HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDAS CAUTELARES E DE POLÍCIA
DETENÇÃO
CONVERSAS DO SUSPEITO / ARGUIDO COM OS OPCS
RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
PROVA PROIBIDA
MEDIDA DA PENA
AVALIAÇÃO DO DANO DA PERDA DA VIDA
Sumário


I- As conversas mantidas com o arguido, após a constituição como tal, e cumprido o dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquela constituição (cf., v.g., arts. 58.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), do CPP), assumiram os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados (as diligências são reduzidas a auto – art. 275.º, n.º 1, do CPP).
II- As demais conversas ocorridas no local foram-no na fase inicial de recolha de prova e sua preservação, no âmbito das diligências iniciais necessárias para indagação dos factos necessários para a elaboração do auto de notícia.
III- As forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser constituídos arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, desde que não haja culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição, como aconteceu no caso vertente.
IV- Nenhuma norma legal ou princípio processual impõe que a reconstituição do facto seja obrigatoriamente ordenada ou autorizada por despacho de autoridade judiciária.
V- A alegada ausência de auto, e posterior validação por parte da autoridade judiciária competente, de apreensão a determinar a junção aos autos do DVD das imagens obtidas através de uma câmara de vigilância existente na moradia da vítima , preencherá um vício estritamente processual, vício que, não estando previsto como nulidade, só pode, nos termos do art. 118º, nºs 1 e 2, do CPP, constituir irregularidade. Por isso, para ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 do art. 123º, do mesmo diploma legal. Nunca em sede de recurso.
VI- O facto da decisão recorrida ter considerado o conteúdo de um vídeo obtido através de uma câmara existente na moradia da vítima, não deve considerar-se meio de prova proibida, nos termos do referido art. 126º, n.º 3, do CPP, porquanto a captação de imagens por ela efetuada não constitui a prática de um crime de fotografias ilícitas, tal com p. e p. pelo art. 199º, n.º 3, do Código Penal citado.
VII- Conforme constitui jurisprudência praticamente uniforme e reiterada não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, constituindo o único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado.
VIII- Comete o crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2 al. b) do CP o arguido que mata a mulher com quem partilhou vida em comum durante um período de vida bastante extenso, à volta de 12 anos, e que só havia cessado há 2 meses atrás;
IX- E em que revelou um espírito egoísta, revanchista, de inconformismo perante uma situação de rutura dessa relação, que jamais aceitou, e que, alimentado por um sentimento manifestamente possessivo relativamente à pessoa da vítima, perante notícias, não confirmadas, de que a mesma estaria na iminência de refazer a sua vida junto de outra pessoa, o levou a assumir a atitude que culminou na morte daquela.
X- Não olvidando também a violência atroz, a forma bárbara como o arguido matou a mulher, colocando-a numa situação de agonia e sofrimento durante vários minutos, com certeza percecionando que iria morrer, período durante o qual poderia perfeitamente ter cessado a agressão e desistido dos seus intentos. Assim não aconteceu, persistiu na intenção de retirar a vida à vítima, comprimindo as suas mãos à volta do pescoço desta até que deixou de respirar, estrangulando-a.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo, com o NUIPC 813/22...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Criminal – Juiz ..., o arguido  AA estava acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2, alíneas b), e)  e j) Cód. Penal1, e art. 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (RJAM), e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 2, ab) e 86.º, n.º 1, d), do RJAM.
O Ministério Público requereu o arbitramento de indemnização a favor dos filhos de BB.
CC, DD e EE, na qualidade de filhos da vítima, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido, por danos não patrimoniais, no valor de € 210.000,00.

*
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“(…)
Pelo exposto, os juízes que compõem este tribunal colectivo julgam a acusação procedente por provada e, em consequência:
- condenam o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b), Cód. Penal, e 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, condenam o mesmo arguido na pena única e efectiva de 19 (dezanove) anos e 2 (dois) meses de prisão;
- determinam a recolha de ADN do arguido AA, a fim de o seu perfil integrar a base de dados prevista na Lei n.º 5/2008, de 2 de Fevereiro;
- mais condenam o arguido nas custas da parte crime, com 4 UC de taxa de justiça;
- determinam o cumprimento do art. 186.º, n.º 3, Código de Processo Penal, nas pessoas dos demandantes, quanto ao telemóvel “...” apreendido nos autos;
- julgam o pedido de indemnização civil parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenam AA a pagar aos demandantes CC, DD e EE a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
As custas do pedido de indemnização civil ficarão a cargo de demandado e demandantes, na proporção do respectivo decaimento.
Nos termos do art. 213.º, n.º 1, b), Cód. Proc. Penal, por se mostrarem inalteráveis – e até reforçados pelo teor do presente acórdão – os pressupostos de facto e de direito que deram lugar à aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido, determina-se, sem necessidade de audição deste, que o mesmo continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos a tal medida (art. 215.º, n.º 1, d), e n.º 2, Cód. Proc. Penal).
Recolha o arguido ao estabelecimento prisional.
Boletins à Identificação Criminal.
Notifique, deposite e, após trânsito, envie cópia à DGRSP.”
*
2. Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu do acórdão, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
“(…)
«CONCLUSÕES:
DAS CONCLUSÕES:
1. O arguido vinha acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), e) e j) do Código Penal (doravante designado por CP) e artigo 86º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e ainda, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3º n.º 2 ab) e artigo 86º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2. O presente recurso tem por objeto o acórdão condenatório proferido em 04/01/2023, que o condenou pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, n.º 1 e n.º 2, alínea b) do CP e artigo 86º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de (19) dezanove anos de prisão; e ainda, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão. Em cúmulo jurídico, condenam o mesmo arguido na pena única e efetiva de 19 (dezanove) anos e 2 (dois) meses de prisão.
3. Não se podendo conformar nem compadecer com tal Acórdão, é sobre este que recai o presente recurso, pois, com o devido respeito que é muito, entende o Arguido que, compulsados os autos, e face à análise de todos os factos e provas (ou ausência destas) constantes dos mesmos, o Digníssimo Tribunal a quo, deu como provados determinados factos, incorretamente, e não deu como provados outros, como se lhe impunha, bem como não interpretou e aplicou acertadamente o Direito.
4. A decisão recorrida não se harmoniza com os factos apurados e o direito a estes aplicável.
5. A prova correspondente às imagens de videovigilância que se encontram no DVD junto aos autos correspondentes ao auto de transcrição a fls. 268 a 275, e outras subsequentes a esta são prova inválida, proibida, e que o tribunal não podia ter tomado em consideração para o efeito de condenação.
6. É prova que foi carreada para o processo como reprodução mecânica via armazenamento em cartão de memória.
7. O artigo 167º do CPP, refere que: “1- As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo eletrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas SE NÃO FOREM ILÍCITAS, nos termos da lei penal.
2- Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro.” – sublinhado e negrito nosso.
8. As provas que não obedecerem ao disposto no título III daquele livro, consideram-se ilícitas.
9. À prova em causa é-lhe obrigatoriamente aplicável o disposto nos artigos 178º e seguintes do CPP, isto é, com referência às apreensões, na medida em que, para a referida prova ser carreada para os autos era necessário que fosse validamente obtida, neste caso, mediante a referida apreensão.
10. O artigo 178º n.º 1 do CPP que: “1- São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e, bem assim todos os animais, coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. (…) 3- As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária. (…)”.
11. Os OPC devem elaborar um Auto de Apreensão que deve ser assinado pelo OPC e pelo detentor dos objetos apreendidos.
12. No caso em concreto, o OPC solicitou ao possuidor que fizesse chegar ao processo os dados informáticos, o que o fez corporizados em reproduções mecânicas, através de um cartão de memória.
13. Em sede de Inquérito, no dia 24-03-2022, foi inquirido DD, filho da vítima, enquanto testemunha no Processo, conforme fls. 222 e seguintes, e, após lhe ter sido solicitado, forneceu à Polícia Judiciária do Departamento de Investigação de ... um cartão de memória do sistema de videovigilância que estava instalado na porta de entrada da habitação de BB, na Rua ..., Lugar ... – Freguesia ... – ....
14. Como consta do Auto de Inquirição a fls. 222 e ss., parágrafo 48: “Por lhe ter sido solicitado, o depoente entrega neste ato o cartão de memória do referido sistema de videovigilância, da marca ..., com capacidade para 32GB, pois pode conter informação relevante para o processo.” – negrito e sublinhado nosso.
15. Aplica-se o regime geral da admissibilidade previsto nos artigos 164º e seguintes do CPP.
16. A prova em causa foi carreada para o processo através de OPC, que interveio na recolha dessa prova, mediante a sua solicitação ao seu possuidor, pelo que, estava obrigado a proceder à respetiva apreensão, sob pena de invalidade processual da mesma, nos termos supramencionados.
17. Falta-lhe o pressuposto da sua licitude, nos termos do n.º 2 do artigo 167º do CPP, à contrário.
18. A prova em causa foi operada pela via da solicitação/injunção, não existiu voluntariamente uma disponibilização, mas sim, foi fornecida mediante uma ordem.
19. Não tendo sido apreendida, a obtenção da referida prova por reprodução mecânica não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP, e, em consequência, como a própria lei culmina, não podem ser valoradas como prova.
20. O Acórdão recorrido conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.
21. Não pode ser tida em consideração os pontos de facto dados como provados e a fundamentação que se baseou na referida prova:
Pontos de facto:
6- Na parte em que refere “ (…) após deixar a bicicleta em sítio por forma a não ser captado pelo sistema de videovigilância (…)”;
10- Na parte em que refere “(…) enquanto aguardou, o arguido entrou na habitação de BB, tirou duas cervejas “...” do frigorífico da cozinha e bebeu-as, deixando as garrafas vazias em cima do depósito das botijas de gás junto à porta de entrada da habitação.”
Fundamentação
- “O período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (dois primeiros vídeos de fls. 268, que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir”;
- “a descontração, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (conforme supra referido em 10)., (…), afirmando até “então hoje decidi, vim cá matá-la eu” (fls 270) -, com a testemunha FF (que confirmou a existência da chamada, audível nos registos da câmara de vigilância de casa de BB e transcrita a fls. 270/271, onde o arguido se preocupa com o destino do seu gato e de ter cigarros na cadeia, se refere a BB com insultos – “puta” – e diz ”não dava para viver assim, não estava conseguindo (…) gozaram comigo, isso não se faz”), com o aludido patrão GG (fls. 272) – “eu fui dar uma facada nela (…) A puta está ali, está morta, até a língua está para fora (…) Não ia fazer pouco de mim assim” – e até com a sua mãe (fls. 274), a quem comunica de forma factual (e reiterada) o que acaba de fazer, ainda tentando minorar a sua conduta (“ela me deu três facadas”).
- “(…) as (alegadas) afirmações do arguido de que, no envolvimento físico entre ambos, por duas vezes disse a BB, “calma, ..., não te vou matar”, além de não constarem das gravações da aludida câmara de vigilância, são absolutamente contraditórias com a sua atuação (…) – sublinhado nosso; - “Relativamente à matéria do pedido cível, além do carácter notório do sofrimento da própria vítima – 25. e 25. – (também documentado nas gravações áudio já referidas, (…)”
22. Deve ser conhecida a exceção invocada e declarado que a prova correspondente às imagens de videovigilância constantes de DVD junto aos autos, e respetivo auto de transcrição a fls. 268 e 275, bem como todas as decorrentes destas, não podem ser valoradas, por não ter sido apreendida, nos termos conjugados do disposto nos artigos 167º n.º 1 e 2 e 178º e ss do CPP, devendo, ser desconsiderados os pontos de facto e de fundamentação invocados no acórdão proferido com base na mencionada prova.
23. O tribunal a quo considerou provada a seguinte matéria de facto, que vimos impugnar:
4) “(…) com a saída do arguido dessa casa.”;
5) “(…) e aquela continuasse a não corresponder aos seus anseios e pedidos de contacto pessoal, (…).”;
6) “(…) e de pôr termo à vida desta.”;
9) “Aproveitando o momento em que BB se encontrava de costas para o arguido, este abordou-a sorrateiramente, (…).”;
10) “(…) prosseguimento no seu propósito, reinvestia a sua força física sobre o corpo de BB sempre que esta se debatia para se libertar dele; (…).”
12) “À chegada daquelas entidades, o arguido apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, e ostentava na sua roupa e calçado manchas de sangue.”
18) “Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB.”
20) “(…) e que a única justificação para a sua posse era serem destinadas nos termos em que o foram; não obstante, não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez.”
24. Para formar a sua convicção, o Tribunal a quo veio elucidar que «”A convicção do tribunal assentou na análise crítica de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência comum, como se passa a explicitar.”»
25. O Tribunal deu como provado o Facto 1) “O arguido e BB, respetivamente de 38 e 53 anos à data dos factos, iniciaram uma relação amorosa em 2010, que mantiveram ao longo de cerca de doze anos, em comunhão de mesa, leito e habitação, na residência desta, no Lugar ..., ..., ..., ..., relacionamento que veio a cessar no início de 2022, com a saída do arguido dessa casa.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
26. O Tribunal fundamentou a sua decisão nas declarações do arguido prestadas em sede de julgamento.
27. O Tribunal faz transparecer que o relacionamento entre o Arguido e BB cessou porque aquele saiu de casa onde ambos residiam.
28. Não fora o arguido a sair de casa por sua livre e espontânea vontade, a sua saída foi motivada pela decisão de BB em pôr termo à relação de ambos, relação essa que durava há já doze anos e nada fizera prever tal desfecho ao arguido - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss, (00:09:56) a (0:17:00)
29. Todas as testemunhas confirmam que foi a Vítima quem fez cessar o relacionamento, solicitando a saída do arguido da habitação da casa de morada de família, sem que nada o fizesse prever - DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA CC, dia 16-12-2022, prestado às 11h:25:57ss até às 11h:45m:17ss:(00:00:08)a (0:05:30); DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA GG, dia 16-12-2022, prestado às 12h:26:22ss até às 12h:48m:33ss:(0:13:15) a (0:15:21); DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA FF, dia 16-12-2022, prestado às 15h:38:37ss até às 15h:47m:11ss:(0:03:05)a (0:04:10).
30. A matéria de facto dada como provada no Ponto 1 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“O arguido e BB, respetivamente de 38 e 53 anos à data dos factos, iniciaram uma relação amorosa em 2010, que mantiveram ao longo de cerca de doze anos, em comunhão de mesa, leito e habitação, na residência desta, no Lugar ..., ..., ..., ..., relacionamento que veio a cessar no início de 2022, altura em que aquela solicitou ao Arguido que abandonasse a referida habitação.”
31. O Tribunal deu como provado o Facto 2) “No entanto, porque aquele se mantivesse vinculado psíquica e emocionalmente à vítima e não aceitasse aquele desfecho, e aquela continuasse a não corresponder aos seus anseios e pedidos de contacto pessoal, o arguido iniciou sentimentos de desconfiança, de ciúme e posse, que redundaram em frustração que não conseguiu debelar.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
32. Para fundamentar a sua decisão o Tribunal baseou-se apenas nas declarações prestadas pelo arguido em sede de julgamento.
33. A afirmação de que BB não correspondia aos anseios e contactos pessoais do arguido afigura-se totalmente incorreta.
34. Arguido e Vítima falavam quase todos os dias - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss: (0:16:38)a (0:18:32).
35. Pelo Relatório da Perícia Informática efetuada aos telemóveis quer do Arguido quer da vítima, é possível constatar o registo de chamadas e mensagens realizadas entre ambos os seus respetivos números, a fls. 474 a fls. 482 e a fls. 492 a fls. 501, bem como screenshots/capturas de ecrã da conversa Messenger do perfil do arguido a fls. 462 a fls. 470, e o perfil da vítima a fls. 485 a fls. 488, apenas visível consultando o registo informático gravado no respetivo DVD junto aos autos, cujos resultados de perícia se encontram junto aos autos a fls. 445 e seguintes.
36. O último contacto entre o arguido e a vítima antes da prática do crime, sucedeu no dia 10 de março de 2022, pelas 20:43 horas, com duração de 46 min e 44 seg. por iniciativa de BB, que iniciou uma videochamada com AA via Messenger.
37. As chamadas de vídeo ocorridas nesse dia tiveram a duração total de 57 minutos, quase uma hora de chamada entre ambos, o que comprova claramente que BB não temia, nem se queria afastar totalmente de AA.
38. Videochamadas entre ambos já depois de terminada a relação amorosa por parte de BB, entre as quais, as realizadas por iniciativa de BB:
(…)”
41. Não existem provas concretas de que BB queria afastar-se definitivamente de AA, por ter receio dele, ou até, por ele, por mera hipótese, ter sido violento em algum momento.
42. No trágico dia 11 de março de 2022, quando AA se dirigiu a casa de HH, mãe de BB, aquela nada temeu e não teve qualquer receio pela sua vida, autorizando, inclusivamente, o Arguido a entrar na sua habitação e contactar com o seu marido que se encontrava acamado, nem temeu pela vida da sua filha, quando revelou ao Arguido que a Vítima já havia saído de la: DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA HH, dia 16-12-2022, prestado às 11h:48:38ss até às 12h:08m:08ss:(00:07:19) a (0:07:57).
43. Existe uma dúvida séria quanto a estes factos, pelo que, de acordo com o Princípio in dúbio pro reu o Tribunal deverá dar como não provado que “e aquela continuasse a não corresponder aos seus anseios e pedidos de contacto pessoal”.
44. A matéria de facto dada como provada no Ponto 2 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“No entanto, porque aquele se mantivesse vinculado psíquica e emocionalmente à vítima e não aceitasse aquele desfecho, o arguido iniciou sentimentos de desconfiança, de ciúme e posse, que redundaram em frustração que não conseguiu debelar.”
45. O Tribunal deu como provado o Facto 3) “Escutando rumores na freguesia que aludiam à existência de um novo namorado de BB, e que essa pessoa estaria na freguesia no dia 11 de março de 2022, o arguido formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira e de pôr termo à vida desta.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
46. O Tribunal fundamentou a sua decisão com base nas declarações do arguido prestadas em sede de julgamento, e, também concretamente a intenção que norteou o arguido (parte final de 3.), entende o Tribunal que resulta inequívoca de um conjunto de indícios, a saber: ~
a) - o arguido saber que a sua ex-companheira se preparava para ir para ... (facto confirmado pela testemunha – e patrão – GG, a quem o arguido o disse quer uns dias antes dos factos quer na própria manhã de 11 de Março) o que a levaria para longe dele (…);
b) - a circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objetos potencialmente letais (…);
c) - o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão;
d) - apesar da resistência oferecida por BB (provocando ferimentos no arguido, inclusive nas mãos), o recurso do arguido a estas como arma;
e) - o período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (…que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir;
f) - a descontração, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (…), bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (…) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento
(…);”»
d) «” Perante estes elementos, é inócua a não assunção, por parte do arguido, da intenção de matar a ex-companheira…”»
e) «”Ex Abundantiae, há ainda a registar a análise dos telemóveis do arguido e de BB (de que resulta terem ambos falado por essa via pela última vez a 6 de Março de 2022…)”»
47. Não existe qualquer prova concreta, plena e direta, que comprove, sem qualquer dúvida, que AA tivesse saído de casa munido de duas facas com o desígnio de pôr termo à vida de BB.
48. Dos factos e prova produzida levam a crer que o desígnio do Arguido era, efetivamente, ofender a integridade física do novo companheiro da Vítima, em que termos e com que intensidade, que só ele próprio o sabe.
49. Todos os factos carreados para o processo, e atendendo à prova, praticamente inexistente, de todas as circunstâncias, são suscetíveis de criar uma dúvida verdadeira quanto à real intenção do Arguido no momento em que sai da sua habitação munido de duas facas.
50. Em caso de dúvida, o Tribunal está obrigado a decidir a favor do Arguido.
51. Tanto no 1º Interrogatório Judicial de Arguido detido, como nas suas declarações prestadas em sede de julgamento, o Arguido afirmou que quando saiu de casa não queria matar BB, mas sim, queria ir confrontar o novo companheiro desta: a vontade de AA nunca fora retirar a vida à ex-companheira: DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, em sede de 1º Interrogatório Judicial prestadas no dia 12-03-2022, pelas 12 horas 26 minutos e o seu termo pelas 12 horas 34 minutos, prestado às 12h:16m:00ss até às 12h:25m:00ss: 00:08:11)a(00:08:33);DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, em sede de 1º Interrogatório Judicial prestadas no dia 12-03-2022, pelas 12 horas 26 minutos e o seu termo pelas 12 horas 34 minutos, prestado às 12h:25m:00ss até às 12h:31m:00ss:(00:00:01)a(0:02:24); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss:(00:00:54)a (0:09:12); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss:(0:05:48 )a (0:07:37);DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA CC, dia 16-12-2022, prestado às 11h:25:57ss até às 11h:45m:17ss:(0:10:42)a (0:11:11); DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA FF, dia 16-12-2022, prestado às 15h:38:37ss até às 15h:47m:11ss:(0:05:06)a(0:05:58).
52. Foi dado como provado que o Arguido escutando rumores na freguesia que aludiam à existência de um novo namorado de BB, e que essa pessoa estaria na freguesia no dia 11 de março de 2022, formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira.
53. O facto fulcral que demandou a deslocação do arguido à habitação de BB, no dia e hora dos factos, foram os rumores que os habitantes da freguesia lhe fizeram chegar de que lá se encontraria o novo namorado.
54. O facto de querer confrontar o novo namorado da Vítima, conjugado com a não aceitação do término da relação, os sentimentos de ciúme e posse, a continuidade de relação e contacto entre o Arguido e BB, conforme consta da prova emanada pela perícia aos telemóveis de ambos que comprovam uma série de contactos mútuos.
55. O Tribunal não conseguiu perceber em que patamar se encontrava a relação de Arguido e BB, uma vez que as chamadas e videochamadas MÚTUAS, reforçamos, não se compaginam com o que foi declarado pelas testemunhas, que foi tão só a perceção que aquelas pensam que tinham da relação de ambos, e o que, supostamente, BB fazia transparecer.
56. Face à falta de prova concreta sobre todas as circunstâncias globais em que ocorreram os factos, não superficiais, mas de fundo, não permite o Tribunal concluir, sem dúvida real, que o Arguido tivesse o desígnio de fazer mal a BB, quando sai da sua habitação munido de duas facas de cozinha, melhor identificadas nos autos.
57. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: a) - o arguido saber que a sua ex-companheira se preparava para ir para ... (facto confirmado pela testemunha – e patrão – GG, a quem o arguido o disse quer uns dias antes dos factos quer na própria manhã de 11 de Março) o que a levaria para longe dele (…); - tal facto, não é  suscetível de, por si só, provar, sem qualquer dúvida, que o Arguido saiu da sua habitação munido de duas facas, com o propósito de retirar a vida a BB e não ao suposto companheiro daquela.
58. O novo namorado de BB tinha a intenção de a levar para ..., deixando o arguido sem qualquer hipótese de contactar com a mesma, e com isso a hipótese de reatar a relação que mantiveram durante 12 anos, como referido no processo, gratificante.
59. Estamos perante um comum e chamado “desgosto de amor” que provocou uma dinâmica de emoções e sentimentos no arguido.
60. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: b) - a circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objetos potencialmente letais (…); - como já referimos, tal facto, concretamente apurado conjugado com o facto provado do motivo que fez o Arguido se deslocar à habitação de BB, no dia e hora dos factos, isto é, os rumores que ouviu na freguesia, nesse mesmo dia, de que aquela estaria acompanhada do seu novo namorado, são suscetíveis de criar a dúvida de qual seria a real intenção do Arguido, pôr termo à vida daquela, ou de pôr termo à vida daquele?
61. O Arguido não tentou pôr termo à vida de BB com o uso das facas, conforme supra já mencionamos.
62. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: c) - o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão; - Em primeiro lugar, entendemos que existe um equívoco no que toca à forma como o arguido abordou BB que não se coaduna com as declarações prestadas por este em sede de julgamento, e já supra transcritas, e, face à ausência de qualquer outra prova, não tem o Tribunal como dar como provado.
63. O Arguido detalhou a forma como abordou BB, desde o momento em que se aproximou da sua habitação e o momento em que chega ao local onde a mesma se encontrava e descreveu que quando se encontrava a chegar à habitação de BB pôde perceber que a mesma se encontrava no quintal da referida habitação e decidiu abordá-la para descobrir a identidade do seu novo namorado.
64. Ao dirigir-se ao local onde a mesma se encontrava, BB estaria a estender roupa, e, por se encontrar a executar essa tarefa, a mesma encontrava-se de costas para a entrada.
65. Não foi o Arguido que deliberou e decidiu que iria abordar BB pelas costas. - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss:(00:04:23)a (0:09:12).
66. Conforme se pode aferir pela Reportagem Fotográfica, tendo em consideração, apenas e só, ao local dos factos, BB encontrava-se a estender roupa no quintal, e cuja execução de tal tarefa obrigatoriamente a posicionava de costas para a entrada, para o caminho que leva da habitação ao quintal.
67. O facto de o Arguido estar munido de uma das facas na mão quando se aproximou de BB, não é suficiente para dar como provado que quando o Arguido saiu da sua habitação munido das facas tinha o desígnio traçado de retirar a vida a BB.
68. O Arguido não tentou atacar BB com a faca, para lhe tirar a vida, pois não existe no corpo da mesma lesões suscetíveis de provar tal intenção.
69. BB não sofreu lesões de ataque corto perfurantes provocadas pelo Arguido suscetíveis de lhe retirar a vida.
70. As lesões provocadas pela faca no corpo de BB são lesões de defesa provocadas pelo confronto físico que existiu com o Arguido, lesões circunstanciais de quem se confronta fisicamente com alguém, e no decurso do qual, ambos têm a posse de uma faca e demonstrativas que BB retirou a faca da mão do arguido com a sua própria mão, agarrando na lâmina, tal como declarou o Arguido, o que provocou a necessária lesão melhor identificada na fotografia n.º 16 do Relatório de Exame Pericial a fls. 46. - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss:(00:04:23)a(0:05:17); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss:(0:05:48 )a(0:07:37).
71. Existe total ausência de prova quanto às circunstâncias concretas quanto à referida abordagem, e concretamente, quanto ao confronto físico existente, quanto ao seu início e quanto ao seu desenvolvimento.
72. Não existe prova de que tenha sido o Arguido o primeiro a atacar fisicamente BB.
73. Não existe prova de que forma BB reagiu quando se apercebeu da presença do Arguido naquele local com a faca na mão, a não ser o declarado pelo Arguido: DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, em sede de 1º Interrogatório Judicial prestadas no dia 12-03-2022, pelas 12 horas 26 minutos e o seu termo pelas 12 horas 34 minutos, prestado às 12h:25m:00ss até às 12h:31m:00ss: (00:00:01); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss:(00:05:29) a (0:15:46).
74. O Tribunal não sabe de que forma, BB lutou com o Arguido, e se foi esta quem primeiramente, atacou o Arguido.
75. O Arguido utilizou a faca para tentar coagir BB a identificar a identidade do seu novo namorado.
76. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: d) - apesar da resistência oferecida por BB (provocando ferimentos no arguido, inclusive nas mãos), o recurso do arguido a estas como arma; - Esta ilação, este facto, apenas pode servir para provar que naquele momento, e no decurso da contenda que existiu entre ambos, o arguido decidiu matar BB, como o fez.
77. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: e) - o período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (…que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir; - de forma a evitar repetição desnecessária, damos por integralmente reproduzido tudo o quanto se dissera no ponto II do presente recurso, quanto à Prova Proibida das imagens de videovigilância.
78. Caso não se considere a mencionada prova ilícita, das referidas imagens apenas é possível perceber que não é possível ouvir com muita precisão, e que não é de fácil identificação todos os gritos que se ouvem.
79. Ouvem-se os gritos do Arguido a partir da hora 16h04m.
80. Só é possível ouvir alguma coisa com pouca precisão, mas… pergunta-se o que estava a acontecer? De que forma? Por quem? Com o quê?
81. Durante os alegados 7 minutos, BB, durante 1, 2, 5, ou 6 minutos, não sabemos, não temos como saber, encontrou-se na posse da faca, e lesou fisicamente o Arguido.
82. O Tribunal não tem como concluir que durante os 7 minutos o Arguido poderia ter cessado a sua conduta, se, em concreto, não sabemos qual foi a sua conduta. Foi de defesa? Foi de ataque? Em qual dos momentos?
83. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: f) - a descontração, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (…), bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (…) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento (…);”» - de forma a evitar repetição desnecessária, damos por integralmente reproduzido tudo o quanto se dissera no ponto II do presente recurso, quanto à Prova Proibida das imagens de videovigilância.
84. Se essa era a real intenção, e se o Arguido se introduziu na habitação da Vítima sem ser captado pelas imagens da câmara de videovigilância, que muito bem conhecia, pelos anos que lá habitou e cuja câmara era do seu conhecimento, teria, como era de esperado, e já o devia ter planeado, executar e voltar a sair da mesma forma que entrou, com o intuito de lograr não ser identificado como autor dos factos – o que não aconteceu.
85. Quando o Arguido se apercebe de que BB havia perdido os sentidos, cessa a sua conduta, e inicia imediatamente manobras de reanimação, conforme consta do relatório da ficha de atendimento do INEM a fls…”Marido terá feito – 3MIN SBV ANTES DA CHEGADA DOS MEIOS (…) - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss: (0:15:20)a (0:15:46); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss:(0:00:01) a (0:02:05.
86. Quando o Arguido se apercebeu que a Vítima jorrara sangue, e que lhe havia retirado a vida, sem reversão, imediatamente contactou o número de emergência nacional, a quem, confessou os factos. DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss: (0:02:09)a (0:02:53).
87. O Arguido encontrava-se manifestamente perturbado.
88. O Arguido teve logo uma reação de quem teve consciência do que acabou de fazer, e sabe que irá sofrer as suas consequências.
89. O Arguido de imediato contactou as pessoas que lhe eram próximas a dar conta do sucedido, e de forma reiterada, nervosa e pouco eloquente, refere que retirou a vida a BB. - DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA FF, dia 16-12-2022, prestado às 15h:38:37ss até às 15h:47m:11ss: (0:05:06)a (0:05:58).
90. A reação do corpo humano a eventos trágicos diverge de homem para homem.
91. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: d) «” Perante estes elementos, é inócua a não assunção, por parte do arguido, da intenção de matar a ex-companheira…”» - Como já referimos supra, não foi produzida prova suficiente para que o Tribunal desse como provado que o Arguido tinha o desígnio de tirar a vida a BB quando sai da sua habitação munido de duas facas.
92. Existem factos suficientes que levam a uma dúvida real e que o Tribunal não tem como debelar.
93. O Tribunal fundamentou a sua decisão no seguinte: e) «”Ex Abundantiae, há ainda a registar a análise dos telemóveis do arguido e de BB (de que resulta terem ambos falado por essa via pela última vez a 6 de Março de 2022…)”» - damos por integralmente reproduzido tudo o quanto se dissera supra quanto à impugnação do facto dado como provado no Acórdão - Ponto 2.
94. Se o Arguido encontrou BB sozinha, e quando se aproximou do local onde aquela se encontrava a mesma estava de costas, como o mesmo declarou perante o Tribunal, conforme já transcrição das referidas declarações constantes supra, e se o Arguido conseguiu aproximar-se da vítima sem que fosse detetado pela Câmara de Videovigilância, qual foi o motivo para que o Arguido não tivesse executado com sucesso a morte de BB, com o uso das facas, se alegadamente a surpreendeu sorrateiramente, sem que a mesma se apercebesse?
95. Pelo Relatório de Exame ao Cadáver a fls. 11 e seguintes e Reportagem Fotográfica a fls. 21 e seguintes, e pelo Relatório de Autopsia legal, não são visíveis quaisquer marcas de ataque, lesões de ataque provocados pelo Arguido com o uso da arma branca, no corpo de BB, em zonas vitais suscetíveis de lhe retirar a vida.
96. Retirar a vida a BB, que viria a suceder depois, fora uma consequência/decisão ocorrida já no local, derivado do confronto físico entre ambos.
97. Pugna-se, portanto, pelo Princípio Constitucional In Dubio Pro Reo, artigo 32º n.º 2 1ª parte do Constituição da República Portuguesa, pois em caso de dúvida, o Tribunal a quo deve decidir a favor do Arguido, e, consequentemente, abster-se de dar como provado um facto sem provas suficientes para tal.
98. De acordo com o Princípio in dúbio pro reu o Tribunal deverá dar como não provado que “ (…) e de pôr termo à vida desta”.
99. A matéria de facto dada como provada no Ponto 3 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“Escutando rumores na freguesia que aludiam à existência de um novo namorado de BB, e que essa pessoa estaria na freguesia no dia 11 de março de 2022, o arguido formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira.”
100. O Tribunal deu como provado o seguinte Facto 7) “Aproveitando o momento em que BB se encontrava de costas para o arguido, este abordou-a sorrateiramente, posicionando-se imediatamente atrás daquela, com a faca de cabo preto na mão.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
101. Damos por integralmente reproduzido tudo o quanto alegado foi supra, quanto à impugnação do ponto de facto dado como provado – Ponto 3, quando nos debruçamos sobre a análise da fundamentação utilizada pelo tribunal melhor identificada: “e) - o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão.”
102. Não existiu um aproveitamento e uma decisão por parte do Arguido de surpreender BB pelas costas.
103. Não existe prova de que a abordagem que AA fizera a BB foi sorrateira ou de qualquer outro modo que causasse desvantagem acrescida a esta.
104. Pugna-se pelo Princípio Constitucional In Dúbio Pro Reo e, o Tribunal deverá dar como não provado que “Aproveitando o momento em que BB se encontrava de costas para o arguido, este abordou-a sorrateiramente.”
105. A matéria de facto dada como provada no Ponto 7 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“Quando o Arguido se aproximou de BB, esta encontrava-se de costas a estender roupa no quintal da sua habitação, e aquele abordou-a, posicionando-se atrás daquela, com a faca de cabo preto na mão.” Conforme declarações prestadas pelo mesmo.
106. O Tribunal deu como provado o Facto 8) “Aí, iniciou-se um envolvimento físico entre ambos, no desenrolar do qual o arguido, prosseguindo no seu propósito, reinvestia a sua força física sobre o corpo de BB sempre que esta se debatia para se libertar dele; (…).” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
107. O Tribunal baseou a sua convicção pelas declarações prestadas pelo Arguido em sede de julgamento, conjugadas com o auto de exame ao cadáver a fls. 11, pelas fotografias a fls. 44 e 46 e por fls. 593 a 595 do relatório de autópsia.
108. O momento em que o confronto físico se inicia é insuscetível de ser apurado, pois não existe qualquer prova que leve a decifrar quando, como e quem, iniciou, efetivamente o confronto.
109. AA tem mais lesões provocadas pela faca suscetíveis de causar a morte do que BB.
110. BB, do confronto físico entre ambos, resultado do objeto corto perfurante, apenas teve ligeiras lacerações, superficiais, que em momento algum lhe puseram em causa a vida.
111. É impossível apurar quem terá iniciado o confronto físico e com que intenção.
112. O Tribunal a quo não tem provas suficientes para afirmar que AA, prosseguindo no seu propósito, como já alegamos supra e damos por integralmente reproduzido quanto ao desígnio do Arguido, e que reinvestia a sua força física sobre BB, uma vez que também como já supra alegado quanto à inexistência de prova de todas as circunstâncias em que a contenda ocorreu, na qual não restam dúvidas, BB atacou o Arguido provocando-lhe lesões, pelo que face à falta de prova o Tribunal não consegue debelar a dúvida se o Arguido iniciou ou reinvestia a sua força física sobre BB, ou se esta, destemida como foi caracterizada pelos que lhe eram próximos decidiu atacar o Arguido, e enquanto este se defendia, ocorreu o facto delituoso.
113. De acordo com o Princípio in dúbio pro reu o Tribunal deverá dar como não provado que “reinvestia a sua força física sobre o corpo de BB sempre que esta se debatia para se libertar dele.”
114. A matéria de facto dada como provada no Ponto 8 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“ Aí, iniciou-se um confronto físico entre ambos, no decurso da refrega, arguido e BB ficaram, em momentos distintos, na posse da dita faca, e ambos desferiram golpes no corpo um do outro.”
115. O Tribunal deu como provado o Facto 11) “À chegada daquelas entidades, o arguido apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, e ostentava na sua roupa e calçado manchas de sangue.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
116. O Tribunal deverá dar como provado, e complementar discriminando as lesões sofridas pelo Arguido, que são lesões de ataque provocadas por BB com a utilização da faca, conforme Relatório de Triagem do Serviço de Urgência ..., e Reportagem fotográfica a fls. 192 a fls. 205.
(…)”
117. A matéria de facto dada como provada no Ponto 11 deverá ser reformulada da seguinte forma: “À chegada daquelas entidades, o arguido apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, provocados pela vítima com a faca melhor identificada nos autos, e ostentava na sua roupa e calçado manchas de sangue. As lesões sofridas concretamente pelo Arguido foram as seguintes:
“- MSE, esfacelos na base de D1 e D2;
- MSD, esfacelos sem sangramento ativo entre D2 e D3;
- MID, apresenta esfacelos no 1/3 lateral medial da perna com sangramento ativo.”
118. O Tribunal deu como provado o Facto 17) “Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
119. O Tribunal baseou a sua convicção para a decisão quanto a este ponto de facto nas declarações prestadas pelo arguido em sede de julgamento.
120. A morte de BB foi consequência do confronto físico com o arguido, sem tal confronto, nunca se teria chegado a tal desfecho. - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, em sede de 1º Interrogatório Judicial prestadas no dia 12-03-2022, pelas 12 horas 26 minutos e o seu termo pelas 12 horas 34 minutos, prestado às 12h:25m:00ss até às 12h:31m:00ss: (00:00:01); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss: (0:08:42) a (0:15:20); DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 11h:04m:15ss até às 11h:24m:02ss:(0:05:48 )a (0:06:31).
121. Damos por integralmente reproduzido tudo o quanto se invocou supra quando ao desígnio do Arguido no momento em que sai da sua habitação munido das facas; quanto ao relacionamento e contactos existentes entre Arguido e Vítima, bem como quanto se invocou no que ao confronto físico que existira entre ambos naquele fatídico dia.
122. O confronto físico, momentâneo e inesperado, fora o motivo, ou a “gota de água” que levara à morte de BB.
123. A matéria de facto dada como provada no Ponto 17 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“Actuou o Arguido movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB, agravado pelo confronto físico existente, e pelo ataque provocador da vítima.”
124. O Tribunal deu como provado o Facto 19) “O arguido conhecia as caraterísticas das facas que possuía, sabia que as detinha fora do local do seu normal emprego e que a única justificação para a sua posse era serem destinadas nos termos em que o foram; não obstante, não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez.” – a negrito a parte de facto que impugnamos.
125. O Tribunal fundamentou a sua convicção na circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objetos potencialmente letais (apreendidas a fls. 13, sendo a primeira fotografada a fls. 41 a 44 e 207 a 209, e a segunda a fls. 55 a 57).
126. O crime de homicídio não foi praticado com as facas.
127. O que levou à morte de BB foi uma lamentável consequência do confronto físico, algo que nunca teria sucedido se tivessem logrado manter a calma e não partir para a agressão física; confronto esse impossível de se decifrar quem o terá iniciado.
128. Nunca poderá o Tribunal a quo, sem provas concretas, dar por provado que a posse das facas fora com vista à prática do crime de homicídio, pois, como mais uma vez se sublinha, o crime não foi concretizado com qualquer arma branca, nem existem indícios suficientes para tal.
129. Face à manifesta inexistência de prova quanto às circunstâncias globais em que a contenda ocorreu, respeitando o Princípio constitucional in dúbio pro reo, deverá o Tribunal decidir a favor do Arguido.
130. A matéria de facto dada como provada no Ponto 19 deverá ser reformulada da seguinte forma:
“O arguido conhecia as caraterísticas das facas que possuía, sabia que as detinha fora do local do seu normal emprego.”
131. A existência manifesta destes vícios altera amplamente as circunstâncias em que se deram estes factos, devendo, por isso, ser revisto e corrigido conforme tudo o supra alegado.
132. O Tribunal a quo decidiu qualificar o crime de homicídio automaticamente por estar  preenchida a alínea b) do n.º 2 do artigo 132º do CP.
133. O Arguido vem condenado pela prática de um crime de homicídio, qualificado nos termos do artigo 132º n.º 1 e 2 alínea b) do CP, com fundamento no facto de o arguido e a vítima terem uma especial relação, só por si preenche o tipo previsto na alínea b) do mencionado normativo, o que, entendem, que qualifica automaticamente o crime.
134. Não existem dúvidas de que se encontra preenchida a alínea b) do n.º 2 do artigo 132º do CP, quer pelas declarações do Arguido, quer pela restante prova produzida.
135. O preenchimento de um dos exemplos-padrão não é automático para a qualificação do crime de homicídio.
136. No caso em concreto estamos perante um HOMICÍDIO SIMPLES ATÍPICO.
137. O Homicídio simples atípico representa as situações em que, ainda que pareça o crime enquadrar-se no previsto no artigo 132.º do CP, por preencher um dos exemplos-padrão aí previstos, não apresenta especial censurabilidade e perversidade do agente, consubstanciando antes um crime de homicídio simples (artigo 131.º do CP), mas de forma atípica, com contornos casuísticos não recorrentes.
138. O juiz deve, caso a caso, aferir as circunstâncias especiais no facto ou na pessoa do agente que venham atenuar a agravação, como também, aferir que o caso concreto se equipara a outros casos já julgados e transitados em julgado.
139. Os factos dados como provados, sempre tendo em consideração também a impugnação da matéria de facto supra invocada, no entender da Defesa, a análise de todo o circunstancialismo do facto delituoso que o Tribunal tem conhecimento, permite declinar essa mesma especial censurabilidade.
140. Será o crime de homicídio praticado e em causa nos presentes autos, mais censurável e perverso que outros crimes de homicídio (simples) praticados e julgados pelos nossos tribunais?
141. Qual é o “mais”, o plus que está presente neste caso, para que o mesmo possa ser qualificado?!
142. A especial relação entre arguido e vítima não é suficiente para, desde logo, qualificar o crime de homicídio.
143. O Arguido iniciou a sua atividade criminosa, deslocando-se a casa de BB munido de duas facas, por motivos de ciúme, posse, frustração, por ter ouvido rumores de que aquela tinha outra pessoa na sua vida, a qual se encontraria naquele dia na sua habitação e a levaria para ..., longe de si, também ficou provado, o que, afasta completamente o motivo fútil e torpe.
144. A conduta delituosa apenas se iniciou uma hora antes do cometimento do crime de homicídio, o que não demonstra uma atuação com calma, frieza e premeditada.
145. Está provado que o Arguido tomou conhecimento de que o individuo se encontraria nesse dia com a vítima na sua habitação.
146. Ficou provado que o arguido se deslocou à habitação da vítima com o objeto de surpreender o suposto namorado desta.
147. O Arguido não arrombou qualquer vedação para se aproximar da vítima, conforme foi referido pelo mesmo e consta das provas juntas aos autos, o Arguido tomou acesso para o quintal da habitação da vítima por um caminho aberto “entrada livre” - DECLARAÇÕES DO ARGUIDO AA, dia 16-12-2022, prestado às 10h:47m:00ss até às 11h:03m:09ss: (00:05:29)a (0:06:26).
148. Ficou provado que antes do ato de homicídio, o Arguido e a vítima confrontaram-se fisicamente, no decorrer do qual, quer um quer outro ficaram na posse da arma branca melhor identificada nos autos e, desferiram-se mutuamente.
149. A Vítima provocou ao Arguido os seguintes ferimentos, conforme Relatório de Triagem do Serviço de Urgência ..., E Reportagem fotográfica a fls. 192 a fls. 205.,
(…)”
117. O comportamento delituoso, quanto ao crime de homicídio, derivou desse confronto físico, no qual a Vítima agrediu o Arguido.
118. A razão da qualificação tem de residir numa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada.
119. A especial censurabilidade, referenciada ao juízo de culpa, repercute os casos em que a conduta do agente traduz, ao nível da efetivação do facto uma forma de realização de modo especialmente desvaliosa.
120. Os factos foram consequência de um prévio confronto em que a Vítima teve uma atitude provocatória relativamente ao Recorrente, que, de certo modo, provocou uma alteração do seu estado emocional, que, diga-se, já não estava nos seus moldes ditos “normais”.
121. Face ao quadro factual descrito dado como provado se possa retirar a convicção segura da inexistência de uma circunstância reveladora de um juízo de culpa especialmente agravado.
122. Não existe especial perversidade no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente duvidosas, pois, e conforme o Relatório Social, de 15-12-2022,
(…)”
123. O arguido carateriza-se como sendo um individuo pacato, sociável, integrado na comunidade  respeitador, respeitado pelos seus colegas de trabalho e que sempre proveu à subsistência da sua
ex-companheira (vítima) e dos filhos que esta tivera de um anterior casamento, bem como, fora ele a colocar a referida casa de morada do agregado familiar em condições aceitáveis de habitabilidade, conferindo conforto a todos.
124. AA fora submetido a um estado emocional particularmente intenso e descontrolado, não tendo tido a necessária clarividência naquele momento, estando envolto num estado de estenia, dominado pelo sentimento de traição e injustiça imensa.
125. Tudo aponta para que o crime fosse um episódio totalmente inesperado e trágico na vida do arguido, em nada condizente com esta e com todo o seu percurso pessoal e social até então.
126. O arguido encontrava-se, claramente, sob um “estado afeto esténico”, que se consubstanciou num conflito interior que não conseguiu resolver, não conseguiu dominar o seu conflito psicológico, levando-o a um estado emocional intenso e ao consequente crime.
127. Viu-se envolto num dado torpor esténico cujo surgimento, repentino, instantâneo, se deveu a um insuportável ciúme.
128. O confronto físico (luta) que tivera com BB, na qual esta o ataca com arma branca, desferindo-lhe lesões profundas, fora “a gota de água”, colocando o arguido sob o efeito emocional esténico.
129. AA mantinha uma boa relação com os filhos de BB, tento sido, inclusive, um dos filhos da vítima a confirmar ao arguido que a mesma teria um novo companheiro. - DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA CC, dia 16-12-2022, prestado às 11h:25:57ss até às 11h:45m:17ss: (00:04:16); (00:15:56)a (00:19:14).
 (…)”
132. O Relatório Social e os factos provados relativos à personalidade do arguido indiciam, de forma segura, que o crime foi um episódio trágico, totalmente atípico e inesperado na vida de AA.
133. Não poderá sufragar-se a qualificação do homicídio por via da invocada especial perversidade do arguido.
134. O crime cometido foi fruto de um torpor esténico, criando um dramático desvario afetivo.
135. Não foi a insensibilidade perante a vida humana que motivara o crime em concreto, pois este é um critério comum a todos os homicídios, seja ele simples ou qualificado.
136. AA foi sujeito a uma descarga nervosa subcutânea alheia ao seu psicológico, perdendo total controlo sobre si, originando uma total desintegração da personalidade psíquica não tendo destreza psíquica para se controlar.
137. O Arguido não praticou os factos com especial censurabilidade ou perversidade, tanto mais que o curto lapso de tempo em que formulou e concretizou a sua intenção de matar, não reflete a existência de calma, reflexão ou sangue-frio na preparação do ilícito,
138. Por ausência de prova se desconhece o EXACTO CIRCUNSTANCIALISMO em que decorreu o confronto físico entre Arguido e Vítima que existiu a montante do comportamento delituoso (crime de homicídio) na sequência do qual esta deferiu golpes com arma branca nas mãos e membro inferior direito daquele.
139. O homicídio em causa não poderá ser qualificado conforme a previsão do artigo 132.º do Código Penal, mas antes, como Homicídio Simples Atípico, com previsão e estatuição no artigo 131.º do Código Penal.
140. Da medida concreta da pena: Para a decisão da medida concreta da pena deve ter-se em consideração o seguinte :
141. Caso tivesse premeditado o crime, logo ao chegar ao encontro de BB, admitindo-se a teoria de que a mesma se encontrava de costas, o arguido teria apunhalado, o que não logrou suceder; (houve toda uma luta entre eles)
142. As facas que o arguido tinha na sua posse não foram os agentes da morte de BB;
143. O arguido queria surpreender a ex-companheira com o novo namorado, por isso entrou pelas traseiras da casa; caso quisesse deveras matar BB, teria desde logo, ao vê-la diante si, de costas, procedido sem qualquer ponderação lógica;
144. Existiu um confronto físico, esse que não se consegue apurar quem fora o agente inicial, pois pela câmara de vigilância nada se consegue apurar, mas não se pode deixar de frisar e relembrar que nesse período de tempo, também a vítima teve em sua posse a faca e logrou ferir o arguido.
145. O arguido é assomado pela culpa do ato que acabara de cometer e inicia, logo de seguida, manobras de reanimação, tal como se pode comprovar através do depoimento do arguido, e pela gravação das chamadas com o INEM, (…)”
146. A atitude do arguido em sede de audiência de julgamento, tendo admitido os factos e assumido as suas responsabilidades, tendo a sua colaboração sido essencial para a descoberta da verdade, face à inexistência de prova quanto às circunstâncias globais;
147. O facto de o arguido apresentar integração em termos profissionais e sociais, nada o diferenciando, até á data de cometimento do crime, de qualquer cidadão normal, cumpridor da lei, como resulta do facto de não possuir antecedentes criminais, o que é especialmente significativo em sede de não se imporem, em concreto, especiais cautelas ao nível da prevenção especial.
148. A circunstância de o arguido não estar bem psicologicamente derivado do sentimento de traição e abandono que sentiu aquando do rompimento da relação, tendo, nessa sequência, ficado sem família em Portugal e habitação, pelo sentimento de amor que nutria, ainda tinha a esperança de reatar e volvidos apenas sensivelmente dois meses a vítima já se encontrar noutra relação e com previsões de ir residir para fora do país;
149. O arrependimento demonstrado quer no momento dos factos, mediante tentativa de reanimação da vítima; quer a confissão e arrependimento demonstrados em sede de audiência de julgamento, com a comoção demonstrada;
150. A inexistência de antecedentes criminais;
151. O confronto físico entre Arguido e vítima momentos antes do facto ilícito, do crime de homicídio;
152. A atitude provocatória e de ataque que a vítima tomou perante o Arguido;
153. A ausência total de provas quanto às circunstâncias globais relativamente à contenda.
154. Além da sua boa integração na sociedade e na vida que manteve em Portugal desde os seus vinte e dois anos de idade, AA não tem quaisquer antecedentes criminais, sendo inclusive, oriundo de uma família extremamente conservadora.
155. O arguido cresceu no Estado de ... no ..., num contexto socioeconómico modesto, cujos pais eram agricultores e tinham a seu cargo cinco filhos. Este agregado familiar, pautado pelo extremo respeito pelos valores religiosos, logrou educar os cinco filhos primando pela solidariedade entre todos.
156. O contexto em que cresceu e o comportamento que demonstrou ao longo da sua vida, mostram que AA é um individuo social, respeitoso, trabalhador e que, imaginava, como já o referiu, o seu futuro de forma calma e junto da sua família.
157. No Relatório social, no que trata ao impacto da situação jurídico-penal, descreve-se o seguinte
“O arguido não sinaliza anteriores contactos com o sistema de justiça penal. AA aponta como impacto da presente situação jurídico-penal a perda da sua liberdade, encarando a sua constituição como arguido com um sentimento de conformismo. Perante a natureza da problemática criminal em causa verbaliza juízo critico, reconhecendo a sua ilicitude, o dano e o sofrimento da vítima. A sua presente situação de reclusão foi recebida, segundo refere, com impacto no contexto familiar (no ...), nomeadamente junto dos pais. AA manifestou que, principalmente a sua progenitora não estará disponível para o apoiar qualquer que seja o desfecho do presente processo, tendo em conta a natureza do crime pelo qual está acusado, mas também por ter uma forte religiosidade. No estabelecimento prisional assume comportamento adequado.” “AA apresenta um processo de socialização decorrido no agregado familiar de origem, referenciado por si como modesto e com dinâmicas relacionais e solidárias, para o qual contribuiu economicamente depois de ter concluído o ensino básico e de imediato ter iniciado o seu percurso laboral. Em Portugal, há cerca de 17 anos o arguido apresenta um percurso laboral regular, que permitiu autonomizar-se financeiramente e iniciar uma união de facto com BB, vítima, que manteve durante cerca de 12 anos, referenciando-a como gratificante. O arguido projeta ao nível comunitário uma imagem social positiva. AA assumiu consumos problemáticos de álcool num curto período de tempo circunscrito entre a rotura da união de facto e a data dos factos subjacentes ao presente processo, considerando os consumos ultrapassados.”
158. O Relatório Social e os factos provados relativos à personalidade do arguido indiciam, de forma segura, que o crime foi um episódio trágico, totalmente atípico e inesperado na vida de AA.
159. O limite da pena é determinado dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do Ordenamento Jurídico.
160. Quanto ao histórico pessoal e social do arguido, que estava integrado na comunidade, tinha uma vida familiar estável, era funcionário efetivo há onze anos numa empresa de madeiras onde era assíduo, trabalhador, e mantinha uma ótima e respeitosa relação com a entidade patronal e com os colegas; e, além do mais, e muito importante, não tem quaisquer antecedentes criminais, pelo crime que cometeu, caberia a pena de 8 a 16 anos.
161. Derivado da agravante aplicada pelo porte de armas brancas, o limite mínimo da pena passa de 8 para 10,6 anos, e o limite máximo, passa de 16 para 21,3 anos de prisão. Porém, neste caso concreto, não de poderá ter em desvalor o facto de que o crime de homicídio não foi praticado com recurso a qualquer arma branca, e os ferimentos físicos que resultaram para a vítima do confronto entre ambos não colocaram, em nenhum momento, em causa a sua integridade física de forma a lhe causar a morte com o objeto cortante.
162. A pena aplicada quanto ao crime de homicídio de dezanove anos, em nada poderá contribuir para a sua reinserção social, dada a sua medida excessiva, fortemente estigmatizante pelo seu peso e longa duração, que só poderá resultar em desvantagens e inconvenientes.
163. Ao reduzir-se a pena, mais uma vez se sublinha, seria respeitado o limite máximo correspondente à medida da culpa e a consideração equilibrada das exigências concretas, muito elevadas, de prevenção geral positiva ou de integração, ao mesmo tempo que responde equilibradamente às exigências de prevenção especial ou de socialização, de molde que o retorno à convivência social sem risco de afrontamento dos padrões impostos pela ordem jurídica.
164. Atendendo, portanto, a que existem sérias razões para crer que da redução da pena resultarão vantagens sérias e seguras para a reinserção social do arguido e sopesando as circunstâncias agravantes e atenuativas, afigura-se-nos algo excessiva a pena concreta, mais justa e adequada se mostra reduzir a pena visto tratar-se de um crime de Homicídio Simples Atípico.
165. Deverá fixar-se a pena para o Crime de Homicídio não superior a 15 anos de prisão;
166. Em cúmulo jurídico, de AA, não superior a 15 anos e 2 meses de prisão, o que se afigura uma pena Necessária, Adequada e Proporcional.
167. Deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, ser
REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA/ DESQUALIFICADO O CRIME E REDUZIDA A MEDIDA DA PENA.
168. Caso não se entenda desqualificar o crime, sempre se dirá que, todos os factos invocados supra invocados quanto à desqualificação do crime no ponto IV e no anterior ponto V, o que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, fundamentam uma redução da pena em que foi condenado o Arguido pelo Crime de Homicídio Qualificado.
169. Aplicando-se o disposto no artigo 72º do CP, uma vez que as circunstâncias globais exigem esta atenuação especial da pena,
170. Condenando o Arguido pelo Crime de Homicídio Qualificado, especialmente atenuado, numa pena não superior a 15 anos de prisão,
171. Em cúmulo jurídico, numa pena não superior a 15 anos e 2 meses de prisão.
172. Dá-se por integralmente reproduzidas todas as motivações supra invocadas, referente à globalidade da impugnação da matéria de facto no Ponto III do presente Recurso, e, ainda quando à Desqualificação do Crime de Homicídio, no ponto IV do presente Recurso e o Tribunal deve ter em consideração a correção da matéria de facto, a desqualificação do crime ou que ainda não ocorra, as circunstâncias globais do acontecimento, em concreto, a devida valoração ao confronto físico que existiu entre AA e BB no qual, esta reagiu de forma provocatória, tomando posse da faca e desferindo golpes no corpo de AA para ser tido em conta para a reapreciação do montante fixado para o dano morte, que face à globalidade das circunstâncias, será justo a fixação de um valor não superior a € 60.000,00 (sessenta mil euros).
173. Com a sentença proferida o Tribunal a quo violou o artigo 24.º, 32º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 40º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2º, alínea b) do Código Penal; 164.º, 167.º, n.º 1 e 2, 171.º, 178.º, 253.º, 379.º n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal;
Ao Julgardes assim, estareis, Venerandos Desembargadores, a fazer uma vez mais a boa e aclamada,
JUSTIÇA!!»
»
*
3. O Ministério Público respondeu ao recurso, terminando a sua resposta nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
EM CONCLUSÃO:

