lhe, assim, em sua opinião, um momento imprescindível da sua defesa.

6.    Pugna, a final, pelo cumprimento em Portugal da pena em que foi condenado, ao que se supõe, por estar social e profissionalmente inserido no nosso país e por querer furtar-se à estigmatização e ao tratamento desumano que diz existir nos estabelecimentos prisionais brasileiros. (…)

7.    O Tribunal a quo tratou a questão da inquirição das testemunhas, igualmente, como questão prévia, considerando tal diligência desnecessária, em virtude do pedido que os factos sobre quais iriam depor as testemunhas pretendiam sustentar não ser admissível (cumprimento da pena de prisão em Portugal), pelo que a sua realização, configurando um ato inútil, estaria, por esse motivo, vedada nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código do Processo Penal.

8.    É verdade que o Tribunal não se pronunciou expressamente sobre o requerimento probatório de fls. 150, relativo à inquirição de quatro (4) testemunhas que, embora residentes no nosso país, se supõe serem de nacionalidade brasileira.

9.    Todavia, estamos em crer que essa lacuna não será de todo suficiente para configurar a nulidade a que se reporta a omissão de pronúncia, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c) do Código do Processo Penal, pois é sabido que não constituirá omissão de pronúncia aquela omissão que se refira a questão cuja decisão haja ficado logicamente prejudicada pela solução dada a outras questões (cf. artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código do Processo Penal).

10. Conforme esclarece o próprio recorrente nas suas alegações recursórias, estas testemunhas de nacionalidade brasileira são seus colegas de trabalho em Portugal, em que os seus depoimentos visavam precisamente atestar a realidade brasileira, face à assimetria de condições que diz existir nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano presente nos mesmos, quer por parte da administração pública e/ou privada dos EPs, quer advinda dos restantes reclusos.

11. Ora, além das condições do sistema prisional brasileiro nunca antes terem sido invocadas, designadamente na oposição apresentada, parece-nos inequívoco que os motivos que levaram o Tribunal a quo a considerar supérflua a inquirição das testemunhas a que se referiu expressamente na decisão, aplicar-se-iam exatamente nos mesmos moldes à inquirição das testemunhas que não mencionou, pois também estas últimas serviriam para sustentar, justamente, o (mesmo) pedido (cumprimento da pena em Portugal) que o Tribunal considerou inadmissível.

12. Ou seja, a inquirição destas quatro testemunhas ficou logicamente prejudicada pela solução que o Tribunal a quo deu às demais inquirições requeridas.

13. Seja como for, dúvidas não restam que o objeto dos depoimentos de quaisquer das testemunhas indicadas – relativo essencialmente à situação familiar, pessoal e sócio profissional do requerido ou, no limite, sobre o sistema prisional brasileiro (que, repita-se, sem sequer foi invocado na oposição) – incidiria sobre factos (mesmo admitindo-os como provados) que, claramente, não têm qualquer relevância para a apreciação do pedido de extradição, porque relativos a circunstâncias que, manifestamente, não configuram, como iremos ver de seguida, fundamento que possa, no domínio do processo de extradição, obstaculizar ou impedir o deferimento da extradição com a sua entrega.

14. Pois bem, é sabido que apenas a omissão de ato que a lei prescreva como obrigatório pode consubstanciar a nulidade da al. d) do n.º 2 do art. 120.º do Código do Processo Penal. Já a omissão de diligências, nomeadamente de produção de prova cuja obrigatoriedade não resulte de lei, não dá origem a essa nulidade (neste sentido, Ac. do STJ de 23-05-2012 (processo n.º 687/10.6TAABF.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.).

15. As diligências que, na alegação do recorrente, deviam ter sido realizadas e não o foram não são meios de prova cuja produção seja legalmente imposta, razão pela qual a omissão da sua realização não acarreta a pretendida nulidade, na medida em que a apreciação da necessidade de realização dessas diligências, com vista a fundamentar o pedido de extradição será da competência exclusiva do Tribunal e da sua livre resolução, que não está vinculado ao requerido pelos intervenientes.

16. Trata-se, pois, de uma decisão proferida no âmbito do poder discricionário conferido ao Tribunal, tendo em vista a livre escolha quer da oportunidade, quer da solução a conferir ao caso concreto, dentro de uma certa finalidade. (…)

17. Dir-se-á que o recorrente, perante o Supremo Tribunal de Justiça, mais não faz do que repetir as questões que oportunamente suscitou perante o Tribunal da Relação de Coimbra, todas elas apreciadas de forma exaustiva e doutamente decididas no acórdão recorrido, em que nos revemos sem reserva, o que nos dispensaria de quaisquer considerações complementares.

18. Assim, considerando a que recusa facultativa de extradição, prevista no artigo 4.º, alínea e) da Convenção de Extradição CPLP, respeita, efetivamente, apenas à situação de o extraditando ter sido absolutamente alheio à realização do julgamento, sem ter conhecimento prévio do mesmo e sem ter constituído mandatário para sua representação, estamos em crer que as eventuais anomalias procedimentais no cumprimento do mandato judicial que se possa efetivamente surpreender, não serão ainda assim suficientes para considerar beliscadas as suas garantias de defesa.

19. Aliás, por mais dificuldades de comunicação que possam, na verdade, ter existido entre o extraditando e os seus advogados ou por mais reparos que a atuação destes possa na realidade merecer, certo é que os autos não documentam minimamente falhas ou erros tais que, sem colocar em causa a liberdade, autonomia e independência dos advogados, justificassem um qualquer tipo de controlo judicial na efetividade da defesa (técnica) do extraditando.

