CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
CRIME DE PERIGO CONCRETO
Sumário


I – No tipo objetivo do crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º, do Código Penal estão previstos dois grupos de comportamentos que no âmbito da circulação rodoviária se mostram mais suscetíveis de colocar em perigo a integridade física ou vida ou bens patrimoniais de valor considerado elevado, como sejam: a falta de condições do agente para o exercício da condução naquela situação ea violação grosseira das regras de circulação rodoviária.
II – Trata-se de um crime de perigo concreto, sendo insuficiente para considerar a ocorrência do mesmo, a simples circunstância de o agente estar a conduzir com uma TAS superior à legalmente permitida e ter embatido com a parte da frente do veículo que conduzia na traseira do veículo que seguia imediatamente à sua frente numa fila de trânsito.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – Relatório

Decisão recorrida

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 554/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal ... foi proferida sentença no dia 15 de dezembro de 2022, cuja parte decisória se transcreve:
“Pelo exposto tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido: “a) Alterando a qualificação jurídica, condenar o arguido AA, como autor material de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, a 15,00€ (quinze Euros) por dia, totalizando o montante de 1050,00€ (mil e cinquenta Euros); -------------
b) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, durante o período de 9 (nove) meses;
c) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 02 (duas) Unidades de Conta. ------------------------------”.

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Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“1. A decisão recorrida admite que o arguido, naquelas circunstâncias espácio-temporais, “conduziu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-PB, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,11 gramas/litro, com um erro de +/-0,27 gramas/litro” (ponto a) dos factos provados) e que, “por esse motivo, o arguido não se apercebeu que o veículo que seguia à sua frente imobilizou a marcha devido ao fluxo de trânsito e embateu na traseira do veículo automóvel de matrícula ..-..-RL, o qual, por sua vez, colidiu no veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-OX, conduzido por BB” (ponto b) dos factos provados)
2. E mais deu como assente que o arguido quis conduzir o aludido automóvel depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, apesar de saber que as mesmas lhe reduziam de forma significativa as suas capacidades de concentração e reação na condução que efectuava” (ponto c) dos factos provados) e “ainda assim, o arguido não se absteve de conduzir tal veículo nos termos e condições acima descritos” (ponto d) dos factos provados).
3. Contudo, veio o Meritíssimo Juiz a quo a considerar não provado que “Da conduta do arguido resultou perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia”.
4. Ora, é incompatível ou irremediavelmente contraditório que, por um lado, se considere provado que o arguido conduzia aquele veículo automóvel com uma taxa de álcool no sangue de 2,11 gramas/l, com um erro de +/- 0,27 g/l, por via de ingestão de bebidas alcoólicas previamente à condução, e, por isso mesmo, por estar sob influência de tal substância, não se ter apercebido que o veículo que circulava à sua frente teve que imobilizar a marcha, e acabou por embater no mesmo, fazendo com que este, por sua vez, fosse embater no outro veículo que seguia à sua dianteira e que, por outro lado, se considere não provado que “da conduta do arguido resultou perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia”.
5. Padece, assim, a sentença recorrida de contradição insanável da fundamentação.
6. Assim, a factualidade provada na douta sentença recorrida implicaria que, em conformidade, se considerasse provado, em aditamento ao ponto c) dos factos provados, que: - Mais sabia o arguido que face à quantidade de bebidas alcoólicas ingeridas não estava em condições de conduzir o veículo em segurança e que poderia causar um embate e, assim, criar perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia, como veio a acontecer, perigo esse que o arguido representou, mas com o qual não se conformou.
7. Verificam-se, deste modo, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do art.º 291.º, n.ºs 1, a), e 3, do CP.
8. Com efeito, diz-se e deu-se como provado na sentença que foi por causa daquela condução com aquela sobredita taxa de álcool no sangue de 2,11g/l, com um erro de +/-0,27 g/l, que o arguido, por se encontrar em estado de embriaguez, não se encontrava em condições de conduzir em segurança, e, por isso, embateu naquele veículo causando ainda a projecção deste que viria a embater num terceiro.
9. Ao apurar-se aquela realidade, tem que se dar como assente que os condutores daqueles dois veículos, em virtude da conduta do arguido, viram assim efectivamente em perigo, pelo menos, a sua integridade física, mesmo que se diga que os danos resultantes nos veículos não foram de grande relevância.
10. O crime de condução em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 292º, 1 do C.P é consumido pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, 1, als a) e b), e 3 do C.P, ou seja, os aludidos crimes estão entre si numa relação de concurso aparente, devendo o arguido ser condenado apenas pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. art. 291º, 1, als. a), e 3, do C. Penal.
11. Ao proceder àquela alteração da qualificação jurídica e condenar o arguido pela prática do crime previsto no art.º 292.º, n.º 1, e não pelo art.º 291., n.ºs 1, al a), e 3, do CP, por que vinha acusado, violou assim a sentença o disposto no art.º 291.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do CP, conjugado com o disposto no art.º 292.º, do CP, e art.º 81.º, n.ºs 1 e 2, do CE.
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Assim, deve ser dado provimento ao recurso e ser sentença ora recorrida revogada e substituída por decisão que condene o arguido pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, n.ºs 1, al a), e 3, do CP, incorrendo ainda na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, prevista no art.º 69.º, n.º 1, al. a) do CP, conforme estava acusado, uma vez que a sentença em crise contém suporte fáctico para esta condenação.
Com o que se fará, JUSTIÇA”.
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O arguido não respondeu ao recurso.
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Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitido parecer, aderindo aos fundamentos sufragados na primeira instância pelo recorrente Ministério Público, considerando assim que o recurso deve ser julgado procedente.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal[1].
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As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são, por ordem lógica da sua apreciação, as seguintes:

I – vício insanável da contradição entre os factos provados e não provados.
II – enquadramento jurídico dos factos no crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, 1, als a) e b), e 3 do Código Penal.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal “a quo” (transcrição):
“-------- 2.1. Matéria de facto provada --------------------------------------------------
-------- Resultaram provados os seguintes factos: ------------------------------------
a) No dia 18 de agosto de 2021, pelas 19 horas e 45 minutos, na Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., o arguido AA conduziu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-PB, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,11 gramas/litro, com um erro de +/-0,27 gramas/litro; --------------------------------------------------------------------------
b) Por esse motivo, o arguido não se apercebeu que o veículo que seguia à sua frente imobilizou a marcha devido ao fluxo de trânsito e embateu na traseira do veículo automóvel de matrícula ..-..-RL, o qual, por sua vez, colidiu no veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-OX, conduzido por BB; ---------------------------------------------------------------------------
c) O arguido quis conduzir o aludido automóvel depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, apesar de saber que as mesmas lhe reduziam de forma significativa as suas capacidades de concentração e reação na condução que efetuava; ------------------------
d) Ainda assim, o arguido não se absteve de conduzir tal veículo nos termos e condições acima descritos; --------------------------------------------------------------
e) O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; -----------------------------------------------------
f) O arguido é divorciado; -------------------------------------------------------------------
g) Encontra-se reformado; ------------------------------------------------------------------
h) Aufere a pensão mensal líquida de 1915€; ----------------------------------------------
i) Vive sozinho em casa da mãe dos seus filhos; -------------------------------------------
j) Tem o Bacharelato em Engenharia Civil; -------------------------------------------------
k) Nada consta do certificado de registo criminal do arguido. -----------------------------
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-------- 2.2. Matéria de facto não provada ---------------------------------------------
-------- Resultaram não provados os seguintes factos: -------------------------------
a) Da conduta do arguido resultou perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia. --------------------------------------------------------”.
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Para tanto motivou a decisão de facto do seguinte modo (transcrição):
“-------- A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto baseou-se na adequada ponderação de toda a prova pericial e documental junta aos autos e da restante prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador (cfr. o artigo 127.º do C.P.P.).
-------- Relativamente às alíneas a) a e) da matéria de facto provada, o Tribunal baseou a sua convicção nas declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento, tendo o mesmo admitido que ingeriu bebidas alcoólicas em excesso e conduziu um veículo automóvel na via pública, bem sabendo que não o podia legalmente fazer, não tendo logrado parar o seu automóvel e tendo dado um ligeiro toque nos automóveis que seguiam à sua frente, os quais poucos danos sofreram. -------
-------- Quanto às alíneas f) a j) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal baseou-se nas declarações do arguido, as quais surgiram de forma coerente e espontânea, não tendo sido contrariadas por qualquer outro meio de prova. -------------
-------- Relativamente à alínea k) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise do teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 69. ----------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Quanto à matéria de facto não provada, a convicção deste Tribunal resultou da circunstância de não ter resultado provado qualquer concreto perigo decorrente da conduta do arguido, atentos os reduzidos danos provocados nos veículos automóveis, conforme resulta bem patente das fotografias dos mesmos juntas aos autos. -------------
-------- Não houve assim qualquer perigo concreto para a vida e integridade física de terceiros, bem como para veículos automóveis de valor elevado, antes tendo ocorrido um dano negligente – naturalmente não punível criminalmente – nos veículos automóveis embatidos. -----------------------------------------------------------------------
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Preceitua o artigo 410º do CPP (na parte que ora releva):