1) O douto acórdão recorrido, na sua livre convicção, fundamentou de forma pormenorizada e exaustiva na motivação da matéria de facto as razões de ter dado os factos como provados e não provados.
2) A livre convicção do Tribunal recorrido fundou-se nas declarações das testemunhas que indicou, consentâneo com a restante prova e mesmo com as declarações prestadas pelo próprio arguido que contrariam as mais elementares regras de experiência comum.
3) O recorrente limita-se a discordar da livre convicção do Tribunal, pugnando pela credibilidade da sua versão, que foi fundadamente afastada, pelo que aquela é inatacável.
4) Inexiste lugar à aplicação do Princípio in dubio pro reo quando o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida, muito menos razoável.
5) Inexiste qualquer nulidade ou prova proibida na junção das imagens de videovigilância, sendo prova licitamente obtida, corroborada pelas declarações do arguido e pelas transcrições das mensagens telefónicas.
* * *
Assim, e tendo em conta todo o exposto, entendemos que mantendo o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA.»
*
4. Neste Tribunal da Relação, em cumprimento do disposto no art. 416º, nº 1, do CPP, o Exmo. Srº. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo: (transcrição)
“(…)

1.
Importa tomarmos posição sobre o recurso afirmando desde já a plena competência deste Tribunal para dele conhecer pois que não se apresenta verificado o previsto no art.º 432, n.º1, al. c) do CPPenal.
Na realidade, apesar da decisão recorrida ter sido proferida pelo tribunal colectivo, o recurso não visa exclusivamente matéria de direito e não se confina á verificação dos erros-vícios previstos no n.ºs 2 e 3 do CPPenal já que alarga o seu objecto a uma impugnação ampla da matéria de facto, portanto sob a égide do art.º 412, n.ºs 3 e 4 do mesmo CPPenal.
2.
Neste contexto, devemos desde já referenciar que acompanhamos a posição vertida pelo MºPº na 1ª instância na sua resposta ao recurso. O mesmo é dizer, que secundamos e por isso perseguimos o mérito da decisão recorrida, como seguidamente explicitamos.
2.1
No que concerne à primeira questão, trata-se da validade de uma concreta prova, a resultante de uma videovigilância.
Observa o arguido recorrente, expressamente, que as imagens de videovigilância constantes do processo não poderão ser utilizadas para firmarem a livre convicção do julgador por constituírem prova inválida, pela singular razão de que, como expressamente menciona, a obtenção daquelas “não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP”. Todavia, incumpriu, assim o afirma, porque aquela prova não foi apreendida, como prevê o art.º 178 do mesmo CPPenal.
Posta a questão desta forma pelo arguido, necessariamente que este não assenta a invalidade da obtenção daquela prova, da videovigilância, como prevê o art.º 167, n.º1 daquele Código, afinal na sua ilicitude penal - “nos termos da lei penal”, diz este preceito, mas sim numa ilicitude adjectiva. A invalidade daquela prova decorre, assim o afirma, por ela ter sido “carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida” (fls.9 da motivação), não tendo o órgão de polícia criminal (OPC) formalizado a apreensão, já que “Os OPC devem elaborar um Auto de Apreensão que deve ser assinado pelo OPC e pelo detentor dos objetos apreendidos.”.
A sem razão do recorrente é por demais evidente, pois que, neste particular, não avança uma qualquer situação que revele que a prova em causa tenha sido obtida através de um método proibido de prova, na previsão do art.º 126 do CPenal. Em momento algum afirma o recorrente que tal prova tenha sido obtida através de tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, ou através de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular respectivo.
Afinal, a ilicitude que o arguido avança não reveste natureza penal – a única aqui relevante, assumindo-se claramente processual e a existir ela configuraria não uma qualquer nulidade – art.ºs 119 e 120 do CPPenal, mas sim uma mera irregularidade que, aliás, nunca arguiu no tempo oportuno, ou seja, em conformidade com o previsto no art.º 123 do CPPenal.
Em todo o caso, não se deverá olvidar que “Não previu expressamente o legislador, como meio de obtenção de prova os meios electrónicos de vigilância.” – acórdão do TRG, de 29/03/2004, proc. 168003-2, com a relatora desembargadora Maria Augusta. Mas tal meio de obtenção de prova tinha de ser assegurado pelo órgão de polícia criminal de acordo com o previsto no n.º2 do art.º 55 do CPPenal. Não se olvidará que mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente, é da competência dos órgão de polícia criminal “praticar os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova” – n.º1 do art.º 249 do dito CPPenal.
Então, a prova em causa é plenamente admissível e válida – art.º 125 do CPPenal.
2.2
Decorre do exposto que não há qualquer fundamento para afirmar, como faz o arguido recorrente, que o acórdão é nulo por excesso de pronúncia. A expressa alusão que faz ao art.º 379, n.º1, al. c) do CPPenal não deixa qualquer dúvida sobre tal. É que, como aquele afirma, afinal tal excesso de pronúncia decorre da circunstância daquele haver “valorado prova ilícita, proibida, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP”.
O acórdão em causa, valorou, como devia, a citada prova e não conheceu de uma qualquer questão de que não lhe era lícito conhecer por não estar compreendida no seu objecto.
Inexiste, pois, a convocada nulidade.
2.3
A divergência do arguido passa, ainda, pela concretizada impugnação da matéria de facto, nos termos acima referidos.
Quanto a esta, e vendo bem a pretensão do recorrente, facilmente se apercebe da confusão conceptual em que se move. Confunde, então, o erro-vício com erro de julgamento.
Acompanhando o saber claramente exposto no acórdão do STJ, de 15/07/2009, proc. 103/09-3.ª, com o relator conselheiro Raul Borges, “VI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
VII - No caso de impugnação da matéria de facto nos termos dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.°, al. b), do CPP.”.
No caso, o arguido convoca a existência do vício do erro notório na apreciação da prova previsto na al. c) do n.º2 do art.º 410 do CPPenal ao insistentemente convocar o princípio in dubio pro reo – vd. acórdão do STJ de 17.03.1999, Proc. 1439/98 - 3.ª Secção: “A violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o Colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.”.
Mas se assim procede, também entende que a certa matéria de facto, por expresso apelo a concretos meios de prova de natureza testemunhal, e soberanamente ao seu próprio depoimento, se encontra erradamente julgada. Considera erradamente julgados, especificamente, os factos provados vertidos nos pontos 1, 2, 3, 7, 8, 11, 17 e 19.
Afinal, a divergência para com o decidido não a restringe o arguido ao texto da decisão como impõe o sobredito normativo apropriado a uma revista alargada, estende-a, também, para a formação da convicção do julgador o que remete a discussão para uma impugnação ampla da matéria de facto e que está prevista no art.º 412, n.ºs 3 e 4 do CPPenal, então para o julgamento efectuado, para as concretas provas que nele foram produzidas.
Então, o dito erro notório como vício da decisão, não do julgamento, não está presente na decisão recorrida e não pode ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida. Como não pode ser entendido como constituindo a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos.
Urge considerar a dita impugnação da matéria de facto, então, sob uma vertente de impugnação ampla da mesma.
No âmbito desta, embora com ela não se vise a realização de um novo julgamento sobre aquela, ela tem lugar através da indicação e análise das gravações efectuadas na audiência, sendo um remédio para impedir eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, tomando em conta os concretos pontos de facto identificados pelo recorrente como sendo os carecidos de correcção.
Com este tipo de impugnação pretende-se uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos "concretos pontos de facto" que o recorrente tem de identificar e especificar. Daí que se afigure como dever do tribunal de recurso examinar tais pontos de facto questionados, analisando se eles têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa - vd. acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, e acórdão da Relação de Coimbra, de 11/03/2009, proc. 4/05.7TAACN.C1.
No caso, evidencia o recorrente que há erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados e identificados nos pontos 1, 2, 3, 7, 8, 11, 17 e 19.
O arguido para justificar a sua pretensão de erro no julgamento dos citados factos apela, como já referido, mormente ao seu próprio depoimento. E valorando-a não encontra neles fundamento para uma certeza, mas sim dúvida e só dúvida.
Todavia, e como resulta do acórdão de 05/01/2011 do TRC, proc. 888/04.6TAVIS.C1, com o relator Eduardo Martins, “2. Uma vez que o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo, sem esquecer que, nesta especificação, serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão. 3. A exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. 4. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação, ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação”.
Tomando em linha de conta o acabado de mencionar, devemos afirmar que o arguido não concretizou uma verdadeira impugnação da matéria de facto sob a égide do disposto no art.º 412 nºs 3 e 4 do CPPenal.
É que, e importa realçá-lo, este normativo é explícito ao mencionar que o recorrente deve indicar as provas que “impõem” decisão diversa da recorrida, não as provas que possam “sugerir” outra decisão.
Não identifica o recorrente as provas que impõem decisão diversa da adoptada fazendo a demonstração de que elas revelam o erro da decisão.
Apenas revela partes de depoimentos, sem contudo fazer uma correspondência entre essas partes e os concretos factos contestados. Ou seja, a impugnação concretizada a que falta a dita correspondência “facto a facto”, reconduz-se, afinal, a uma impugnação reveladora, isso sim, da convicção do recorrente sobre tais factos que, manifestamente diverge da do julgador.
E recordando o que se escreveu no acórdão do STJ, de 18/91/2018, proc. 563/14.3TABRG.S1, com o relator conselheiro Maia Costa, e fazendo a sua aplicação ao caso em apreciação, “Enuncia o arguido, como vimos, o propósito de impugnar os factos referidos nos n.ºs 8, 9, 14-17, 19, 21, 23, 25, 30, 32-36, 49, 51 e 52 da matéria de facto provada. Contudo, não faz uma impugnação facto a facto, nem a indicação exata das provas que relativamente a cada um imporiam decisão diversa, conforme é exigido. A contestação à matéria de facto dispersa-se pelos vários números, sem coerência nem sistematização.
Desta forma, em bom rigor, a impugnação não cumpre os requisitos legais enunciados no já citado art. 412º, nos 3 e 4, do CPP.”.
Daí que, e em derradeiro olhar sobre o tema, se deva afirmar que o recorrente olvida o real sentido do disposto no art.º 127 do CPPenal - “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” - normativo que o julgador aplicou no caso vertente com acerto e precisão 1. 
1 O princípio da livre apreciação da prova tem 2 vertentes. Na negativa, significa que na apreciação, valoração, graduação da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente pré-estabelecidos. Tem o poder-dever de alcançar a prova dos factos e de a valorar livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador. Do lado positivo, significa que os factos são dados como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material probatório validamente constante do processo, quer provenha da acusação, quer da defesa, quer da iniciativa do próprio.

Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos - Ricci Bitti/Bruna Zani, "A comunicação como processo social", editorial Estampa, Lisboa, 1997.
É que, e como de forma impressiva se fez constar no acórdão do STJ de 27/02/2003, proc. 140/03, com o relator conselheiro Carmona da Mota, “ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, sua idoneidade e autenticidade. iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido”.
Nada, rigorosamente nada, permite, então, que se deva modificar a matéria de facto dada como assente, nos termos supra mencionados. Ela deverá declarar-se intangível 2 até porque se apresenta infundada a persistente convocação por aquele do princípio in dubio pro reo.
2 Vd. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 de 24-03-2004 (DR, II Série, de 2-6-2004), que refere, em síntese: “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode, consequentemente, assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão"

Com efeito, a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo, tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal – vd. acórdãos do STJ de 05.02.2009, 14.10.2009 e de 15.04.2010, proferidos nos processos nºs 2381/08-5, 101/08.7PAABT.E1.S1 - 3 e 154/01.9JACBR.C1.S1 - 5.
“Não é assim toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada (…) A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio” - Acórdão do STJ de 04/11/1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
Tal princípio encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido – acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBSRT.C1, sendo dele relator o desembargador Fernando Chaves.
Então, o princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido – Acórdão do STJ de 18/03/98, in Proc. 1543/97.
Ora, o tribunal a quo não balanceou, não ficou numa dúvida intolerável perante as formas diversas de observar os factos, antes chegou a uma certeza jurídica, plenamente motivada, ou seja, com uma fundamentação coerente e racional e, por isso, não arbitrária.
Assim, tendo o tribunal alcançado uma certeza jurídica sobre os factos, não tinha a obrigação de lançar mão ao mencionado princípio.
Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto do acórdão, da fundamentação da convicção sobre a matéria de facto, ter o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obtido convicção plena, subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a autoria dos factos pelo arguido recorrente.
Insistindo, o princípio in dubio pro reo não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto – vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/12/2010, proc. 518/08.7PLLSB.L1-5, sendo dele relator o desembargador Neto de Moura.
Então, fora de qualquer censura se encontra, pois, a decisão recorrida neste particular.
Em clara síntese e como se escreveu no acórdão do TRP, de 17/09/2014, proc. 409/11.4GBTMC.P1, relator Alves Duarte, “Deste modo, baseando-se a pretensão recursiva numa avaliação da prova produzida na audiência de julgamento diversa daquela que foi seguida pelo Tribunal a quo sem que se detecte qualquer desconformidade com as regras da experiência comum, em que essa leitura da prova permite mas não impõe decisão diversa da recorrida, naturalmente que está votada ao completo fracasso”.
2.4
Entende o recorrente que existe uma errada qualificação jurídico-penal dos factos. Persegue a ideia de que o verificado homicídio não é qualificado, mas simples - “139. O homicídio em causa não poderá ser qualificado conforme a previsão do artigo 132.º do Código Penal, mas antes, como Homicídio Simples Atípico, com previsão e estatuição no artigo 131.º do Código Penal”.
Uma circunstância e só uma qualifica o crime praticado pelo arguido, e vista a decisão recorrida ela recai na previsão da al. b) do n.º2 do art.º 132 do CPenal – “o que desencadeou a sua actuação criminosa foram os rumores de que BB teria outro relacionamento: em vez de seguir também ele a sua vida, optou por pôr termo à da ex-companheira, numa estranha e vingativa opção!”, “o arguido escolheu precisamente esse acto [matar] para coarctar de forma inadmissível a liberdade de actuação da sua ex-companheira (fosse ou não verdade o tal homem existir na vida de BB, circunstância completamente irrelevante)”, “Mas, seguramente, não lhe dá o direito de agir baseado no primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez, ainda por cima baseado em rumores que ouviu na freguesia! Não se conformava com a possibilidade de BB poder ter refeito a sua vida, ficou frustrado, achava que ela era sua (como se uma pessoa fosse susceptível de propriedade), tinha ciúmes, e não encontrou melhor saída do que…matá-la.”, “o contexto factual da actuação do arguido, quando se sentiu definitivamente afastado do futuro de BB – pessoa a quem devia um especial respeito pela sua vivência anterior, em vez que a acossar na sua própria casa – leva à conclusão, sem margem para dúvidas, de que houve especial censurabilidade e perversidade na prática do crime de homicídio, aplicando-se-lhe a agravação da citada alínea b).”.
E nenhuma censura se poderá atribuir à decisão referida pois que as circunstâncias que rodeiam a morte da vítima são de tal modo graves que reflectem uma atitude muito distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores vigentes, ou seja, um grau fora do comum e acima do que já é altamente censurável e perverso, que é o acto de matar alguém.
A dita alínea b) do n.º2 do art.º 132 do CPenal - “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, a circunstância de o agente: (…); b) Praticar o facto contra (…), pessoa (…) do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, (…)” – e cuja actual versão foi introduzida pela Lei 59/2007, de 04/09, visa responder à censurabilidade social das situações de agressões no contexto de violência doméstica, na consideração de que “os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”, “mesmo se tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram” – Victor Sá Pereira e outro, Código Penal, pág. 344.
Usando as palavras de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 29, “A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade”.
No acórdão do STJ de 02/02/2022, Proc. 74/21.0GBRMZ.S1, com o relator conselheiro Lopes da Mota, seguiu-se o acabado de escrever: “(…) No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. (…) Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente.”.
Aliás, “II - «Especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido” – acórdão do STJ, de 27/05/2004, proc. 04P1389, com o relator conselheiro Pereira Madeira.
No caso em apreciação, releva, então, a especial perversidade do arguido já que presidiu às comprovadas circunstâncias da morte da vítima BB vertidas na factualidade provada tão só o seu “primitivo egoísmo”, desprezando os laços de respeitabilidade junto da vítima com quem viveu mais de uma década.
Como consta da factualidade referida, o arguido “17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB”. Tanto mais que não se pode olvidar a explicação oferecida por ele para o facto e que ficou a constar da fundamentação da decisão – “na minha cabeça, nós os dois ainda estava junto”.
Afinal, o ideado desígnio de morte do arguido não se concretizou à facada, mas realizou-se através de esganadura, assim corporizando um padrão típico. É que o estrangulamento/esganadura e a asfixia são o segundo método mais comum de homicídio de mulheres, nas relações de intimidade, a seguir ao esfaqueamento – vd. UK Femicides 2009-2018 https://www.femicidecensus.org/wp-content/uploads/2020/11/Femicide-Census-10-yearreport.pdf .
A conduta do arguido é perversa e merecedora de intensa reprovação porquanto, e como se escreveu no acórdão do STJ, de 25/02/2015, proc. 1514/12.5JAPRT.P1.S1, com o relator conselheiro Raúl Borges e fazendo a sua adaptação ao caso vertente, “VIII - O relacionamento do arguido com a vítima durante cerca de 3 anos como se casados fossem, e mantido até poucos dias antes (do homicídio), atendendo aos laços de afecto e da comunhão de vida, deveria ter funcionado como travão para a acção do arguido. A reacção do arguido é manifestamente desproporcional em relação à manifestação de vontade da vítima de não querer continuar com a relação amorosa. O arguido agiu com manifesta superioridade conferida pela posse de arma de fogo, sendo os tiros direccionados a zonas vitais (2º tiro atingiu-a na cabeça), a curta distância. Estas circunstâncias bastam para a acrescida censurabilidade e demonstrando comportamento altamente desvalioso, confirmando-se ter o arguido cometido o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP”.
Afinal, a decisão recorrida, neste particular, apresenta-se fora de qualquer censura. Estamos, efectivamente, diante de um homicídio qualificado.
2.5
Questiona o arguido, por último, a medida da pena.
Como é sabido, a tarefa tendente à busca da medida da pena, pressupõe a conjugação de duas tarefas. A primeira tem a ver com a delimitação da moldura penal abstractamente aplicável ao caso concreto e dentro dela a fixação do grau de culpa do agente. A segunda é relativa à equação das exigências de prevenção social e especial. É o que resulta, inequivocamente do disposto no art.º 71, n.º1 do CPenal. Claro está que se deverá ultrapassar a concepção da medida da pena como a “ arte de julgar”, como impressivamente sempre referiu o conselheiro Simas Santos.
Dito por outras palavras, a concreta determinação de uma pena será efectuada em função da culpa do agente, tendo em conta não só as exigências de integração positiva necessária para dar satisfação às exigências da consciência jurídica colectiva, no sentido de restabelecer a confiança geral na validade da norma violada, na própria ordem jurídica, como também a imperdível perspectiva de socialização ou integração do agente.
O art.º 40 do CPenal especifica as finalidades das penas, expressando, objectivamente, o que já atrás se mencionou: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. E o art.º 70 do CPenal fixa o critério de escolha da pena, consignando o art.º 71 do mesmo diploma legal que o tribunal deverá actuar em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, obrigando à ponderação das demais circunstâncias aí referidas.
Brevitatis causa, e aplicando o que se acabou de referir, cremos que a pena encontrada e agora contestada se acha a salvo de qualquer censura, pois que foi determinada dentro da moldura abstracta de 16 anos e 25 anos de prisão, já que o arguido se tornou autor de um crime de homicídio qualificado, agravado. E devemos reconhecer que esta não peca por excessividade já que margina o seu mínimo abstracto.
É certo que foi dado como provado que o arguido “17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB”.
Não obstante tal, certo é que não se encontra provado que o arguido tenha agido dominado por uma compreensível emoção violenta, por compaixão, por desespero ou por um qualquer motivo de relevante valor social ou moral, circunstâncias que lhe tenham diminuído “sensivelmente” a culpa.
O concreto motivo acima revelado não constitui propósito de verificação de um homicídio privilegiado consequente a uma “cláusula de compreensibilidade”. E não se constitui como circunstância atenuativa. Com efeito, e como se pode ler no acórdão do STJ de 15/04/2015, proc. 176/13.7JAFAR.E1.S1, com o relator conselheiro Nuno Gomes Silva, “É sabido, aliás, que o ciúme comporta uma dimensão instintiva que por vezes é relacionada, segundo alguns, com um sentimento de receio de perda, real ou imaginário, que seria revelador de falta de confiança e baixa auto-estima podendo assumir características de transtorno obsessivo aspecto que o demarcam claramente daquela atitude de gratuitidade e frivolidade já mencionada.
Mas outrossim já lhe foi retirada pela mesma jurisprudência uma valorização de tipo atenuativo por se considerar que tal «é incompatível com valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa» (cfr Acs de 2009.04.29, proc 434/07.0PAMAI.S1 e de 2013.05.29, proc 132/07.4JBLSB.L2.S1…).
A personalidade do arguido, caracterizada por egocentrismo e possessão em relação à vítima, e a incapacidade deste, no caso concreto, aceitar a decisão daquela em não reatar a relação, revela exigências de prevenção especial que a pena aplicada afinal expressa de modo justo.
Aliás, não foi dado como provado que o arguido sofresse de delírio crónico passional de ciúme que lhe diminuísse a sua capacidade de dominar a vontade e que lhe atenuasse a consciência do carácter proibido da sua conduta. Sendo assim, inexiste circunstância atenuativa da sua culpa.
Isto é, tendo em vista a situação fáctica provada, não há lugar a uma atenuação especial da pena nos termos previstos no art.º 72 do CPenal, pois que, a aplicação daquela só se justifica perante circunstâncias excepcionais que no caso não se verificam e que tornem desproporcionada e injusta a moldura penal normal, por aí não se poder encontrar uma medida da pena que se acomode à ilicitude e á culpa.
Então sem censura está a determinação da pena concreta aplicada ao arguido.
2.6
Falta-nos interesse em contraditar no que concerne à divergência do arguido relativamente à matéria cível.
 
Em conclusão:
1. É plenamente válida para a formação da convicção do julgador a prova resultante de um aparelho de videovigilância e que foi assegurada e carreada para o processo por um órgão de polícia criminal tendo em vista o previsto no art.º 249, n.º1 do CPPenal, a licitude da sua obtenção “nos termos da lei penal”, da sua obtenção – art.º 167, n.º1 do CPPenal, e inexistência de um qualquer método proibido de prova na sua produção – art.º 126 do CPPenal;
2. O acórdão recorrido não padece de nulidade por excesso de pronúncia por, afinal, ter procedido à valoração de tal prova já que esta se conforma com o objecto do processo;
3. O recurso do arguido deverá ser julgado improcedente quanto à impugnação da certa matéria de facto que avança já que esta se deverá manter imodificada pois que, quanto a ela, inexiste um qualquer erro de julgamento que importe reparar, procedendo o recorrente à impugnação daquela fora dos critérios previstos no art.º 412,n.ºs 2 e 3 do CPPenal, até porque não se acha violado o princípio in dubio pro reo, não possuindo a decisão recorrida, um qualquer dos erros-vícios previstos nas alíneas do n.º2 do art.º 410 do CPPenal;
4. O recurso do arguido também deverá ser julgado improcedente no que concerne à qualificação jurídico-penal dos factos, devendo confirmar-se a sua condenação como autor de um crime de homicídio qualificado agravado, nos termos previstos no art.ºs. 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) do Código Penal, e art.º 86.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02
5. A improcedência deverá verificar-se também no que concerne ao quantum da pena pois que esta, efectivamente, não padece de excessividade ou desproporcionalidade, e marginando aquela o seu mínimo abstracto, acata o previsto nos artigos 40, n.ºs 1 e 2, e 71, ambos do CPenal, até porque inexiste fundamento para uma almejada atenuação especial da pena, apesar da motivação do crime ter sido, comprovadamente, o ciúme do arguido.”
*
5. O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
*
1. Questões a decidir

Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. (Arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).

Antes de mais, cumpre salientar o seguinte:
Determina o artigo 412º, nº 1, do CPP, “que a motivação (…) termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.”
Posto que a sanção de rejeição apenas esteja expressamente prevista para aquele “mais” exigido por lei quando o recurso versa matéria de direito, não vem sofrendo grande contestação o entendimento em como, por identidade de razões, aquela mesma consequência será de cominar à ausência ou deficiência das especificações exigidas no respetivo n.º 3, nos casos em que o recurso tem em vista a impugnação da matéria de facto, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, III, 350.
Pelo menos uma parte da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de que o Ac. STJ de 04.03.1999, in CJ, S, I, 239, será o mais emblemático, veio sustentar igualmente, que “tem que ser rejeitado o recurso em que o recorrente apresentou como conclusões uma cópia integral do texto da motivação, nomeadamente no que concerne às epígrafes das matérias tratadas e aos números dos artigos, apenas com pequeníssimas e irrelevantes diferença de pormenor”.
Tal como o assinala aquele Distinto Professor na obra citada, pág. 351, “as conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objecto de decisão”, cumprindo-se assim, dessa forma, também aquele outro desiderato de tornar rapidamente apreensíveis pelo tribunal ad quem, os fundamentos por que se pede o provimento do recurso.
Este aspeto de síntese que as conclusões devem traduzir em relação às razões constantes da motivação, ainda que decorra do próprio sentido comum associado ao termo, pode seguramente ser evidenciado por uma plêiade de autores, que vão do próprio Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V, 358 e ss. a Simas Santos, Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Rei dos Livros, 801 e ss., passando por uma numerosa Jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.
A este propósito, referem nomeadamente com relevância direta para a questão que vimos tratando aqueles Comentadores, que “não pode o recorrente limitar-se a reproduzir nas conclusões toda a matéria desenvolvida nos fundamentos da motivação, pois assim desvirtuaria a função de síntese que é assinalada às conclusões, quando se dispõe que o recorrente “resume as razões do pedido”.
Questão mais complexa é, como da “omissão” do ónus de concluir se faz equivaler o tal juízo de rejeição, já que apertis verbis, tal sanção não está legalmente consagrada.
Para o indicado acórdão do STJ, nas situações em que existe uma quase cópia das razões apresentadas na motivação e, a esta situação nos vamos ater essencialmente, não tendo o recorrente sido capaz de resumir a razões do pedido, tal acaba por redundar numa situação de “falta de conclusões”.
Como a falta de conclusões “equivale à falta de motivação”, por essa via somos conduzidos à rejeição do recurso nos termos do artigo 420º/1 C P Penal.”
À possibilidade de rejeição em tais casos, nunca o próprio Tribunal Constitucional a objetou nos diversos arestos que conduziram à declaração com força obrigatória geral, da norma constante dos artigos 412º, nº1 e 420º, nº 1, do CPP, na redação anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa - acórdãos nº.s 193/97, 43/99, 417/99, 337/00 e posteriormente 320/2002.
A única condicionante que colocou, foi o da “falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência”.
O Tribunal Constitucional decidiu, então, com força obrigatória geral, ser inconstitucional a norma constante dos artigos 412º, nº 1 e 420º, do CPP, quando interpretados no sentido de que a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência, Ac. 183/2000, in DR. I-A série de 21.7.2000.
A situação estava mais elaboradamente regulamentada no artigo 690.º C P Civil, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 329-A/95, de 12/12, pois aí já se mostra previsto o referido convite por parte do relator, nomeadamente para o efeito de se proceder a tal síntese, e bem assim “o não conhecimento do recurso na parte afectada” como sancionamento específico do seu não cumprimento.
Hoje, com a reforma operada no CPP através da Lei 48/2007, igualmente, passou a estar expressamente prevista a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento, cfr. artigo 417º, nº 3, aquando da falta de conclusões ou impossibilidade delas se deduzir as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artigo 412º.
Em todo o caso, tratando-se matéria constritora de direitos, maxime de um direito tão importante em sede de processo, como é o de recurso, importa que o não cumprimento de qualquer daqueles ónus não deixe de traduzir como desvalor, o sancionamento da falta “de estruturação (…) do procedimento na fase de recurso e não (…) um simples entrave burocrático à realização da justiça” como se afirma no Ac. do TC n.º 193/97, de 11/03/1997.
A possibilidade de rejeição deve ser feita de forma parcimoniosa, procurando-se sempre indagar se estamos de facto perante uma situação de mera repetição da motivação ou se a especialidade ou a peculiaridade da matéria ou a própria natureza já de si condensada da própria motivação, justificam que as conclusões assumam esse cariz pouco sintético.
Haverá assim, sempre que possível, afastar deste domínio juízos meramente subjetivos, já que, tal como se afirma no Ac. STJ de 15.1.2004, in CJ, S, I, 169, é por vezes “muito difícil a tradução para a prática do conceito de concisão (…)”, “a concisão enquanto objecto da praxis é muito relativa, dependendo das concretas circunstâncias do caso e dos objectivos que se pretende alcançar”.
No caso vertente, obviamente que nem pelo número, nem, essencialmente, (como não podia deixar de ser) pelo conteúdo – prolixo e repetitivo - se pode considerar que o recorrente satisfez as exigências do artigo 412º, nº 1, do CPP.
Com efeito a diferença entre os artigos do corpo da motivação e os 173 é reduzida , ou praticamente nenhuma – salvo algumas transcrições de declarações prestadas em julgamento.
Tudo o mais é manifestamente coincidente, com repetições palavra por palavra, seja, o que consta do corpo da motivação foi transposto, quase ipsis verbis para as conclusões.
Só que se o arguido, voluntariamente, não deu cumprimento ao estatuído no texto legal, a este propósito, não vislumbramos que o pudesse (soubesse) fazer, se fosse convidado para tal.
Assim, para evitar a prática de atos inúteis - o que de resto é vedado pela lei - e dado estarmos perante um processo de natureza urgente, avaliando e ponderando os diversos graus dos interesses em jogo, perante o manifesto incumprimento da Lei, por um lado e, a urgência requerida pela situação concreta, fator aliado a termos sérias e fundadas dúvidas que o convite fosse acolhido, em termos úteis e satisfatórios, damos prevalência a esta última vertente, essencialmente por se não vislumbrar qualquer vantagem para o recorrente no endereçar de convite a reformular o que apelidou de conclusões.
Não obstante, as entendidas, formalmente, conclusões da motivação do recorrente, embora não respeitem (longe disso) adequadamente as imposições processuais, não constituindo o que vem qualificado de conclusões, o resumo das razões do pedido ou uma síntese do corpo das motivações, onde se concretize o onde e o porquê se decidiu mal e como se deve decidir - permitem, ainda assim, surpreender e identificar as questões submetidas, de entre o arrazoado apresentado, à cognição deste Tribunal, e delimitar ainda assim o objeto do recurso.
*
Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

Recursos Interlocutórios
- Nulidade diligências do OPC (reconstituição de facto e interrogatório arguido);
- Excesso de pronúncia;
– Prova proibida;
Do Acórdão
Matéria de facto
- A existência, na sentença recorrida, do vício decisório de erro notório na apreciação da prova, com violação do In dubio pro reo;
- Impugnação ampla da matéria de facto;
De Direito
- Qualificação jurídica dos factos imputados;
- Medida da pena;
- Atenuação especial;
- Montante fixado a título de indemnização civil.
*
2. Sentença recorrida

É do seguinte teor a motivação de facto e de direito constante da sentença recorrida (transcrição):
“(…)
«Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com registo fonográfico da prova.
O arguido interpôs recurso do despacho que, em sede do seu primeiro interrogatório judicial, indeferiu várias nulidades por ele invocadas, alegadamente existentes entre a sua detenção e aquele interrogatório; após a sua admissão e subida ao Tribunal da Relação de Guimarães, este, por decisão sumária, alterou o regime de subida, fixando-o nos próprios autos e de forma diferida, com o recurso que venha a ser interposto da decisão que puser termo à causa.
*
FACTOS PROVADOS (com relevância para a decisão da causa)
(Da acusação)

1. O arguido e BB, respectivamente de 38 e 53 anos à data dos factos, iniciaram uma relação amorosa em 2010, que mantiveram ao longo de cerca de doze anos, em comunhão de mesa, leito e habitação, na residência desta, no Lugar ..., ..., ..., ..., relacionamento que veio a cessar no início de 2022, com a saída do arguido dessa casa.
2. No entanto, porque aquele se mantivesse vinculado psiquica e emocionalmente à vítima e não aceitasse aquele desfecho, e aquela continuasse a não corresponder aos seus anseios e pedidos de contacto pessoal, o arguido iniciou sentimentos de desconfiança, de ciúme e posse, que redundaram em frustração que não conseguiu debelar.
3. Escutando rumores na freguesia que aludiam à existência de um novo namorado de BB, e que essa pessoa estaria na freguesia no dia 11 de Março de 2022, o arguido formulou o propósito de surpreender o alegado novo namorado com a ex-companheira e de pôr termo à vida desta.
4. Nesse dia, cerca das 15h, o arguido saiu da sua residência sita na Estrada ..., ..., ..., ..., munido de duas facas de cozinha que meteu dentro de um saco plástico de cor ... – uma com cabo preto e lâmina de cerca de 22 cm de comprimento e 2,5 cm de largura (junto ao cabo), e outra com cabo em madeira, de cor ... e lâmina de um só gume, com 15 cm de comprimento e 3,8 cm de largura (junto ao cabo), com a inscrição “...”.
5. Dali, determinado em dar curso à execução do plano referido em 3., o arguido seguiu de bicicleta em direcção à habitação sita em ... onde residia a sua ex-companheira e, pelo caminho, parou no café em ... e na casa da mãe de BB, a qual, a pedido do arguido, informou este que a sua filha já estaria em casa.
6. Uma vez chegado a casa desta, após deixar a bicicleta em sítio por forma a não ser captado pelo sistema de videovigilância instalado por cima da porta da entrada principal da residência de BB, o arguido deslocou-se apeado em direcção à zona dos anexos e quintal, onde encontrou esta a estender roupa.
7. Aproveitando o momento em que BB se encontrava de costas para o arguido, este abordou-a sorrateiramente, posicionando-se imediatamente atrás daquela, com a faca de cabo preto na mão.
8. Aí, iniciou-se um envolvimento físico entre ambos, no desenrolar do qual o arguido, prosseguindo no seu propósito, reinvestia a sua força física sobre o corpo de BB sempre que esta se debatia para se libertar dele; no decurso da refrega, arguido e BB ficaram, em momentos distintos, na posse da dita faca, e ambos desferiram golpes no corpo um do outro.
9. Tal confronto físico precipitou a queda de BB em posição de decúbito dorsal, onde o arguido, por cima dela e com força, apertou-lhe o pescoço, inicialmente com uma das mãos e depois com ambas, sem largar ou afrouxar, até lhe cortar a respiração e lhe tirar a vida, o que conseguiu.
10. Na sequência de contacto telefónico estabelecido pelo arguido pelas 16.25h, a partir do seu n.º ...69 para o n.º 112, dando a notícia de que matara a sua mulher, ao local da ocorrência acederam, primeiro, o INEM e depois a GNR; enquanto aguardou, o arguido entrou na habitação de BB, tirou duas cervejas “...” do frigorífico da cozinha e bebeu-as, deixando as garrafas vazias em cima do depósito das botijas de gás junto à porta de entrada da habitação.
11. À chegada daquelas entidades, o arguido apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, e ostentava na sua roupa e calçado manchas de sangue.
12. O INEM, após executar manobras de reanimação, veio a certificar o óbito pelas 17.10h.
13. A GNR apreendeu, para além do mais, as facas de cozinha aludidas em 4.:
- a primeira já partida, com o cabo separado da lâmina, ambos com manchas hemáticas e a centímetros do corpo de BB;
- a segunda num saco plástico pousado junto aos anexos da habitação.
14. Com a prática dos factos supra descritos, o arguido originou, de forma directa e necessária para BB, as seguintes lesões, nomeadamente:
a) ao nível do hábito externo: um corte/incisão no dedo mínimo da mão esquerda; um corte na palma da mão esquerda; uma laceração na palma da mão direita; dois cortes no polegar da mão esquerda; equimoses no cotovelo direito; uma laceração no braço esquerdo; múltiplas marcas avermelhadas no pescoço (equimoses), envolvendo as faces anterior, laterais e posterior, compatíveis com quadro de asfixia por compressão extrínseca dessa zona com recurso a mãos (esganadura);
b) ao nível do hábito interno: sufusões hemorrágicas dispersas pela mucosa da cavidade oral e da glótica, e dispersas pelo lobo inferior de ambos os pulmões; múltiplas áreas de infiltração sanguínea envolvendo o tecido subcutâneo cervical, os músculos do pescoço e o lobo esquerdo da glândula tiróide, lesões compatíveis com quadro de asfixia por compressão extrínseca dessa zona com recurso a mãos (esganadura).
15. As lesões traumáticas na zona anterior e posterior do pescoço provocaram, em consequência de asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço (esganadura), de forma directa e necessária, a morte de BB.
16. O arguido agiu com a intenção de tirar a vida à sua ex-companheira, como conseguiu, visando oprimir, a ponto de cortar por completo, a respiração da vítima, atingindo órgãos que bem sabia serem vitais.
17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB.
18. Mais reflectiu no caminho que a contenda levava, decidindo empregar um meio que, actuando naquela zona vital, sabia ser suficiente para consumar a morte de BB, assumindo a resolução de matar.
19. O arguido conhecia as características das facas que possuía, sabia que as detinha fora do local do seu normal emprego e que a única justificação para a sua posse era serem destinadas nos termos em que o foram; não obstante, não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e fez.
20. Sabia ainda o arguido que lhe estava vedada por lei a prática de todas as condutas descritas e que as mesmas eram punidas, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente.
(Da discussão da causa)
21. O arguido não tem antecedentes criminais.
22. Oriundo do estado de ..., ..., o arguido cresceu com os pais (agricultores, vendiam arroz, café e milho que cultivavam) e quatro irmãos em contexto socioeconómico modesto; cabia à mãe a gestão do orçamento familiar e o acompanhamento dos filhos, num ambiente funcional e solidário. O arguido abandonou a escola após a conclusão do 4.º ano, aos 10 anos, para ajudar os pais no cultivo das terras, o que fez até aos 22 anos. Na sua cidade natal, no decurso de uma relação de namoro e de uma gravidez precoce, foi pai aos 18 anos; o casal viveu em união de facto dois anos após o nascimento do filho, separando-se em seguida. O arguido não tem contacto com o filho, actualmente com 17 anos. Desde que veio para Portugal (...) com um amigo, aos 22 anos, o arguido nunca mais voltou ao ..., mantendo contactos com o agregado de origem por via telefónica. Começou por trabalhar em duas empresas de limpeza/manutenção de ruas e caminhos, seis e oito meses, respectivamente; em busca de melhor salário, o arguido passou a ser motosserrista (cortando madeira nos montes), numa empresa onde esteve 11 anos, com um percurso regular e responsável. Em 2010, iniciou a relação afectiva com BB, que manteve durante cerca de 12 anos, e com quem viveu na casa desta; era a única fonte de rendimento do agregado, canalizando todos os seus rendimentos para a compra de materiais de construção para melhorar as condições habitacionais (não tinham casa de banho nem saneamento e o chão era em terra batida). O arguido caracteriza o relacionamento como equilibrado e gratificante. O seu quotidiano era no trabalho, sobrando o domingo para estar em casa ou conviver com a companheira e vizinhos no café da localidade, onde detinha uma imagem positiva. À data dos factos, o arguido tinha deixado de residir com BB há cerca de dois meses, depois desta lhe ter comunicado que queria que ele saísse de casa por não querer manter o relacionamento, decisão que o arguido recebeu com surpresa e desagrado. Com o apoio do patrão e outros amigos, o arguido arrendou casa na freguesia ..., que mantinha à data dos factos; o seu salário era de € 800,00 mensais. Nos tempos livres, o arguido continuou a conviver com amigos e colegas de trabalho; foi neste contexto que referiu ter sabido que a sua ex-companheira teria outro namorado, facto confirmado pelo filho desta, de quem o arguido era próximo. Esta situação repercutiu-se nos consumos de álcool por parte do arguido que, outrora moderados, se intensificaram e tornaram problemáticos, com faltas ao trabalho e embriaguez nos cafés, assumindo um discurso de revolta e injustiça pela traição de que refere ter sido vítima. O arguido circunscreve os consumos de álcool ao período entre a sua saída da habitação e a data dos factos, considerando não ter necessidade de acompanhamento nessa área. Nas localidades onde residiu, o arguido é visto como humilde, trabalhador e socialmente integrado; nas relações sociais, não existem referências a comportamentos desadequados do arguido, com excepção do período referido supra. Quando em liberdade, o arguido diz pretender regressar ao ... e reorganizar a sua vida pessoal e laboral; aponta, como principal impacto, a perda da sua liberdade, conformado com a sua constituição como arguido. Perante a natureza dos factos, o arguido tem juízo crítico, reconhece a sua ilicitude, o dano e sofrimento da vítima. A situação de reclusão levou a mãe do arguido, pela natureza do crime em causa e pela sua forte religiosidade, a manifestar que não estará disponível para o apoiar qualquer que seja o desfecho do processo. No estabelecimento prisional, o arguido assume comportamento adequado.

