PENHORA DE BENS
ONERAÇÃO
OPONIBILIDADE
DIREITO DE USO
CADUCIDADE
Sumário


1. Por efeito da penhora, o executado perde os poderes de gozo que integram o seu direito, mas não o poder de dele dispor. Continua a poder praticar, depois da penhora, actos de disposição ou oneração.
2. Os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados comprometeriam, no entanto, a função da penhora, se tivessem eficácia plena. Por isso, são inoponíveis à execução.
3. Quando numa execução foi penhorada a raiz ou nua propriedade de um imóvel, porque à data da penhora já o executado tinha doado a terceiro o direito de uso e habitação desse imóvel, a venda executiva incide apenas sobre a nua propriedade, e o direito real não caduca por força da venda executiva.
4. A situação muda totalmente de figura quando aos autos venha reclamar o seu crédito um terceiro com hipoteca registada anteriormente à data do registo do direito real de gozo. Nessa situação, com a venda executiva, por força do art. 824º,2 CC, o direito real de gozo caduca necessariamente.
5. Apesar de se poder dizer que o que foi penhorado e vendido foi o direito de nua propriedade, o regime substantivo da hipoteca, nomeadamente os princípios da inerência (a hipoteca continua a acompanhar a coisa mesmo que esta seja transmitida várias vezes) e indivisibilidade (a hipoteca subsiste por inteiro, ainda que a coisa venha a ser dividida ou o crédito garantido parcialmente satisfeito), implicam que a ocorrência da venda executiva despolete necessariamente a caducidade dos direitos reais incompatíveis, ainda que não penhorados naqueles autos.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., corre termos processo de execução em que é exequente a Banco 1..., SA, e executados AA, BB e CC.
A exequente é portadora de duas livranças, uma no valor de € 127.060,07 e outra no valor de € 68.152,97, e que, apresentadas a pagamento na data dos respectivos vencimentos não foram pagas pelos seus obrigados cambiários, apesar de todos terem sido interpelados para o efeito.
Nos autos, em 9.1.2021 foi penhorada a “raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pelas letras ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ...22... ... e inscrito na respectiva matriz predial pelo artigo ...89º da freguesia ... - melhor identificado na verba 1 auto de penhora de 09-01-2021. Ao referido bem foi atribuído o valor de € 182.565,04.
No auto de penhora consta que sobre o prédio descrito supra (penhorado) incidem os seguintes encargos:
-AP. ... de 2006/12/19 – hipoteca voluntária a favor de Banco 2...; montante máximo: € 208.500,00
-AP. ...39 de 2011/05/02 – hipoteca voluntária a favor de DD e EE; montante máximo: € 208.800,00.

Os credores hipotecários DD e EE reclamaram o seu crédito hipotecário nos autos de execução.
           
Posteriormente, foi registada na CRP ..., em 29.9.2017, a doação do direito de uso e habitação do imóvel referido supra, em que é sujeito passivo o executado AA, e sujeitos activos FF e GG.

A Banco 1... (exequente) intentou acção contra AA, FF e GG, pedindo:

a) que se julgue ineficaz em relação à autora a doação supra-referida, permitindo-se àquela executar aquele património na esfera jurídico-patrimonial dos transmissários, ainda que para garantia do pagamento dos créditos da autora sobre o transmitente;
b) julgar-se ineficaz e de nenhum efeito o direito de uso e habitação constituído a favor dos réus FF e GG, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo no imóvel.
Subsidiariamente, pede que seja declarada nula a doação, por simulação absoluta, ordenando-se o respectivo cancelamento do registo de aquisição.

Por decisão do Agente de Execução de 2.2.2022, foi agendada a venda do bem penhorado através de leilão electrónico, pelo valor base de € 304.379,00, sendo os bens
adjudicados àquele que apresentar a melhor proposta, de valor não inferior a 85%. O valor mínimo das propostas é de € 258.722,15 €.
O valor base foi obtido através de uma avaliação realizada ao imóvel penhorado, não tendo sido objecto de qualquer reclamação.

Após a venda, o Agente de Execução, em 9.5.2022, proferiu a seguinte decisão:
DECISÃO DE ADJUDICAÇÃO
(…)
Em sede de leilão electrónico a melhor proposta foi apresentada pelo proponente / credor reclamante DD, pelo valor de 322.035,57 €.

Por sentença judicial de 12-01-2022, referência ...92, proferida no apenso A, foram os créditos graduados da seguinte forma:
“1º Custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respectiva acção declarativa;
2º Crédito reconhecido à Banco 2..., no montante de €107.627,94, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa contratada e mais despesas até efectivo e integral pagamento, até ao limite da respectiva hipoteca e sem prejuízo do art. 693.º, n.º 2, do Código Civil;
3º Crédito reconhecido a DD e EE, no montante de €230.000,00, acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento à taxa de juro de 4% ao ano e da sobretaxa de 3% a título de cláusula penal, e ainda despesas contratualmente fixadas, até ao limite da respectiva hipoteca e sem prejuízo do art. 693.º, n.º 2, do Código Civil; e,
4º Crédito exequendo da Banco 1..., S. A.)”
O credor reclamante Banco 2..., S.A., por comunicação, via e-mail, de 09-05-2022, informou que o montante em dívida é de 102.646,87 €. Posto isto, e tendo em consideração que a proposta apresentada é superior ao valor mínimo fixado e anunciado, Decide-se adjudicar ao credor reclamante DD, NIF ..., a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pelas letras ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...22... ... e inscrito na matriz pelo art. ...89º da Cidade ..., pelo valor de € 322.035,57.
Face ao exposto e tendo em consideração a sentença de graduação de créditos proferida nos presentes autos, determina-se que, no prazo de 15 dias:
-Proceda ao depósito das custas da execução, incluindo a remuneração devida ao Agente de Execução e o reembolso das despesas por ele efectuadas, nos termos do disposto no artigo 541º do CPC,
-Proceda ao pagamento do crédito reclamado e graduado em primeiro lugar;
Após pagamento das custas da execução, bem como o crédito graduado em primeiro lugar, o valor da proposta apresentada é inferior ao valor do seu crédito reclamado, pelo que, nos termos do disposto no Artº 815º do CPC, fica o credor reclamante dispensado do depósito do preço oferecido.
Mostrando-se pago o crédito reclamado e graduado em primeiro lugar, bem como depositadas as custas em dívida e cumpridas as disposições fiscais inerentes, proceder-se-á à adjudicação e registo nos termos do Artº 827.º, nº 1, do CPC”.