20. Conforme o explanado na decisão ora em crise, verifica-se que, no processo brasileiro, terão sido plenamente asseguradas todas as garantias de defesa do processo criminal, não só estando o extraditando assistido por advogado, como também se lhe proporcionou plenamente o direito de recorrer das decisões que lhe foram desfavoráveis, que o mesmo não deixou, aliás, de exercer, em mais de uma ocasião, ficando, por isso, salvaguardada a sua efetiva participação na formação das decisões que o foram afetando (direito de defesa).

21. No que toca à possibilidade de cumprimento da pena em Portugal (que, como referido, já constituía fundamento da oposição apresentada pelo extraditando), além da singela razão de carecer em absoluto de fundamento legal, como judiciosamente considerou a decisão ora em crise, mas considerando as razões agora apontadas nas alegações recursórias, relacionadas com as possíveis consequências que a extradição possa implicar para si e para a sua família, em função do cumprimento de uma pena de prisão no Brasil, onde diz existirem deficientes condições humanitárias, mais não nos resta, pela sua eloquência e acerto, do que remeter, por economia de tempo e não correr o risco de repetição, para o que foi decidido pelo Ac. STJ de 30-10-2013 numa situação com contornos similares aos dos presentes autos, cujo sumário é seguinte:

«I - A Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP e a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal não contemplam a possibilidade de substituição da extradição do recorrente pelo cumprimento em Portugal da pena que lhe foi imposta.

II - Ao contrário do que sucede com o n.º 2 do art. 18.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê, no seu art. 4.º, a possibilidade de recusa da extradição, quando esta possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal.

III - Mesmo o n.º 2 do art. 18.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, faz depender a denegação facultativa da extradição, não só das consequências que possa implicar para a pessoa visada, mas também de um juízo de ponderação de interesses entre a gravidade do facto criminoso e a gravidade das consequências da extradição.

IV - É de afastar a possibilidade de recusa da extradição quando a gravidade do facto, crime de tráfico de estupefacientes, traduzido notransportede10 kg de cocaína, assume significativo relevo criminal, enquanto que as alegadas consequências da extradição não consubstanciam lesão ou prejuízo grave para o recorrente, concretamente de grau superior àquele que esta medida de cooperação normalmente implica.

V - A Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP não prevê a possibilidade de recusa de extradição com fundamento no alegado funcionamento deficiente do sistema de justiça e do sistema prisional do Estado emissor do pedido de cooperação».

22. Este aresto desmonta, detalhadamente, o tipo de argumentação trazida pelo ora recorrente e bem evidencia, em termos lógico-racionais, a sua total falta de razão, com apelo aos pertinentes princípios que regulam toda a matéria da extradição.

23. Em conclusão, as razões apresentadas pelo extraditando, ora recorrente não constituem qualquer fundamento para a recusa de cumprimento do Pedido de Extradição e, não estando em causa qualquer vício, quer de natureza formal, quer de natureza substantiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso, nenhuma censura merece o acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra, que autorizou a extradição do recorrente AA, razão pela qual se entende que o mesmo deverá ser confirmado, improcedendo assim o presente recurso

4. Colhidos os vistos, o recurso foi à conferência, para julgamento – artigos 3.º, n.º 2, e 59.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP).


II. Fundamentação

5. Nas relações entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil em matéria de extradição é aplicável a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, de 15/09, também ratificada pela República Federativa do Brasil, onde entrou em vigor em 1.6.2009 (Aviso n.º 183/2011, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, DR 1.ª Série de 11.8.2011). Na falta ou insuficiência das normas da Convenção, são aplicáveis as disposições da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (artigo 3.º deste diploma).

Nos termos do artigo 1.º, os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

6. Ouvido, o extraditando não deu o seu consentimento à extradição e deduziu oposição, nos termos do artigo 55.º da Lei n.º 144/99. Dispõe este preceito que, após a audição do extraditando, o processo é facultado ao seu defensor ou advogado constituído para, em oito dias, deduzir por escrito oposição fundamentada ao pedido de extradição e indicar meios de prova admitidos pela lei portuguesa, sendo, porém, o número de testemunhas limitado a 10 (n.º 1), e que a oposição só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição (n.º 2).

Na oposição, alegou, em síntese, que foi julgado à revelia (na sua ausência), o que, nos termos do artigo 4.º, al. e), da Convenção, constitui motivo de recusa facultativa de extradição, em processo que não lhe proporcionou todas as garantias de defesa, que o processo se encontra afetado de “falhas formais que [o] tornam pouco claro, violando o princípio da legalidade”, e que, recusada a extradição, pretende cumprir a pena em Portugal “caso a mesma tenha transitado em julgado, dado que tem a sua esposa em Portugal” e se encontra integrado na sociedade portuguesa.

Juntou prova documental sobre a sua situação pessoal e pediu a inquirição de testemunhas.

7. A decisão do Tribunal da Relação assenta na seguinte fundamentação:

7.1. «II – Fundamentação de Facto

A - Questão prévia

Da inquirição das testemunhas:

O arguido, na sua oposição, veio juntar documentos e requerer a inquirição de uma testemunha (a sua mulher); posteriormente veio ainda adicionar uma testemunha ao rol.