(Do pedido de indemnização civil)
23. CC nasceu a .../.../1988, DD nasceu a .../.../1990 e EE nasceu a .../.../1991, sendo todos filhos de II e de BB.
24. BB nasceu a .../.../1968 e, à data do óbito, era viúva.
25. Apesar de BB ter lutado com o arguido, da forma descrita em 8., foi sentindo a sua impotência perante a superioridade física do arguido.
26. Até perder os sentidos, BB teve plena consciência que ia morrer, o que lhe causou angústia, sofrimento físico, ansiedade e medo.
27. BB era saudável, alegre, amiga, mãe dedicada, trabalhadora e cuidava dos seus pais.
28. Os demandantes perderam o pai quando eram ainda menores, sendo a mãe, além da restante família, a suprir essa falta.
29. BB e os filhos eram unidos e afectuosos entre si.
30. Os demandantes são pacíficos e foram criados num ambiente de solidariedade.
31. Os demandantes ficaram tristes com a morte da mãe, que lhes causou desgosto.
*
FACTOS NÃO PROVADOS

(Da acusação)
- Que, na ocasião referida em 7., o arguido tenha enlaçado um dos seus braços no pescoço de BB, apertando-o a ponto de causar sensação de quase sufoco, e que tenha apontado a lâmina da faca ao peito daquela;
- que, com ambos de pé, o arguido tenha agarrado com uma das mãos o pescoço de BB e, usando da sua máxima força física, a tenha derrubado no chão;
(Do pedido de indemnização civil)
- que BB tenha lutado pela sobrevivência durante mais de 20 minutos;
- que os demandantes sintam algum complexo de culpa por não terem previsto a possibilidade da ocorrência descrita nos autos.
*
FUNDAMENTAÇÃO

A convicção do tribunal assentou na análise crítica de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência comum, como se passa a explicitar.
As declarações do arguido em julgamento serviram para 1. a 5. (a parte final deste corroborada pelo depoimento de HH, mãe de BB), 6. (a localização da bicicleta resulta das fotografias de fls. 22 e 78, não aparecendo nas imagens do DVD – auto de fls. 268 a 275 – captadas por uma câmara imóvel na residência de BB), 7., 8. (complementados, na parte final, pelo auto de exame ao cadáver a fls. 11, pelas fotografias de fls. 44 a 46 e por fls. 593 a 595 do relatório de autópsia, quanto aos cortes nas mãos e, relativamente aos ferimentos do arguido, pelas  fotografias de fls. 81 a 87, 192 a 196 e 198 a 205 – também úteis para 11., assim como o auto de apreensão de fls. 37 – e pelas fichas de urgência de fls. 298/299 e 121), 9. (corroborado pelas fotografias de fls. 41/42, 47 a 50, 55, 206 a 209, quanto à posição de BB, e pelo relatório de autópsia de fls. 585 a 601 – decisivo para 14. e 15.), 10. (confirmado pela informação das operadoras de fls. 614 e 563, pela fotografia do ecrã do telemóvel de fls. 197, pela transcrição da segunda chamada do arguido para o INEM – fls. 292 a 294, em CD junto aos autos –, pelos registos do INEM de fls. 247 a 265, pelo visionamento das imagens de videovigilância da casa de BB – maxime fls. 272 e 273 – e pelas fotografias de fls. 36, 70 a 72 e 74/75) e 17. (o arguido assumiu ter ciúmes do alegado namorado de BB, acrescentando “na minha cabeça, nós os dois ainda estava junto”).
O teor de 12. resulta de fls. 118.
A intenção que norteou o arguido (parte final de 3., 16. e 18.) resulta inequívoca de um conjunto de indícios:
- o arguido saber que a sua ex-companheira se preparava para ir para ... (facto confirmado pela testemunha – e patrão – GG, a quem o arguido o disse quer uns dias antes dos factos quer na própria manhã de 11 de Março), o que a levaria para longe dele (na mente do arguido, tal não era compatível com o referido supra a propósito de 17.);
- a circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objectos potencialmente letais (apreendidas a fls. 13, sendo a primeira fotografada a fls. 41 a 44 e 207 a 209 e a segunda a fls. 55 a 57 – o que também serviu para 13. e 19.);
- o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão;
- apesar da resistência oferecida por BB (provocando ferimentos no arguido, inclusive nas mãos), o recurso do arguido a estas como arma;
- o período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (dois primeiros vídeos de fls. 268, que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir;
- a descontracção, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (conforme supra referido em 10)., bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (o de fls. 292 a 294 e o anterior, fls. 269/270) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento (fls. 269), afirmando até “então eu hoje decidi, vim cá matá-la eu” (fls. 270) –, com a testemunha FF (que confirmou a existência da chamada, audível nos registos da câmara de vigilância de casa de BB e transcrita a fls. 270/271, onde o arguido se preocupa com o destino do seu gato e de ter cigarros na cadeia, se refere a BB com insultos – “puta” – e diz “não dava para viver assim, não estava conseguindo (…) gozaram comigo, isso não se faz”), com o aludido patrão GG (fls. 272) – “eu fui dar uma facada nela (…) A puta está ali, está morta, até a língua está para fora (…) Não ia fazer pouco de mim assim” – e até com a sua mãe (fls. 274), a quem comunica de forma factual (e reiterada) o que acaba de fazer, ainda tentando minorar a sua conduta (“ela me deu três facadas”). 
Perante estes elementos, é inócua a não assunção, por parte do arguido, da intenção de matar a ex-companheira: as (alegadas) afirmações do arguido de que, no envolvimento físico entre ambos, por duas vezes disse a BB, “calma, ..., não te vou matar”, além de não constarem das gravações da aludida câmara de vigilância, são absolutamente contraditórias com a sua actuação; por outro lado, apesar de dizer que a sua vontade era apenas lutar com o alegado namorado da sua ex-companheira, ou mesmo matá-lo, o arguido, quando confrontado, não conseguiu explicar de forma cabal porque não foi embora no momento em que percebeu, ainda fora da casa, que esse homem não estava lá. A comoção e o choro do arguido ao longo das suas declarações são obviamente insusceptíveis de apagar o que se passou no dia dos factos, única matéria relevante para apurar a sua intenção para com a vítima.
O teor de 20. é do conhecimento de qualquer cidadão imputável, como é o caso do arguido. Para 21., serviu o certificado de registo criminal (ref.ª ...97), sendo o relatório social (ref.ª ...78) útil para 22., além dos depoimentos do aludido patrão do arguido, da sua mulher JJ (também funcionária da empresa) e do citado amigo (e colega de trabalho) FF.
Ex abundantiae, há ainda a registar a análise dos telemóveis de arguido e de BB (de que resulta terem ambos falado por essa via pela última vez a 6 de Março de 2022, por iniciativa do primeiro – fls. 474 e 493), o ADN masculino encontrado no exame biológico ao pescoço de BB (fls. 578 a 584), bem como idêntico exame à roupa do arguido, à faca e ao cabo (7.), que não permitem excluir nem arguido nem vítima dos respectivos vestígios (fls. 635/636), o que é natural dada a luta entre ambos.
KK, cabeleireira frequentada por BB, apenas sabia da sua intenção de ir para ... no dia seguinte aos factos, o que foi confirmado pela irmã de BB, LL (conhecedora dos receios daquela de que o arguido lhe fizesse mal).
Relativamente à matéria do pedido cível, além do carácter notório do sofrimento da própria vítima – 25. e 26. – (também documentado nas gravações áudio já referidas, e reforçado pelo facto de ela estar na plena posse das suas faculdades, não lhe tendo sido detectada qualquer substância no sangue – fls. 577) e dos filhos da vítima (dos quais apenas foi ouvido CC), foram ainda úteis, para 27. a 31., os testemunhos dos seus familiares LL e MM (sua cunhada) e de NN, vizinho de BB (não tendo nenhum deles aludido a complexos de culpa por parte dos filhos desta). Para 23., serviram os assentos de nascimento de fls. 669/670 e, para 24., os documentos de fls. 9 e 554.
De nada serviu o auto de fls. 17 a 20, valendo as fotos de fls. 21 a 36 apenas pelo que documentam do espaço e da roupa do arguido, mas não como meio de suporte de declarações deste na altura.
O demais alegado na acusação e no pedido de indemnização civil não consta dos factos (provados ou não provados), por se tratarem de conceitos, conclusões ou matéria de direito, tudo insusceptível de prova (ou de falta dela).
*
DIREITO

Começando a análise da conduta do arguido pelo crime mais grave, vem ele acusado da prática de um crime de homicídio qualificado.
O tipo simples do crime, previsto no art. 131.º, estabelece que “quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. Assim se pretende proteger o bem jurídico supremo – a vida humana –, punindo-se de forma particularmente grave o agente que causar a morte de outra pessoa.
No caso, é inquestionável que o arguido causou a morte de BB, porquanto, primeiro com uma mão e depois com ambas, apertou o pescoço desta, sem largar, até lhe cortar a respiração e tirar a vida; ou seja, foi a conduta do arguido a única causa, directa e necessária, do falecimento da sua ex-companheira. Não há dúvida, por isso, do preenchimento do tipo objectivo de ilícito.
É também clara a verificação do tipo subjectivo de ilícito: ficou provado que o arguido, ao apertar continuamente o pescoço de BB, quis causar a morte desta, tendo assim agido com a intenção de tirar a vida à vítima.
Cometeu, assim, o arguido, na pessoa de BB, um crime de homicídio consumado.
Importa agora apreciar se tal crime é ou não qualificado.
Dispõe o art. 132.º, n.º 1, que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”. O n.º 2 deste último artigo apresenta um elenco de circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, umas relativas ao agente e outras ao facto.
Na acusação, refere-se não só a alínea b) deste n.º 2 – “praticar o facto contra (…) pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação (…) análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação” – e a alínea e) – ser o agente “determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil” – como também a alínea j) do mesmo número – “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”.
Sendo a indicação legal do art. 132.º, n.º 2, meramente exemplificativa, isso implica que podem constituir “crimes qualificados condutas que não se enquadram em qualquer desses índices e o não possam constituir outras que, identificando-se com eles, não revelem a censurabilidade ou perversidade que qualificam a acção e realizam o tipo legal” . Ou seja, “nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que, na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores” . Assim, a formulação legal acaba por propiciar ao aplicador da lei uma maior flexibilidade na apreciação das circunstâncias especiais de cada crime, uma vez que a qualificação não faz parte do tipo de ilícito mas se consubstancia, afinal, em elementos constitutivos do tipo de culpa .
Ora, no caso concreto e começando pela alínea e), é evidente que carecem os autos de factos que permitam enquadrar a actuação do arguido nos conceitos de avidez, prazer de matar ou causar sofrimento, e excitação ou satisfação do instinto sexual. Resta, portanto, a questão do motivo torpe ou fútil.
Torpe será, seguindo a definição etimológica, um motivo “desonesto, ignóbil, sórdido, nojento, indecoroso, obsceno” ; ou, conforme a jurisprudência, “um motivo vil, abjecto, revelador de baixo carácter, repugnante, ignóbil, nitidamente revelador (…) de profundo desprezo pela vida humana” .
Já quanto ao motivo fútil, “tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. A grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das conceções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge pois com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.”
Portanto, é motivo fútil “aquele que não tem relevo, avaliado do ponto de vista do agente; motivo torpe é o que ofende a moralidade média ou o sentimento ético-social” .
A título de exemplo, são motivos fúteis matar alguém com uma facada no peito porque a vítima se recusou a dar um cigarro ao agente, espetar um canivete no tórax por a vítima não ter dado ao agente moedas em troca de ajuda no estacionamento, ou deitar uma mulher de uma ponte com 13,5 m de altura em relação ao rio para evitar que aquela denunciasse os arguidos .
No caso, é patente que, embora já separado da vítima, o arguido mantinha-se a ela vinculado na sua cabeça e não aceitava a ruptura (2.), e que, no dia dos factos, actuou movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre BB (17.).
Não se pode enquadrar este motivo na noção de torpe, supra explicada; quanto à futilidade e, como se referiu, à luz das noções éticas da sociedade, o ciúme não transforma a actuação do arguido em algo absurdo e sem explicação. É de reprovar e, evidentemente, não justifica o acto (ou, como outrora acontecia, o faz ser positivamente valorado!). Porém, falta-lhe aquele vazio e desproporção que permitam o seu enquadramento no motivo fútil, isto sem prejuízo do relevo que possa assumir noutra qualificativa do crime.
Para a alínea j), inexiste qualquer facto que permita concluir ter o arguido persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Resta, portanto, a frieza de ânimo e/ou a reflexão sobre os meios empregados.
A este respeito, é certo que foi possível apurar (3.) que o arguido, ligando a rumores de que, a 11 de Março de 2022, estaria na freguesia o alegado novo namorado da ex-companheira, formulou o propósito de os surpreender juntos e de matar BB. Porém, fica por saber em que momento o arguido decidiu fazê-lo: apenas se provou que o arguido saiu de sua casa, nesse dia às 15h, já munido com duas facas de cozinha, num saco plástico; depois, sabendo pela mãe de BB que esta se encontrava em casa, para lá se dirigiu, de bicicleta, deixou esta fora do alcance da videovigilância aí existente e aproximou-se da ex-companheira já com uma faca na mão.
Portanto, apenas seguro é dizer que, pouco mais de uma hora antes de o arguido ter, ele próprio, comunicado ao INEM que tinha matado a ex-companheira (10.), já tinha a intenção de o fazer.
Afigura-se que este período de tempo não é compatível nem com frieza de ânimo nem com reflexão sobre os meios: não está aqui descrita uma situação de calma ou de grande elaboração de pensamento, mas sim um acto intempestivo, cuja decisão é mais abrupta do que calma ou fria. E isso não é contrariado pela circunstância de se ter provado que o arguido reflectiu no caminho que a contenda levava (18.), porque isso é apenas mais uma demonstração da vontade do arguido em matar a ex-companheira.
Por isso, também se entende não estar verificada nenhuma das circunstâncias da alínea j).
De forma diversa se põe a questão quanto à especial relação que ligava o arguido à vítima: viveram juntos, na mesma casa, como se de marido e mulher se tratassem, durante doze anos, embora estivessem separados de facto, à data do crime, há cerca de 2 meses. A circunstância agravante da alínea b) do art. 132.º, n.º 2, “é resultado de uma evolução legislativa no sentido de combate à violência e maus tratos familiares (…) e arranca do pressuposto de que as relações familiares não legitimam o exercício de direitos ou o cumprimento de obrigações de forma chocante e absolutamente intolerável, antes se devendo desenvolver, a bem dos seus membros e da comunidade, num clima de salutar equilíbrio” .
Ora, pese embora nada tenha sido alegado nem provado quanto ao evoluir da relação de ambos enquanto estiveram juntos, é certo que a ruptura não foi interiorizada nem aceite pelo arguido: ele sentia-se frustrado pelo desenlace e foi-se tornando desconfiado, ciumento e possessivo. Porém, o que desencadeou a sua actuação criminosa foram os rumores de que BB teria outro relacionamento: em vez de seguir também ele a sua vida, optou por pôr termo à da ex-companheira, numa estranha e vingativa opção!
Matar é sempre um acto de violência inaudita; mas, aqui, o arguido escolheu precisamente esse acto para coarctar de forma inadmissível a liberdade de actuação da sua ex-companheira (fosse ou não verdade o tal homem existir na vida de BB, circunstância completamente irrelevante). Um casamento ou qualquer outra ligação da mesma índole, ainda que sem vínculo legal, como era o caso dos autos, é um acto de vontade mútua, com suporte afectivo particularmente forte; se uma das pessoas sente não ter condições para continuar essa relação, isso pode causar desgosto à outra, e até trazer-lhe uma mágoa profunda e duradoura. Mas, seguramente, não lhe dá o direito de agir baseado no primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez, ainda por cima baseado em rumores que ouviu na freguesia! Não se conformava com a possibilidade de BB poder ter refeito a sua vida, ficou frustrado, achava que ela era sua (como se uma pessoa fosse susceptível de propriedade), tinha ciúmes, e não encontrou melhor saída do que…matá-la.
Quer dizer, o contexto factual da actuação do arguido, quando se sentiu definitivamente afastado do futuro de BB – pessoa a quem devia um especial respeito pela sua vivência anterior, em vez que a acossar na sua própria casa – leva à conclusão, sem margem para dúvidas, de que houve especial censurabilidade e perversidade na prática do crime de homicídio, aplicando-se-lhe a agravação da citada alínea b).
Assim, conclui-se ter o arguido cometido um crime de homicídio qualificado, punível com uma pena de 12 a 25 anos de prisão.
Pretende a acusação que se aplique, a este crime, a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições – RJAM): “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”, esclarecendo o n.º 4 que, para os efeitos do número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma “quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.
Isto posto, para apreciar se esta agravação se verifica, torna-se necessário analisar o crime de detenção de arma proibida imputado ao arguido. Estabelece o art. 86.º, n.º 1, d), do RJAM, que quem, “sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo (…) as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º (…), é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.
Esta última alínea estabelece que são da classe A (e, como tal, de uso proibido – art. 4.º, n.º 1, do RJAM) “as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse”.
Ora, é precisamente esse o caso das facas que o arguido levou consigo para casa de BB: não só se tratam de armas brancas (art. 2.º, n.º 1, m), RJAM), ambas com lâmina de comprimento superior a 10 cm, como estavam afectas a uso doméstico (na cozinha) e foram encontradas fora do local do seu normal uso, além de o arguido não poder justificar ali a sua posse (para fins lícitos, entenda-se).
Conhecendo o arguido as características das facas e sabendo que não as podia deter nem usar naquelas circunstâncias, é evidente que também cometeu o crime do aludido art. 86.º, n.º 1, d).
Verificado este crime, é o momento de voltar à agravação do crime de homicídio qualificado. É certo que o arguido não o cometeu através do uso de nenhuma das facas que levou consigo, já que acabou por matar BB usando as suas mãos, mas a agravação do art. 86.º, n.º 3, também não o exige: basta, como se refere na redacção do n.º 4, que quem comete o crime (ou algum dos seus comparticipantes, se fosse o caso) traga, no momento do ilícito arma aparente ou oculta dentre as proibidas do art. 86.º, n.º 1. No caso, trata-se de uma arma aparente, porque foi exibida à vítima, que com ela logrou até ferir o arguido.
Portanto, a pena do crime de homicídio qualificado, cujo máximo, por coincidir com o legal, se mantém inalterável (art. 41.º, n.º 2 e n.º 3), é agravada de um terço no seu mínimo, ou seja, passa de 12 para 16 anos de prisão.
Relativamente aos objectos apreendidos nos autos, a maior parte constitui meios de prova (o telemóvel do arguido, o saco de plástico, as facas, o maço de tabaco, as duas garrafas de cerveja e a roupa do arguido), pelo que interessa, por ora, a sua conservação.
A final, ordenar-se-á o cumprimento do art. 186.º, n.º 3, Código de Processo Penal, nas pessoas dos demandantes, na qualidade de herdeiros da vítima, quanto ao telemóvel “...”, porque pertencia a BB.
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MEDIDA DA PENA

Sendo o crime de homicídio apenas punível com pena de prisão, não faz sentido referir o art. 70.º; já quanto ao de detenção de arma proibida, tendo em conta que as facas foram trazidas pelo arguido com o objectivo de serem instrumento do crime mais grave, entende-se que a pena de multa seria manifestamente insuficiente para satisfazer as necessidades da punição, optando-se pela aplicação de pena de prisão.
Isto posto, e para chegar à pena concreta, o tribunal deve ter em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção – art. 71.º, n.º 1 – bem como as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, e cuja enumeração exemplificativa consta do art. 71.º, n.º 2.
Há, na atitude do arguido em relação a ambos os crimes, dolo directo. No homicídio, verifica-se um elevado grau de ilicitude do facto, pelo total desprezo face às regras mais básicas de convivência social, de não atingir o seu semelhante; o modo de execução do facto, de dia e na própria casa da vítima, que o arguido bem conhecia, manifesta uma desfaçatez chocante e uma absoluta indiferença pelo mais íntimo reduto da vítima.
A favor do arguido, apenas a (anterior) integração social e profissional, a ausência de antecedentes criminais e a sua (ainda que parcial) contribuição para a descoberta da verdade.
Assim, e não descurando as vincadas necessidades de prevenção geral – face ao que agora se denomina “violência de género”, e vitima sobretudo as mulheres – mostra-se adequada, para o crime de homicídio, uma pena que se afaste do mínimo legal aplicável (os citados 16 anos), e que se fixa em 19 anos de prisão.
Quanto à posse da arma, sendo aplicável a pena de 1 mês a 4 anos de prisão, há que escolher uma medida que, censurando de forma inequívoca o arguido, não esqueça que a posse das armas foi, afinal, por pouco tempo, e que acabaram por não ser elas o instrumento do crime de homicídio. Por isso, revela-se ajustada a pena de 4 meses de prisão.
Importando fazer o cúmulo jurídico destas penas, ao abrigo do art. 77.º, situa-se o mínimo aplicável na pena individual mais alta – 19 anos de prisão – e o máximo na soma material das duas penas – 19 anos e 4 meses de prisão. Aqui volta a ser relevante lembrar a elevada ilicitude dos factos, as fortes necessidades de prevenção geral e o demais supra referido como agravante da conduta do arguido, mas também não se pode esquecer a ausência de passado criminal e a vida social e profissionalmente integrada, pelo que se mostra ajustada a pena única de 19 anos e 2 meses de prisão.
Face a esta pena, e nos termos do art. 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 2 de Fevereiro, será ordenada a final a recolha de amostra de ADN do arguido, a fim de o seu perfil integrar a base de dados prevista nessa Lei. 
*
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

Em consonância com o disposto no art. 128.º do Cód. Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, isto é, pelos arts. 483.º e ss. – responsabilidade civil por factos ilícitos – e 562.º e ss. – obrigação de indemnização – todos do Código Civil.
Verificada que está a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, estão preenchidos os requisitos do facto ilícito e da culpa, na forma de dolo.
Como é evidente, a dedução deste pedido por parte dos herdeiros legais de BB (os seus três filhos, sendo ela viúva – art. 2133.º, n.º 1, a), Código Civil), prejudica a apreciação do pedido de arbitramento de indemnização formulado pelo Ministério Público.
Resta, portanto, apurar quais os danos indemnizáveis na esfera dos demandantes, a nível moral, porque só esses são contemplados no pedido.
A lei manda atender apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, devendo calcular-se a compensação por recurso à equidade (art. 496.º, n.º 1 e n.º 4, Cód. Civil). Nos termos do n.º 2, em caso de “morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes” (aqui, os demandantes), e “podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores” (citado n.º 4). 
A este respeito, invocam os demandantes os danos relativos ao sofrimento de BB na iminência da morte, o dano da perda da vida da mãe e o desgosto sofrido por cada um deles por terem ficado sem a mãe.
Quanto ao sofrimento da vítima, ficou provado que, apesar da luta que travou com o arguido, BB foi sentindo a sua impotência perante a superioridade física deste, e que, até perder os sentidos, a vítima teve plena consciência que ia morrer, o que lhe causou angústia, sofrimento físico, ansiedade e medo.
Sendo inimagináveis tais sentimentos, foram infelizmente bem reais e, por isso, susceptíveis de compensação, mostrando-se adequado o valor pedido, de € 10.000,00.
Relativamente ao dano morte, e porque a vida é o bem maior, sendo sempre uma compensação o arremedo possível para um prejuízo irreparável, julga-se ajustado, face à idade da vítima (53 anos), o montante peticionado pelos demandantes, de € 80.000,00.
Quanto ao desgosto sofrido por cada um dos três filhos de BB, ficou provado que mãe e filhos eram unidos e afectuosos entre si e que estes, criados num ambiente de solidariedade, ficaram tristes e tiveram desgosto pela morte da mãe. Embora isso não possa ser de forma alguma apagado ou sequer minorado com dinheiro, é papel do julgador atribuir uma compensação por tão relevante dano moral, pelo que se entende adequado fixar, para cada um dos demandantes, já adultos, a compensação de € 20.000,00.
Deve, assim, o pedido de indemnização civil proceder no montante de € 150.000,00, a suportar pelo demandado.
*
Pelo exposto, os juízes que compõem este tribunal colectivo julgam a acusação procedente por provada e, em consequência:
- condenam o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b), Cód. Penal, e 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, condenam o mesmo arguido na pena única e efectiva de 19 (dezanove) anos e 2 (dois) meses de prisão;
- determinam a recolha de ADN do arguido AA, a fim de o seu perfil integrar a base de dados prevista na Lei n.º 5/2008, de 2 de Fevereiro;
- mais condenam o arguido nas custas da parte crime, com 4 UC de taxa de justiça;
- determinam o cumprimento do art. 186.º, n.º 3, Código de Processo Penal, nas pessoas dos demandantes, quanto ao telemóvel “...” apreendido nos autos;
- julgam o pedido de indemnização civil parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenam AA a pagar aos demandantes CC, DD e EE a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
As custas do pedido de indemnização civil ficarão a cargo de demandado e demandantes, na proporção do respectivo decaimento.
Nos termos do art. 213.º, n.º 1, b), Cód. Proc. Penal, por se mostrarem inalteráveis – e até reforçados pelo teor do presente acórdão – os pressupostos de facto e de direito que deram lugar à aplicação da medida de prisão preventiva ao arguido, determina-se, sem necessidade de audição deste, que o mesmo continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos a tal medida (art. 215.º, n.º 1, d), e n.º 2, Cód. Proc. Penal).
Recolha o arguido ao estabelecimento prisional.
Boletins à Identificação Criminal.
Notifique, deposite e, após trânsito, envie cópia à DGRSP.»
(…)
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3. Apreciação do Recurso