A 21.6.2022 vieram DD e EE (credores reclamantes) requerer que, tendo-lhes sido adjudicado o bem penhorado nos autos, por terem adquirido em venda judicial a raiz ou nua propriedade do bem em causa, e sendo que nos termos do disposto no artigo 824º,2 CC caducam os ónus e direitos reais que incidem sobre o bem vendido, com as excepções ali previstas, seja proferido despacho a declarar que o direito de uso e habitação caducou com a adjudicação do bem aos credores hipotecários reclamantes, devendo o seu registo ser cancelado e ordenada a notificação do ocupante do imóvel para o entregar.

Exercendo o contraditório, em 4.7.2022, a exequente Banco 1... veio responder, opondo-se expressamente ao cancelamento do direito de uso e habitação por caducidade, por falta de fundamento legal.

Em 6.9.2022 a Agente de Execução proferiu a seguinte decisão:

“Por requerimento de 21-06-2022 os credores reclamantes DD e EE, requereram aos autos a caducidade do direito de uso e habitação por força da “adjudicação do bem aos credores hipotecários reclamantes, nos termos do art. 824º nº 2 do C.C., devendo o seu registo seu cancelado e ordenada a notificação do ocupante do imóvel para o entregar”.
Nos presentes autos, foi penhorada a raiz ou nua propriedade do imóvel melhor identificado no auto de penhora de 09-01-2021, pertencente ao executado AA.
Sendo certo que o que se encontra em venda é apenas aquele direito penhorado, o valor base definido na decisão de venda de 02-02-2022, diz apenas respeito à raiz e não à totalidade do prédio.
Do mesmo modo, a decisão de adjudicação proferida em 09-05-2022 diz respeito apenas à raiz ou nua propriedade.
Os ónus e encargos que serão cancelados com a venda da raiz, dizem igualmente respeito a este direito, pelo que, no que concerne às hipotecas registadas, ocorrerá apenas um cancelamento parcial.
Por conseguinte, a mera transmissão da raiz ou nua propriedade não importa a caducidade do registo do direito de uso e habitação, que se manterá para todos os efeitos legais, bem como todos os ónus e encargos que lhe digam respeito.
Nestes termos, indefere-se o requerimento dos credores reclamantes de 21-06-2022, por falta de fundamento legal.

Em 19.9.2022 vieram os credores reclamantes, inconformados com esta decisão da AE, apresentar requerimento no qual expressam o seu inconformismo com ela, e requerem ao Juiz do processo que se pronuncie sobre o seu requerimento de 21.6.2022, declarando que o direito de uso e habitação caducou com a adjudicação do bem imóvel aos reclamantes, nos termos do artigo 824º,2 CC, devendo o seu registo ser cancelado e ordenada a notificação do ocupante do imóvel para o entregar.

Foi então proferida a decisão ora recorrida, datada de 31.1.2023, que declarou procedente a reclamação e, como tal, decidiu que o direito de uso de habitação incidente sobre a fracção autónoma ... e constituído a favor de FF e GG caducou com a venda daquela, devendo, assim, a Sra. Agente de Execução promover o cancelamento do registo em conformidade e mais diligências tendentes à entrega do bem imóvel adjudicado aos requerentes.

Inconformada com esta decisão, a exequente Banco 1..., S.A. veio dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo (arts 627º,1,2, 629º,1, 631º,1, 638º,1, 641º,2,f, 645º,3,e, e 853º,2,a CPC).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, foi penhorada apenas a nua propriedade da fracção autónoma descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...22/...”, uma vez que o direito de uso e habitação sobre o dito imóvel havia sido doado a terceiros.
2. Sobre a referida fracção achava-se registada uma hipoteca voluntária a favor de     DD e EE, anterior ao registo do direito de uso e habitação.
3. Por sua vez, a Exequente apenas goza da garantia da penhora, posterior ao registo da doação do direito de uso e habitação.
4. Os credores DD e EE reclamaram o seu crédito hipotecário nos autos.
5. Na qualidade de credores hipotecários, foram notificados e informados de várias diligências realizadas nos autos, designadamente: foram notificados da penhora da nua propriedade; da avaliação realizada ao imóvel, donde decorria o valor de mercado do imóvel, bem como o valor da nua propriedade (este segundo, manifestamente inferior ao primeiro); da decisão de venda da nua propriedade; da publicação da venda.
6. Os credores apresentaram proposta de aquisição da nua propriedade pelo valor fixado para a venda, inferior ao valor real de mercado do imóvel.
7. Apenas após a realização da venda, vieram alegar a caducidade do direito de uso e habitação constituído a favor de terceiros por força da venda judicial.
8. Sendo que, a assim suceder, lograriam os credores/adquirentes adquirir a totalidade do imóvel por valor manifestamente inferior ao seu valor real de mercado, com prejuízo dos demais credores e dos Executados.
9. Com efeito, se a questão da caducidade tivesse sido suscitada antes da realização da venda, poderia a mesma ter sido correctamente publicitada, isto é, dando a conhecer aos potenciais interessados que, realizada a venda judicial, o direito de uso e habitação caducaria, passando o adquirente a ser titular da propriedade plena do imóvel; e, mais, a venda poderia ter sido promovida pelo valor correspondente ao valor real de mercado do imóvel, manifestamente superior ao valor de venda anunciado, com base no pressuposto de que apenas seria possível adquirir a nua propriedade.
10. Poderiam os autos, assim, ter realizado valor superior, permitindo a satisfação dos demais créditos e a amortização de maior parcela da dívida dos devedores.
11. Não obstante, os adquirentes/credores retardaram propositadamente no tempo a alegação de caducidade, com vista a realizarem, para si, um melhor negócio.
12. Ora, a inacção dos credores/adquirentes em momento oportuno deve ter como consequência a preclusão do seu direito de alegar a caducidade posteriormente, visto que os mesmos se conformaram com a penhora e venda, apenas, da nua propriedade.
13. Tendo aqueles, inclusive, apresentado proposta de aquisição apenas da nua propriedade, pelo valor atribuído à nua propriedade.
14. E, mesmo que assim não se entendesse, sempre deveria tal actuação ser considerada ilícita por configurar abuso de direito na modalidade de suppressio.
15. De resto, entende a Exequente, ora Recorrente, que o direito de uso e habitação não deve caducar.
16. É que a Exequente não goza de garantia anterior à constituição e registo do direito de uso e habitação, pelo que aquele direito é oponível à execução.
17. Por outro lado, decorre do disposto no art. 695.º do CC, a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide.
18. E, querendo o credor hipotecário executar a sua garantia, deveria accionar todos os actuais titulares dos direitos reais que incidem sobre o imóvel hipotecado a seu favor, tal como o fez a ora Recorrente, que instaurou acção de impugnação pauliana, impugnando a doação do direito de uso e habitação, por forma a poder penhorar a totalidade do imóvel     nestes autos.
19. O que não aconteceu, in casu.