Como se depreende dos requerimentos de prova, os depoimentos das testemunhas incidiriam sobre os factos alegados na oposição sob os números 37ª a 44ª, onde se invoca a sua inserção social, familiar e profissional em Portugal com os quais pretende o arguido sustentar o requerimento de cumprimento da pena em Portugal.

Ora para além de se aceitar a verificação daqueles factos (que decorrem das declarações prestadas pelo arguido - das quais não temos motivo para duvidar - e do documento junto aos autos), como veremos infra o pedido que esses factos pretendem sustentar – o cumprimento da pena de prisão em Portugal – não é admissível, pelo que, sob pena de se incorrer na prática de actos inúteis (art 13.0º do CPC), não será determinada a requerida inquirição.

Por outro lado, não havendo pelas razões mencionadas lugar a produção de prova, revela-se igualmente inútil o cumprimento do n.º 2 do art. 56.º da Lei 144/99, uma vez que o extraditando deduziu a referida oposição escrita e o Ministério Público pronunciou-se por escrito relativamente a essa mesma oposição apresentada pelo arguido, pelo que nada haverá a acrescentar, uma vez que a matéria de facto e de direito a considerar é a que já consta do requerimento inicial e da oposição – cfr. n.º 2 do art 56º da Lei 144/99, onde se refere que será dada novamente palavra a ambos para se pronunciarem “terminada a produção de prova”, que no caso não ocorreu.

B – Factos provados

a) As autoridades judiciárias da República Federativa do Brasil emitiram um pedido de detenção provisória de AA, com vista à sua extradição, para cumprimento das penas de 4 meses e 10 dias detenção, no regime aberto e 7 anos, 7 meses e 27 dias de reclusão em que foi condenado, na ... Vara de Violência Doméstica de .../... (Brasil), decisão transitada em julgado, não tendo o arguido estado presente no tribunal quando a sentença foi proferida.

b) O arguido foi ali condenado nas penas referidas em a) pela prática do crime de ofensas à integridade corporal ou saúde de outrem, p.p. nos termos do disposto no artigo 129.º - §9° do Código Penal Brasileiro e do crime de ofensas à integridade corporal ou saúde de outrem e tortura, p.p. nos termos do disposto no artigo 129.º-§1.º e 10° do Código Penal Brasileiro e do artigo 1.º, II, c/c, §4.º, II da Lei n.º 9455/1997, porquanto, no período compreendido entre 15 e 16 de dezembro de 2013, no interior da sua residência em .../..., abeirou-se da sua enteada, com quem vivia, que tinha apenas 5 anos de idade, e colocou-se intencionalmente por cima dela e pisou-lhe o abdómen, provocando rotura do seu intestino, causando-lhe direta e necessariamente lesões que a impossibilitaram de exercer as suas atividades habituais durante mais de 30 dias, e bem assim perigo para a sua vida. Também perto do dia 16 de dezembro de 2013, o arguido AA mordeu intencionalmente as nádegas da supra referida sua enteada, provocando-lhe hematomas, como forma de lhe infligir castigos pessoais, encostando-lhe, outrossim, uma colher quente na sua pele, causando-lhe direta e necessariamente queimaduras nos braços e mãos, que lhe produziu intenso sofrimento físico.

c) Ouvido no Tribunal da Relação de Coimbra em 24 de fevereiro de 2023, no âmbito do Processo n.º 51/23...., da ... Secção, foi a verificada e confirmada a detenção, que ainda se mantém.

d) Ao abrigo da «Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa»   (CPLP), assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2003 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 (publicada no DR, 1.ª série de 15 de setembro de 2008), com vista ao cumprimento da pena em que o requerido foi condenado no processo acima referido e a que se reporta o pedido de extradição anexo, a República Federativa do Brasil solicitou ao Estado Português a extradição do nacional brasileiro acima identificado.

e) O Pedido Formal de Extradição foi atempadamente apresentado às Autoridades Portuguesas, tendo Sua Excelência a Ministra da Justiça, por despacho de 30.03.2023, considerado admissível o pedido de extradição.

f) As Autoridades da República Federativa do Brasil enviaram garantias, sustentadas pela respetiva legislação interna, de que não submetem o extraditando a prisão ou processo por facto anterior ao pedido de extradição, de que irão computar o tempo da prisão que foi imposta por força a extradição; não entregarão o extraditando, sem consentimento do Estado requerido, a outro Estado que o reclame; não considerarão qualquer motivo político para agravar a pena; e não submeterão o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas desumanos ou degradantes.

g) Não se encontra atualmente pendente perante os Tribunais Portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando, por outros, ou pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

h) O extraditando após ter sido condenado nas penas referidas em a) pela ... Vara de Violência Doméstica de ..., recorreu para o Tribunal da Apelação, o qual confirmou a decisão de 1ª instância alterando apenas a decisão quanto ao modo de execução de uma das penas, e desta decisão interpôs embargos de declaração a qual aclarou a decisão de 2ª instância e retificou um erro material, e desta decisão interpôs ainda recurso para o S.T.J. do Brasil, o qual não admitiu o recurso

i) O requerido está social, familiarmente e profissionalmente inserido em Portugal

7.2. Fundamentação da decisão de facto:

“C - Motivação:

Documentos juntos aos autos pelo Ministério Público, designadamente, quanto ao trânsito em julgado e à tramitação do processo crime no S.T.J. do Brasil, fls. 165 a 174; quanto ao mandado de prisão, fls. 175; quanto ao pedido de extradição e às garantias oferecidas, fls. 177, 178; quanto aos factos relativos à sentença de 1ª instância, fls. 71 a 104; quanto aos factos relativos ao recurso da sentença de 1ª instância e aos embargos de executado fls. 105 a 115; quanto à audição do extraditando neste tribunal da Relação de Coimbra fls. 128 a 131.