Questões Prévias
Da prova proibida
Recursos interlocutórios

«CONCLUSÕES
1.Em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, o arguido invocou a nulidade de todas as diligências levadas a cabo após a sua detenção, em virtude de o mesmo ter sido detido em momento anterior às mesmas, tendo estas se realizado em momento anterior ao 1º interrogatório judicial, e sem que fossem realizadas na presença de defensor.
2.As nulidades foram indeferidas pela Meritíssima Juiz de Direito que presidiu ao  mencionado interrogatório, invocando que todos os procedimentos legais foram cumpridos.
3.Entende o Arguido que compulsados os autos, e após ter acesso às peças processuais que lhe foram facultadas para consulta, analisando todos os procedimentos da investigação, constata-se à evidência que as nulidades invocadas se confirmam, pelo que o Digníssimo Tribunal não aplicou acertadamente o Direito aos factos invocados,
4.Deveria ter decidido pela procedência das nulidades invocadas, ou, quando muito, considerando os atos em causa ilegais.
5.Consta dos presentes autos a que o arguido teve acesso, o mesmo inicia-se com o auto de notícia elaborado pela Guarda Nacional Republicana do Destacamento Territorial ..., elaborado no dia 11/03/2022, no qual consta a data e hora da ocorrência e conhecimento dos factos (11/03/2022 - 16h31),
6.Foi este OPC, no dia 11/03/2021, pelas 17h20, chamado ao local dos factos a fim de verificar a comunicação de um homicídio aí ocorrido, onde, lá chegados verificaram a presença do suspeito, ora Arguido, alegadamente com sinais de ter acabado de cometer um crime, concretamente, é aí referido “chegados local, encontramos o Sr. AA, com roupa bastante ensanguentada e vários ferimentos, que ao ser abordado, disse ter sido ele a ligar para o 112 a informar que tinha acabado de matar a sua ex-companheira.”
7.Este OPC comunicou os factos à Polícia Judiciária ..., que se deslocou posteriormente ao local.
8.A GNR, por verificar que o suspeito apresentava ferimentos transportou o mesmo até ao Hospital ....
9.A GNR acabou por proceder a um interrogatório do “suspeito”, questionando-se sobre o modo e a motivação do crime, conforme consta o referido auto de notícia.
10.O crime foi comunicado ao DIC de ..., pelas 17h00, conforme consta da comunicação de notícia do crime junto aos autos.
11.Nessa comunicação consta da descrição dos factos, entre outros, o seguinte:
“Encontrava-se também o suposto companheiro da vítima, AA. Ao que se apurou terá sido o próprio AA a chamar as autoridades ao local, confessado ter sido ele quem esfaqueou a BB. A patrulha da GNR confirmou que no local se encontrava uma faca ensanguentada, quebrada, e que o AA apresentava vestígio de sangue na roupa. (…)
12.No Relatório de Diligências Iniciais elaborado pela Polícia Judiciária, é possível constatar, também o seguinte:
Data e hora dos factos - 11/03/2022 - 16h30
Dara e hora da comunicação dos factos - 11/03/2022 - 17h00
13.Consta, do mesmo relatório o seguinte:
“No local, encontrava-se, ainda, o suspeito AA, o qual terá chamado as autorizadas ao local e confessado ter sido o autor do crime. A patrulha da GNR confirmou que no local se encontrava uma faca ensanguentada partida, e que o suspeito apresentava vestígios de sangue na roupa e, ainda, ferimentos nas duas mãos, provavelmente provocados pela arma do crime, razão pela qual foi transportado ao Hospital ....
Pelos militares presentes no local, foi entregue a esta PJ o telemóvel pertença do suspeito, o qual lhe foi retirado pelos militares que inicialmente o abordaram, motivo pelo qual foi apreendido.”
14.É, também possível constatar do referido relatório que a Polícia Judiciária se deslocou ao local dos factos pelas 18h30, e que,
“Nessa altura, o suspeito AA, encontrava-se a receber tratamento hospitalar no Hospital ..., para o qual foi transportado pelo INEM sob escolta de militares da GNR ... (…)
Pelas 19h45m uma patrulha da GNR compareceu no local fazendo-se acompanhar do suspeito OO, o qual apresentava ferimentos em ambas as mãos e na perna direita, o qual autorizou que tais ferimentos fossem fotografados, bem como autorizou a recolha de eventuais vestígios de natureza biológica em ambas as mãos.
Indagado o suspeito acerca dos factos ocorridos - morte de BB - o mesmo referiu de imediato ter sido o autor dos factos, tendo-a agredido inicialmente com uma faca e depois, ao tê-la derrubado ao chão, apertou-lhe o pescoço até que lhe tirou a vida.
Face ao exposto, foi o mesmo informado que devia considerar-se arguido (sendo o documento formal apenas entregue ao arguido no DIC de ...) pelos factos que prontamente confessou, o qual de livre e espontânea vontade, aceitou em participar na diligência - reconstituição do facto - indicando o arguido o circunstancialismo dos factos aqui em investigação (cfr. Auto de Reconstituição que seguem anexo ao presente Relatório).”
15.É possível constatar, igualmente, no referido Relatório que, “findas as diligências no local dos factos, foi o arguido conduzido ao Departamento de ... da Polícia Judiciária, onde foi realizado o expediente correspondente às diligências realizadas no local.”
16.Além do mais, constata-se, igualmente, que, após chegados ao referido DIC, “neste seguimento, procedeu-se ao interrogatório de arguido, o qual manifestou desejo de prestar declarações sobre os factos que lhe foram imputados, confirmando ser o autor da morte de PP, tendo-a agredido com uma faca e, posteriormente, apertou-lhe o pescoço até que lhe tirou a vida, conforme Auto de Interrogatório de Arguido.”
17.Fazem parte do referido Relatório, entre outros, os seguintes Anexos, e aos quais foi dada a possibilidade de consulta ao Arguido:
- Auto de Reconstituição
18.Fazem parte do referido Relatório, entre outros, os seguintes Anexos, e aos quais NÃO foi dada a possibilidade de consulta ao Arguido:
- Constituição de Arguido e Auto de Interrogatório nessa qualidade
- Termo de Consentimento
19.Do Auto de Reconstituição com Reportagem Fotográfica, junto aos autos, e do qual o Arguido teve a possibilidade de consulta, resulta que:
20.A referida diligência teve início no dia 11/03/2022 pelas 19h45, no local dos factos.
21.Que não foi objeto de qualquer testemunha, interveniente e/ou figurante.
22.Que, alegadamente, “Tendo em vista o cabal esclarecimento dos factos e em face da vontade de colaboração manifestada pelo arguido AA, através do respetivo Termo de Consentimento, que assinou, foi-lhe solicitado que procurasse descrever as circunstâncias e o modo em que ocorreram os factos em que se encontrou envolvido, com indicação de todos os pormenores de que se recorda, de que resultou a morte da vítima BB, nascida a .../.../1968.
Em face do exposto, deu-se início à reconstituição dos factos, tão fiel quanto possível, das condições e do modo em que ocorreram, acompanhada de reportagem fotográfica, que se junta. (…)”
23.Ora, do referido Auto de Reconstituição, verifica-se que o Arguido prestou as declarações constantes dos pontos 1º a 14º.
24.No dia 12/03/2022 foi comunicado ao DIAP ..., a sua detenção fora de flagrante delito, ocorrida pelas 00h55, em cumprimento de Mandado da Detenção emitido pela Autoridade de Polícia Criminal, como melhor se afere do Mandado de Detenção e respetiva certidão entregue ao Arguido pela Polícia Judiciária ....
25.Existem diversas incongruências entre os factos, o expediente respeitante aos atos de investigação e processuais, e, ainda, a decisão quanto às referidas nulidades proferida em sede de 1º interrogatório Judicial de Arguido Detido.
26.A defesa do Arguido invocou em sede de 1º interrogatório judicial a nulidade dos atos de diligencias realizadas após a detenção do arguido, de forma genérica quanto aos atos em causa, uma vez que não teve acesso aos autos, com o fundamento dos referidos atos terem sido praticados após a detenção do Arguido e antes do mesmo ser sujeito a 1º interrogatório judicial, bem como o facto de não ter sido acompanhado de Defensor.
27. O Digníssimo Tribunal entendeu que não se vislumbra quaisquer nulidades, invocando os seguintes fundamentos que se transcrevem:
- “Ora, o arguido foi detido pelas autoridades policiais em flagrante delito, nos termos previstos no artigo 256º n.º 2 do CPP, pois foi o próprio a telefonar ao 112, tendo chegado os bombeiros e a GNR, simultaneamente ao local, logo a seguir à morte por estrangulamento da vítima, provocada pelo arguido (conforme declarações que o próprio prestou em interrogatório judicial). Foi encontrado com vestígios de sangue do próprio e da vítima e com as facas no local do crime. Portanto, dúvidas não restam da existência de flagrante delito.
Assim sendo, como é óbvio, as autoridades policiais tiveram de deter o arguido no local, aliás conforme resulta da lei.” - sublinhado e negrito nosso.
- “Ao contrário do alegado pela defesa, também foi cumprida a lei em relação à apresentação do detido à autoridade competente para aplicação de medidas de coação no prazo de 48horas, conforme artigo 254º n.º 1 a) do CPP (veja-se que foi detido às 17h00 do dia 11 de Março de 2022 - fls. 2 - e apresentado ao juiz de instrução criminal a 12 de Março de 2022, pelas 12h00).”
- “O relatório de diligências iniciais, auto de exame ao cadáver, auto de apreensão (fls. 3 a 13) e fotografias de fls. 21 e ss., foram realizados ao abrigo do disposto no artigo 249º do CPP.
- “A constituição de arguido foi realizada nos termos previstos no artigo 58º do CPP (conforme resulta de fls. 14 e ss.), tendo-lhe sido lidos e explicados os seus direitos e tendo o arguido assinado a mesma (veja-se que o arguido em interrogatório judicial referiu ter a 4ª classe e, portanto, sabe ler e escrever, pelo que, tendo assinado a mesma constituição de arguido e tendo-lhe sido lidos os direitos, nenhuma nulidade ocorreu).
- “Por outro lado, resulta de fls. 16 que o arguido deu o seu consentimento à diligência de reconstituição dos factos, tendo sido a mesma efetuada, também ao abrigo do disposto no artigo 249º do CPP, e após ter sido constituído arguido, motivo pelo qual foram asseguradas as garantias de defesa do arguido.”
28.O Arguido não concorda com a posição assumida pelo Digníssimo Tribunal a quo, porquanto, entende que incorre em manifesto lapso a análise do mesmo relativamente aos factos e diligências processuais levadas a cabo pelo OPC responsável pela investigação.
29.Importa esclarecer, em primeiro lugar, de que forma, lugar e quando, foi o arguido detido e constituído arguido, ou, quando é que, formalmente o deveria ter sido.
30.O OPC responsável pelo mesmo apenas procedeu à detenção “formal” do arguido no dia 12/03/2022 pelas 00h55, conforme Mandado de Detenção, Certidão de Detenção entregue ao arguido e Comunicação da Detenção do OPC ao DIAP competente,
31.Aparentemente, essa detenção terá sido efetuada sob o instituto da detenção fora de flagrante delito.
32.O OPC competente procedeu com manifesto erro sobre os factos e, aplicou, erradamente o direito, na detenção do arguido.
33.Aliás, como melhor resulta do despacho proferido em sede de 1º interrogatório judicial, onde é referido a página 2 “Detenção em flagrante delito nos termos do disposto no artigo 255º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal”, e na página 12 “Ora, o arguido foi detido pelas autoridades policiais em flagrante delito, nos termos previstos no artigo 256º n.º 2 do CPP, pois foi o próprio a telefonar ao 112, tendo chegado os bombeiros e a GNR, simultaneamente ao local, logo a seguir à morte por estrangulamento da vítima, provocada pelo arguido (conforme declarações que o próprio prestou em interrogatório judicial). Foi encontrado com vestígios de sangue do próprio e da vítima e com as facas no local do crime.
Portanto, dúvidas não restam da existência de flagrante delito. Assim sendo, como é óbvio, as autoridades policiais tiveram de deter o arguido no local, aliás como resulta da lei.”
34.O Digníssimo Tribunal a quo errou a aplicar o direito aos factos invocados pela defesa do arguido, quanto às mencionadas nulidades.
35.O Ministério Público confirmou a aplicação da detenção em flagrante delito no exercício do direito de contraditório, em resposta às nulidades invocadas pelo arguido, conforme consta da gravação da mesma, as quais damos por integralmente reproduzidas.
36.Dos factos constantes do Auto de Notícia e Comunicação do Crime, dúvidas não restam que o arguido foi detido em flagrante delito, uma vez que foi privado da sua liberdade (algemado) e sem possibilidade de dispor da sua pessoa, de escolher de livre e espontânea vontade deslocar-se para onde e como bem entender, e, tal aconteceu no local dos factos, logo através da patrulha da GNR que chegou inicialmente ao local.
37.A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo refere que o arguido tem de considerar-se detido, em flagrante delito, desde as 17h00 do dia 11/03/2022, data e hora em que o OPC que recebeu a notícia do crime chegou ao local, o abordou e privou da liberdade,
38.Facto que se manteve até à apresentação do mesmo perante o Juiz competente que presidiu ao 1º Interrogatório Judicial.
39.A detenção não é uma mera prerrogativa dos OPC’s, mas, quando em flagrante delito, constitui uma obrigação legal, nos termos do artigo 255º n.º 1 a) do CPP.
40.Uma vez detido em flagrante delito pelo OPC Guarda Nacional Republicana, deveria o Arguido ter sido apresentado ao Juiz competente para 1º Interrogatório Judicial ou aplicação de medida de coação, conforme estipula o artigo 254º n.º 1 alínea a) do CPP.
41.Tal norma legal, conjugada com o artigo 141º n.º 1 do mesmo diploma, que dispõe que o arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.
42.Existiu uma falta de compreensão quanto à invocada nulidade por parte da defesa do Arguido, que não se pretendeu incidir quanto ao prazo máximo de apresentação de arguido detido a 1º interrogatório judicial, o que não se põe em causa que foi cumprido nos presentes autos,
43.Pretendeu-se invocar a nulidade constante do facto de o arguido ter sido sujeito a mais do que uma tomada de declarações, perante um OPC, em momento anterior à apresentação do arguido nos termos do artigo 141º do CPP.
44.Uma vez detido um arguido, se não dever ser julgado imediatamente, o mesmo tem de ser apresentado perante o juiz competente para primeiro interrogatório judicial e/ou aplicação de medidas de coação, porquanto é essa a finalidade da sua detenção,
45.Não podendo, por isso, durante o lapso de tempo decorrido entre a sua detenção e a realização do 1º interrogatório judicial (aplicável ao caso em concreto), ser tomadas quaisquer declarações, seja por que forma for, por um OPC.
46.No caso dos autos verifica-se que, pelo menos, da cópia de parte do processo que foi facultada ao Arguido, foram tomadas declarações do mesmo nos seguintes momentos e perante as mencionadas entidades:
- No Auto de Notícia pela GNR ... - na parte que se segue ao “Questionado o suspeito relativamente ao motivo que o levou a cometer tal ato, o  mesmo disse (…)”
47.Questionado o suspeito sobre o motivo, traduz, nada mais nada menos, que um interrogatório de uma pessoa já concretamente identificada como suspeito, já devidamente detida e privada da sua liberdade.
48.- No Relatório de Diligências Iniciais, aquando da chegada da Polícia Judiciária ... (Descrição dos Factos - parágrafos 13 e 14 - quando é referido que “Indagado o suspeito acerca dos factos ocorridos - morte da BB - o mesmo referiu que (…);
Não restam, igualmente dúvidas, que a indagação perpetrada pelo OPC em causa traduz-se num interrogatório, numa tomada de declarações, mais uma vez, de uma pessoa concretamente identificada e sob forte suspeita da prática de um crime, já devidamente detida e privada da sua liberdade.
49.- Auto de Reconstituição de Facto e respetiva Reportagem Fotográfica - (Pontos 1 a 14)
Sob igual fundamento se invoca a ilegalidade da Reconstituição de Facto e respetiva Reportagem Fotográfica, porquanto, a mesma traduz-se na tomada de declarações sob interrogatório do OPC competente, no local dos factos.
50.A referida prova, mais não é do que, a descrição pormenorizada dos factos através da declaração, neste caso em concreto do arguido, já constituído e devidamente detido, privado da sua liberdade.
51.Se não é admissível a prestação de declarações do mesmo perante o OPC competente, nas respetivas instalações da mesma, muito menos, podem tais declarações ocorrer no local dos factos, mediante a prestação de declarações, e reportagem fotográfica decorrente e só existente, pela existência daquelas.
52. Não podem, em momento algum, nos presentes autos, as mesmas serem consideradas legais, por fundamento na aplicação dos requisitos do artigo 249º do CPP, porquanto a mesma foi realizada apenas e só com base nas declarações de arguido constituído e detido em flagrante delito, em momento anterior à apresentação do mesmo perante o JIC.
53.A reconstituição, nada mais é do que, um meio de certificar a forma como determinado facto terá ocorrido, tentando repeti-lo nas mesmas circunstâncias de modo e lugar a fim de se aquilatar o merecimento da descrição que dele é feita pelos intervenientes processuais.
54.E são as declarações prestadas no local pelos mencionados intervenientes processuais que vão compor e possibilitar essa recriação em que se supõe ter ocorrido o facto, diluindo-se nos próprios termos da reconstituição,
55.E, como bem referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/01/2005, Acs STJ XIII, 1, 159 “(…) as declarações prévias ou contemporâneas que tenham possibilidade ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido. (…)
56.Ora, de que forma se assegura o direito constitucional da defesa do arguido,
57.Os direitos que lhe são assegurados nos termos do Código de Processo Penal, nomeadamente, o facto de um arguido detido ter de ser imediatamente presente ao JIC para primeiro interrogatório, que tem de ser, obrigatoriamente, judicial,
58.Para depois, permitir que o mesmo entre a sua detenção e o interrogatório judicial, possa prestar declarações perante OPC, seja em formato de interrogatório ou prestação de declarações no local dos factos?
59.Com a agravante de não se encontrar acompanhado de defensor, nos termos do artigo 64º do Código de Processo Penal?
60.- Interrogatório de Arguido prestado perante a Polícia Judiciária no DIC de .... Quanto ao supramencionado ato, dúvidas não restam, que o mesmo é manifestamente ilegal, nos termos das normas já mencionadas.
66.Tais atos, por consubstanciarem tomadas de declarações de Arguido detido em flagrante delito, perante OPC, são ilegais, por não se encontrarem previstos na lei e violarem os artigos 254º e ss e 141º todos do Código de Processo Penal.
São atos ilegais, pelo que se devem ser declarados irregulares, e consequente inválidos por não serem passíveis de regularização, o que desde já se requer para todos os devidos e legais efeitos,
68.Devendo considerar-se, para todos os efeitos, a invocada nulidade genérica dos atos praticados, cumprido os pressupostos do artigo 123º do Código de Processo Penal, porquanto, foi invocada a invalidade genérica dos atos pelos mesmo fundamentos,
69. Contudo, quanto a esta parte, entende-se que a mesma constitui apenas uma irregularidade porquanto não se encontra tipificada na lei, devendo-lhe ser aplicado o instituto previsto no artigo 123º do Código de Processo Penal.
Sem prejuízo, e caso assim não se entenda, o que não se concebe nem se concede,
Caso os mencionados atos não sejam considerados ilegais,
70. No limite, os mesmos são impreterivelmente nulos, por força do artigo 64º do Código de Processo Penal, na medida em que, a ser aceite a sua realização, o que não se concebe nem se concede, seria obrigatória à assistência de defensor nos interrogatórios de arguido detido.
71. O que, nos atos supramencionados, manifestamente não aconteceu,
72. Nulidade, essa, já devidamente invocada, e que se encontra tipificada nos termos do artigo 119º alínea c) do Código de Processo Penal.
73. Dos atos supramencionados resultam declarações prestadas pelo Arguido detido, as quais, não são nada mais nada menos, que interrogatórios ao arguido, quer o consubstanciado no auto de notícia, relatório de diligências iniciais, auto de reconstituição e reportagem fotográfica e interrogatório perante a Polícia Judiciária,
74. Declarações, estas, as quais, nem por livre e espontânea vontade, podiam, de forma alguma, ser prestadas, muito menos, sem a presença de Defensor, por violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
75. Pelo que, violou o Tribunal a quo, os artigos 32º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 64º, 119º alínea c), 123º, 141º, 143º, 249º, 254º, 255º, 256º, 268º todos do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS,
Requer-se a V.Ex.as Venerandos Desembargadores, com o Vosso Douto suprimento a quanto alegado, se dignem a julgar o presente recurso de Apelação totalmente procedente, revogando-se o despacho que indeferiu as nulidades invocadas, substituindo-o por outro, que reconheça a ilegalidade dos atos praticados declarando a sua irregularidade insanável, e, considerando-os inválidos para todos os devidos efeitos, ou, caso assim não se entenda, subsidiariamente, considere todos os atos nulos, nos termos do artigo 119º c), do Código de Processo Penal, e, em consequência, considere todas as declarações prestadas pelo Arguido nos referidos atos inválidas, por nulas, não podendo, os referidos atos, ser valorados.»
*
Resposta do MºPº

«II. “Sem prejuízo de melhor opinião fundada em argumentos aqui não considerados, não podemos concordar com a pretensão formulada pelo recorrente AA. Com efeito, não assiste razão ao recorrente e o presente recurso deve ser julgado improcedente, o que se pretende demonstrar, apreciando, respetivamente, cada uma das questões a decidir.
II.
1.O recurso incide sobre a questão de saber se os atos praticados pelo órgão de polícia criminal – designadamente, a constituição de arguido e a reconstituição dos factos que se lhe seguiu – padecem de vício de nulidade que demande a sua insanabilidade, por falta de assistência por defensor nesses mesmos atos.
Compulsados os autos de inquérito, conclui-se, para além do mais, com relevo, o seguinte,
Que o arguido foi encontrado pela GNR local em circunstâncias de facto suscetíveis de fazerem enquadrar uma situação de flagrante delito, tal como prevista no artigo 256.º, n.º 2, do CPP – foi o próprio a telefonar ao 112 e a alertar que tinha acabado de matar a sua ex-companheira, tendo a equipa dos bombeiros voluntários locais, seguidos da GNR, chegado ao local dos factos, com a prévia notícia da ocorrência de um homicídio; o arguido, então suspeito, apresentava a roupa bastante ensanguentada e vários ferimentos nas mãos e na perna direita (tanto, que foi necessário prestar assistência médica); ainda, que questionado pela GNR, o então suspeito motivou a sua conduta (assumindo-a) pelo facto de ter descoberto que a vítima, ex-companheira, tinha um novo relacionamento, e como quisesse surpreendê-la com o novo companheiro, faltou a tarde daquele dia ao trabalho e deslocou-se à residência da vítima; e que, pelas 16h20 (data que consta no auto de notícia como sendo da ocorrência) encontrou a vítima sozinha, vindo (após as agressões descritas na indiciação fáctica), a final, a apertar-lhe o pescoço com as mãos, até lhe tirar a vida; no local dos factos, foram encontrados diversos vestígios hemáticos em diversos compartimentos do interior da casa e em diversos locais exteriores à mesma, mas a ela afetos (passeio, anexos).
Contudo, a detenção do arguido vem a formalizar-se nos termos do artigo 257.º, n.º 2, do CPP.
A CONSTITUIÇÃO DO DENUNCIADO COMO ARGUIDO ocorre logo após a chegada do suspeito ao local dos factos, pelas 19h45, acompanhado da GNR (OPC que o acompanhara ao Hospital ... para assistência médica, em face dos ferimentos vários que ostentava) – por comunicação verbal da PJ.
OPC este (PJ) que, perante o auto de notícia, o cenário encontrado no local onde foi encontrada a vítima, os ferimentos apresentados pelo suspeito, e a informação prestada verbal e informalmente, (agora) à PJ, de que fora o autor da morte da vítima, a qual agrediu inicialmente com uma faca e depois de a derrubar ao chão, apertou-lhe o pescoço até que lhe tirou a vida, comunica ao arguido verbalmente que deveria considerar-se arguido (entenda-se, a partir daquele momento), vindo o documento verbal a ser entregue ao arguido no DIC da PJ de ... (cfr. artigo 58.º, n.º1 e n.º5, do CPP) - conforme se lê no ‘relatório de diligências iniciais’ da PJ.
Ora, havendo suspeita fundada da prática de crime, e uma vez que o então denunciado iria prestar declarações perante órgão de polícia criminal na diligência de reconstituição de facto onde participaria e que logo se seguiu, impunha-se obrigatoriamente a sua constituição como arguido, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
O ato de constituição de arguido não é obrigatoriamente assistido por defensor (artigo 64.º, n.º 1, alínea d), do CPP), e foi validado por autoridade judiciária competente na oportunidade legal.
Acompanhamos o despacho judicial recorrido quando considera que ‘’a constituição de arguido foi realizada nos termos previstos no artigo 58º do CPP (conforme resulta de fls. 14 e ss.), tendo-lhe sido lidos e explicados os seus direitos e tendo o arguido assinado a mesma (veja-se que o arguido em interrogatório judicial referiu ter a 4ª classe e, portanto, sabe ler e escrever, pelo que, tendo assinado a mesma constituição de arguido e tendo-lhe sido lidos os direitos, nenhuma nulidade ocorreu.)’’
Seguiu-se sim a RECONSTITUIÇÃO DE FACTO, com a participação do arguido, ato levado a efeito pelo OPC investigante (PJ).
«Se a reconstituição é um meio de prova típico, ela deve ser reservada em exclusivo para o objeto/fim para que foi pensada: determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma. A tal se cingirá a reconstituição, que integrará tanto os atos materiais nela praticados (as posições, as movimentações e os gestos do arguido), como certamente também as declarações verbais aí proferidas, quando ambos concorrerem para o objeto/fim da diligência (…).» - cfr. João de Matos-Cruz Praia, Proibições de prova em processo penal: algumas particularidades no âmbito da prova por reconhecimento e da reconstituição do facto, revista Julgar online, dezembro de 2019, pág. 34.
É o caso dos autos – os atos materiais e declarações documentadas no auto concorrem para o objeto/fim da diligência. De resto, a questão de saber se extravasa ou não tal objeto terá a sua apreciação em sede própria – o julgamento (sem prejuízo de, desde já, nos adiantarmos em concluir que, em abstrato, os contributos que o arguido preste fora do objeto/fim da reconstituição, preservam a sua natureza originária de “declarações do arguido” enquanto meio de prova tipificado nos arts. 140.º e ss., e não devem ser tratados como “conversas informais”, desprovidos de validade alguma, tanto mais que esses contributos ficam formalmente inscritos em auto).
De resto, aqueles atos e declarações foram registados em auto, conforme os arts. 99.º e 275.º-1 do CPP (cuja valoração (utilização) em julgamento se rege pela disciplina processual plasmada nos arts. 355.º2 e 356.º-1/b) do CPP).
Também acompanhamos o despacho judicial recorrido quando considera que ‘’(…) resulta de fls. 16 que o arguido deu o seu consentimento à diligência de reconstituição dos factos, tendo sido a mesma efectuada, também ao abrigo do disposto no art. 249º do CPP, e após ter sido constituído arguido, motivo pelo qual foram asseguradas as garantias de defesa do arguido.’’
Não vislumbramos qualquer desrespeito ao regime fixado no artigo 150.º do CPP.
O arguido não foi obrigado a participar no ato de reconstituição, pelo que, não tendo sido violado o art. 32.º, n.º 8, 2.ª parte da CRP e art. 126.º, n.º 3 do CPP, afastada está a sua ponderação, no caso concreto, como meio de prova (típico) proibido e a ponderação como ‘nula’ da prova obtida.
E a falta de despacho prévio a ordenar não é cominada com sanção processual alguma, desde logo porque foi uma diligência praticada e admissível nos termos do artigo 249.º, do CPP.
Ademais, e uma vez informado do seu direito à assistência por defensor - art.61.º-1/f) e h) do CPP – não era obrigatória a presença de defensor do arguido no ato de reconstituição. E não se encontrando o mesmo detido ainda, nesse momento, não se coloca a questão controversa da obrigatoriedade de assistência por defensor.
Continuamos a acompanhar o tribunal a quo quando refere que ‘’O relatório de diligências iniciais, auto de exame ao cadáver, auto de apreensão (fls. 3 a 13) e fotografias de fls. 21 e ss., foram realizados ao abrigo do disposto no art. 249º do CPP.’’, e quando refere que ‘’Ao contrário do alegado pela defesa, também foi cumprida a lei em relação à apresentação do detido à autoridade competente para aplicação de medidas de coacção no prazo de 48 horas, conforme art. 254º, nº 1, a) do CPP.’’
Nestes termos, bem andou o tribunal a quo ao indeferir as arguidas nulidades processuais - improcedendo o recurso.

III.
CONCLUSÕES
1.
A constituição de arguido foi realizada nos termos previstos no artigo 58º do CPP.
2.
A reconstituição de facto foi realizada à luz do regime fixado no artigo 150.º e 249.º, do CPP.
3.
Foi respeitado o estatuto de arguido, plasmado no artigo 61.º, do CPP.
4.
As outras diligências de investigação e que antecedem a apresentação do arguido a 1.º interrogatório – o auto de exame ao cadáver, o auto de apreensão – foram realizados ao abrigo do disposto no art. 249º do CPP.
5.
Foi observada a obrigatoriedade de assistência de defensor na oportunidade legal, nos termos do artigo 64.º, do CPP.
IV.
PEDIDO
Termos em que, se V. Exas. julgarem improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida, farão a habitual justiça.»
*
Apreciando

Sob o CAPÍTULO II
Das medidas cautelares e de polícia

O Artigo 249.º do CP prescreve:
“Providências cautelares quanto aos meios de prova
1 - Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
a) Proceder a exames dos vestígios do crime, em especial às diligências previstas no n.º 2 do artigo 171.º, e no artigo 173.º, assegurando a integridade dos animais e a manutenção do estado das coisas, dos objetos e dos lugares;
b) Colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição;
c) Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adotar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objetos apreendidos.
3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade.”

Por sua vez, o Artigo 250.º do mesmo  diploma legal consagra:
“Identificação de suspeito e pedido de informações
1 - Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção.
2 - Antes de procederem à identificação, os órgãos de polícia criminal devem provar a sua qualidade, comunicar ao suspeito as circunstâncias que fundamentam a obrigação de identificação e indicar os meios por que este se pode identificar.
(…)”
8 - Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.
9 - Será sempre facultada ao identificando a possibilidade de contactar com pessoa da sua confiança.”

Já os Artigos 255.º e 257º, do CPP, dizem-nos quem pode fazer, e quando pode ser feita, a detenção em flagrante delito:
1 - Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão:
a) Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção;
b) Qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º (…)”

E a detenção fora de flagrante delito:
“(…)
2 - As autoridades de polícia criminal podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito, por iniciativa própria, quando:
a) Se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva;
b) Existirem elementos que tornem fundados o receio de fuga ou de continuação da actividade criminosa; e
c) Não for possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção da autoridade judiciária.”
Por força do disposto nos artigos 192º, nº 2, e 194º, nº 9, do CPP, aplicáveis ex vi do art. 260º, do mesmo diploma legal, a detenção depende da prévia constituição como arguido da pessoa a deter, e é notificada ao mesmo, com a advertência das consequências resultantes do não cumprimento das obrigações daí resultantes.
Nos termos do art. 254.º, do CPP “A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada: a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção;”
Sempre que a entidade policial proceder a uma detenção, comunica-a de imediato ao Ministério Público – art. 259º, al. b), do CPP.

Por seu turno, o Artigo 58.º, do CPP, prescreve:
“Constituição de arguido
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
“(…)
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
(…)”
2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.
(…)”
4 - A constituição de arguido feita por órgão de polícia criminal é comunicada à autoridade judiciária no prazo de 10 dias e por esta apreciada, em ordem à sua validação, no prazo de 10 dias.
5 - A constituição de arguido implica a entrega, sempre que possível no próprio acto, de documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º
6 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.
7 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.
(…)”
Feito este enquadramento legal que se nos afigura aplicável à situação ora em análise, vejamos os atos impugnados praticados pelos órgãos de polícia criminal, GNR e PJ, na situação vertente.
Como resulta dos autos, Cfr: participação com a Ref: ...82:
A polícia judiciária, órgão de polícia criminal competente para a investigação deste tipo de crime, pelas 17,00h, do dia 11/03/2022, recebeu comunicação, emitida pela GNR ..., dando notícia do crime em causa nos autos, tendo sido registada como inquérito, que foi distribuído como tal. Nessa comunicação original é exarada uma súmula da descrição dos factos tal como foi informado pela GNR que tomou conta da ocorrência;
Essa descrição dos factos consta do auto de notícia elaborado pela GNR (Cfr: ref. ...84), onde é relatado o visionado pelo subscritor e o que lhe foi relatado pelo suspeito;
Uma equipa da PJ deslocou-se ao local dos factos, nesse mesmo dia, pelas 18,30h, e procedeu à inspeção judiciária que a situação justificava, como exame ao cadáver da vítima, reportagem fotográfica e recolha de vestígios, que fez constar do relatório junto aos autos;
Tendo, entretanto, comparecido no local o arguido, proveniente do Unidade Local de Saúde ... de ..., onde lhe foram prestados tratamentos a ferimentos que apresentava, concretamente nas mãos e perna direita, foram feitas diligências junto do mesmo, na qualidade de suspeito, no sentido de procurar apurar, indagar, o que teria ocorrido, momento em que este admitiu ser o autor do evento causador da morte da ofendida, divulgando inclusive alguns pormenores de como os factos ocorreram;
Perante essa postura do arguido, foi de imediato informado verbalmente que devia considerar-se arguido. Estatuto processual que foi formalizado posteriormente quando conduzido ao DIC de ...;
No decurso dessa mesma diligência, perante a atitude confessória assumida pelo arguido, o mesmo aceitou, de livre e espontânea vontade, participar numa reconstituição do facto, cujo auto de reconstituição assinou;
Feitas essas diligências no local, foi o arguido conduzido ao Departamento da Polícia Judiciária, em ..., onde foi elaborado o expediente correspondente às mesmas. Tendo sido formalmente constituído arguido, e, manifestando desejo de prestar declarações, sido interrogado nessa qualidade. Foi elaborado o respetivo auto de constituição de arguido, sujeição a termo de identidade e residência, com leitura dos direitos e deveres, que o arguido assinou;
De igual forma, foi elaborado auto do interrogatório do arguido realizado por aquele órgão de polícia criminal (fls. 94 dos autos de inquérito), o qual ocorreu no dia 11/03/2022, pelas 22,00h, tendo prescindido de ser assistido por defensor e assinado
Também no que concerne à diligência de Reconstituição de Facto, constam dos autos o auto respetivo e o termo de consentimento, ambos subscritos pelo arguido, onde de igual forma também é prestado consentimento para que seja feita reportagem fotográfica dessa diligência;
Nessas instalações da Polícia Judiciária foi, ainda, formalizada a detenção, fora de flagrante delito, do arguido, o que ocorreu pelas 00h55m, do dia 12/03/2022 (fls. 107 e 108), após ordem para efeito emanada do Coordenador de Investigação Criminal daquela polícia (fls. 106).     
Ainda no mesmo dia 12/03/2022, a autoridade judiciária competente, o Ministério Público, proferiu despacho de validação da constituição de arguido e das apreensões efetuadas (Cfr: ref. ...78), bem como promoveu a validação da detenção do mesmo, como tendo sido feita ao abrigo do disposto no art. 257º, nº 2, do CPP, fora de flagrante delito (ref. ...85);
O primeiro interrogatório judicial de arguido detido foi realizado no dia 12/03/2022, pelas 12h16m, tendo sido validada a detenção do arguido, mas como detenção em flagrante delito, nos termos do disposto no art. 255º, nº 1, al. a), do CPP (Cfr: ref. ...06).

Ora, perscrutados todos estes atos de investigação e diligências de inquérito não vislumbramos a ocorrência das denunciadas nulidades, irregularidades ou valorização de prova que possa ser considerada proibida.  
Esses atos, os cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, como as diligências encetadas para colher as notícias do crime, e descobrir o seu agente, as conversas mantidas com este, que admitiu voluntariamente a prática dos factos e quis prestar informações relativas aos mesmos, sem que dos autos se extraiam quaisquer atuações por parte dos agentes da autoridade de onde transpareça que tenham ocorrido pressões, provocações ou outras atitudes criticáveis tendentes a induzir, ou de algum modo sugestionar ou forçar o arguido a tomar essa atitude, têm cobertura legal e cabem dentro das prerrogativas legais concedidas aos órgãos de polícia criminal para efeitos de investigação dos factos ilícitos praticados, colheita e preservação dos meios de prova conducentes aos mesmos, tal como previsto nos artigos 55º, 58º, 243º e 248º a 250º, do CPP. Sendo certo, também, que não vislumbramos, antes pelo contrário, que não tenham sido assegurados os direitos de defesa do arguido, designadamente que lhe tenha sido vedada a possibilidade ser assistido por defensor nas diligências em que essa representação se justificaria, mas não era obrigatória, conforme disposto no art. 64º, do CPP, e de que prescindiu. Como aconteceu na reconstituição de facto e na constituição como arguido.
Saliente-se, desde já, que as declarações obtidas pela GNR, e pela PJ, no local foram colhidas no âmbito das diligências iniciais encetadas ainda na fase de recolha de indícios de um ilícito criminal de que tinham acabado de tomar conhecimento, sem que haja sequer inquérito autuado, competindo-lhes “praticar todos os atos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova” e “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (cf. artigo 250º, n.º 1 e n.º 2, al. b) e artigo 250º, n.º 8, ambos do CPP), podendo, nesse contexto, as conversas tidas entre os órgãos de polícia criminal e o ainda mero suspeito, que posteriormente veio a assumir a qualidade de arguido, ser transpostas para o respetivo auto. Não se vislumbrando que  as declarações obtidas nessa fase de recolha de indícios exijam outras formalidades ou garantias que a lei processual imponha.
A abordagem dos militares da GNR e dos elementos da PJ junto do arguido, teve por objetivo a recolha dos elementos necessários para o preenchimento do respetivo auto de notícia. Naquele momento temporal, inexistia qualquer processo, pelo que não se impunha a imediata constituição do ora recorrente como arguido, pelo que não estaríamos ainda perante a aplicação do disposto no artigo 58º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
Não obstante, perante a postura de admissão da prática dos factos assumida pelo então ainda suspeito, os inspetores da PJ, através da comunicação oral, comunicaram-lhe  de que a partir desse momento aquele devia considerar-se arguido.
Esta comunicação verbal veio a ser formalizada posteriormente, quando os elementos do órgão de polícia criminal e o arguido já se encontravam na Delegação da Polícia Judiciária, na cidade .... Onde foi iniciado o processo de inquérito, lavrado o auto de constituição de arguido, cumprindo-se o disposto no nº 5 do art. 58º, do CPP, aplicada a medida de coação de termo de identidade e residência e tomadas declarações ao agora arguido, que ficaram registadas em auto de interrogatório. Após o que foi formalizada a sua detenção.
Todos estes atos cautelares de recolha de indícios e de informações, ou outros dados, e contribuições de que os órgãos de polícia criminal tomaram conhecimento no campo da investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, alguns ainda fora do âmbito de diligências processuais formais, não exigiam a sua submissão a tal formalismo. Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida”. Sendo certo que as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser constituídos arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, desde que não haja culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição, como aconteceu no caso vertente. (Cfr. com interesse para esta questão Acs. dos Tribunais da Rel. de Lisboa de 22.06.2017, processo n.º 320/14.7GCMTJ.L1-9, da Rel. de Guim. de 10.09.2018, processo n.º 1221/16.0JABRG.G1, e processo n.º 564/14.1PBCHV.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.
As conversas mantidas com o arguido, após a constituição como tal, e cumprido o dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquela constituição (cf., v.g., arts. 58.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. g), do CPP, assumiram os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados (as diligências são reduzidas a auto – art. 275.º, n.º 1, do CPP. As demais ocorridas no local foram-no na fase inicial de recolha de prova e sua preservação, no âmbito das diligências iniciais necessárias para indagação dos factos necessários para a elaboração do auto de notícia.
Pelo que não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade no procedimento adotado pelos órgãos de polícia criminal.
No que concerne à detenção.
Contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a detenção foi validamente efetuada, independentemente de ser em flagrante delito, quase flagrante delito ou fora de flagrante delito, uma vez que a sequência de atos de investigação e diligências realizadas, a distância entre o local onde os factos ocorreram e a sede do órgão de polícia criminal encarregado da investigação, a continuidade temporal das várias medidas cautelares de preservação de prova realizadas e a necessidade da sua formalização em local adequado, são passíveis de justificar o seu enquadramento em qualquer uma da formas de detenção. Não assumindo, pois, qualquer relevância processual, ou material, o facto de o órgão de polícia criminal ter formalizado a detenção como fora de flagrante delito, e a Sr.ª Juiz que a validou o tenha feito como tendo sido realizada em flagrante delito. Desta discrepância de posições não resulta qualquer prejuízo para o arguido, para sua posição processual ou direito de defesa.
Relativamente à reconstituição de facto

Especificamente a propósito de tal meio de prova dispõe o artigo 150.º do CPP:
«1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
2. O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audovisuais …
(…)».