Os recorridos contra-alegaram, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida e oferecendo as seguintes conclusões:

1. Por apresentação de melhor proposta na venda judicial sob a modalidade de leilão electrónico, foi adjudicado aos Recorridos, o bem penhorado nos autos - a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pelas letras ...,
2. A venda judicial incidiu sobre a raiz ou nua propriedade do bem em causa, porque somente a nua propriedade do bem poderia ser objecto de execução e venda judicial – e não o direito de uso e habitação, que está sujeito à regra da intransmissibilidade e com efeito, da impenhorabilidade.
4. Pelo que, em face da venda judicial, nos termos do disposto no artigo 824º n. 2 do Código Civil, caducam os ónus e direitos reais que incidem sobre o bem vendido, com as excepções ali previstas.
5. O registo do direito de uso e habitação (datado de 12-12-2017) é anterior à penhora efectuada nos presentes autos (datada de14-07-2020), todavia é posterior ao registo da hipoteca que garantia o crédito dos aqui credores reclamantes, e agora adquirentes (datada de 02-05-2011).
6. E por esse facto, à data da constituição da hipoteca como garantia real a favor dos aqui credores reclamantes, o valor da propriedade plena do imóvel foi o critério fundamental para o empréstimo que lhe subjaz, e não a nua ou raiz propriedade do mesmo.
7. E como tal, ainda que a lei permita que o direito de uso e habitação que foi posteriormente constituído coexista com a nua propriedade e hipoteca desta, a verdade é que, em face da execução e após adjudicação do bem a um credor hipotecário, a subsistência deste desdobramento do direito de propriedade em dois – direito de propriedade plena e direito de uso e habitação – anula o escopo para o qual a garantia foi constituída e redu-la praticamente a uma garantia real insignificante, desrespeitando a sua eficácia erga omnes.
8. Em face do direito de sequela e da prioridade que a hipoteca confere ao credor, o credor hipotecário adjudicatário deve ter legitimidade específica para assegurar a efectividade desta garantia, perante a oneração ou limitação do bem hipotecado.
9. Sendo a hipoteca um direito real de garantia e o direito de uso e habitação um direito real de gozo que foi constituído posteriormente, a aquisição do bem em venda judicial pelo beneficiário dessa mesma garantia deve resultar na caducidade do ónus posteriormente constituído, não sendo este oponível ou eficaz contra os adquirentes, in casu, credores reclamantes hipotecários.
10. A hipoteca constituída e registada em data anterior ao registo do referido direito de habitação impõe, em caso de venda judicial do imóvel ao credor hipotecário, a caducidade de tal direito face ao preceituado no artigo 824.º, nº 2 do C. Civil. e a isso não obsta o facto de a penhora, com registo posterior ao do referido direito, bem como a venda em execução, incidirem apenas sobre a nua propriedade, pois que a hipoteca, sendo indivisível, abrangeu a propriedade plena cuja consolidação se operou na pessoa do credor.
11. Ora, os Recorridos, quando reclamaram o seu crédito nos autos da execução em questão, não tinham qualquer intenção em licitar sobre a fracção penhorada, e ainda que fosse essa a sua vontade, poderiam estes prever que lhes seria adjudicada a final a venda, por apresentação de melhor proposta.
12. É no momento da adjudicação da fracção, com a venda executiva, que esse direito invocado pelos Recorridos e estipulado no artigo 824º nº 2 do C.C. se concretiza, como que unindo-se novamente os dois direitos, o direito sobre a nua propriedade e o direito de uso e habitação, como credores hipotecários adquirentes que são, estendendo o direito do credor hipotecário à totalidade da coisa, como se aquele nunca tivesse sido constituído.
13. De todo o modo, a decisão de licitar para aquisição da fracção no leilão electrónico só se tornou realista, e no entender dos Recorridos, necessária, no decorrer da publicitação da venda no site e-leilões e com o passar dos dias até ao momento em que os Recorridos constataram que se aproximava a hora da data do fecho do leilão e não tinha sido realizada nenhuma licitação, como se pode depreender da certidão de encerramento do leilão, junta aos autos pela Exma. Sra. Agente de Execução.
14. Assim, numa tentativa de ver ressarcido de alguma forma o seu crédito, decidiram apresentar uma proposta de licitação.
15. Só no momento da aquisição, que se revelou necessária de forma a minimizar a perda que sobre eles decai, os Recorridos emergem como credores hipotecários adquirentes e nesse momento, vêm exercer o seu direito, previsto no artigo 824º nº 2 do C.C.
16. Ao mesmo tempo, não recai sobre eles o ónus de propor uma acção de impugnação pauliana, equivalente à proposta pela Recorrente, como referida por esta, pois o seu direito real de garantia está protegido perante subsequentes alienações.
17. A figura do abuso de direito não caracteriza a actuação dos Recorridos, pois não podiam os Recorridos invocar um direito em momento anterior ao da venda, quando este só se concretizou no momento da adjudicação da venda e unicamente pela circunstância de essa adjudicação ter sido feito a um credor hipotecário adquirente, e não já a outro credor sem garantia hipotecária, ou com o seu direito registado conforme estipulado no artigo 824º nº 2 do C.C., tendo em conta que a execução movida pela Recorrente apenas contempla a nua fracção e não a propriedade plena.
18. Sendo que essa circunstância, que reitera-se nunca fui o objectivo dos Recorridos, a não ser por necessidade de alguma forma ver o seu crédito satisfeito, é absolutamente imprevisível, e ainda mais, na modalidade de venda judicial em leilão electrónico.
19. Não se pode caracterizar a não invocação da caducidade do direito de uso e habitação pelos Recorridos, como uma forma de inacção que de alguma forma crie na Recorrente a convicção de confiança que esse direito já não será exercido.
20. Nem tão pouco a Recorrente se pode intitular na realidade, beneficiária no surgimento de uma nova situação jurídica - entendimento este do qual os Recorridos discordam veementemente, e não podem aceitar, alegando ainda que esta foi provocada pela boa fé que depositou no comportamento de inacção dos Recorridos.
21. Tal entendimento não se aceita, pois não tem motivação de facto nem de direito que o sustente.
23. Todavia, em momento algum se pode depreender do comportamento dos Recorridos que estariam a renunciar ao seu direito, o que aliás, seria contrário ao objectivo que visaram atingir, de satisfação dos seus créditos, com a deduzida reclamação de créditos.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se o direito real de gozo supra descrito caducou ou não com a venda executiva.