Quanto ao facto relativo à reinserção social e laboral do extraditando documento fls. 151 a 161, e fls. 130.»

Objeto e âmbito do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 1.ª instância – artigo 12.º, n.º 3, al. c), do CPP e 73.º, al. d), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto –, em decisão final do processo judicial de extradição, a que é subsidiariamente aplicável o Código de Processo Penal, com as especificidades previstas nos artigos 58.º e 59.º do Lai n.º 144/99, de 31 de agosto (artigos 229.º do CPP e 3.º, n.º 3, e 49.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99).

Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não vêm invocados.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).


9. O acórdão recorrido verificou, como se viu, os pressupostos positivos e negativos de que depende a extradição, nos termos dos artigos 1.º (obrigação de extraditar), 2.º (factos determinantes da extradição), e 3.º (inadmissibilidade da extradição) desta Convenção, não se suscitando, a este respeito, qualquer questão que deva ser conhecida.

Das conclusões da motivação (supra, 2) extrai-se que são as seguintes as questões colocadas pelo recorrente à apreciação e decisão deste tribunal:

(a) nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a “realidade brasileira, face à assimetria de condições nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano existente nos mesmos”, à “sobrelotação” desses estabelecimentos e aos “castigos corporais” e outros tratamentos violentos, bem como aos riscos para a vida por ação de outros reclusos, por o tribunal a quo ter desconsiderado as quatro testemunhas indicadas a 10 de abril de 2023 com o objetivo de, através do seu depoimento, provar essa “realidade” prisional (conclusões II a VIII);

(b) condenação à “revelia”, no Estado requerente, pelas infrações que dão lugar ao pedido de extradição, o que constitui motivo de recusa facultativa de extradição, nos termos da al. e) do artigo 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) (conclusões IX a XVIII);

(c) pretensão de cumprimento da pena em Portugal (conclusões XIX a XXI).

a) Quanto às alegadas condições das prisões no Estado requerente

10. Como resulta do anteriormente exposto, o extraditando não suscitou, na oposição, a questão que agora pretende ver decidida em recurso. Ao que se depreende, veio posteriormente pedir a inquirição de quatro testemunhas para fazer prova da “realidade” das prisões brasileiras, com o objetivo de ver recusada a extradição e, em consequência, ser ordenado o cumprimento da pena de prisão em Portugal.

11. Como se viu, o artigo 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 apenas admite oposição à extradição com fundamento em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição, sendo os meios de prova a apresentar os destinados à comprovação destes fundamentos (n.º 1).

Sem prejuízo de a alegação dever ser considerada, a prova das más condições das prisões no Estado requerente não constitui ónus imposto ao extraditando.

A produção de prova sobre as condições prisionais não se inscreve na comprovação da não verificação dos pressupostos da extradição, os quais se relacionam com a medida da pena a cumprir – pena de duração superior a um ano –, com os motivos de inadmissibilidade (recusa obrigatória) de extradição – pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física, crime político ou crime com ele conexo, crime militar, amnistia, perdão, julgamento por tribunal de exceção ou prescrição do procedimento ou da pena – ou com os motivos de recusa facultativa de extradição – nacionalidade da pessoa reclamada, pena ou medida de segurança com caráter perpétuo ou de duração indeterminada, ne bis in idem, inimputabilidade em razão da idade ou condenação à revelia (artigos 2.º, 3.º e 4.º da Convenção).

Assim sendo, não constituindo objeto de prova a produzir pelo extraditando, não pode, por este motivo, como pretende o recorrente, considerar-se o acórdão recorrido ferido da alegada nulidade por omissão de pronúncia quanto à pretensão do recorrente.

12. A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação e graves deficiências de organização e funcionamento pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, nas relações entre Estados, reguladas por normas de direito internacional público que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, na medida em que constituam ou apresentem sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante.

A proteção da pessoa contra estas formas de tratamento, quer internamente, quer nas relações com outros Estados, no âmbito da extradição, encontra-se especificamente garantida no artigo 7.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (ONU, Nova Iorque, 1966), que constitui um tratado de âmbito universal, de que a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil são Estados-Partes[1]; no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos, de que o Brasil é Estado-Parte[2]; no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), ratificada por Portugal[3]; nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, de 2002, em vigor no Brasil[4]e em Portugal[5]; na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), em vigor no Brasil[6], e na  Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987)[7], bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros de 1995 e as “Regras de Nelson Mandela” (2015)[8].

Dispõem o artigo 7.º do PIDCP: “Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes”.

E o artigo 3.º da CEDH: “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”.

E o artigo 3.º da Convenção contra a Tortura (Nações Unidas, 1984):

“1 - Nenhum Estado parte expulsará, entregará ou extraditará uma pessoa para um outro Estado quando existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura.

2 - A fim de determinar da existência de tais motivos, as autoridades competentes terão em conta todas as considerações pertinentes, incluindo, eventualmente, a existência no referido Estado de um conjunto de violações sistemáticas, graves, flagrantes ou massivas dos direitos do homem.”