“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) - (…)
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) (…)
3 – (…)”
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Como ensina Maria João Antunes, [2] os vícios do nº 2 do artigo 410º, do C. P. Penal, não são vícios do julgamento, mas vícios da decisão, que surgem umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, que impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena da nulidade da sentença, mas que com eles se não confundem”.
No mesmo sentido, escreve Gama Lobo [3]  relativamente aos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º que “une todas estas situações, que o código apelida de “vícios”, o facto de serem endógenas da sentença, isto é, resultam sem mais, da leitura da sentença, não admitindo elementos exteriores para a sua constatação”.
Realça o Senhor Juiz Conselheiro Pereira Madeira [4]“A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou», como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal.       
Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques [5], “Para os fins do preceito (al.b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”
A este propósito refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/2011, [6] que “Ocorre o vicio da contradição quando  «A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 da referida norma), pode ser percetível, antes do mais, na motivação da convicção do julgador que levou a que se desse por provado certo facto, mas pode também decorrer dos próprios factos dados por provados e por não provados; já quanto à contradição entre a fundamentação e a decisão, ela resultará, em princípio, da fundamentação apontar num sentido e a decisão ir noutro.»
No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, [7] “A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.”
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Considera o recorrente existir este vício da sentença recorrida por ser “incompatível ou irremediavelmente contraditório que, por um lado, se considere provado que o arguido conduzia aquele veículo automóvel com uma taxa de álcool no sangue de 2,11 gramas/l, com um erro de +/- 0,27 g/l, por via de ingestão de bebidas alcoólicas previamente à condução, e, por isso mesmo, por estar sob influência de tal substância, não se ter apercebido que o veículo que circulava à sua frente teve que imobilizar a marcha, e acabou por embater no mesmo, fazendo com que este, por sua vez, fosse embater no outro veículo que seguia à sua dianteira e que, por outro lado, se considere não provado que “da conduta do arguido resultou perigo para a vida, a integridade física e veículos dos demais utentes da via em que seguia”.
Ficou efetivamente provado que o veículo conduzido pelo arguido, pelo facto deste se encontrar a conduzir sob influência do álcool a embater na viatura automóvel que seguia imediatamente à sua frente, fazendo com que esta, por sua vez fosse embater no automóvel que circulava à frente desta.
O Mmº Juiz “a quo” face a essa materialidade entendeu que tal não era suficiente para se considerar que o arguido com essa sua conduta “criou perigo para a vida e a integridade física”.
Efetivamente do simples facto de ter existido esse embate, numa situação de fluxo de trânsito, não se pode extrair sem mais que esse perigo, que tem de ser concreto, se produziu.
Como bem se salienta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/02/2022 “O crime de condução perigosa de veículo rodoviário é um crime de perigo concreto, o que significa que o perigo criado pelo comportamento do agente – resultado típico da violação da norma que se traduz na probabilidade de dano (ou, dito de outro modo, na potencialidade lesiva da conduta do agente) – se deve revelar nas circunstâncias do caso concreto, sendo insuficiente a sua idoneidade ofensiva abstrata (...) O perigo constitui um elemento da tipicidade e, consequentemente, a sua punição implica que se faça a prova de que nas circunstâncias concretas do caso em questão a conduta do agente colocou em perigo determinados bens jurídicos que a lei procura tutelar com a incriminação.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art.291º, do C. Penal é um crime de perigo concreto na medida em que da conduta do agente terá de resultar um perigo real e efetivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem.
O crime de perigo concreto caracteriza-se pelo facto de a situação de perigo ser em si um elemento do tipo legal de crime, apresentando-se como o resultado típico da violação da norma”.
O Mmº Juiz “a quo” para fundamentar a decisão de dar como não provado que existiu em concreto uma situação de criação de perigo para a vida, nem para a integridade física, teve em consideração, acertadamente, os reduzidos estragos causados nos veículos automóveis, reveladores que no caso em apreço, embora o arguido se encontrasse em estado de embriaguez e por tal motivo tivesse embatido com o veículo automóvel que conduzia no veículo automóvel que circulava à sua frente, não evidencia, por si só, um perigo concreto para esses bens de natureza pessoal, sendo que também inexiste outra matéria de facto que permitisse concluir da existência dessa mesma situação de perigo.
Não existe assim aqui qualquer contradição entre os factos dados como provados e ter sido dado como não provado pelo tribunal “a quo” essa criação de perigo para a vida ou para a integridade física.
O Ministério Público, no recurso interposto, pretendia que fosse dado por assente “que os condutores daqueles dois veículos, em virtude da conduta do arguido, viram assim efetivamente em perigo, pelo menos, a sua integridade física”.
Ora, nem os factos dados como provados permitem retirar essa conclusão, nem sequer essa matéria da identificação concreta das pessoas postas em perigo pela conduta do arguido consta da acusação deduzida pelo Ministério Público.
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Diferente é a situação do Mmº Juiz “a quo” ter dado como não provado não ter existido perigo para os veículos dos demais utentes da via em que seguia, quando é certo que ficou provado o embate entre o veículo conduzido pelo arguido na traseira do veículo automóvel de matrícula ..-..-RL, o qual, por sua vez, colidiu no veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-OX, que seguia à sua frente.
O Mmº Juiz “a quo” considera na sua fundamentação de facto, não ter ficado provado qualquer perigo concreto para veículos automóveis de valor elevado.
Porém, da acusação não consta qualquer referência ao “valor elevado”, ainda que minimamente concretizada, pelo que também não se poderia dar como provada ou não provada tal matéria que não consta sequer do libelo acusatório, devendo tal omissão ser tratada aquando da fundamentação jurídica da causa.
Não existe porém, ao contrário do defendido pelo recorrente, qualquer contradição insanável, que leve a que este tribunal de recurso deva retirar dos factos dados como não provados e passar para o elenco dos factos provados que “da conduta do arguido resultou perigo para os veículos dos demais utentes da via em que seguia”, porquanto seria tautológico e redundante fazê-lo, dado já constar provada que aconteceu o referido embate, havendo assim antes que eliminar dos factos dados como não provados a referência ao perigo para os veículos dos demais utentes da via em que seguia, por tal matéria já estar contida nos pontos a) e b) dos factos provados, como tendo efetivamente sucedido.
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Passando à segunda questão objeto do recurso relativa ao enquadramento jurídico penal dos factos.