III
Os factos necessários para decidir o presente recurso são os que ficaram expostos no relatório.

IV
Conhecendo do recurso.
Está em causa nestes autos a determinação dos efeitos da venda executiva, o que nos remete de imediato para o artigo 824º CC, que reza assim:

“Venda em execução
1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”.

Como se escreve no Acórdão do STJ de 21 de Junho de 2022 (Ricardo Costa-Relator), “esta norma não resolve o problema (de saber o que acontece aos direitos reais sobre um bem vendido em execução) por inteiro porque o bem a vender pode encontrar-se onerado com direitos de garantia ou com direitos reais de gozo menores ou mesmo direitos reais de aquisição, pelo que caberia sempre decidir o que sucede com estes direitos em caso de venda do bem a terceiro. Em tese era pensável que esses direitos se mantivessem e que o adquirente do bem tivesse de os respeitar. Todavia, como dificilmente alguém se dispõe a adquirir um bem do qual afinal não pode dispor na plenitude ou apenas o poderá fazer em data posterior incerta ou ainda terá de suportar ele mesmo os ónus sobre o bem para obter a sua libertação, essa solução acabaria na prática por inviabilizar, na maior parte dos casos, a venda do bem, com prejuízo não apenas para os credores, como também para os devedores que poderiam ver-se obrigados à venda de mais bens para satisfação dos créditos (nesse sentido, veja-se o comentário ao preceito em causa in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág. 1209 e seguintes, onde se afirma, citando Menezes Cordeiro e Rui Pinto, que «quando incidem sobre os bens vendidos direitos reais de garantia, caso estas garantias não desaparecessem, haveria danos para os credores e para o crédito em geral»)”.
Tenha-se ainda em mente que, como igualmente se escreve no Acórdão citado, “em rigor embora a norma fale em caducidade dos direitos reais de gozo, não é de verdadeira caducidade que se trata porque o direito não se extingue pura e simplesmente (cf. Rui Pinto, in A Acção Executiva, AAFDL, Lisboa, 2018, pág. 898, afirma que estamos perante uma «sub-rogação real»). Com efeito, nos termos do artigo 824.º, n.º 3, do Código Civil, os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens. Por via desta norma, o titular do direito real de gozo que venha a caducar, mesmo não sendo credor do titular do bem sobre o qual incide o direito de gozo caducado e por isso não tenha reclamado qualquer crédito no processo de insolvência onde a venda vai ser realizada, pode reclamar o pagamento do valor económico do direito caducado pelo produto da venda do mesmo realizado no pressuposto e com a vantagem daquela caducidade, ainda que para o efeito possa ser necessário instaurar uma acção contra a massa insolvente”.
Assente isto, para interpretar correctamente esta norma, vamos ter presente qual o bem ou direito que foi vendido na execução, pois os regimes de cada um são diversos.
Como já vimos, nestes autos foi penhorada a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma identificada supra.
E isto porque à data em que a penhora foi executada (9.1.2021), já o executado AA tinha doado (em 29.9.2017) o direito de uso e habitação do imóvel referido supra a FF e GG.
Este acto do executado remete-nos para o disposto no art. 819º CC (na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março), que, sob a epígrafe “Disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”, dispõe que “sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
Esta solução legal é por demais óbvia, e é assim explicada por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (CPC anotado, anotação ao art. 827º): “…solução que bem se compreende e que permite evitar que tanto o executado como o depositário, ainda que não executado, mas com poderes de administração, pudessem praticar actos prejudiciais à garantia patrimonial alcançada através da penhora. Por isso, em tal eventualidade, com a venda dos bens penhorados extingue-se o contrato de arrendamento que tenha sido celebrado”.
É verdade que no caso dos autos a linha do tempo é a oposta, ou seja, primeiro o executado transmitiu a terceiros o direito de uso e habitação do imóvel, e só posteriormente a esse acto é que no processo executivo foi penhorada a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma identificada supra.
Porém, se olharmos mais de perto, veremos que se é verdade que o acto de disposição ou oneração do imóvel foi praticado previamente à penhora, não é menos verdade que esse mesmo acto de disposição ou oneração foi praticado posteriormente à constituição de hipoteca sobre o imóvel que veio posteriormente a ser penhorado e vendido nos autos.
E, acrescentam os autores supra citados: “A jurisprudência e a doutrina maioritária (identificadas por Rui Pinto, Acção Executiva, p. 906) vão, aliás, no sentido de, com a venda executiva se operar a caducidade de algum contrato de arrendamento que tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre bem que veio a ser objecto de penhora e venda no processo de execução (neste sentido, cf. STJ 18-10-18, 12/14, STJ 22.10.15, 896/07, RL 13-2-20, 770/18 e RE 30-1-20, 38/19)”.
Pensamos que é essa a solução que se impõe no caso trazido a estes autos.
Com efeito, é pacífico que, caso o acto de alienação ou oneração fosse praticado sobre um bem já penhorado na execução, esse acto não surtiria qualquer efeito no processo executivo. Ou seja, no caso que agora nos ocupa, se o acto de disposição tivesse sido praticado já depois da penhora, não há dúvida que a penhora teria incidido sobre o direito de propriedade e não sobre a nua propriedade, e qualquer registo de direito real incompatível que existisse seria cancelado, por aplicação linear do art. 824º,2 CC. Isto por aplicação directa e imediata do disposto no art. 819º CC. Assim se garantiria que esse acto em concreto seria inoponível à execução.