Lê-se no Comentário n.º 20 (n.º 9), do Comité dos Direitos Humanos, ao artigo 7.º do PIDCP, que “os Estados têm a obrigação de não extraditar a pessoa no caso de, por virtude da extradição, esta ser exposta ao risco de tratamentos desumanos ou degradantes”.

Os Estados-Partes da CEDH são responsáveis pela violação dos direitos consagrados na Convenção se a extradição representar um risco real e grave de sujeição da pessoa a tratamentos desumanos ou degradantes inerentes às condições das prisões.

13. De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta. Como resultado, a extradição de uma pessoa por um Estado Contratante pode, sob esta disposição, envolver a responsabilidade do Estado em questão nos termos da Convenção, quando houver motivos sérios para acreditar que, se a pessoa for extraditada para o país requerente, corre o risco real (não bastando a simples possibilidade – assim, acórdão Vilvarajah c. Reino Unido) de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 3.º; esta disposição impõe uma obrigação de não extraditar ou expulsar a pessoa para esse país, não fazendo o TEDH distinção entre estes dois procedimentos. Para além disso, o TEDH não estabelece qualquer distinção entre as várias formas de tratamento previstas no artigo 3.º para efeitos de avaliação do risco (Harkins and Edwards c. Reino Unido, 2012, § 120; Trabelsi c. Bélgica, 2014, § 116)[9].

No caso Romeo Castaño c. Bélgica (n.º 8351/17, de 9.10.2019), seguindo jurisprudência de há muito estabelecida, o TEDH voltou a sublinhar, agora no contexto da execução de um mandado de detenção europeu (MDE) (Decisão-Quadro 2002/584/JAI, que substituiu as convenções de extradição anteriormente aplicáveis), que, do ponto de vista da Convenção, um risco de tratamento desumano e degradante da pessoa cuja entrega é pedida pode constituir um motivo legítimo de recusa de entrega, por causa das condições de detenção no Estado de emissão do MDE[10].

14. O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos, não sendo suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor asseguram a proteção da pessoa – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco  [cfr., entre outros, os acórdãos Chahal c. Reino Unido (1996), Saadi c. Itália (2008), Ismoilov c. Russia (2008) e Ilias e Ahmed c. Hungria, n.º 47287/15, de 21.11.2019[11], do TEDH].

Como o Tribunal declarou no caso Garabayev c. Russia (n.º 38411/02, de 7.7.2007, §§ 77-83), quando as autoridades do Estado requerido têm informação indicando que existe um risco real de tratamento desumano no Estado requerente, essas autoridades têm o dever de efetuar uma avaliação adequada (“proper assessment”) da situação e não devem entregar a pessoa, a não ser que tenham tomado medidas suficientes para contrariar esse risco. Estando demonstrado que o Estado requerido, estando na posse de informação de que existia um real risco de tratamento desumano, extraditou a pessoa sem proceder a essa avaliação e sem tomar medidas tais como obter garantias do Estado requerente, o Tribunal concluiu existir uma violação, pelo Estado requerido, do artigo 3.º da CEDH[12].

O caso Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido (n.º 8139/09, de 9.5.2012, §§ 187-189), oferece uma síntese dos critérios de avaliação da qualidade e de aplicação prática das garantias refletidos na jurisprudência do TEDH[13], tendo em conta, nomeadamente, a entidade que emite a garantia, a sua posição institucional, a força vinculativa da garantia, o seu conteúdo, o quadro legal de proteção contra a tortura e os maus tratos e a prática do Estado requerente neste domínio, as circunstâncias do caso e da pessoa, as possibilidades de verificação e controlo do cumprimento e o direito de acesso a um tribunal.

15. A interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, enunciada em termos lapidares e semelhantes pelos grandes instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, contém uma proibição absoluta, insuscetível de restrições e derrogações, que, segundo o TEDH, “consagra um dos valores fundamentais das sociedades democráticas” (caso Soering, § 88). No contexto da detenção, o TEDH reconhece o “direito de todo o prisioneiro a ser detido em condições compatíveis com a dignidade humana” (Kudla c. Polónia, 26.10.2000, § 94).

Esta proibição absoluta confere às normas de proteção contra a tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes a natureza de normas imperativas de direito internacional geral, normas de jus cogens, cuja derrogação não é permitida, com a força que lhe confere o artigo 53.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969)[14]. Trata-se de normas a que são reconhecidos efeitos supralegais, que produzem um efeito dissuasor, no sentido de assinalarem aos estados e às pessoas que a proibição nelas contida consagra valores absolutos que não admitem desvio [Tribunal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY), caso Furundzija, §§ 154-157][15].

O artigo 3.º é da CEDH é, pois, reconhecidamente, uma norma de jus cogens ou de ordem pública internacional, cuja violação justifica a recusa de extradição a que um Estado está obrigado por força de um tratado[16].

16. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, referente à interpretação e aplicação do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que corresponde ao artigo 3.º da CEDH[17] (artigo 52.º, n.º 3, da Carta[18]), tendo em conta a jurisprudência do TEDH, sintetiza as obrigações de verificação do cumprimento das obrigações decorrentes destes preceitos, no âmbito do MDE (correspondente à extradição) nos seguintes termos (transcrição parcial da fundamentação do processo C‑220/18 PPU, ML, de 25 de julho de 2018):

“59. (…) quando a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução dispõe de elementos que comprovam um risco real de tratamento desumano ou degradante das pessoas detidas no Estado‑Membro de emissão, à luz do padrão de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União e, em especial, do artigo 4.º da Carta [3.º da CEDH], deve apreciar a existência desse risco no momento de decidir sobre a entrega às autoridades do Estado‑Membro de emissão da pessoa a que o mandado de detenção europeu diz respeito. Com efeito, a execução desse mandado não pode conduzir a um tratamento desumano ou degradante dessa pessoa (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 88).