Dispõe o artigo 291.º do Código Penal com a epígrafe “Condução perigosa de veículo rodoviário”
1 — Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 — Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada e nela realizar actividades não autorizadas, de natureza desportiva ou análoga, que violem as regras previstas na alínea b) do número anterior, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
3 — Se o perigo referido no n.º 1 for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 — Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.
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Conforme se retira desta norma, no tipo objetivo deste ilícito descrevem-se os dois grupos de comportamentos que no âmbito da circulação rodoviária se mostram mais suscetíveis de colocar em perigo a integridade física ou vida dos transeuntes ou bens patrimoniais de valor considerado elevado:

a) Por um lado, a falta de condições do agente para o exercício da condução e por outro,
b) A violação grosseira das regras de circulação rodoviária.
Estamos perante um crime de perigo concreto, exigindo-se que os comportamentos ilícitos sejam idóneos a produzir perigo para aqueles bens jurídicos, não se bastando o tipo com a mera insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária.
É necessário que, da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse perigo concreto.
Ensina Paula Ribeiro de Faria “Com esta disposição, pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado” [8].
Voltando ao caso em apreço, temos que como supra se expôs, não há que alterar a matéria dada como não provada que da conduta do arguido tenha resultado perigo para a vida ou para a integridade física dos demais utentes da via em que seguia.
Restava assim a colocação em perigo de bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Ora, a acusação proferida pelo Ministério Público é completamente omissa relativamente a esse elemento objetivo de “valor elevado”, cuja definição legal consta do artigo 202º, alínea a) do Código Penal, não constando da acusação o valor dos veículos dos terceiros que ficaram acidentados ou outros bens patrimoniais alheios de valor elevado postos em perigo pela conduta do arguido.
E faltando este elemento objetivo constitutivo deste tipo de legal de crime quando estão em causa bens patrimoniais, naturalmente que o arguido tem que ser absolvido do crime de condução perigosa de veículo, previsto e punido pelo artigo 291.º do Código Penal.
Improcede assim o recurso do Ministério Público.
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, confirmam a sentença recorrida.
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Sem tributação.
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Notifique.
Guimarães, 15 de maio de 2023.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Pedro Freitas Pinto
(Juiz Desembargador Relator)
Fátima Sanches     
(Juíza Desembargadora 1º Adjunta)
Anabela Varizo Martins                                                                (Juíza Desembargadora 2ª Adjunta)       




[1] Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1027/1028.
[2] Revista Portuguesa de Ciência Criminal Ano 4, 1994, pgs. 118/123.
[3] Código de Processo Penal. Anotado. Almedina, 3ª ed., pág. 895.
[4] Código de Processo Penal. Comentado. A. Henriques Gaspar et ale, Almedina, 3ª edição, pág.1292
[5] Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379.
[6] Proc. n.º 88/09.9PESNT.L1.S1, acessível in www.stj.pt.
[7] Publicado como os demais citados in www.dgsi.pt.
[8] in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 1079/1080.