A pergunta agora tem de ser esta: em que é que o facto de o acto de disposição ter antecedido a penhora muda o enquadramento legal do problema ?
A resposta é: depende. Se existe garantia real ou não e da data de registo da mesma.
Se não existe garantia real, então a antecedência cronológica do acto de disposição face à penhora altera mesmo o enquadramento do problema, e o acto dispositivo prevalece sobre a penhora.
Mas se existe garantia real, registada previamente ao registo do acto de disposição, a solução muda drasticamente. Já Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art. 819º CC escreviam: “apenas se alude à ineficácia dos actos de disposição ou oneração dos bens penhorados em relação ao exequente. Os outros credores chamados são apenas os que gozam de garantia real sobre os bens penhorados – e a garantia real, desde que devidamente registada, quando sujeita a registo, basta para os defender contra as alienações ou onerações de data posterior. É o caso, justamente, da hipoteca.
A resposta, aliás, é dada directamente pelo art. 824º,2 CC: os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
Recorrendo mais uma vez ao apoio interpretativo dos Clássicos, Pires de Lima e Antunes Varela escrevem em anotação a este artigo: “nos termos deste número, há que distinguir duas espécies de direitos que incidam sobre os bens vendidos. Os de garantia caducam todos; os direitos de gozo só caducam se não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias”.
Como no caso destes autos estamos perante um direito real de gozo (arts. 1484º a 1490º CC), levado ao registo em 29.9.2017, quando o direito real de garantia (hipoteca) já estava registado desde 2.5.2011, a conclusão inultrapassável e incontornável é que o direito real em causa, o direito de uso e habitação, caducou com a venda executiva.
Solução diversa, ou seja, que permitisse que um qualquer executado esvaziasse total ou parcialmente um direito real de garantia com registo prévio, bastando-lhe para o efeito proceder a uma alienação ou oneração do bem sobre que incide essa garantia, seria uma pura aberração, que destruiria a certeza e segurança jurídicas, reduziria a zero o valor das garantias reais, ao que acresce que, nos casos de hipoteca voluntária, ainda constituiria um acto de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
É verdade que, como alega a recorrente, decorre do disposto no art. 695º CC que a hipoteca não impede o poder de alienação ou de oneração do imóvel sobre que incide. Porém, o imóvel em causa é sempre transmitido com o direito real de garantia, e o credor poderá executar essa garantia real no património onde estiver o imóvel. E, finalmente, lá está a norma do art. 824º,2 CC para impedir os abusos supra-referidos.
Mas vejamos agora a argumentação da recorrente.
Começa por dizer que os credores hipotecários, nessa qualidade, foram notificados e informados de várias diligências realizadas nos autos, designadamente: “foram notificados da penhora da nua propriedade; da avaliação realizada ao imóvel, donde decorria o valor de mercado do imóvel, bem como o valor da nua propriedade (este segundo, manifestamente inferior ao primeiro); da decisão de venda da nua propriedade; da publicação da venda. Apresentaram proposta de aquisição da nua propriedade pelo valor fixado para a venda, inferior ao valor real de mercado do imóvel. Apenas após a realização da venda, vieram alegar a caducidade do direito de uso e habitação constituído a favor de terceiros por força da venda judicial. A assim suceder, lograriam os credores/adquirentes adquirir a totalidade do imóvel por valor manifestamente inferior ao seu valor real de mercado, com prejuízo dos demais credores e dos Executados. Se a questão da caducidade tivesse sido suscitada antes da realização da venda, poderia a mesma ter sido correctamente publicitada, isto é, dando a conhecer aos potenciais interessados que, realizada a venda judicial, o direito de uso e habitação caducaria, passando o adquirente a ser titular da propriedade plena do imóvel; e, mais, a venda poderia ter sido promovida pelo valor correspondente ao valor real de mercado do imóvel, manifestamente superior ao valor de venda anunciado, com base no pressuposto de que apenas seria possível adquirir a nua propriedade”.
E concluem que a inacção dos credores/adquirentes em momento oportuno deve ter como consequência a preclusão do seu direito de alegar a caducidade posteriormente, visto que os mesmos se conformaram com a penhora e venda, apenas, da nua propriedade. E, mesmo que assim não se entendesse, sempre deveria tal actuação ser considerada ilícita por configurar abuso de direito na modalidade de suppressio.
Para podermos analisar devidamente esta argumentação, vamos começar por recordar algumas noções básicas essenciais.
Numa execução nunca podem ser penhorados senão bens do executado, seja este o devedor principal, um devedor subsidiário ou um terceiro. Esta regra não tem excepções (Lebre de Freitas, A acção executiva, 7ª edição, fls. 238).
Existem bens que não podem ser penhorados, naquilo que se pode chamar de indisponibilidade objectiva para penhora. Citando o mesmo autor, mesma obra e pág, “não podem, por isso, penhorar-se, entre outros, o direito a alimentos (2008º,1 CC), o direito de uso e habitação[1] (1488º CC), …”.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela o usufruto é, quanto ao gozo da coisa e a despeito da sua raiz pessoal, “o espelho fiel da propriedade”; o seu titular, desde que respeite o destino económico da coisa, pode comportar-se exactamente como um proprietário. O direito de uso, mais adstrito à pessoa do titular, absorve apenas algumas das faculdades de gozo (as ligadas à utilização imediata da coisa ou ao consumo directo dos frutos) compreendidos na propriedade plena – cfr. CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 546. Como afirma Carvalho Fernandes, os direitos de uso e habitação são direitos reais limitados, em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos ao titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos. A sua medida é a das necessidades do seu titular e respectiva família. São, pois, limitados pelo fim – cfr. Lições de Direitos Reais, 2ª ed., pág. 394.