60. Para este efeito, a autoridade judiciária de execução deve, antes de mais, basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados quanto às condições de detenção nos estabelecimentos prisionais do Estado‑Membro de emissão que demonstrem a realidade das deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção. Estes elementos podem resultar, designadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de decisões judiciais do Estado‑Membro de emissão e de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou pertencentes ao sistema das Nações Unidas (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 89).

61. Todavia, a constatação da existência de um risco real de tratamento desumano ou degradante em razão das condições gerais de detenção no Estado‑Membro de emissão não pode conduzir, enquanto tal, à recusa da execução de um mandado de detenção europeu. Com efeito, a mera existência de elementos que atestem deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção, no que respeita às condições de detenção no Estado‑Membro de emissão, não implica necessariamente que, num caso concreto, a pessoa em causa seja sujeita a um tratamento desumano ou degradante em caso de entrega às autoridades desse Estado‑Membro (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.ºs 91 e 93).

62. Assim, para garantir o respeito do artigo 4.º da Carta no caso particular de uma pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária de execução, que é confrontada com elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que atestem a existência dessas deficiências, deve verificar, em seguida, de maneira concreta e precisa, se, nas circunstâncias do caso, existem motivos sérios e comprovados para considerar que, no seguimento da sua entrega a esse Estado‑Membro, essa pessoa correrá um risco real de ser sujeita, nesse Estado‑Membro, a um tratamento desumano ou degradante, na aceção deste artigo, em razão das condições de detenção que se prevê aplicar‑lhe no Estado‑Membro de emissão (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 92 e 94). (…)

65. Se, à luz das informações fornecidas  (…) bem como de quaisquer outras informações de que a autoridade judiciária de execução disponha, esta autoridade concluir que existe, relativamente à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu, um risco real de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta, a execução desse mandado deve ser adiada mas não pode ser abandonada (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 98).

78. (…) a análise que essas autoridades são obrigadas a efetuar, atento o seu caráter concreto e preciso, não pode ser sobre as condições gerais de detenção existentes no conjunto dos estabelecimentos prisionais desse Estado‑Membro em que a pessoa em causa poderá ficar detida. (…)

111. A garantia fornecida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão de que a pessoa em causa não sofrerá tratamentos desumanos ou degradantes devido às condições concretas e precisas de detenção seja qual for o estabelecimento prisional onde ficará encarcerada no Estado‑Membro de emissão é um elemento que a autoridade judiciária de execução não pode ignorar. Com efeito, (…) a violação desse compromisso, que vincula o seu autor, poderá ser invocada contra ele perante os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão.”

17. Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais, nos quais se incluem, em particular, os do Comité e do Subcomité para a Prevenção da Tortura, instituídos pela Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e respetivo Protocolo Facultativo, de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio.

18. As recentes observações e recomendações do Comité contra a Tortura (Nações Unidas), produzidas na sequência da avaliação (2020-2023[19]) do segundo relatório do Brasil sobre a aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes[20] são, neste contexto, de atual e decisiva importância.

Apesar de notarem aspetos positivos na situação das prisões e os esforços que estão a ser feitos nesse sentido, nomeadamente através da promoção das “Regras de Nelson Mandela”,  reportados pelo Estado Brasileiro, as observações dão nota de que o sistema penitenciário brasileiro enfrenta sérios desafios, em particular no que se refere a sobrelotação e violência no interior da maioria dos estabelecimentos prisionais, deficiências sérias nas condições sanitárias e de higiene e de acesso a cuidados de saúde, tendo o Comité produzido um conjunto considerável de recomendações para se ultrapassarem essas dificuldades.

Lê-se nestas “Observações conclusivas”:

“Condições de detenção

21. Conforme reconheceu a delegação, o sistema penitenciário brasileiro enfrenta enormes desafios. O Comité toma nota dos esforços feitos pelo Estado Parte para reduzir a sobrelotação nas prisões, pois isso melhora as condições de detenção. No entanto, o Comité continua profundamente preocupado com os relatos de sobrelotação na grande maioria das prisões do Estado-Parte e com a taxa geral muito alta de encarceramento, inclusive em prisão preventiva, por delitos relacionados com drogas, em particular de jovens afro-brasileiros homens e mulheres. Está seriamente preocupado com a falta de medidas efetivas para abordar as causas profundas das taxas desproporcionais de encarceramento de afro-brasileiros, incluindo sobrepoliciamento, discriminação racial, discriminação racial sistémica dentro das agências de aplicação da lei e outras instituições envolvidas na administração da justiça e políticas que criminalizam a posse de drogas. Além disso, o Comité está preocupado com relatos de acordos de autogoverno, possibilitados pela falta de agentes de segurança em muitas das prisões do país, tumultos frequentes que resultam em mortes, violência entre os presos e medidas de segurança inadequadas em algumas prisões. Além disso, está preocupado com atos de corrupção cometidos por agentes penitenciários e outros funcionários penitenciários. Além disso, o Comité está preocupado com relatos de: (i) terríveis condições de detenção, incluindo a situação de mulheres, menores, pessoas com deficiência e lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros (LGBT), na maioria dos estabelecimentos prisionais, que carecem de higiene e serviços sanitários, ventilação e luz natural, acesso a água potável e quantidade suficiente de alimentos adequados; (ii) falha em separar efetivamente pessoas condenadas ou aguardando julgamento; (iii) a insuficiência dos programas de reabilitação e reinserção social; (iv) acesso insuficiente a cuidados médicos, em particular para pessoas privadas de liberdade com doenças crônicas ou sintomas da doença de coronavírus (COVID-19), consumidores de drogas e pessoas com deficiência intelectual e/ou psicossocial e falta de pessoal médico, medicamentos e equipamentos médicos. Por último, o Comité está preocupado com relatos de agressão e violência sexual em centros de detenção, com uma incidência particularmente alta no caso de mulheres detidas (arts. 2, 11 e 16).”[21]