Refere Germano Marques da Silva que a «reconstituição consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo (art. 150.º, n.º 1) e tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma.
A reconstituição, contrariamente à generalidade dos meios de prova, não tem por finalidade a comprovação de um facto histórico, mas antes verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma da sua execução. A reconstituição do facto é uma representação da realidade suposta e por isso para ter utilidade pressupõe que o facto seja representado, tanto quanto possível, nas mesmas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e que se possam verificar essas condições» - [cf. “Curso de Processo Penal”, T. II, Verbo, 2002, pág. 196].
Também Manuel Simas Santos e Manuel Leal – Henriques se pronunciam sobre a matéria adiantando que se dá «… a reconstituição quando se procura certificar a forma como determinado facto terá ocorrido, tentando repeti-lo nas mesmas circunstâncias de modo e lugar, a fim de se aquilatar do merecimento da descrição que dele é feita pelos intervenientes processuais» - [cf. Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, 2010, pág. 213].
A reconstituição do facto é, pois, um processo de «controlo experimental de um dado acontecimento, relevante para fins processuais», desenvolvido de acordo com determinadas «condições de tempo e de topografia» - Costa Pimenta, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª ed., pág. 426.
A temática em apreço tem sido, igualmente, objecto de tratamento jurisprudencial, destacando-se, entre outros, o acórdão do STJ 03.07.2008 [proc. n.º 824/08 – 5], do qual, em síntese, ficou a constar: «I. A reconstituição do facto, como meio de prova, a que se refere o art.º 150.º do CPP representa em si um meio autónomo de prova tal como os demais legalmente admitidos. II. Envolvendo a participação de personagens que podem ter intervindo no âmbito de outras vias de captação probatória, como o interrogatório de arguido, a prova testemunhal, pericial e outros, aquela participação assume autonomia face às demais participações ocorridas no âmbito desses outros meios de prova. III. Decorre daqui que tratando-se da participação de um arguido na reconstituição do facto há que não confundi-la, por exemplo, com as suas respostas em interrogatório judicial, visto estar-se face a duas intervenções autónomas, não confundíveis e sujeitas ao regime da sua livre apreciação, tal como prevista no art.º 127.º do CPP».
Ideia que já transparecia do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 05.01.2005, CJ, Acs. STJ XIII, 1, 159, ao considerar que « … A reconstituição do facto, prevista como meio de prova autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro modo, vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - art.º 127.º do CPP», para concluir no sentido de que «A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto diluem-se nos próprios termos da reconstituição …».
Vamos aqui citar o que foi exarado no Ac. deste Tribunal da Rel. de Guimarães, de 28/01/2019, processo nº 1111/17.9JABRG-A.G1, que sufragamos.
“Dispõe o art. 150.º, nº2, do C.P.P., que “ O despacho que ordenar a reconstituição do facto deve conter uma indicação sucinta do seu objecto, do dia, hora e local em que ocorrerão as diligências e da forma da sua efectivação, eventualmente com recurso a meios audiovisuais. No mesmo despacho pode ser designado perito para execução de operações determinadas.”
Porém, apesar da referência no mencionado preceito legal da expressão “o despacho que ordenar a reconstituição do facto”, não se pode daí inferir que tal diligência terá de ser precedida de despacho para esse efeito, seja um despacho judicial ou de um magistrado do Ministério Público, como pugna o recorrente.
E isto porque, claro está, não o exige o citado preceito legal.
Na verdade, a interpretação a fazer do nº2, do art. 150º é apenas a de que na hipótese de ser proferido despacho a determinar a reconstituição – quando este existir - deverá fornecer indicações, ainda que breves, de modo a orientar o órgão de polícia criminal que irá executar a diligência.
Ou seja, nenhuma norma legal ou princípio processual impõe que a reconstituição do facto seja obrigatoriamente ordenada ou autorizada por despacho de autoridade judiciária. – Neste sentido, cfr. o Ac. da Relação de Lisboa de 08-02-20073, proferido no processo 849/2007.9, disponível in www.dgsi.pt
E, ainda que direção do inquérito caiba ao Ministério Público, a verdade é que quer em termos legais, quer em termos funcionais e efectivos, a maioria das diligências de investigação, nelas se incluindo as reconstituições de facto – são realizadas por órgãos de polícia criminal, PJ, PSP, GNR.
Com efeito, como resulta do disposto no art. 270,nº1, do diploma citado, o Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito, com exceção, para além dos atos que são da exclusiva competência do juiz de instrução, nos termos dos arts. 268º e 269º, os previstos no nº2, do preceito legal em análise.
Em tais exceções não cabem as diligências de reconstituição do facto, pelo que, não podem ser tidas como indelegáveis.
Acrescenta o nº4, do mesmo dispositivo legal, que a delegação a que se refere o nº1 pode ser efetuada por despacho de natureza genérica que indique os tipos de crimes ou os limites das penas aplicáveis aos crimes em investigação.
Daqui logo se infere que a delegação não tem que ser feita processo a processo, caso a caso, conforme surja a necessidade de a levar a efeito, podendo ser genérica.
Tal faculdade de delegação genérica foi exercida através da Diretiva nº1/2002, de 11/3/2002, determinada pelo Procurador-Geral da República de então, a qual veio a ser publicada no DR,II Série, de 4-4-2002, encontrando-se ainda atualmente em vigor.
Através de tal diretiva, nos termos do 270.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, foi delegada genericamente na Polícia Judiciária a competência para a investigação e para a prática dos atos processuais de inquérito derivados da mesma ou que a integrem relativamente aos crimes previstos no artigo 4.º da Lei n.º 21/2000, de 10 de Agosto ( a que corresponde o catual art. 7 da Lei 49/2008, de 27/8 (Lei da Organização da Investigação Criminal que revogou a anterior 21/2000, de 10/8) e no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de Novembro (Lei Orgânica da Polícia Judiciária).
Entre tais crimes contam-se, sem dúvida, os crimes de sequestro e roubo, cfr art. 7º,nº2,b) e nº3, b) da LOIC. (No caso vertente também o crime de homicídio, tal como previsto na al. a) do nº2, do mesmo diploma legal.)
Através da mesma diretiva foi também delegada genericamente na Polícia de Segurança Pública e na Guarda Nacional Republicana a competência para a investigação e para a prática dos atos processuais da mesma derivados, relativamente aos crimes que lhes forem denunciados, cuja competência não esteja reservada à Polícia Judiciária, e ainda dos crimes cuja investigação lhes esteja cometida pelas respetivas leis orgânicas.
Consequentemente, tendo a realização das mencionadas reconstituições (porquanto não se tratando de atos indelegáveis), sido efetuadas pela Polícia Judiciária, a quem competia a investigação específica/reservada do tipo de crimes em apreço, não estavam as mesmas dependentes de qualquer despacho.
Acresce ainda referir que a legalidade de tais reconhecimentos levados a cabo no âmbito dos presentes autos pela entidade policial, no caso concreto pela PJ, sempre estaria assegurada, por caber no âmbito das diligências cautelares e urgentes previstas no art. 249, nºs1e 2, do CPP.
Como resulta do Ac do STJ de 22-04-2004, proferido no processo 04P902, disponível in www.dgsi.pt .“… conforme dispõe o artigo 249 n.º 1 e 2 al.b) do CPP, cabe ainda aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar actos cautelares necessários e urgentes para assegurar meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição.”
E ainda do já citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2007, de acordo com o qual “A diligência foi efectuada pela Polícia Judiciária a quem competia a investigação específica/reservada deste tipo de crimes (vd. art.º 5.º n.º 2 alínea o) do Dec. Lei 275-A / 2000 de 9 de novembro). Não se vislumbra qualquer nulidade no modo como tal prova foi recolhida e o que resulta dos autos e do depoimento do agente da P.J..”
Também se pronunciou neste sentido, o Ac STJ de 14 Junho de 2006, proferido no Proc.1574, in www.dgsi.pt ., de acordo com o qual “…a falta desse despacho (que ordena a reconstituição do facto): não afecta o valor da reconstituição como meio de prova, por lhe ser exterior.”
Ora, ao analisarmos o auto reconstituição do facto, feita com a colaboração do arguido, que não deve ser confundida com as declarações por este, então, prestadas, gozando, por isso, de autonomia, como específico meio de prova que, efetivamente é, afigura-se-nos estarmos perante prova por reconstituição, tal como legalmente definida, o que se extrai pelo conteúdo da diligência realizada.
Não se limitando reconstituição em causa às meras declarações do arguido, verificando-se que são reproduzidas as condições em que os factos se verificaram e, em simultâneo, se repetem os factos, visando a comprovação da possibilidade empírica de determinadas circunstâncias processualmente relevantes, retratando o cenário do que se pretendia ver reproduzido, conferindo uma visão da realidade dinâmica suposta por tal meio de representação dos factos.
Assim sendo, estando salvaguardadas as questões formais respeitantes à realização dessa diligência, efetuada pelos OPC no âmbito de uma investigação reservada ou com delegação de competência, regendo, apenas, o n.º 2 do artigo 150.º do CPP para os casos em que seja proferido despacho ordenando a reconstituição [cf. vg. acórdão do TRL de 08.02.2007; vd. ainda o acórdão do TRP 12.12.2007] – também as razões de ordem material que se prendem com a substância do meio de prova em referência, nos conduzem a sufragar a posição perfilhada em 1ª instância quanto à consideração/valoração da prova em questão.
Improcedendo, pois, a alegada “nulidade” da diligência de reconstituição de facto, e respetivo auto juntos aos autos, nada impedindo a sua valoração como meio de prova.
Saliente-se, por fim, que este meio probatório não assumiu qualquer relevo como tal na apreciação da prova e motivação de facto. Conforme aí se escreveu: “De nada serviu o auto de fls. 17 a 20, valendo as fotos de fls. 21 a 36 apenas pelo que documentam do espaço e da roupa do arguido, mas não como meio de suporte de declarações deste na altura.”
Ou seja, da efetivação da diligência de reconstituição de facto não foi retirado qualquer valor probatório que assumisse a mínima relevância na decisão do tribunal recorrido, designadamente das declarações prestadas pelo arguido nesse ato, pelo que, daí não decorreu a lesão dos direitos do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa e do contraditório.
O que também aconteceu relativamente às declarações prestadas pelo arguido perante os órgãos de polícia criminal, que não foram tidas nem achadas na decisão proferida.
Assim sendo, bem andou o tribunal recorrido no despacho que indeferiu as nulidades invocadas, não se vislumbrando a existência de qualquer ilegalidade na efetivação dos atos impugnados, que não padecem de irregularidade que os torne nulos ou anuláveis.
Também não descortinamos que nos procedimentos processuais adotados tenha ocorrido violação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, como alvitrado pelo recorrente, muito embora não concretize qual das alíneas e direitos estarão em causa. Sendo certo que, não se mostram infringidos o nº 3. “O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória; o nº 5. “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório; ou o nº 8 “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Não se mostram violados os artigos 64º, 119º alínea c), 123º, 141º, 143º, 249º, 254º, 255º, 256º, 268º todos do Código de Processo Penal, como aventado pelo recorrente.
*
Prova proibida - Videovigilância

Em sede de recurso do acórdão proferido, vem o recorrente alegar que no tribunal recorrido foi valorado um meio de prova proibido, referindo-se concretamente às imagens captadas pelo sistema de videovigilância existente na casa da vítima, constantes de um DVD junto aos autos, transcritos no auto de fls. 268 a 275.
Coloca em questão a validade processual dessa prova, que teria sido obtida de forma inválida, e, por isso, não poderia ser atendido como meio probatório, como foi. Para além disso, tendo o tribunal recorrido conhecido de uma questão de que não podia tomar conhecimento, pronunciou-se sobre questão que não devia apreciar, in casu, conheceu, analisou e valorou prova nos autos, invalidamente obtida, produzida em sede de inquérito e atendida em audiência de julgamento, e cuja admissão, valoração e exame crítico para formar a sua convicção não poderia ser considerada.
“Assim, deixando de considerar prova válida junta aos autos e incluída na Acusação, concretamente os vídeos e fotogramas das imagens do sistema de videovigilância, dela não se pronunciando, a sentença recorrida padece do vício de omissão de pronúncia, previsto na 1.a parte, da alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º do Código de Processo Penal, motivo pelo qual é nula a sentença proferida”.
Afirmando: “Contudo, não podia, como o foi, a mencionada prova ser carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida.
Isto porque, a prova em causa foi operada pela via da solicitação/injunção, conforme melhor se atesta pelo referido Auto de Inquirição da Testemunha.
Ora, tendo existido solicitação/injunção para a apresentação ou concessão da prova a quem tinha disponibilidade ou controlo dos mencionados dados, não existiu voluntariamente uma disponibilização, mas sim, foi fornecida mediante uma ordem.
Não tendo sido apreendida, a obtenção da referida prova por reprodução mecânica não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP, e, em consequência, como a própria lei culmina, não podem ser valoradas como prova.
Tendo o acórdão recorrido valorado prova ilícita, proibida, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP.
Pelo que, não pode a fundamentação que se baseou na prova proibida ser tida em consideração.”
Vejamos.
Quanto ao alegado excesso e omissão de pronúncia
O recorrente veio arguir a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (artigo 379.ºn.º1, alínea c) por virtude de o tribunal ter conhecido oficiosamente uma questão de que não podia tomar conhecimento.

Vejamos.

O artigo 164.º, do CPP, quanto à prova documental, consagra:
“Admissibilidade
1 - É admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal.
2 - A junção da prova documental é feita oficiosamente ou a requerimento, não podendo juntar-se documento que contiver declaração anónima, salvo se for, ele mesmo, objecto ou elemento do crime.”

Prescreve o artigo 165.º, do CPP:
“Quando podem juntar-se documentos
1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
(…)”

Por sua vez, o artigo 167.º, do mesmo diploma legal dispõe:
“Valor probatório das reproduções mecânicas
1 - As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
2 - Não se consideram, nomeadamente, ilícitas para os efeitos previstos no número anterior as reproduções mecânicas que obedecerem ao disposto no título iii deste livro.”
Relativamente às apreensões, o art. artigo 178.º, dispõe:
Objeto e pressupostos da apreensão
1 - São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.
2 - Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos apreendidos nos termos do número anterior são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil.
3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.
4 - Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º
5 - Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de animais, instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.
6 - As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. (…)”

A propósito da questão colocada a este título pelo recorrente, vamos reproduzir o que muito bem foi dito pelo Srº Procurador Geral Adjunto no seu parecer, que, com a devida vénia, subscrevemos:
“(…)
No que concerne à primeira questão, trata-se da validade de uma concreta prova, a resultante de uma videovigilância.
Observa o arguido recorrente, expressamente, que as imagens de videovigilância constantes do processo não poderão ser utilizadas para firmarem a livre convicção do julgador por constituírem prova inválida, pela singular razão de que, como expressamente menciona, a obtenção daquelas “não cumpriu os requisitos de licitude exigidos pelo artigo 167º do CPP”. Todavia, incumpriu, assim o afirma, porque aquela prova não foi apreendida, como prevê o art.º 178 do mesmo CPPenal.
Posta a questão desta forma pelo arguido, necessariamente que este não assenta a invalidade da obtenção daquela prova, da videovigilância, como prevê o art.º 167, n.º1 daquele Código, afinal na sua ilicitude penal - “nos termos da lei penal”, diz este preceito, mas sim numa ilicitude adjectiva. A invalidade daquela prova decorre, assim o afirma, por ela ter sido “carreada para o processo sem ter sido devidamente apreendida” (fls.9 da motivação), não tendo o órgão de polícia criminal (OPC) formalizado a apreensão, já que “Os OPC devem elaborar um Auto de Apreensão que deve ser assinado pelo OPC e pelo detentor dos objetos apreendidos.”.
A sem razão do recorrente é por demais evidente, pois que, neste particular, não avança uma qualquer situação que revele que a prova em causa tenha sido obtida através de um método proibido de prova, na previsão do art.º 126 do CPenal. Em momento algum afirma o recorrente que tal prova tenha sido obtida através de tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, ou através de intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do titular respectivo.
Afinal, a ilicitude que o arguido avança não reveste natureza penal – a única aqui relevante, assumindo-se claramente processual e a existir ela configuraria não uma qualquer nulidade – art.ºs 119 e 120 do CPPenal, mas sim uma mera irregularidade que, aliás, nunca arguiu no tempo oportuno, ou seja, em conformidade com o previsto no art.º 123 do CPPenal.
Em todo o caso, não se deverá olvidar que “Não previu expressamente o legislador, como meio de obtenção de prova os meios electrónicos de vigilância.” – acórdão do TRG, de 29/03/2004, proc. 168003-2, com a relatora desembargadora Maria Augusta. Mas tal meio de obtenção de prova tinha de ser assegurado pelo órgão de polícia criminal de acordo com o previsto no n.º2 do art.º 55 do CPPenal. Não se olvidará que mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente, é da competência dos órgãos de polícia criminal “praticar os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova” – n.º1 do art.º 249 do dito CPPenal.
Então, a prova em causa é plenamente admissível e válida – art.º 125 do CPPenal.
2.2
Decorre do exposto que não há qualquer fundamento para afirmar, como faz o arguido recorrente, que o acórdão é nulo por excesso de pronúncia. A expressa alusão que faz ao art.º 379, n.º1, al. c) do CPPenal não deixa qualquer dúvida sobre tal. É que, como aquele afirma, afinal tal excesso de pronúncia decorre da circunstância daquele haver “valorado prova ilícita, proibida, conheceu de questões que não podia ter conhecido, em violação da al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP”.
O acórdão em causa, valorou, como devia, a citada prova e não conheceu de uma qualquer questão de que não lhe era lícito conhecer por não estar compreendida no seu objecto.
Inexiste, pois, a convocada nulidade.

Efetivamente, cumpre referir que a alegada ilegalidade processual invocada pelo recorrente, relativa à obtenção do meio de prova (DVD contendo registo da câmara de videovigilância instalada na casa da vítima) nunca integraria qualquer nulidade.
Com efeito, mesmo que se entendesse que a apreensão e junção desse meio de prova havia sido indevidamente efetuada, e não legalmente validada, tal apreensão, redução a auto e validação constituiriam pressupostos dessa junção, e consequente apreciação e valoração como tal, a verdade é essa omissão traduziria mera irregularidade, há muito sanada.
A alegada ausência de auto, e posterior validação por parte da autoridade judiciária competente, de apreensão a determinar a junção aos autos do DVD onde constam os registos retirados da câmara de vigilância, preencherá um vício estritamente processual, vício que, não estando previsto como nulidade, só pode, nos termos do art. 118º, nºs 1 e 2, do CPP, constituir irregularidade. Por isso, para ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo referido no nº 1 do art. 123º, do mesmo diploma legal. Nunca em sede de recurso.
Recurso só poderia haver de decisão que apreciasse a arguição da irregularidade. Assim, não se tendo seguido esse caminho, o vício, a ter existido, mostra-se sanado.
E, assim sendo, o tribunal recorrido não tinha de pronunciar-se sobre uma questão que não lhe foi colocada, como teria de ser, e tinha caminho aberto para tomar em consideração esse elemento probatório, apreciar, ponderar e valorar essa prova, fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova, constante do art. 127º, do CPP, sem que daí resulte a apontada nulidade por excesso de pronúncia. 
Sendo certo que, nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 379º do Código de Processo Penal a sentença é nula “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento.”
E, conforme o STJ tem vindo a entender “A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidas pelas partes na defesa das teses em presença. E não tem que se pronunciar sobre questões que ficam prejudicadas pela solução que deu a outra questão que apreciou” (Ac. de 11-12-2008, proc.º n.º 08P3850, rel. Simas Santos, sublinhado nosso; cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 19-11-2008, proc.º n.º 08P3776, rel. Santos Cabral, com diversas referências jurisprudenciais, ambos in www.dgsi.pt. e a demais jurisprudência referida por Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. 946).
Também em processo civil, quanto ao conceito de questão constante do artigo 660º, n.º2 do Código de Processo Civil (actual artigo 615, n.º1, al. d) do NCPC), o Cons.º Rodrigues Bastos assinala que de tal conceito “(…)devem arredar-se os 'argumentos' ou 'raciocínios' expostos na defesa da tese de cada uma das partes, que podendo constituir 'questões' em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória para o juiz (…)”, explicitando de seguida que “(...) as questões sobre o mérito a que se refere este n.° 2 serão as que suscitam a apreciação quer da causa de pedir apresentada, quer do pedido formulado. As partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a 'questão' da procedência ou da improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa (....)” (Notas ao CPC, vol. III, 3ª ed., pág. 180).
Repare-se que o DVD com gravação das imagens e som do sistema de videovigilância, junto a fls. 306 dos autos, consta dos meios de prova apresentados pelo Ministério Público na sua acusação (Cfr: ref. ...32), e o recorrente não deduziu qualquer oposição a que esse meio de prova fosse visionado ou atendido pelo tribunal, ou seja, não suscitou uma eventual proibição de valoração do vídeo face ao disposto no art.º 199.º do Código Penal, e tendo sido indicado na acusação pelo M.P., tal meio de prova tinha de ser apreciado pelo Tribunal no âmbito da fundamentação da sentença, em obediência ao ditame do artigo 374.º, n.º2 do CPP para, na conjugação dos demais meios probatórios, serem extraídas as devidas ilações para os fins da decisão a proferir.
Como se escreveu num recente aresto deste Tribunal:
«É óbvio que se autoridade judiciária a quem a apreensão é apresentada não a validar por considerar que a mesma não satisfaz os pressupostos legais, o meio de prova obtido constitui prova proibida e o apreensor incorre em responsabilidade disciplinar e criminal.
No caso em apreço a apreensão não foi declarada inválida.
Importa não confundir a declaração de invalidade com a omissão de validação.
Por isso que a referida citação doutrinal para além de truncada nunca teria, manifestamente, aplicação ao caso sub judice.
Acresce que alguma jurisprudência vem assinalando que a exigência de validação pela autoridade judiciária não passa necessariamente pela prolação de uma decisão expressa e autónoma acerca da validade da apreensão. Como se decidiu no Ac. da Rel. de Lisboa de 6-11-2007, "sempre que houver no processo elementos que demonstrem, de forma inequívoca, que o Ministério Público fiscalizou a legalidade das apreensões efectuadas pelos órgãos de polícia criminal e que, embora de uma forma tácita, as considerou válidas, deve considerar-se cumprido o disposto no n.º5 do artigo 178.º”. No mesmo sentido se pronunciaram os Acs. da Rel. do Porto de 6-2-2013, proc.º n.º 6/07.9GABCL.Pl, rel. Eduarda Lobo e de 30-5-2007, proc.º n.º 0741160, rel. António Gama, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso em apreço, mesmo que o Ministério Público não tivesse validado expressamente a apreensão do punhal sempre se poderia afirmar, parafraseando o citado Ac. da Rel. do Porto de 6-2-2013, que o Ministério Público fiscalizou a sua legalidade e considerou de forma tácita, mas inequívoca, que essa apreensão havia sido válida uma vez que ao deduzir a acusação a incluiu nos meios de prova (cfr. fls. 76).
Por outro lado, de acordo com a doutrina e a jurisprudência mais autorizadas a falta (omissão) de validação da apreensão efectuada pelos OPC encerra ou uma nulidade sanável prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d) do CPP (Santos Cabral, in Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal Comentado, 2ªed., Coimbra 2016, pág. 702, Pinto de Albuquerque, Comentário do Processo Penal, 4ªed, Lisboa, 2011, pág. 505, Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, vol. II, Coimbra, 2019, pág. 635 e Ac. do STJ de 27-8-2021, proc.º n.º 1/20.2F1PDL.S1, rel. Nuno Gonçalves) ou uma mera irregularidade (Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 2017, pág. 302 e Acs. do STJ de 17-5-2007, proc.º n.º 07P1231, rel. Cons.º Pereira Madeira, da Relação do Porto de 30-5-2007, proc.º n.º 0741160 rel. António Gama, todos in www.dgsi.pt e da Relação de Coimbra de 8-10-2008, Col. de Jur., ano XXXIII, tomo 4, pág. 51).
Ora em qualquer destas vertentes a referida nulidade/irregularidade há muito estaria sanada pelo decurso do tempo (cfr. artigos 120.º, n.º3 e 123.º, n.º1 , ambos do CPP).» (Cfr. Ac. da Rel. de Guimarães, de 22/02/2023, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, não editado, que aqui seguimos de muito perto)
De qualquer forma
O facto da decisão recorrida ter considerado o conteúdo de um vídeo obtido através de uma câmara existente na moradia da vítima, não deve considerar-se meio de prova proibida, nos termos do referido art. 126º, n.º 3, do CPP, porquanto a captação de imagens por ela efetuada não constitui a prática de um crime de fotografias ilícitas, tal com p. e p. pelo art. 199º, n.º 3, do Código Penal citado.
Conforme constitui jurisprudência praticamente uniforme e reiterada não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, constituindo o único limite a esta justa causa a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral do visado.

Como justamente se salientou no douto Ac. do STJ de 20-6-2001, Col de Jur-Acs do STJ, ano  IX, tomo 2, pág. 221:
 “I.- As proibições de gravação de vídeo mesmo que com o consentimento das pessoas visadas, na medida em que o legislador constitucional e o ordinário pretendem defender a vida, actividade privada das pessoas, pressupõe, v.g., que as imagens tomadas o foram em algum local privado, total ou parcialmente restrito, no qual, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, abrindo-se uma excepção sempre que exigências de polícia ou dos tribunais exigirem ou necessitarem de tais gravações para proteger direitos ou garantias fundamentais que, por exemplo, a vida ou a integridade física exigem.
Aliás, o próprio artigo 79.º, n.º2 do Código Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima, também deve ser considerado como extensível ao direito penal. E, consagrando-se neste âmbito, o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o artigo 31º/1 C Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
No que concerne às exigências de justiça, entende-se que a produção e a utilização, como prova, em processo penal, de fotografias e/ou vídeos poderão, em situações excecionais, ser admissíveis quando em causa esteja a necessidade de prevenção de perigos, obedecendo se sempre ao princípio da proporcionalidade como baluarte da colisão de direitos fundamentais.
Uma outra figura jurídica que procede à redução teleológica do tipo é o denominado pensamento vitimo dogmático que preconiza que aquele que comete um ato ilícito vê caducar a sua tutela jurídica de tal modo que se a vítima de um crime capta a imagem criminosa não é responsabilizada. Em termos impressivos Paulo Pinto de Albuquerque assevera que podem ser valoradas como prova, nos termos do art. 167.º do CPP, as retratações da materialidade da imagem do crime, ou seja, as imagens relativas aos atos preparatórios e de execução de crimes, ainda que adquiridas de forma oculta, desde que esse seja o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de proteção contra a vitimização e se deixe salvaguardado o núcleo do direito constitucional à privacidade, uma vez que o art. 26.º , n.º 1, da CRP e o art. 199.º , n.º 2, do CP, não protegem a imagem criminosa.
Como justamente se conclui no Ac da Relação de Coimbra de 18-5-2016, proc.º n.º 148/12.9PBLMG.C1, rel. Maria Pilar de Oliveira, após análise da jurisprudência até então produzida:
« (…) a utilização de câmaras de vigilância por particulares no sentido da protecção de pessoas e bens é licita desde que não abranja espaços destinados à vida estritamente privada dos cidadãos (caso em que poderia estar em causa o cometimento do crime de devassa da vida privada do artigo 192º do CP e que constitui o limite da licitude de da captação de imagens por particulares) sendo lícita a utilização das imagens assim obtidas como meio de prova de ilícito criminal, independentemente de terem sido captadas com o conhecimento do visado, de autorização do mesmo, ou de esses sistemas de vigilância terem sido aprovados pela CNDP”.
“Aliás, os argumentos traçados permitem ir mais longe e concluir pela licitude de imagens colhidas mesmo que em espaços destinados à vida estritamente privada, como o interior de habitações, pelos legítimos utilizadores de tais espaços no sentido da defesa dos seus bens pessoais e patrimoniais, desde que as imagens não digam respeito ao núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, o que nunca estará em causa quando as imagens documentam a prática de crimes por agentes estranhos ao espaço e que nele se introduziram ilegitimamente».
Consequentemente, nestes casos em que está em causa a utilização, necessária adequada e proporcional, de imagens como meio de prova de ilícito criminal, a existência da referida justa causa  apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, nomeadamente ao núcleo duro da vida privada como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita.
De acordo com o que foi apurado no âmbito da audiência e decorre do acórdão recorrido, a câmara em causa encontrava-se na moradia da vítima e virada para o terreno circundante da mesma, tudo pertencente a essa moradia, ou seja, num espaço particular desta.
Por conseguinte, a mesma câmara não se destinava a obter imagens que pudessem afetar o núcleo duro da vida privada de qualquer pessoa que entrasse no recinto dessa casa (onde se inclua a intimidade, sexualidade, saúde, vida particular e familiar mais restrita), mas tão somente, a captar a identidade das pessoas que acedam à mesma.
Na situação em apreço ocorre, pois, a referida causa justificativa, qual seja, a proteção dos bens patrimoniais e privacidade da moradora daquela casa, sendo que as gravações - não afetam “o núcleo duro da vida privada da pessoa visionada (onde se inclua a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas)”, isto é, a “área nuclear inviolável da intimidade”.
Consequentemente a prova resultante do vídeo em causa não é uma prova proibida.
Parafraseando Milene Viegas Martins, “A admissibilidade de valoração de imagens captadas por particulares como prova no processo penal” in Revista de Concorrência e Regulação, Coimbra, Ano 4, nº 14/15, Abril-Setembro 2013, pág. 193, a utilização das imagens, obtidas pelo sistema de videovigilância da vítima, como prova, no processo penal são admissíveis, dado que não representam qualquer ilícito penal. Isto porque a utilização das imagens que materializam a prática do crime é idónea à identificação do arguido e ao afastamento da agressão da propriedade mediante a perseguição criminal, sendo, também, razoável, uma vez que não houve exposição arbitrária da imagem do arguido e conota-se pelas superiores vantagens para o interesse geral, máxime a proteção da propriedade e segurança de bens, bem como o funcionamento eficaz da justiça material.
E porque a sua reprodução não é ilícita nos termos da lei penal (artigo 167.º n .º 1 do CPP) podia e devia ter sido valorada. (Ibidem Ac. da Rel. Guim, de 22/02/2023, supra citado)

Improcede, por conseguinte, a posição assumida pelo recorrente no que concerne à apreensão do DVD e valoração da prova contida no mesmo, bem como a invocada nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Nesta parte, improcedendo também o recurso.
***
Apreciemos agora o recurso do acórdão