Sendo um direito inalienável, o direito de uso e habitação é também um direito impenhorável (Ac. TRL de 2/11/1989, BMJ 391,681.
Quando uma dívida exequenda tem garantia real, isso significa que existe um bem, do devedor ou de terceiro, especialmente afecto ao cumprimento da obrigação. E quando o bem onerado pertence ao próprio devedor, a penhora de outros bens só pode ter lugar depois de se verificar a insuficiência daquele (752º,1 CC).
Efectuada uma penhora, o executado perde os poderes de gozo que integram o seu direito, mas não o poder de dele dispor. Mantém, assim, a titularidade de um direito, esvaziado de todo o seu restante conteúdo. E, sendo assim, continua a poder praticar, depois da penhora, actos de disposição ou oneração. Os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados comprometeriam, no entanto, a função da penhora, se tivessem eficácia plena. Por isso, são inoponíveis à execução” (ainda Lebre de Freitas, pág. 304).
Passando agora para a fase da convocação dos credores, escreve o mesmo autor que: “no esquema da nossa lei processual civil, só são convocados os credores que gozam de garantia real sobre o bem penhorado (arts. 786º,1,b e 788º,1). Esta delimitação do âmbito do concurso de credores dá-nos a finalidade que é visada com a sua convocação: visto que a penhora será normalmente seguida da transmissão dos direitos do executado, livres de todos os direitos reais de garantia que os limitam (art. 824º,2 CC), os credores vêm ao processo não tanto para fazerem valer os seus direitos de crédito, e obterem pagamento, como para fazerem valer os seus direitos de garantia sobre os bens penhorados”.
Finalmente, chegamos à venda executiva. E vamos de imediato à parte que nos interessa agora, a da caducidade dos direitos reais de gozo de terceiro, por força da venda.
E aqui, a distinção essencial a fazer é entre os direitos reais de gozo com registo anterior ao de todos os direitos reais de garantia invocados ou constituídos no processo de execução, e os que têm registo posterior a esses direitos reais de garantia.
Nos casos em que o direito real de gozo tem registo anterior ao de qualquer penhora ou hipoteca, a situação é relativamente linear: esse direito real de gozo subsiste, não é afectado pela venda. Aliás, como ainda nota o autor citado, nesses casos a penhora não terá abrangido esse direito real de gozo (é caso dos autos, em que foi penhorada a nua propriedade, mas não o direito de uso e habitação).
Mais complexa é a situação no segundo caso.
Lebre de Freitas distingue 3 situações:
a) o direito real de gozo foi constituído ou registado posteriormente à constituição ou registo da penhora;
b) o direito real de gozo foi constituído ou registado anteriormente à constituição ou registo da penhora, mas depois da constituição (ou registo) dum direito real precedente (hipoteca voluntária ou judicial, arresto, etc) do exequente;
c) o direito real de gozo foi constituído ou registado anteriormente à constituição (ou registo) de qualquer direito real do exequente, mas depois da constituição (ou registo) do direito real de garantia invocado por um dos credores reclamantes;
E segundo Lebre de Freitas, em qualquer destas hipóteses a lei determina que os bens se transmitam livres do direito real do terceiro, o que é o mesmo que dizer que se transmite a propriedade plena e não apenas o direito real menor de gozo do executado (a propriedade de raiz, direito de propriedade limitado por usufruto, ou por direito de uso e habitação, como é o caso dos autos).
Nas hipóteses das alíneas a) e b), como diz o mesmo autor, “tal não oferece dificuldade: o direito do exequente não pode ser limitado por um direito posterior, que na primeira hipótese até normalmente lhe é inoponível e na segunda deu certamente lugar a uma execução movida nos termos do art. 54-4, contra o devedor e o terceiro. A penhora consequentemente abrangeu a propriedade plena e é essa que é transmitida.
Mas, na hipótese c) as coisas complicam-se. Agora a penhora não abrangeu certamente, tal como não o abrangeu no primeiro caso (direito real de gozo anterior a qualquer direito real de garantia), o direito real de gozo de terceiro (o exequente penhorou, no nosso exemplo, a propriedade de raiz do executado, mas não o usufruto do terceiro), mas a lei vem dizer que, pela venda, o bem se transmite livre desse direito real. Estaremos perante um caso em que o objecto da venda pode ir além do objecto da penhora ? Ou deverá o art. 824º-2 CC ser interpretado restritivamente, quando se refere a qualquer arresto, penhora ou garantia a favor do exequente ?
Vamos começar por registar que este cenário da alínea c) é justamente o que temos nestes autos.
A resposta, parece-nos, emerge do regime legal da hipoteca. Esta, como sabemos, concede ao credor a faculdade de fazer executar o seu objecto, no caso de incumprimento da obrigação garantida, preferindo em relação aos credores comuns e aos outros credores hipotecários cujo registo seja posterior. De acordo com o princípio da inerência, a hipoteca continuará a acompanhar a coisa, podendo o seu adquirente libertar-se dela, exercendo o direito de a expurgar (art. 721º CC). E de acordo com o princípio da indivisibilidade, a hipoteca subsiste por inteiro, ainda que a coisa venha a ser dividida ou o crédito garantido parcialmente satisfeito (art. 696º CC). Aliás, como se escreve no Acórdão do TRP de 1 de Julho de 2019 (Manuel Domingos Fernandes), “o direito hipotecário não se subordina à permanência do domínio do imóvel na mesma pessoa; é na pretensão erga omnes que se manifesta com absoluta clareza o carácter real deste direito de garantia, isto é, a hipoteca abrange o bem hipotecado em todas as suas transformações futuras”.