19. Este relatório, pela caraterização que faz das condições das prisões no Estado requerente, constituiria, por si, motivo suficiente para que, na observância de normas e obrigações comuns de direito internacional, anteriormente mencionados, de proteção contra a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes, se solicitassem garantias – que, na sua dimensão jurídica, devendo ser tidas em devida conta, relevam do princípio da boa fé, que preside à aplicação e observância de tratados entre os Estados  (artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados[22]), podendo constituir fundamento de responsabilização dos Estados – de que a pessoa procurada, uma vez  entregue, não será sujeita nem correrá o risco real de ser sujeita a esse tipo de tratamento no interior da prisão, para cumprimento da pena.

Sucede, porém, que, como consta da matéria de facto provada, “As Autoridades da República Federativa do Brasil enviaram garantias, sustentadas pela respetiva legislação interna, de que (…) não submeterão o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas desumanos ou degradantes.”

Estas garantias, de natureza genérica, baseadas no direito interno, não podem deixar de, nessa base, ser entendidas como um compromisso do Estado requerente de cumprimento das obrigações que lhe são impostas pelos instrumentos de proteção contra a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes.

Porém, não se mostra que o tribunal recorrido tenha emitido qualquer juízo sobre tais garantias, que tenha procedido à sua “adequada avaliação”, em concreto, e que tenha concluído pela sua suficiência, para que possa ser ordenada a extradição.

Com efeito, como anteriormente se referiu, o risco de tratamento da pessoa na prisão em violação do artigo 3.º da CEDH (e do artigo 7.º do PIDCP) obriga o Estado requerido a fazer uma avaliação adequada desse risco, adotando as medidas necessárias à sua prevenção, nomeadamente, se for caso disso, solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias (concretas) de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco. Como se sublinhou, não se mostra suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal do Estado requerente, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor nesse Estado asseguram a proteção da pessoa.

Pelas razões expostas, impõe-se que seja feita esta avaliação pelo tribunal recorrido, levando, nomeadamente, em conta o teor das “observações conclusivas” acima transcritas.

Ao não efetuar esta avaliação, o tribunal deixou de pronunciar-se sobre uma questão que devia apreciar, essencial à decisão final sobre a extradição.

O que constitui a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que não pode ser suprida por este tribunal em sede de recurso.

A verificação desta nulidade obsta ao conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III. Decisão

20. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar a nulidade do acórdão recorrido, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, devendo este ser substituído por outro que, suprindo a nulidade verificada, mediante pedido de informações complementares ao Estado requerente, se for caso disso, avalie a suficiência das garantias prestadas em vista da efetiva proteção, na prisão, da pessoa procurada contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos aplicáveis, em virtude das condições prisionais, nomeadamente das descritas nas “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura, das Nações Unidas, em resultado da avaliação do relatório de aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Nações Unidas, 1984), de abril de 2023, bem como das demais questões que, nessa conformidade, devem ser apreciadas, pronunciando-se a final sobre o deferimento ou não do pedido de extradição, em função das conclusões alcançadas.

Sem custas (artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).


Supremo Tribunal de Justiça, 31 de maio de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Teresa de Almeida