3. Da impugnação restrita da matéria de facto
O recorrente suscita o erro de julgamento da matéria de facto, concretamente dos factos dados como provados, nos pontos 1, 2, 3, 7, 8, 11, 17 e 19, com o seguinte fundamento previsto no nº 2, al. c), do art. 410° do Cód. Proc. Penal, ou seja, erro notório na apreciação da prova, designadamente por violação do princípio in dubio pro reo.
Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
Do erro notório na apreciação da prova
O erro notório da apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, supõe factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt.
Estamos em presença de erro notório na apreciação da prova sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. É necessário que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum [5].
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Para se verificar este vício tem pois de existir uma “ (…) incorrecção evidente da valoração, apreciação e interpretação dos meios de prova, incorrecção susceptível de se verificar, também, quando o tribunal retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [6].
Também na doutrina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa/S.Paulo, 1994, pág. 327, recorda que o erro notório na apreciação da prova verifica-se quando se evidencia a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência por se ter decidido contra o que se provou ou não provou ou por se ter dado por provado o que não podia ter acontecido. Este erro tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, acrescenta o mesmo Autor.
Por sua vez, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77, escrevem que tal vicio ocorre quando se verifica “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”.
Ao tribunal de recurso apenas cabe “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. [7]
Daí que o eventual erro na apreciação da prova, por regra, nunca emerge como erro notório na apreciação da prova. Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não invocar o vício do erro notório.
Contudo, estando em causa a “apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.
Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Como se escreve no ac STJ 2013-07-18 (Rui Gonçalves) in www.dgsi.pt, “são os Juízes de 1.ª instância quem de forma direta e “imediata” podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas. A congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do Código de Processo Penal)”.
Em síntese, o vício vindo de referir refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva, na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
Dito isto, a partir do texto da decisão recorrida, nenhum erro notório se verifica na apreciação dos factos impugnados, nem o recorrente o explica.
Constata-se, na verdade, que a análise efetuada pelo recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos meios de prova por si elencados, sobretudo as suas declarações como arguido  e os depoimentos de algumas  testemunha, com a finalidade de contrariar a valoração da prova vertida na sentença recorrida quanto aos pontos de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório.
Da leitura da motivação de recurso resulta, isso sim, que nessa parte o arguido pretende impugnar a matéria de facto nos termos da impugnação ampla a que se refere o art.412º, nºs 3, 4 e 6.
Na verdade, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as mais elementares regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Do seu texto e contexto lógico e de fundamentação não resulta que os factos dados como provados, ora impugnados pelo recorrente/arguido, se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.
Nesta parte, tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é absurda, ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.
O que o recorrente/arguido pretende é colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
Ora, como já se disse, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.
Não vislumbramos que a decisão recorrida padeça, para além do invocado, de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, que são de conhecimento oficioso.
Em conclusão, improcede nesta parte o recurso.
Deste modo, resta concluir que a decisão recorrida não padece dos supra apontados vícios, mostrando-se a sua arguição infundada.
Não ocorrendo vício que inquine a matéria de facto nos termos do art.410º, nº2, do Código Processo Penal, a factualidade assente é insuscetível de modificação pela via da impugnação restrita.
4. Da violação dos princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo
Embora não o expresse de forma direta, depreende-se do recurso interposto que o recorrente acaba por, ao abrigo do disposto no art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal, convocar não ter sido feito o uso adequado do princípio de livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º Código de Processo Penal, e o princípio in dubio pro reo (este sob invocação direta), previsto no art.32º da C.R.P., impugnando a decisão recorrida sobre a matéria de facto.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:
1º no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento, a chamada revista alargada;
2º) na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Vejamos, pois, este modo de sindicância da matéria de facto.
Nos termos do art. 428º, nº 1, do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Sucede que a impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.
Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida.
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.
Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012.
Assim, quanto ao cumprimento do ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), com o AFJ (STJ) nº 3/2012, foi fixada a seguinte jurisprudência:
- Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).
Ora, no caso vertente, o recorrente não deu satisfação cabal aos ónus previstos no normativo processual acabado de citar.
Concretamente, o arguido especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, indicando os pontos 1 a 3, 7, 8, 11, 17 e 19, que constam do acórdão recorrido e que considera indevidamente julgados.
Porém, o recorrente não indica as concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida. Quer na motivação, quer nas conclusões, o recorrente indica, por referência ao consignado na ata, e por transcrição parcial, as provas que, na sua perspetiva, deveriam ter conduzido a decisão diversa da impugnada.
Concreta, e essencialmente, embora tivesse indicado as declarações de arguido, que no seu entender, deveriam levar a decisão diferente da recorrida, certo é que não indicou outras provas ou depoimentos com virtualidade de fazer inverter a decisão proferida sobre a matéria de facto – a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º reporta-se a provas que imponham decisão de facto diversa. Sendo certo que caiu por terra a sua impugnação de alguns dos meios probatórios recolhidos em sede de inquérito, que, na  sua visão, justificariam uma diferente redação a conferir a parte dos factos impugnados, e essa impugnação de facto se limita à manifestação de que o tribunal  recorrido perante esse meios de prova, designadamente declarações e depoimentos, cuja veracidade não questiona, deveria ter ficado em dúvida sobre a forma como tudo ocorreu, fazendo funcionar o principio do in dubio pro reo.
Ou seja, os meios probatórios que indica não impõem verdadeiramente uma resposta diferente aos pontos da matéria de facto provada impugnados, pura e simplesmente justificariam uma diferente versão, numa redação que propõe, dos mesmos, com consequências que acaba por retirar ao nível da forma concreta como o episódio que resultou na morte da vítima ocorreu, e dos motivos que determinaram a sua conduta e que culminaram naquele decesso.
Repare-se que o arguido não nega a sua participação nesse episódio, e que acabou por causar a morte da vítima. Apresenta sim, um enquadramento ou cenário fáctico e motivacional algo diferente do que foi dado como assente, designadamente razões para a sua presença no local e um conjunto de circunstâncias que resultaram num envolvimento físico com aquela e que redundou num resultado que não previra, nem desejara, mas que acabou por acontecer.
Ora, a impugnação da matéria de facto por o Tribunal a quo ter efetuado uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não pode confundir-se com discordância na apreciação da prova que invada o espaço da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do C.P.P., que é de estrito domínio do julgador.
Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objetivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207).
Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.
Assim, o juiz é livre, no sentido mencionado de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha (ainda que familiar do arguido ou do ofendido) em detrimento de testemunhos contrários (v.g. de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido ou ao ofendido).
Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o princípio in dúbio pro reo, como alvitrado pelo recorrente.
O princípio in dúbio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32º, n.º 2 da CRP), constitui, pois, um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Como pode ler-se no Ac. do TRP de 17.09.2003 (processo 0312082, disponível em www.dgsi.pt) “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do C.P.P. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204). Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do principio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (Código Processo Civil Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss. (…)”.
O artigo 127º do C.P.P. indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Isto equivale a dizer que, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.
A impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do C.P.P. consiste na apreciação, tal como sustentou o Ac. do TRE, de 26.03.2019 (acessível in www.dgsi.pt) “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal.”
Como se diz no Ac. do TRL, de 29.03.2011 (acessível in www.dgsi.pt) “A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º]”.
Como salienta o STJ no Ac. de 12.06.2008 (acessível in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao Tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º).
Com efeito, o Ac. do TRP de 12.05.2021 (processo 6098/19.0JAPRT.P1, proferido no âmbito do processo 6098/19.0JAPRT que correu termos no JC Criminal ...) escreveu que: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
Não basta assim ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha que fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.”
De facto, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros (cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 15.12.2005 e de 09.03.2006, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).
Regressando ao caso vertente.
Tendo o recorrente procedido, como se disse, à indicação das concretas passagens das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas referidas em que funda a impugnação (artigo 412º, n.º 4 do C.P.P.), está este tribunal apto a apreciar a discordância manifestada de acordo com as regras infra estabelecidas.
A decisão do julgador, na apreciação dos meios de prova, encontra-se supra descrita.
A avaliação da prova em primeira instância, feita de forma direta, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais, comportamentos físicos), de provas de produção pretérita.
Reiteramos que a reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.
Vejamos, então, se a formação da convicção do tribunal em relação aos factos impugnados padece de erro.
Escutamos integralmente as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas CC, GG, FF, HH, que naturalmente conjugamos com toda a demais prova produzida, e não encontramos, mesmo limitados por esta atividade de pura audição, qualquer motivo, plausível ou razoável, para dele não extrair o significado compreendido pelos julgadores no acórdão sob escrutínio. Dito de outra forma, porventura mais clara, apenas pelo depoimento em causa (despida de toda a contextualização visual, apenas percetível pelos julgadores) não encontramos qualquer motivo suscetível de desmontar a valoração conferida em primeira instância.
Assim, entendemos não merecer qualquer tipo de censura a valoração efetuada pelos julgadores dos referidos meios de prova.
Por fim, quanto a este tipo específico de recurso (da decisão sobre a matéria de facto: cfr. artigo 412º, n.º 3 do C.P.P..) cumpre ainda esclarecer que “a censura” quanto à formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
“Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de24.3.2004, DR, II Série, n.º 129, de2 de junho.
Ora, no caso vertente, o recorrente pretende impor a apreciação que ele próprio faz das suas próprias declarações, e nelas se estriba essencialmente a sua impugnação de facto, e dos depoimentos das referidas testemunhas (compreensível e necessariamente parcial) sem que alegue outras provas concretas que impusessem decisão da matéria de facto distinta, oposta da que foi tomada pelos julgadores, isto é, que tornassem, face às regras da experiência comum e da lógica, insustentável a apreciação operada pelo Tribunal a quo.
Salientando-se, ainda, que nem sequer foi questionado o teor do que foi afirmado, que o que foi dito não corresponda à verdade, ou que seja infirmado por qualquer outro meio de prova, limitando-se a conferir uma outra roupagem interpretativa, a sua, a essas declarações e depoimentos. Não sendo apontadas disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos e declarações, ou entre estes e a demais prova produzida.
Também não questiona que em 1ª instância tenha sido infringida qualquer das regras que prevalecem na apreciação e valoração da prova , da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.  Revelando-se o julgamento de facto estribado numa convicção possível, diria mesmo que a única que o material probatório consente, sem margem para dúvidas, e explicável à saciedade pelas regras da experiência comum. Pelo que não poderia deixar de acolher-se a opção do julgador recorrido.
Sendo certo que se procedeu à indagação dos específicos pontos impugnados, da existência, ou não, dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, e não encontramos quaisquer motivos para proceder à sua correção e conferir a cada um deles a redação pretendida pelo recorrente.
Não olvidando que, em relação à impugnação invocada pelo recorrente, sempre se repetirá que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso. E erros procedimentais não foram encontrados, e os decisórios limitaram-se à invocação da violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, que também não se descortinaram.
Como se referiu, com a impugnação da matéria de facto suscitada pelo recorrente, os pontos de facto que considera incorretamente julgados são aqueles vertidos nos pontos 1 a 3, 7, 8, 11, 17 e 19, os quais deviam, em seu entender, ter sido julgados de forma diferente.

A este respeito, no acórdão recorrido fez-se constar:
“(…)
As declarações do arguido em julgamento serviram para 1. a 5. (a parte final deste corroborada pelo depoimento de HH, mãe de BB), 6. (a localização da bicicleta resulta das fotografias de fls. 22 e 78, não aparecendo nas imagens do DVD – auto de fls. 268 a 275 – captadas por uma câmara imóvel na residência de BB), 7., 8. (complementados, na parte final, pelo auto de exame ao cadáver a fls. 11, pelas fotografias de fls. 44 a 46 e por fls. 593 a 595 do relatório de autópsia, quanto aos cortes nas mãos e, relativamente aos ferimentos do arguido, pelas  fotografias de fls. 81 a 87, 192 a 196 e 198 a 205 – também úteis para 11., assim como o auto de apreensão de fls. 37 – e pelas fichas de urgência de fls. 298/299 e 121), 9. (corroborado pelas fotografias de fls. 41/42, 47 a 50, 55, 206 a 209, quanto à posição de BB, e pelo relatório de autópsia de fls. 585 a 601 – decisivo para 14. e 15.), 10. (confirmado pela informação das operadoras de fls. 614 e 563, pela fotografia do ecrã do telemóvel de fls. 197, pela transcrição da segunda chamada do arguido para o INEM – fls. 292 a 294, em CD junto aos autos –, pelos registos do INEM de fls. 247 a 265, pelo visionamento das imagens de videovigilância da casa de BB – maxime fls. 272 e 273 – e pelas fotografias de fls. 36, 70 a 72 e 74/75) e 17. (o arguido assumiu ter ciúmes do alegado namorado de BB, acrescentando “na minha cabeça, nós os dois ainda estava junto”).
O teor de 12. resulta de fls. 118.
A intenção que norteou o arguido (parte final de 3., 16. e 18.) resulta inequívoca de um conjunto de indícios:
- o arguido saber que a sua ex-companheira se preparava para ir para ... (facto confirmado pela testemunha – e patrão – GG, a quem o arguido o disse quer uns dias antes dos factos quer na própria manhã de 11 de Março), o que a levaria para longe dele (na mente do arguido, tal não era compatível com o referido supra a propósito de 17.);
- a circunstância de o arguido se ter previamente munido de duas facas de cozinha, objectos potencialmente letais (apreendidas a fls. 13, sendo a primeira fotografada a fls. 41 a 44 e 207 a 209 e a segunda a fls. 55 a 57 – o que também serviu para 13. e 19.);
- o tipo de abordagem que o próprio arguido admite ter feito a BB, pelas costas e com uma das facas na mão;
- apesar da resistência oferecida por BB (provocando ferimentos no arguido, inclusive nas mãos), o recurso do arguido a estas como arma;
- o período de tempo decorrido – de pelo menos 7 minutos, conforme registo de imagens (dois primeiros vídeos de fls. 268, que não permitem concluir pelos 20 minutos alegados no pedido de indemnização civil) – entre os primeiros gritos de BB, pedindo “socorro” (gritos que o arguido confirmou), e o momento em que esses gritos se deixam de ouvir (sinal de perda de consciência ou morte), período que, fosse outro o seu desígnio, permitiria ao arguido cessar a sua conduta, em vez de nela persistir;
- a descontracção, à-vontade e total desassombro demonstrados pelo arguido no comportamento imediatamente posterior aos factos (conforme supra referido em 10)., bem como nos contactos telefónicos estabelecidos com o INEM (o de fls. 292 a 294 e o anterior, fls. 269/270) – pronto para dar indicações e detalhar o seu comportamento (fls. 269), afirmando até “então eu hoje decidi, vim cá matá-la eu” (fls. 270) –, com a testemunha FF (que confirmou a existência da chamada, audível nos registos da câmara de vigilância de casa de BB e transcrita a fls. 270/271, onde o arguido se preocupa com o destino do seu gato e de ter cigarros na cadeia, se refere a BB com insultos – “puta” – e diz “não dava para viver assim, não estava conseguindo (…) gozaram comigo, isso não se faz”), com o aludido patrão GG (fls. 272) – “eu fui dar uma facada nela (…) A puta está ali, está morta, até a língua está para fora (…) Não ia fazer pouco de mim assim” – e até com a sua mãe (fls. 274), a quem comunica de forma factual (e reiterada) o que acaba de fazer, ainda tentando minorar a sua conduta (“ela me deu três facadas”). 
Perante estes elementos, é inócua a não assunção, por parte do arguido, da intenção de matar a ex-companheira: as (alegadas) afirmações do arguido de que, no envolvimento físico entre ambos, por duas vezes disse a BB, “calma, ..., não te vou matar”, além de não constarem das gravações da aludida câmara de vigilância, são absolutamente contraditórias com a sua actuação; por outro lado, apesar de dizer que a sua vontade era apenas lutar com o alegado namorado da sua ex-companheira, ou mesmo matá-lo, o arguido, quando confrontado, não conseguiu explicar de forma cabal porque não foi embora no momento em que percebeu, ainda fora da casa, que esse homem não estava lá. A comoção e o choro do arguido ao longo das suas declarações são obviamente insusceptíveis de apagar o que se passou no dia dos factos, única matéria relevante para apurar a sua intenção para com a vítima.
O teor de 20. é do conhecimento de qualquer cidadão imputável, como é o caso do arguido. Para 21., serviu o certificado de registo criminal (ref.ª ...97), sendo o relatório social (ref.ª ...78) útil para 22., além dos depoimentos do aludido patrão do arguido, da sua mulher JJ (também funcionária da empresa) e do citado amigo (e colega de trabalho) FF.
Ex abundantiae, há ainda a registar a análise dos telemóveis de arguido e de BB (de que resulta terem ambos falado por essa via pela última vez a 6 de Março de 2022, por iniciativa do primeiro – fls. 474 e 493), o ADN masculino encontrado no exame biológico ao pescoço de BB (fls. 578 a 584), bem como idêntico exame à roupa do arguido, à faca e ao cabo (7.), que não permitem excluir nem arguido nem vítima dos respectivos vestígios (fls. 635/636), o que é natural dada a luta entre ambos.
KK, cabeleireira frequentada por BB, apenas sabia da sua intenção de ir para ... no dia seguinte aos factos, o que foi confirmado pela irmã de BB, LL (conhecedora dos receios daquela de que o arguido lhe fizesse mal). (…)”
Como resulta da análise desta fundamentação de facto, verificamos que no tribunal a quo foi feita uma proficiente e aprofundada apreciação, valoração da prova produzida, que motivou de forma lógica e compreensível
Por todo o exposto, o recorrente não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade dos factos descritos é inadmissível (não é sustentada em dados objetivos) e que os meios de prova impunham uma convicção diferente.
Sendo certo que, na situação dos autos, o tribunal formou grande parte da sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido, que admitiu a essencialidade dos factos apurados, valorados pelo tribunal na parte que se mostrou séria e credível, tendo sido explicitadas as razões do seu convencimento, aferidas segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e inteiramente suportada pelos aludido, e colocado em causa, princípio in dubio pro reo.
Finalmente, acrescenta-se, para além da confissão do arguido, mas que nesta parte tentou justificar a sua conduta e negar a intenção de matar, a prova do seu dolo fez-se, como habitualmente acontece, de forma indireta, com recurso a inferências lógicas e presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência retiradas de todo o cenário circunstancial apurado que rodeou a prática do crime em questão.

Violação do in dubio pro reo

Resta, finalmente, voltar a acrescentar que não descortinamos que tenha sido foi violado o princípio in dubio pro reo, ou seja, se perante a dúvida insanável, séria e fundada a respeito dos factos impugnados, o tribunal a quo decidiu contra o arguido.
Ora, o certo é que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação da factualidade impugnada pelo recorrente, que pudesse ter resolvido de forma favorável ao mesmo.
Conforme já se fez notar, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal é livre na formação da sua convicção, mas encontra-se vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que estão subtraídas a essa livre convicção, sendo esta motivada, e estando ainda o tribunal sujeito aos princípios do processo penal, como o da legalidade das provas e in dubio pro reo.
Ora, este princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova (art. 32º, nº 2 da CRP), constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
O convocado princípio in dubio pro reo constitui efetivamente uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.
O aludido princípio impõe, pois, uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto, que não cabe num recurso restrito à matéria de direito.
Donde, a apreciação da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
Ora, o recorrente limita-se a concluir, de forma algo simplista que, em relação aos propalados factos por si impugnados, face à prova produzida, houve violação do princípio in dubio pro reo.
No entanto, não resulta da decisão recorrida relativamente aos assinalados factos provados por si impugnados que o Tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra o arguido recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção e, ademais, se impunha que a devesse ter tido.
Emerge da motivação da decisão recorrida que o tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto ao cometimento pelo arguido dos factos nucleares respeitantes à imputação efetuada, que se baseiam em prova legal, escorreita e consistente.
A alegação do recorrente, no sentido de que foram dados como provados factos sem prova bastante, e dessa forma violado o princípio in dubio pro reo, é baseada numa determinada perspetiva da defesa sobre a prova produzida, de todo não coincidente com aquela que foi a do tribunal recorrido e que está detalhadamente explanada no texto da decisão condenatória.
Da análise da decisão recorrida não emerge qualquer dúvida insuperável e razoável sobre a valorização da prova concernente à factualidade impugnada, antes uma análise criteriosa da mesma, de modo a permitir a compreensão da razão pela qual os factos em causa foram dados como provados, num adequado e pleno exercício da livre apreciação da prova, carecendo, pois, totalmente de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo.
Assim, improcedem os argumentos aduzidos pelo recorrente para pugnar pela violação do princípio in dubio pro reo.
Em suma, não padecendo a sentença recorrida de erro ou vício na apreciação da prova que serviu de relevante fundamento decisório, mostra-se também, pela via mais ampla, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que implica que a mesma se tenha por definitivamente consolidada.
A interpretação e aplicação do artigo 127.º do Código Processo Penal pelo Tribunal a quo, não viola o artigo 32.º, n.º 1 e 2 da CRP e o artigo 6.º da CEDH.
*
De Direito
Enquadramento Jurídico

O arguido está condenado pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b), Cód. Penal, e 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.
No recurso interposto, limitado ao crime de homicídio,  manifesta o entendimento de que os factos vertidos na acusação e os que efetivamente se verificaram, naturalmente tendo em consideração a sua versão dos acontecimentos, apenas integram a prática de um crime de homicídio de homicídio na sua forma simples, mais concretamente um homicídio simples atípico.
Vejamos.
Em relação ao crime de homicídio, o arguido foi condenado pelo crime agravado, ao abrigo do disposto no art.132, n.ºs 1 e 2 al. b), do Código Penal.
«O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.
O crime de homicídio qualificado verifica-se: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade,(…)” artº 132º nº 1 do C.Penal.
As circunstâncias referidas no nº 2 do mesmo preceito, são meramente indicativas e, não taxativas, são circunstâncias de referência exemplificativa, mas não de abrangência exclusiva.
O nº 2 apenas determina que:
“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente (…)”, seguindo-se a indicação de circunstâncias descritas nas respectivas alíneas do preceito. (sublinhado nosso)
A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. do STJ de  07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 - 5.ª).
No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos-padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27 e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.
Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a falada especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º, não é só por isso que o crime de homicídio cometido, deverá ter-se logo por qualificado.
A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ac. do STJ de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 - 5.ª Secção)
O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da acção letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade que integraram a acção letal do agente.

Como conclui Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 2003, p. 124:
“3. O critério generalizador do artigo 132º integra um tipo de culpa fundamental que permite caracterizar de forma autónoma a atitude especialmente censurável ou perversa do agente.
4. Só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente compreendida.”
O legislador apesar de optar pela técnica dos exemplos padrão, consubstanciados no artigo 132º funda-se porém “na combinação de um critério generalizador, constituído por uma cláusula geral de agravação penal, com uma enumeração exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático”
Mesmo na construção do Leitbild dos exemplos padrão, é a partir de cada uma das concretas circunstâncias agravantes exemplificadas que se retira não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua própria estrutura valorativa. (idem, ibidem, p. 126 e 127).» (Cfr. Ac. do STJ, de 30/10/203, Relator Cons. Pires da Graça, in www.dgsi.pt)
Voltando ao caso concreto.
Não se questiona que o arguido cometeu um crime de homicídio consumado, tendo sido o causador da morte, por estrangulamento, da vítima BB.
A questão que o recorrente coloca prende-se com a qualificação, ou não, desse crime

No acórdão sob escrutínio, escreveu-se sobre a concreta qualificação do homicídio discutido no processo:
« Importa agora apreciar se tal crime é ou não qualificado.
Dispõe o art. 132.º, n.º 1, que “se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”. O n.º 2 deste último artigo apresenta um elenco de circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, umas relativas ao agente e outras ao facto.
Na acusação, refere-se não só a alínea b) deste n.º 2 – “praticar o facto contra (…) pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação (…) análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação” – e a alínea e) – ser o agente “determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil” – como também a alínea j) do mesmo número – “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”.
Sendo a indicação legal do art. 132.º, n.º 2, meramente exemplificativa, isso implica que podem constituir “crimes qualificados condutas que não se enquadram em qualquer desses índices e o não possam constituir outras que, identificando-se com eles, não revelem a censurabilidade ou perversidade que qualificam a acção e realizam o tipo legal” . Ou seja, “nem sempre que está presente algum dos indicadores das diversas alíneas do n.º 2 se verifica o crime qualificado, bastando para tanto que, no caso concreto, esse indicador não consubstancie a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 1; mas que, na presença deste último elemento, está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores” . Assim, a formulação legal acaba por propiciar ao aplicador da lei uma maior flexibilidade na apreciação das circunstâncias especiais de cada crime, uma vez que a qualificação não faz parte do tipo de ilícito mas se consubstancia, afinal, em elementos constitutivos do tipo de culpa .
Ora, no caso concreto e começando pela alínea e), é evidente que carecem os autos de factos que permitam enquadrar a actuação do arguido nos conceitos de avidez, prazer de matar ou causar sofrimento, e excitação ou satisfação do instinto sexual. Resta, portanto, a questão do motivo torpe ou fútil.
Torpe será, seguindo a definição etimológica, um motivo “desonesto, ignóbil, sórdido, nojento, indecoroso, obsceno” ; ou, conforme a jurisprudência, “um motivo vil, abjecto, revelador de baixo carácter, repugnante, ignóbil, nitidamente revelador (…) de profundo desprezo pela vida humana” .
 Já quanto ao motivo fútil, “tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. A grande desproporção entre o que se elege como motivo da ação e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das conceções éticas correntes da sociedade. A razão do cometimento do crime surge pois com um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este.”
 Portanto, é motivo fútil “aquele que não tem relevo, avaliado do ponto de vista do agente; motivo torpe é o que ofende a moralidade média ou o sentimento ético-social” .
A título de exemplo, são motivos fúteis matar alguém com uma facada no peito porque a vítima se recusou a dar um cigarro ao agente, espetar um canivete no tórax por a vítima não ter dado ao agente moedas em troca de ajuda no estacionamento, ou deitar uma mulher de uma ponte com 13,5 m de altura em relação ao rio para evitar que aquela denunciasse os arguidos .
No caso, é patente que, embora já separado da vítima, o arguido mantinha-se a ela vinculado na sua cabeça e não aceitava a ruptura (2.), e que, no dia dos factos, actuou movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre BB (17.).
Não se pode enquadrar este motivo na noção de torpe, supra explicada; quanto à futilidade e, como se referiu, à luz das noções éticas da sociedade, o ciúme não transforma a actuação do arguido em algo absurdo e sem explicação. É de reprovar e, evidentemente, não justifica o acto (ou, como outrora acontecia, o faz ser positivamente valorado!). Porém, falta-lhe aquele vazio e desproporção que permitam o seu enquadramento no motivo fútil, isto sem prejuízo do relevo que possa assumir noutra qualificativa do crime.
Para a alínea j), inexiste qualquer facto que permita concluir ter o arguido persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Resta, portanto, a frieza de ânimo e/ou a reflexão sobre os meios empregados.
A este respeito, é certo que foi possível apurar (3.) que o arguido, ligando a rumores de que, a 11 de Março de 2022, estaria na freguesia o alegado novo namorado da ex-companheira, formulou o propósito de os surpreender juntos e de matar BB. Porém, fica por saber em que momento o arguido decidiu fazê-lo: apenas se provou que o arguido saiu de sua casa, nesse dia às 15h, já munido com duas facas de cozinha, num saco plástico; depois, sabendo pela mãe de BB que esta se encontrava em casa, para lá se dirigiu, de bicicleta, deixou esta fora do alcance da videovigilância aí existente e aproximou-se da ex-companheira já com uma faca na mão.
Portanto, apenas seguro é dizer que, pouco mais de uma hora antes de o arguido ter, ele próprio, comunicado ao INEM que tinha matado a ex-companheira (10.), já tinha a intenção de o fazer.
Afigura-se que este período de tempo não é compatível nem com frieza de ânimo nem com reflexão sobre os meios: não está aqui descrita uma situação de calma ou de grande elaboração de pensamento, mas sim um acto intempestivo, cuja decisão é mais abrupta do que calma ou fria. E isso não é contrariado pela circunstância de se ter provado que o arguido reflectiu no caminho que a contenda levava (18.), porque isso é apenas mais uma demonstração da vontade do arguido em matar a ex-companheira.
Por isso, também se entende não estar verificada nenhuma das circunstâncias da alínea j).
De forma diversa se põe a questão quanto à especial relação que ligava o arguido à vítima: viveram juntos, na mesma casa, como se de marido e mulher se tratassem, durante doze anos, embora estivessem separados de facto, à data do crime, há cerca de 2 meses. A circunstância agravante da alínea b) do art. 132.º, n.º 2, “é resultado de uma evolução legislativa no sentido de combate à violência e maus tratos familiares (…) e arranca do pressuposto de que as relações familiares não legitimam o exercício de direitos ou o cumprimento de obrigações de forma chocante e absolutamente intolerável, antes se devendo desenvolver, a bem dos seus membros e da comunidade, num clima de salutar equilíbrio” .
Ora, pese embora nada tenha sido alegado nem provado quanto ao evoluir da relação de ambos enquanto estiveram juntos, é certo que a ruptura não foi interiorizada nem aceite pelo arguido: ele sentia-se frustrado pelo desenlace e foi-se tornando desconfiado, ciumento e possessivo. Porém, o que desencadeou a sua actuação criminosa foram os rumores de que BB teria outro relacionamento: em vez de seguir também ele a sua vida, optou por pôr termo à da ex-companheira, numa estranha e vingativa opção!
Matar é sempre um acto de violência inaudita; mas, aqui, o arguido escolheu precisamente esse acto para coarctar de forma inadmissível a liberdade de actuação da sua ex-companheira (fosse ou não verdade o tal homem existir na vida de BB, circunstância completamente irrelevante). Um casamento ou qualquer outra ligação da mesma índole, ainda que sem vínculo legal, como era o caso dos autos, é um acto de vontade mútua, com suporte afectivo particularmente forte; se uma das pessoas sente não ter condições para continuar essa relação, isso pode causar desgosto à outra, e até trazer-lhe uma mágoa profunda e duradoura. Mas, seguramente, não lhe dá o direito de agir baseado no primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez, ainda por cima baseado em rumores que ouviu na freguesia! Não se conformava com a possibilidade de BB poder ter refeito a sua vida, ficou frustrado, achava que ela era sua (como se uma pessoa fosse susceptível de propriedade), tinha ciúmes, e não encontrou melhor saída do que…matá-la.
Quer dizer, o contexto factual da actuação do arguido, quando se sentiu definitivamente afastado do futuro de BB – pessoa a quem devia um especial respeito pela sua vivência anterior, em vez que a acossar na sua própria casa – leva à conclusão, sem margem para dúvidas, de que houve especial censurabilidade e perversidade na prática do crime de homicídio, aplicando-se-lhe a agravação da citada alínea b).
Assim, conclui-se ter o arguido cometido um crime de homicídio qualificado, punível com uma pena de 12 a 25 anos de prisão.»
Como se vê, o arguido estava acusado pela prática de um crime de homicídio qualificado, do art. 132º, nº 1 e 2, para além da circunstância prevista na al. b) deste número, pelas das als. e) e j), por se ter entendido que a sua ação foi determinada por motivo torpe ou fútil e que agiu com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados.
Entendendo como torpe o motivo infame, indecoroso, repugnante, baixo, sórdido, ignóbil, asqueroso, profundamente imoral, que repugna à generalidade das pessoas, e fútil aquele que é incompreensível para a generalidade das pessoas, que não tem relevo, que é insignificante, gratuito, frívolo, sem valor, que não pode razoavelmente explicar o tribunal recorrido afastou qualquer uma destas circunstâncias, porque inserindo-se a conduta do arguido num contexto de frustração e ciúmes em consequência do desenlace de um relacionamento de facto, como marido e mulher, que perdurava há cerca de 12 anos, decidiu esse conjunto de circunstâncias que envolviam arguido e vítima retiram à conduta deste arguido as características que permitiriam considerar que foi determinada por um motivo torpe ou fútil.
Quanto à segunda circunstância, o tribunal também a afastou porque, não obstante o arguido ter ido munido de duas facas ao encontro com a vítima, entendeu que não se verifica ter o arguido persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, também dos factos se pode extrair que o tenha feito com frieza de ânimo e/ou reflexão sobre os meios empregados.
Tendo afastado estas circunstâncias indiciadoras de um acréscimo de culpa na prática dos factos, o tribunal recorrido qualificou o crime cometido pelo arguido com base na qualificação pela circunstância prevista na al. b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, por entender que a forma como os factos se desenvolveram justificam uma especial desaprovação da conduta do arguido.
Na verdade, o conjunto da matéria de facto provada revela várias circunstâncias que tornam o homicídio em causa, não obstante se apresentar como mais ou menos frequente ou comum, merecedor de ser considerado como de especial censurabilidade ou perversidade.
Por um lado, a circunstância de ter assassinado a mulher com quem partilhou vida em comum durante um período de vida bastante extenso, à volta de 12 anos, e que só havia cessado há 2 meses atrás;
Por outro, o espírito egoísta, revanchista, de inconformismo perante uma situação de rutura dessa relação, que jamais aceitou, e que, alimentado por um sentimento manifestamente possessivo relativamente à pessoa da BB, perante notícias, não confirmadas, de que a mesma estaria na iminência de refazer a sua vida junto de outra pessoa, o levou a assumir a atitude que culminou na morte daquela.
Como bem se salienta no acórdão recorrido: “Um casamento ou qualquer outra ligação da mesma índole, ainda que sem vínculo legal, como era o caso dos autos, é um acto de vontade mútua, com suporte afectivo particularmente forte; se uma das pessoas sente não ter condições para continuar essa relação, isso pode causar desgosto à outra, e até trazer-lhe uma mágoa profunda e duradoura. Mas, seguramente, não lhe dá o direito de agir baseado no primitivo princípio “se não és para mim, não hás-de ser para mais ninguém”, que foi precisamente o que o arguido fez, ainda por cima baseado em rumores que ouviu na freguesia! Não se conformava com a possibilidade de BB poder ter refeito a sua vida, ficou frustrado, achava que ela era sua (como se uma pessoa fosse susceptível de propriedade), tinha ciúmes, e não encontrou melhor saída do que…matá-la.”   
Por fim, também não podemos deixar de relevar a violência atroz, a forma bárbara como o arguido matou a BB, colocando-a numa situação de agonia e sofrimento durante vários minutos, com certeza percecionando que iria morrer, período durante o qual poderia perfeitamente ter cessado a agressão e desistido dos seus intentos.
Assim não aconteceu, persistiu na intenção de retirar a vida à vítima, comprimindo as suas mãos à volta do pescoço desta até que deixou de respirar, estrangulando-a. 
Nenhuma censura merece, pois, a decisão encontrada no que se refere à qualificação do crime, sendo certo que as apuradas circunstâncias que rodearam o episódio que culminou na morte da vítima são de tal modo graves que refletem uma atitude de total distanciamento do arguido às regras que norteiam a vida em sociedade, em relação a uma determinação normal de acordo com os valores vigentes e de respeito para com os outros, ainda mais relativamente a uma pessoa com quem manteve uma relação de vida em comum, em família, durante tanto tempo, o que lhe conferia ainda maior dever de respeito. Ou seja, todo este cenário envolvente conduz a um juízo de que estamos perante uma conduta altamente censurável e perversa.
Como se refere no parecer do Ministério Público, que sufragamos: “A dita alínea b) do n.º2 do art.º 132 do CPenal - “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, a circunstância de o agente: (…); b) Praticar o facto contra (…), pessoa (…) do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, (…)” – e cuja actual versão foi introduzida pela Lei 59/2007, de 04/09, visa responder à censurabilidade social das situações de agressões no contexto de violência doméstica, na consideração de que “os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade”, “mesmo se tiverem cessado as relações matrimoniais, pois os laços familiares devem continuar a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram” – Victor Sá Pereira e outro, Código Penal, pág. 344.
Usando as palavras de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 29, “A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…), que denota qualidades desvaliosas da sua personalidade”.
No acórdão do STJ de 02/02/2022, Proc. 74/21.0GBRMZ.S1, com o relator conselheiro Lopes da Mota, seguiu-se o acabado de escrever: “(…) No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. (…) Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente.”.
Aliás, “II - «Especial perversidade» e «especial censurabilidade» não são conceitos equivalentes, já que o primeiro se reporta às qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, enquanto o segundo se refere à forma especialmente desvaliosa como o acto criminoso foi cometido” – acórdão do STJ, de 27/05/2004, proc. 04P1389, com o relator conselheiro Pereira Madeira.
No caso em apreciação, releva, então, a especial perversidade do arguido já que presidiu às comprovadas circunstâncias da morte da vítima BB vertidas na factualidade provada tão só o seu “primitivo egoísmo”, desprezando os laços de respeitabilidade junto da vítima com quem viveu mais de uma década.
Como consta da factualidade referida, o arguido “17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB”. Tanto mais que não se pode olvidar a explicação oferecida por ele para o facto e que ficou a constar da fundamentação da decisão – “na minha cabeça, nós os dois ainda estava junto”.
Afinal, o ideado desígnio de morte do arguido não se concretizou à facada, mas realizou-se através de esganadura, assim corporizando um padrão típico. É que o estrangulamento/esganadura e a asfixia são o segundo método mais comum de homicídio de mulheres, nas relações de intimidade, a seguir ao esfaqueamento – vd. UK Femicides 2009-2018 https://www.femicidecensus.org/wp-content/uploads/2020/11/Femicide-Census-10-yearreport.pdf .
A conduta do arguido é perversa e merecedora de intensa reprovação porquanto, e como se escreveu no acórdão do STJ, de 25/02/2015, proc. 1514/12.5JAPRT.P1.S1, com o relator conselheiro Raúl Borges e fazendo a sua adaptação ao caso vertente, “VIII - O relacionamento do arguido com a vítima durante cerca de 3 anos como se casados fossem, e mantido até poucos dias antes (do homicídio), atendendo aos laços de afecto e da comunhão de vida, deveria ter funcionado como travão para a acção do arguido. A reacção do arguido é manifestamente desproporcional em relação à manifestação de vontade da vítima de não querer continuar com a relação amorosa. O arguido agiu com manifesta superioridade conferida pela posse de arma de fogo, sendo os tiros direccionados a zonas vitais (2º tiro atingiu-a na cabeça), a curta distância. Estas circunstâncias bastam para a acrescida censurabilidade e demonstrando comportamento altamente desvalioso, confirmando-se ter o arguido cometido o crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132.º, n.º 2, al. b), do CP”.”
Esta última situação, ressalvando as diferenças respeitantes à forma como o crime foi perpetrado, retrata-nos um episódio com manifestas semelhanças com o caso vertente. Também aqui, não obstante a luta que a vítima assumiu na tentativa de evitar que o arguido prosseguisse os seus intentos, a superioridade proporcionada pela posse das facas, e potenciada após a vítima ter sido manietada e mantida por debaixo do corpo do arguido, e nem assim travar a sua atuação, são superlativamente demonstrativas de uma atitude altamente censurável, desvaliosa e perversa.    
O arguido foi profundamente indiferente a todas as circunstâncias de ordem afetiva que o ligavam à BB, que não foram suficientes para refrear o seu propósito de atentar contra a vida desta, vencendo facilmente as contra-motivações éticas habitualmente derivadas desses laços, o que, em nosso entender, é especialmente censurável.
Por outro lado, também não podemos olvidar o facto do arguido se ter dirigido à casa da vítima, a fim de se alegadamente se inteirar se aí se encontraria o novo companheiro desta, munido de duas facas, que ocultava, e de aí ter penetrado, no recinto envolvente da casa, por forma a não ser detetado,  nem sequer pelas câmaras de vigilância ali existentes, e surpreender a BB num momento em que estendia roupa, de costas voltadas para o local de o arguido provinha, coartando-lhe as hipótese de defesa ou de fuga.
Ainda que este facto, pelas razões supra expostas, não seja suficiente para preencher o exemplo padrão da al. j), não deixa de ser um forte indício de frieza de ânimo e de reflexão sobre os meios empregados. Com efeito, ainda que na mera atitude do arguido, ao munir-se das facas, não se possa ver, indiscutivelmente, a formulação da intenção de matar a BB, desconhecendo-se, pois, quando a tomou, milita fortemente nesse sentido o facto de levar essas armas brancas e de exibir uma delas quando, à partida, já nada o justificaria, uma vez que se havia inteirado que o suposto novo companheiro daquela ali não se encontrava. Tanto mais que o arguido poderia facilmente resolver de forma racional o alegado motivo da sua visita à casa da vítima, inteirando-se das suas intenções relativamente a um novo relacionamento amoroso e à ausência para ..., como os rumores na freguesia anunciavam.
Pelo que se apresenta completamente desproporcionada a circunstância de o arguido ir para esse encontro munido das facas, ou pelo menos, a partir do momento que se apercebe que a vítima estava sozinha, tornando a sua conduta especialmente censurável. Note-se que, aqui, estamos somente a valorar o facto de ele se ter munido das facas e não de as ter utilizado no cometimento do crime, circunstância esta que foi valorizada autonomamente nos termos do art. 86º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
Por seu turno, parece claro que a motivação para a conduta do arguido assentou, como referimos supra, no facto de não se conformar com o términus da sua relação com a vítima, de não aceitar que esta refizesse a sua vida na companhia de outra pessoa, imbuído de um sentimento de ciúme e de posse em relação à sua ex companheira.
Tal motivação, embora sem poder ser considerada, como já referimos, um motivo fútil, não deixa de revelar uma grande desproporção, revelando um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis, constituindo um ato altamente censurável.
Por fim, mencione-se a muito forte persistência na intenção de matar, tendo o arguido, após uma luta corpo a corpo com a BB, do qual inclusive resultaram ferimento nas suas mãos e numa perna, depois de a ter manietado e controlado, sem que nada o justificasse deitou-lhe as mãos ao pescoço e estrangulou-a. Atuando sobre uma parte do corpo onde era de esperar com maior certeza o efeito pretendido, e durante um espaço temporal em que a eficácia do aperto surtiu pleno efeito.
Igualmente impressivo é o facto de, imediatamente após os factos, o arguido ter contactado o INEM relatando que tinha acabado de matar a sua mulher, ter-se dirigido ao interior da habitação e ingerido duas cervejas, e mantido conversações via telemóvel, o que traduz inegável brutalidade, frieza e forte persistência em consumar o ato. E não afasta esta conclusão o facto de ter ocorrido a luta, o envolvimento físico, com a vítima, atenta a enorme desproporção entre os contendores, e aquela persistência na execução do ato, que se revelava totalmente desnecessário perante o desenrolar dos factos.
Tudo Isto revela um acentuadíssimo desvalor da personalidade do arguido, suficientemente caracterizador de especial perversidade e traduzindo um grau de gravidade equivalente à estrutura valorativa dos exemplos padrão.
Apresentando-se, pois, fora de qualquer censura o enquadramento conferido no acórdão recorrido aos factos praticados pelo arguido e aos motivos que o determinaram na prossecução dos mesmos.
Como tal, fica arredada a hipótese de integrar a sua conduta no tipo simples, atípico, do art. 131° do Código Penal, como alvitrado pelo recorrente.
Improcede, portanto, a impugnação do enquadramento jurídico dos factos.
*
Medida da pena