Ou seja, quando o executado AA doou o direito de uso e habitação sobre o imóvel em causa já depois de constituída a hipoteca sobre o mesmo, esse direito real doado (bem como a nua propriedade que restou na esfera jurídica do doador) continuaram onerados com a hipoteca tal como o direito de propriedade plena o estava.
A partir daqui a solução parece-nos linear. Se a hipoteca vai poder sempre ser accionada sobre a coisa, independentemente da pulverização do direito de propriedade em direito de nua propriedade e direitos reais menores, então tudo se resume a saber como é que, processualmente, essa primazia da hipoteca vai ser concretizada.
E é aqui que a argumentação da recorrente entronca. Esta centra-se nos problemas processuais que decorreriam da solução constante da decisão recorrida. Afirma ela que essa solução permitiria aos credores adquirentes adquirir a totalidade do imóvel por valor manifestamente inferior ao seu valor real de mercado, com prejuízo dos demais credores e dos Executados. É que, afirma, a venda não foi promovida pelo valor correspondente ao valor real de mercado do imóvel, mas sim pelo valor da nua propriedade.
Acrescenta: poderiam os autos ter realizado valor superior, permitindo a satisfação dos demais créditos e a amortização de maior parcela da dívida dos devedores. E mais adiante: “a inacção dos credores/adquirentes em momento oportuno deve ter como consequência a preclusão do seu direito de alegar a caducidade posteriormente, visto que os mesmos se conformaram com a penhora e venda, apenas, da nua propriedade”.
Porém, não podemos aceitar este entendimento, pois cremos que levaria a um resultado manifestamente desajustado e atentatório da eficiência processual, pois se o credor apenas pudesse valer-se nesta execução de parte da hipoteca (a que incidia sobre a nua propriedade), ver-se-ia obrigado a intentar uma nova acção executiva contra o terceiro (no caso os donatários) para obter o pagamento do resto do crédito.
É certo que parece ser esta a solução que defende Lebre de Freitas (ob. cit.), citando ainda no mesmo sentido Castro Mendes (Acção Executiva, fls. 184, 185).
E com efeito permanece um problema processual por resolver, que não pode ser desvalorizado: o desfasamento entre o objecto da penhora e o objecto da venda.
Lebre de Freitas defende que “o único meio de aproximar o objecto da penhora do objecto da venda estará na disponibilidade do credor com direito real de garantia anterior e consistirá em este, uma vez citado, requerer a extensão da penhora ao objecto da sua garantia e, simultaneamente, a citação do terceiro (o usufrutuário no nosso exemplo), com base no art. 54-2, para tomar a posição de executado no processo. Se não o fizer, aceita o credor que o seu crédito seja pago na execução só pelo produto do direito penhorado (na parte proporcional ao valor total do prédio), subsistindo o direito de gozo do terceiro e conservando o credor a sua garantia, pelo remanescente, quanto a esse direito” (…). Se o credor não requerer a extensão da penhora ao objecto da sua garantia, está implicitamente renunciando a invocar a totalidade desse objecto na execução”.
No caso dos autos, a Exequente/Recorrente apenas goza da garantia da penhora, posterior ao registo da doação do direito de uso e habitação.
E, como esta alega, “os credores reclamantes apresentaram proposta de aquisição da nua propriedade pelo valor fixado para a venda, inferior ao valor real de mercado do imóvel. Após a realização da venda, vieram alegar a caducidade do direito de uso e habitação constituído a favor de terceiros por força da venda judicial. Isto levaria a que eles adquirissem a totalidade do imóvel por valor manifestamente inferior ao seu valor real de mercado, com prejuízo dos demais credores e dos Executados”.
Cá está o problema do desfasamento entre o objecto da penhora e o da venda.
A recorrente afirma: “se a questão da caducidade tivesse sido suscitada antes da realização da venda, poderia a mesma ter sido correctamente publicitada, isto é, dando a conhecer aos potenciais interessados que, realizada a venda judicial, o direito de uso e habitação caducaria, passando o adquirente a ser titular da propriedade plena do imóvel; e, mais, a venda poderia ter sido promovida pelo valor correspondente ao valor real de mercado do imóvel, manifestamente superior ao valor de venda anunciado, com base no pressuposto de que apenas seria possível adquirir a nua propriedade. Poderiam os autos, assim, ter realizado valor superior, permitindo a satisfação dos demais créditos e a amortização de maior parcela da dívida dos devedores”.
Isto dito assim, parece assumir alguma razoabilidade.
Porém, recordemos que em concreto o que se passou foi que foi penhorada a “raiz ou nua propriedade da fracção autónoma em causa, tendo-se atribuído a tal direito o valor de € 182.565,04.
Foi agendada a venda do bem penhorado através de leilão electrónico, pelo valor base de € 304.379,00. E o valor mínimo das propostas era de € 258.722,15.
E recorde-se que o valor base foi obtido através de uma avaliação realizada ao imóvel penhorado, não tendo sido objecto de qualquer reclamação.
No leilão electrónico a melhor proposta foi apresentada pelo credor reclamante DD, no valor de € 322.035,57.