Maria Teresa Féria de Almeida

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[1] Ratificado por Portugal pela Lei n.º 29/78, de 12/06, e pelo Brasil, pelo Decreto n.º 592, de 6.7.1992 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm). 
[2] Convenção Americana dos Direitos Humanos, San José, Costa Rica, 1969, a que o Brasil aderiu em 25.9.1992 (Decreto n.º 678, de 6.11.1992, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm).
[3] Ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13/10.
[4]Decreto n.º 40, de 15.2.1991, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm, e Decreto n.º 6.085, de 19.4.2007, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm.
[5] RAR n.º 11/88, de 21/05, e DPR n.º 57/88, de 20/07, e RAR n.º 143/2012, de 13/12, e DPR n.º 167/2012, de 13/12.
[6] Decreto n.º 98.386, de 9 de Dezembro de 1989 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm).
[7] Ratificada por Portugal (RAR n.º 3/90, de 30/01, e DPR n.º 8/90, de 20/02).
[8] Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, Resolução 70/175 da Assembleia-Geral, anexo, adotada a 17 de dezembro de 2015, em anexo (https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/SMRbrochures/Pt_16x24_ebook_final.pdf).
[9] “Guide on the case-law of the European Convention on Human Rights - Prisoners’ rights, European Court of Human Rights”, prepared by the Registry, updated on 31 August 2022, https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Prisoners_rights_ENG.pdf. Cfr. também “Guide on Article 3 of the European Convention on Human Rights - Prohibition of torture”, prepared by the Registry, updated on 31 August 2022, https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_3_ENG.pdf.
[10] No original: “(…) the Court emphasises that, from the standpoint of the Convention, a risk to the person whose surrender is sought of being subjected to inhuman and degrading treatment on account of the conditions of detention in Spain may constitute a legitimate ground for refusing execution of the European arrest warrant and thus for refusing cooperation with Spain” (§ 85).
[11] Harris, O’Boyle e Warbrick, Law of the European Convention on Human Rights, Oxford University Press, 2nd Edition 2009, pp. 79-91.
[12] Id. ibid. p. 86.
[13] Sobre este ponto podem ainda ver-se os acórdãos dos casos Shamayev c. Reino Unido, de 15.11.1996, e Mamatkulov e Askarov c. Turquia, de 6.2.2009).
[14] RAR 67/2003 e DPR 46/2003, de 7 de agosto. Artigo 53.º: “Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza”.
[15] Cfr. Informe de la Comisión de Derecho Internacional, Nações Unidas, Capítulo V - Normas imperativas de derecho internacional general (ius cogens), https://legal.un.org/ilc/reports/2019/spanish/chp5.pdf e Antonio Cassese, International Law, 2nd Edition, Oxford University Press, Nova Iorque, 2005, pp. 207-208, 211.
[16] Como o Institut de Droit International fez refletir numa resolução de 1983 (60 Annuaire Part II, 306), a possível violação de uma norma imperativa, como uma norma contra a tortura, autoriza o Estado a não cumprir a obrigação de extraditar uma pessoa, em https://www.idi-iil.org/app/uploads/2018/06/1984_vol_60-II_Session_de_Cambridge.pdf.
[17] O direito consagrado no artigo 4.º é o direito garantido pelo artigo 3.º, de igual teor, da CEDH (Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, a que se refere o artigo 6.º do TUE, Jornal Oficial da União Europeia, C 303, de 14.12.2007).
[18] Artigo 52.º, n.º 3, da Carta: “Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. (…)”.
[19] A avaliação da aplicação da convenção decorreu entre 2020 e 2023, encontrando-se toda a informação disponível na internet, no site do Comité, em https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/SessionDetails1.aspx?SessionID=2627&Lang=en.Como se pode observar, os aspetos referentes às condições nas prisões constituíram um dos pontos fundamentais das questões colocadas pelo Comité e das observações de diversas organizações da sociedade civil, como se pode ver pelo “Alternative report to the second periodic review of Brazil before the United Nations Committee against Torture and other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment”, apresentado por cinco organizações - The National Agenda for Decarceration,  Conectas Human Rights,  Justiça Global, Pastoral Carcerária e World Organisation Against Torture (OMCT) (https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=INT%2FCAT%2FCSS%2FBRA%2F52171&Lang=en) e pelo “Joint Report of Brazilian Society”, apresentado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, SMDH Em defesa da vida, Pastoral Carcerária, Comissão ARNS, Associação de Familiares de Presos de Rondônia e Assessoria Popular Maria Felipa (https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=INT%2FCAT%2FCSS%2FBRA%2F52420&Lang=en).
[20] Nações Unidas, 19 e 20 de Abril de 2023, https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CAT%2FC%2FBRA%2FCO%2F2&Lang=en.
[21] No original, em inglês:
“Concluding observations (…)
Conditions of detention
21. As the delegation acknowledged, the Brazilian penitentiary system faces enormous challenges. The Committee takes note of the efforts made by the State party to reduce overcrowding in prisons, as this improves the conditions of detention. However, the Committee remains deeply concerned at reports of overcrowding in the vast majority of the prisons in the State party and about the overall very high rate of incarceration, including in pretrial detention, for drug-related offences, in particular of Afro-Brazilian young men and women. It is seriously concerned by a lack of effective measures to address the root causes of the disproportionate incarceration rates of Afro-Brazilians, including overpolicing, racial profiling, systemic racial discrimination within law enforcement agencies and other institutions involved in the administration of justice and policies that criminalize drug possession. Moreover, the Committee is concerned about reports of self-rule arrangements, made possible by the lack of custodial staff in many of the country’s prisons, frequent riots resulting in fatalities, violence among inmates and inadequate security measures in some prisons. It is further concerned about acts of corruption by prison officers and other prison staff. Furthermore, the Committee is concerned by reports of: (i) appalling conditions of detention, including the situation of women, minors, persons with disabilities and lesbian, gay, bisexual and transgender (LGBT) persons, in most correctional facilities, which lack hygiene and sanitation services, ventilation and natural light, access to drinking water and sufficient amounts of suitable food; (ii) a failure to effectively separate persons on or awaiting trial from convicted persons; (iii) the insufficiency of rehabilitation and social reintegration programmes; (iv) insufficient access to medical care, in particular for persons deprived of their liberty who have chronic diseases or coronavirus disease (COVID-19) symptoms, drug users and persons with intellectual and/or psychosocial disabilities, and a lack of medical personnel, medicines and medical equipment. Lastly, the Committee is concerned about reports of assault and sexual violence in detention facilities, with a particularly high incidence in the case of detained women (arts. 2, 11 and 16).”
[22] Supra, 14 – artigo 26.º (Pacta sunt servanda): “Todo o tratado em vigor vincula as partes e deve ser por ela cumprido de boa fé”.