No pressuposto do provimento da sua posição relativamente ao enquadramento jurídico dos factos, alega o recorrente:
“Atendendo, portanto, a que existem sérias razões para crer que da redução da pena resultarão vantagens sérias e seguras para a reinserção social do arguido e sopesando as circunstâncias agravantes e atenuativas, afigura-se-nos algo excessiva a pena concreta, mais justa e adequada se mostra reduzir a pena visto tratar-se de um crime de Homicídio Simples Atípico.
Neste sentido, tendo em atenção e sendo valorado todo o supra elencado, afirma-se novamente que dever-se-á fixar a pena para o Crime de Homicídio não superior a 15 anos de prisão;
E em cúmulo jurídico, de AA, não superior a 15 anos e 2 meses de prisão, o que se afigura uma pena Necessária, Adequada e Proporcional.
Caso não se entenda desqualificar o crime,
O que não se concebe nem se concede,
Sempre se dirá que, todos os factos invocados supra invocados quanto à desqualificação do crime no ponto IV e no anterior ponto V, o que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos,
Sempre fundamentam uma redução da pena em que foi condenado o Arguido pelo Crime de Homicídio Qualificado,
Aplicando-se o disposto no artigo 72º do CP, uma vez que as circunstâncias globais exigem esta atenuação especial da pena,
E, condenando o Arguido pelo Crime de Homicídio Qualificado, especialmente atenuado, numa pena não superior a 15 anos de prisão,
E em cúmulo jurídico, numa pena não superior a 15 anos e 2 meses de prisão.”
          
Como se verifica, seja no quadro do homicídio simples, previsto no art.º 131º, seja no do homicídio qualificado, previsto no art. 132º, nº 1 e 2, al. b), ambos do CP, a pena aplicar teria que ser especialmente atenuada, nos termos do disposto no art.º 72, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d) do CP.
Vejamos o instituto da atenuação especial.
Nos termos do artigo 72º, n.º 1 do Código Penal, «O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.»

E dispõe tal artigo no seu n.º 2 que:

«Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.»

O princípio que regula a aplicação deste instituto é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção.
As circunstâncias previstas no n.º 2 não têm o efeito automático de desencadear o efeito atenuativo especial, mas apenas quando da sua presença se poder concluir que a «imagem global do facto», resultante da atuação da ou das circunstâncias, se apresente tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.
 A atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos «normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios .
«O princípio regulador da atenuação especial, segundo o art. 72.º do CP, é pois, o da acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa, ou da necessidade da pena, portanto das exigências de prevenção.
A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura geral abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. Fora destes casos, é dentro da moldura normal que aquela adequação pode e deve ser procurada. (Ac. STJ de 10 de novembro de 1999, proc. 823/99 – 3ª, SASTJ. nº 35.74).
O artigo 72º do CP, ao prever a atenuação especial da pena, criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respectiva, diminuam por forma acentuada as exigências da punição do facto, por traduzirem, uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. (Ac. do STJ de 18 de outubro de 2001, proc. nº 2137/01- 5ª, SASTJ, nº 54. 122)
A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar; para a generalidade dos casos, para os casos ‘normais’, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 192, 302, 306 e, Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-06-2007 in,Proc. n.º 1899/07 .
Como também refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português anotado e comentado, 18ª edição, 2007,p. 278 e 279: “Com penas que correspondem a uma visão hodierna e um amplo quadro de substitutivos das penas de prisão quando esta não é exigida pela ressocialização, reprovação e prevenção do crime, impõe-se agora um uso moderado da atenuação especial da pena, com particular atenção para o estreito para o estreito condicionalismo exigido pelo nº 1 do artº 72º» (Ibidem Ac. do STJ acima citado)

Ora como bem salienta o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação
“(…)
Questiona o arguido, por último, a medida da pena.
Como é sabido, a tarefa tendente à busca da medida da pena, pressupõe a conjugação de duas tarefas. A primeira tem a ver com a delimitação da moldura penal abstractamente aplicável ao caso concreto e dentro dela a fixação do grau de culpa do agente. A segunda é relativa à equação das exigências de prevenção social e especial. É o que resulta, inequivocamente do disposto no art.º 71, n.º1 do CPenal. Claro está que se deverá ultrapassar a concepção da medida da pena como a “ arte de julgar”, como impressivamente sempre referiu o conselheiro Simas Santos.
Dito por outras palavras, a concreta determinação de uma pena será efectuada em função da culpa do agente, tendo em conta não só as exigências de integração positiva necessária para dar satisfação às exigências da consciência jurídica colectiva, no sentido de restabelecer a confiança geral na validade da norma violada, na própria ordem jurídica, como também a imperdível perspectiva de socialização ou integração do agente.
O art.º 40 do CPenal especifica as finalidades das penas, expressando, objectivamente, o que já atrás se mencionou: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. E o art.º 70 do CPenal fixa o critério de escolha da pena, consignando o art.º 71 do mesmo diploma legal que o tribunal deverá actuar em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, obrigando à ponderação das demais circunstâncias aí referidas.
Brevitatis causa, e aplicando o que se acabou de referir, cremos que a pena encontrada e agora contestada se acha a salvo de qualquer censura, pois que foi determinada dentro da moldura abstracta de 16 anos e 25 anos de prisão, já que o arguido se tornou autor de um crime de homicídio qualificado, agravado. E devemos reconhecer que esta não peca por excessividade já que margina o seu mínimo abstracto.
É certo que foi dado como provado que o arguido “17. Actuou apenas movido por ciúmes e sentimentos de frustração e de posse sobre a pessoa de BB”.
Não obstante tal, certo é que não se encontra provado que o arguido tenha agido dominado por uma compreensível emoção violenta, por compaixão, por desespero ou por um qualquer motivo de relevante valor social ou moral, circunstâncias que lhe tenham diminuído “sensivelmente” a culpa.
O concreto motivo acima revelado não constitui propósito de verificação de um homicídio privilegiado consequente a uma “cláusula de compreensibilidade”. E não se constitui como circunstância atenuativa. Com efeito, e como se pode ler no acórdão do STJ de 15/04/2015, proc. 176/13.7JAFAR.E1.S1, com o relator conselheiro Nuno Gomes Silva, “É sabido, aliás, que o ciúme comporta uma dimensão instintiva que por vezes é relacionada, segundo alguns, com um sentimento de receio de perda, real ou imaginário, que seria revelador de falta de confiança e baixa auto-estima podendo assumir características de transtorno obsessivo aspecto que o demarcam claramente daquela atitude de gratuitidade e frivolidade já mencionada.
Mas outrossim já lhe foi retirada pela mesma jurisprudência uma valorização de tipo atenuativo por se considerar que tal «é incompatível com valores básicos em que assenta a nossa comunidade política: o respeito pela autonomia individual, pela liberdade de escolha de um projecto de vida por parte de cada pessoa» (cfr Acs de 2009.04.29, proc 434/07.0PAMAI.S1 e de 2013.05.29, proc 132/07.4JBLSB.L2.S1…).
A personalidade do arguido, caracterizada por egocentrismo e possessão em relação à vítima, e a incapacidade deste, no caso concreto, aceitar a decisão daquela em não reatar a relação, revela exigências de prevenção especial que a pena aplicada afinal expressa de modo justo.
Aliás, não foi dado como provado que o arguido sofresse de delírio crónico passional de ciúme que lhe diminuísse a sua capacidade de dominar a vontade e que lhe atenuasse a consciência do carácter proibido da sua conduta. Sendo assim, inexiste circunstância atenuativa da sua culpa.
Isto é, tendo em vista a situação fáctica provada, não há lugar a uma atenuação especial da pena nos termos previstos no art.º 72 do CPenal, pois que, a aplicação daquela só se justifica perante circunstâncias excepcionais que no caso não se verificam e que tornem desproporcionada e injusta a moldura penal normal, por aí não se poder encontrar uma medida da pena que se acomode à ilicitude e á culpa.
Então sem censura está a determinação da pena concreta aplicada ao arguido.»
Ora, vistos os factos provados e a fundamentação de facto da sentença, não vemos como concluir que estejamos perante um caso extraordinário.
Com efeito, a ilicitude do facto, não se mostra diminuída, quer em si pela forma como os factos ocorreram, quer  tendo em conta as consequências daí resultantes, os efeitos causados na vítima.
Por outro lado, a culpa do arguido é muito elevada, revelando, a sua indiferença perante a vítima, e uma personalidade altamente desvaliosa para com os valores que orientam as relações entre as pessoas, as relações sociais, e a total desconsideração, desprezo, que revelou pelo mais alto desses valores, a vida, para além da conceção totalmente desvirtuada que demonstrou possuir sobre a relação entre homem e mulher.
Finalmente se é certo que o arguido confessou parcialmente os factos, e que até telefonou para o INEM a comunicar o que tinha acontecido e reclamar a sua presença, a verdade é que dos factos não logramos extrair que tenha revelado arrependimento, não encontramos qualquer ato concreto demonstrativo de um arrependimento sincero, como por exemplo a reparação de algum dos males do crime como exige a alínea b) do n° 2 do art° 72°, do CP.
Também não vemos matéria provada que justifique uma diminuição por forma acentuada da ilicitude do facto, da culpa do arguido ou da necessidade de pena, atento exatamente o crime escolhido por este, e que consumou, perante os factos provados e que traduzem o episódio que ocorreu no momento. Designadamente que tudo tenha acontecido em consequência da reação da vítima e das agressões físicas que terá infligido no arguido.
A atenuação especial da pena só poderia ser decretada quando a imagem global do facto revelasse que a dimensão da moldura da pena prevista para o crime de homicídio não pudesse realizar adequadamente a justiça da condenação do arguido.
Assim, não se verificando circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, não vemos como se possa desencadear o efeito atenuativo pretendido, pois nada há de extraordinário, no sentido de fazer funcionar a atenuação especial e sair da moldura penal normal prevista no Código para o crime em causa.
*
Quanto à medida concreta da pena

Da medida da pena de prisão pela prática do crime de homicídio.
O recorrente pugna pela redução da pena parcelar aplicada pela prática do crime de homicídio, com a consequente repercussão na pena única resultante do cúmulo, naturalmente agora condicionada ao já decidido quanto ao enquadramento jurídico e à atenuação especial solicitados.

Vejamos
O arguido foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, b), Cód. Penal, e 86.º, n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única e efetiva de 19 (dezanove) anos e 2 (dois) meses de prisão.
Face ao recurso apresentado, o ponto de partida para a determinação da pena concreta é a moldura do crime de homicídio qualificado do art. 132º do Código Penal – 12 a 25 anos -, mais a agravação de 1/3 no limite mínimo, resultante do nº 3 do art. 86º da Lei 5/2006, de 23/2, uma vez que apenas esta pena foi questionada.
Deste modo, a moldura abstrata aplicável ao caso situa-se entre os 16 e os 25 anos de prisão.

O tribunal recorrido fixou em 19 anos a pena concreta porquanto:
«Há, na atitude do arguido em relação a ambos os crimes, dolo directo. No homicídio, verifica-se um elevado grau de ilicitude do facto, pelo total desprezo face às regras mais básicas de convivência social, de não atingir o seu semelhante; o modo de execução do facto, de dia e na própria casa da vítima, que o arguido bem conhecia, manifesta uma desfaçatez chocante e uma absoluta indiferença pelo mais íntimo reduto da vítima.
A favor do arguido, apenas a (anterior) integração social e profissional, a ausência de antecedentes criminais e a sua (ainda que parcial) contribuição para a descoberta da verdade.
Assim, e não descurando as vincadas necessidades de prevenção geral – face ao que agora se denomina “violência de género”, e vitima sobretudo as mulheres – mostra-se adequada, para o crime de homicídio, uma pena que se afaste do mínimo legal aplicável (os citados 16 anos), e que se fixa em 19 anos de prisão.
(…)”
Importando fazer o cúmulo jurídico destas penas, ao abrigo do art. 77.º, situa-se o mínimo aplicável na pena individual mais alta – 19 anos de prisão – e o máximo na soma material das duas penas – 19 anos e 4 meses de prisão.
Aqui volta a ser relevante lembrar a elevada ilicitude dos factos, as fortes necessidades de prevenção geral e o demais supra referido como agravante da conduta do arguido, mas também não se pode esquecer a ausência de passado criminal e a vida social e profissionalmente integrada, pelo que se mostra ajustada a pena única de 19 anos e 2 meses de prisão.»

«O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Por sua vez, o n ° 2 do mesmo artigo do Código Penal, estabelece, que:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados..
Como se refere no sumário do Acórdão  de 01.04.98, deste Supremo, in CJ. - AC. STJ - Ano VI - tomo 2- fls. 175, “As expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o rigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins da prevenção constitui um desperdício” (Ibidem Ac. do STJ citado)
Na fixação da pena há, assim, parâmetros de análise imperativos, que constam do art. 71º do Código Penal, relativos à culpa, à prevenção especial e geral e às demais circunstâncias que rodearam o crime - passadas, contemporâneas ou posteriores -, que têm que ser considerados. Percorridos os itens da lei a medida da pena é-nos dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente surge a culpa, que indica o limite máximo da pena.
No entanto, o julgador goza de alguma margem de liberdade, de modo que o que há que analisar, quando o recurso se dirige contra a pena aplicada, é se aqueles critérios foram considerados e se a pena encontrada é inadequada ou desajustada quanto à duração.
Tida como boa a pena aplicada, para se proceder a qualquer alteração na sua duração a pena terá que surgir como desproporcionado face à culpa e exigências de prevenção que se façam sentir, pois é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.
Ora, a quantificação decidida pelo tribunal é adequada ao caso, por todas as razões expostas na decisão recorrida, com as quais concordamos inteiramente.
Tendo presentes os princípios e critérios que imperam neste domínio, e que de resto o tribunal recorrido explanou em termos proficientes, a fixação daquela pena, ante a respetiva moldura abstrata, não se nos afigura exagerada como defende o recorrente.
Perscrutada a fundamentação da decisão recorrida quanto à determinação da sobredita pena, são perfeitamente inteligíveis os fatores atendidos e de resto relevantes em sede de determinação da medida concreta e ali claramente evidenciados.
Dessa ponderação resultam sensíveis as exigências de prevenção especial, num domínio criminal onde são muito intensas exigências de prevenção geral, atenta a sua frequência, suscitando generalizada convicção comunitária de insegurança e fraqueza do sistema jurídico penal.
Sendo de relevar que os factos provados são inexoráveis contra as pretensões do arguido. Realçamos o grau da ilicitude e do dolo.
Depois, se é verdade que as necessidades de prevenção especial a satisfazer não são consideráveis, já as necessidades de prevenção geral, como se disse, são muito elevadas.
As relações entre os casais são um tema premente a que toda a sociedade está atenta, nomeadamente porque a conflitualidade é grande e, não poucas vezes, assume consequências dramáticas. Todos os dias surgem notícias sobre estes temas e, muitas das vezes, têm a morte associada. Este problema traz a sociedade, que está muito atenta e tem manifestado uma preocupação crescente pelo tema, em constante sobressalto.
Portanto, esta é uma problemática com muita visibilidade social. Esta visibilidade é acrescida devido ao facto de as decisões dos tribunais não lograrem colocar um freio neste flagelo social e familiar, não terem até hoje conseguido contribuir eficazmente para se alcançar a paz social que todos almejam, apesar da severidade das sanções que têm sido aplicadas em situações deste jaez.
A comunidade está atenta ao problema e ao modo como se gerem estas questões, designadamente em termos de prevenção e na reação aos atos ilegais que deles derivam.
Toda esta realidade vem causando um cada vez maior alarme social.
Repare-se que a pena aplicada a esse crime de homicídio qualificado se situa algo abaixo do ponto médio da respetiva moldura abstrata, ligeiramente acima do seu limite mínimo.
Deste modo, e em suma, atenta a modalidade do dolo com que o recorrente atuou, a ilicitude dos factos, e as exigências de prevenção geral, que aqui tem de ser bem salientadas, sem descurar as importantes necessidades de prevenção especial, nenhum reparo merece a decisão recorrida, a qual em sede de medida da penas do crime analisou e ponderou equilibradamente as circunstâncias relevantes in casu, sendo aquela de manter.
Tanto mais que nesta matéria existe sempre alguma margem de subjetividade do julgador, pelo que a(s) pena(s) só poderão ser alteradas nos casos em que, apesar de respeitados os subjacentes critérios legais, é ostensivo o seu exagero ou desproporção, o que aqui não se verifica, havendo, por isso, de manter-se.
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Do pedido de indemnização civil

No tribunal recorrido foi decidido:
“Julgam o pedido de indemnização civil parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenam AA a pagar aos demandantes CC, DD e EE a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).
 O recorrente insurge-se contra esta decisão, sempre estribado no pressuposto de que a sua impugnação no que concerne à matéria de facto e à desqualificação do crime de homicídio, e manifestando o entendimento “que, o Tribunal deve ter em consideração todos os factos invocados, e tendo em consideração a correção da matéria de facto, a desqualificação do crime ou que ainda não ocorra, as circunstâncias globais do acontecimento, em concreto, a devida valoração ao confronto físico que existiu entre AA e BB,
No qual, esta reagiu de forma provocatória, tomando posse da faca e desferindo golpes no corpo de AA,
Tudo melhor nos termos supra invocados,
Deve ser tido em conta para a reapreciação do montante fixado para o dano morte, que face à globalidade das circunstâncias, será justo a fixação de um valor não superior a € 60.000,00 (sessenta mil euros).”
A indemnização dos danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, art. 129° do Código Penal.
O art. 483° do Código Civil estabelece como pressupostos do dever de indemnizar: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao agente (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Face à factualidade provada, e não é alvo de controvérsia, conclui-se que se encontram reunidos todos esses pressupostos. Com efeito, a conduta voluntaria e culposa (dolosa) do arguido, ao matar a vítima, violou direitos subjetivos absolutos desta e dos seus descendentes, causando-lhes prejuízos, concretamente e no que ao caso interessa, de ordem moral.
Estes danos invocados pelos demandantes são respeitantes aos danos relativos ao sofrimento de BB na iminência da morte, o dano da perda da vida desta vítima e mãe dos demandantes e o desgosto sofrido por cada um deles na qualidade de filhos, e por terem ficado sem a mãe.
O direito de indemnização por danos morais decorrentes do homicídio de um ascendente, da mãe, radica no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos e na correspondente obrigação de indemnizar pelos danos causados, conforme disposto nos artigos 483° e 496°, n.º 1 do Código Civil.
Os danos peticionados são os danos morais relativos ao sofrimento da vítima nos momentos que antecederam a sua morte, os sofridos diretamente pelos filhos da vítima em consequência da sua morte e o dano da perda da vida da mãe.
Os demandantes tem direito a ser indemnizados ao abrigo do disposto no artigo 496°, n.°s 1 e 4, do Código Civil, e do artigo 2133°, nº 1 al. a), do mesmo diploma legal, uma vez que são filhos da falecida BB, e o pedido de indemnização cível deduzido abarca os danos morais próprios que cada um sofreu em consequência da morte da mãe, seja pelos danos morais sofridos pela sua mãe, nos quais se incluiu o sofrimento vivido no período que antecedeu a morte e o próprio dano pela perda da vida.
Também não está minimamente questionada a legitimidade dos demandantes para pugnarem pelo ressarcimento dos danos peticionados nem o direito que lhes assiste, seja diretamente seja por via sucessória.
A única questão que o recorrente verdadeiramente coloca, uma vez que o restante se mostra prejudicado pelo decidido anteriormente, diz respeito ao valor fixado para ressarcimento do direito à vida da vítima BB.

A este título o tribunal recorrido decidiu:
“Relativamente ao dano morte, e porque a vida é o bem maior, sendo sempre uma compensação o arremedo possível para um prejuízo irreparável, julga-se ajustado, face à idade da vítima (53 anos), o montante peticionado pelos demandantes, de € 80.000,00.”
Entre esses direitos, suscetíveis de compensação através da atribuição de uma indemnização monetária, conta-se, pois, o direito à vida da vítima.
Relativamente aos danos de ordem não patrimonial, segundo o referido art. 496°, n° 1, do Código Civil, apenas são atendíveis os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ou seja, aqueles que afetem profundamente os valores ou interesses da personalidade moral.
O montante de tais danos deve ser fixado equitativamente, tendo em atenção o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. designadamente a sensibilidade do indemnizando e o sofrimento por ele suportado (n.° 4 do mesmo artigo). Mais haverá que atender aos padrões geralmente adotados pela jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.
Tem sido entendimento consolidado que a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance “significativo e não meramente simbólico”, conforme, aliás, vem sendo repetidamente afirmado pelos nossos tribunais superiores.
Os artigos 562º a 564º, do CC, respeitam à obrigação de indemnizar e estabelecem:
“Art. 562º: «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação»;
Art. 563º: «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»;
Art. 564º: «1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. 2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».
Em caso de morte derivada da prática de ato ilícito há três danos não patrimoniais indemnizáveis: - o dano pela perda do direito à vida; - o dano sofrido pela vítima antes de morrer, que varia em função de vários fatores, como o tempo decorrido entre o acidente e a morte, a consciência da morte, a existência de dores e sua intensidade; - o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte.
Como se disse já, o que se discute, de relevante para o caso, é o valor do direito à vida da vítima, que se transmite, por via sucessória, aos seus herdeiros, aqui demandantes.
Como resulta do nº 4 do art. 496.º do CC, que estabelece o critério de fixação do montante: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º”.
O acórdão recorrido fixou o valor de € 80.000,00.
O recorrente pugna pela diminuição desse valor para a quantia de € 60.000,00.
Com vista à determinação da indemnização devida, a lei aponta para um critério que se pode considerar com alguma elasticidade, inspirado em razões objetivas e no qual se terá de fazer funcionar o juízo de equidade.
No arbitramento do montante devido há que atender a que a indemnização a fixar deve ser atual, aplicando-se-lhe também a regra constante do artigo 566.°, n.° 2, do mesmo código – assim, Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27/09/2002.
Teremos, pois, de traduzir em termos monetários a vida de alguém, ou seja, transformar em valor numerário o imensurável, fazer o impossível. Aquilo que resta ao aplicador do Direito, fazendo uso dos critérios de objetividade e de equidade aludidos, alcançar uma reparação que se revele o mais justa possível para a perda desse direito.
Ora, na fixação de tal indemnização pelo dano morte e face àquela que tem sido a jurisprudência dos tribunais superiores, há que atentar na idade da vítima, no seu estado de saúde, antes da ocorrência do evento danoso (se era pessoa gravemente doente ou saudável), na forma como ocupava o seu tempo e os seus projetos de vida, mormente em termos pessoais e profissionais, a sua vontade e alegria de viver, entre muitos outros. Ou seja, será com recurso a estes diversos indicadores e sua apreciação em termos globais, que se conseguirá densificar e delimitar tal montante indemnizatório pela perda do direito à vida em cada caso concreto.
Acresce ainda que, nestes casos de arbitramento de indemnização por responsabilidade civil fundada em crime de homicídio doloso, faz também sentido o reporte à situação do lesante, e atender às circunstâncias que rodearam a prática do crime.
Depois, há ainda que ter em conta os critérios e valores comummente fixados na jurisprudência de forma atualizada.
Perscrutando a jurisprudência dos tribunais superiores no que respeita à indemnização do dano morte, temos que (arestos todos disponíveis em www.dgsi.pt):
- no acórdão da Relação de Lisboa de 30-6-2020 (Proc. n.° 65/17.6GTALQ -5), fixou-se o montante indemnizatório pela perda do direito a vida da vítima que, aquando do decesso tinha 33 anos, saudável e que constituía uma família feliz juntamente com a mulher e os dois filhos do casal, em € 150.000,00;
- no acórdão da Relação de Évora de 24-09-2020 (Proc. n.° 3710/18.2T8FAR.E1), fixou-se o montante indemnizatório pela perda do direito à vida da vítima em € 90.000,00, tendo em conta que tinha 33 anos de idade, era saudável e sem deficiência, imigrante que tinha conseguido fazer a sua vida e estabelecer-se em Portugal, exercendo as funções de pedreiro, casado há cerca de 5 anos e com um filho de 4 anos de idade, que vivia e trabalhava para dar uma vida digna à sua família, tendo a seu cargo a sua esposa, e o seu filho;
- no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-09-2019 (Proc. n.º 75/17.3GCPTM.E1.S1), fixou-se o montante indemnizatório pela perda do direito à vida da vítima em € 55.000,00, tendo em conta que tinha 73 anos, era saudável e com uma vida regrada, com atividade profissional.
Transpondo tais considerações para o caso em apreço, há que considerar o que resultou apurado:
. BB nasceu a .../.../1968 e, à data do óbito, era viúva, tendo 53 anos à data do seu decesso.
. BB era saudável, alegre, amiga, mãe dedicada, trabalhadora e cuidava dos seus pais.
. BB e os filhos eram unidos e afetuosos entre si.
Teremos de considerar aqui também o que resultou provado relativamente à situação do arguido, designadamente de ordem económico/financeira. Imigrante, trabalhava no corte de madeiras e limpeza de matas, como motosserrista, auferido um salário de € 800,00 mensais. De onde se pode retirar estarmos na presença de uma pessoa de modesta condição.
Tendo em conta os critérios referidos, e os padrões jurisprudenciais que atualmente norteiam os valores de ressarcimento deste dano morte, hoje inquestionável na jurisprudência, situando-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50.000,00, € 70.000,00 e € 90.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a mais de € 100.000,00, ponderando todos esses fatores, a idade da vítima, a condição socioeconómica do demandado e as circunstâncias que envolveram a prática do crime, afigura-se-nos que o valor da indemnização a este título arbitrado é adequado, proporcionado e justo. Mantendo-se, assim, inalterado o valor da indemnização a suportar pelo demandado civil pelo dano morte de BB fixado em € 80.000,00 (oitenta mil euros), a dividir por cada demandante civil em partes iguais, valor esse atualizado na presente data.
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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, e demandado civil, AA e, consequentemente, mantém-se inalterado o acórdão recorrido.
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Custas criminais a suportar pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs, art., 513º, nº 1, do CPP.
Custas cíveis pelo demandado, na proporção do respetivo decaimento. – art. 527º, º 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 523º do CPP.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães 15 de maio de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1º Adjunto - Pedro Cunha Lopes
2º Adjunto – Fátima Furtado