Foi então decidido adjudicar ao credor reclamante DD a raiz ou nua propriedade da fracção autónoma, e, ainda que, após pagamento das custas da execução e o pagamento do crédito reclamado e graduado em primeiro lugar, porque o valor da proposta apresentada era inferior ao valor do seu crédito reclamado, ficou o credor reclamante dispensado do depósito do preço oferecido.
Ora, temos alguma dificuldade em acompanhar a recorrente quando refere que “a venda poderia ter sido promovida pelo valor correspondente ao valor real de mercado do imóvel, manifestamente superior ao valor de venda anunciado, … e poderiam os autos, assim, ter realizado valor superior, permitindo a satisfação dos demais créditos e a amortização de maior parcela da dívida dos devedores”.
É que a diferença entre o valor atribuído ao direito penhorado (€ 182.565,04), o valor mínimo fixado para a venda (€ 258.722,15), o valor base anunciado para a venda (€ 304.379,00) e o valor da melhor proposta, apresentada pelo credor reclamante (€ 322.035,57) parece contrariar essa afirmação. Acresce que se a recorrente entendia que algum destes valores não era aceitável, podia ter reagido contra o mesmo, e, tanto quanto os autos documentam, não o fez. Não nos parece que se possa pois afirmar, pelo menos de forma peremptória, que os restantes credores ficaram prejudicados.
A proposta de Lebre de Freitas, de impor ao credor reclamante o ónus de, ao ser citado para reclamar o seu crédito hipotecário, requerer a extensão da penhora ao objecto da sua garantia e, simultaneamente, a citação dos terceiros (os titulares do direito de uso e habitação) para tomarem a posição de executados no processo, tinha a vantagem de processualmente tornar as coisas transparentes e congruentes com o direito substantivo, e de fazer coincidir o objecto da penhora com o objecto da venda, mas a verdade é que tal
ónus não resulta da letra da lei.
Ainda se poderia pensar que resultaria do seu espírito, mas salvo melhor opinião, também não cremos que tal se possa afirmar.
A verdade é que, e agora raciocinando em abstracto, quando um credor hipotecário vem reclamar o seu crédito aos autos de execução (no valor do bem hipotecado), e sendo a hipoteca obrigatoriamente sujeita a registo, as partes no processo executivo sabem -ou têm a obrigação de saber- que a hipoteca recai sobre a totalidade do bem hipotecado, e que será esse valor integral do bem que será adjudicado ao credor em causa, independentemente de a penhora poder ter recaído apenas sobre a nua propriedade por haver direitos reais menores entretanto criados. A prevalência do direito real de garantia registado previamente ao direito real de gozo é incontroversa.
E cremos poder ainda afirmar que um eventual requerimento do credor hipotecário no sentido da extensão da penhora ao objecto da sua garantia (no caso dos autos, ao direito de uso e habitação) estaria sempre votado ao insucesso, pela já referida indisponibilidade objectiva para penhora (art. 1488º CC). Perante tal requerimento, o Juiz do processo ver-se-ia obrigado a indeferir ao mesmo, com fundamento em o direito real em causa não poder ser penhorado, por não poder ser transmitido.
Mas esse requerimento seria, em bom rigor, desnecessário, pois a extensão da hipoteca à integralidade do direito de propriedade permite alcançar o mesmo resultado. E assim, a regra da caducidade dos direitos registados posteriormente, constante do citado art. 824º,2 CC, só por si, já permite alcançar o mesmo objectivo que, de outra forma, teria de ser alcançado com o tal requerimento de extensão da penhora, ou com a faculdade de fazer valer a hipoteca não em uma, mas em duas acções executivas separadas, uma onde foi penhorada a nua propriedade e a outra onde foi penhorado um direito real menor. O que seria uma manifesta ineficiência do sistema.
Em síntese, não há a menor dúvida que, sendo o registo da hipoteca anterior ao registo do referido direito real de gozo, este caduca necessariamente com a venda executiva. E foi o que se passou nos autos. Não se pode negar este efeito jurídico substantivo.
Recorde-se o que se escreveu supra, sobre em tese ser pensável que os direitos de gozo se mantivessem e que o adquirente do bem tivesse de os respeitar, mas que essa solução acabaria na prática por inviabilizar, na maior parte dos casos, a venda do bem, com prejuízo não apenas para os credores, como também para os devedores que poderiam ver-se obrigados à venda de mais bens para satisfação dos créditos.
Este é mais um argumento, de certeza e segurança jurídicas, tão sagrado nos Sistemas Jurídicos de matriz continental (Civil Law Tradition), que nos leva agora a considerar que o imperativo legal emergente do art. 824º,2 CC não pode deixar de se impor também neste caso.
Por outro lado, baixando ao concreto caso destes autos, e “devolvendo” o argumento da recorrente, não custa acreditar que o credor reclamante apresentou a proposta que apresentou por confiar que o bem lhe seria transmitido livre de qualquer direito real de garantia e de gozo. Se ele pensasse que o bem lhe iria ser transmitido onerado com um direito real de gozo “acoplado”, muito provavelmente não teria feito a proposta que fez, ou pelo menos tê-la-ia feito por um preço muito inferior, pois ainda teria de ir demandar noutros autos os titulares desse direito real, para fazer valer a sua hipoteca, pelo valor remanescente. Desta forma, tivemos a vantagem de a questão da hipoteca ter ficado desde já resolvida nestes autos, o que é um argumento de economia processual não negligenciável.
Esta é a decisão que supomos é claramente maioritária na jurisprudência, como resulta dos Acórdãos do TRP de 01/07/2019 (Manuel Fernandes), do TRE de 16/05/2019 (Rui Moura) e do STJ de 21/06/2022 (Ricardo Costa).
E assim, chegamos à conclusão de que o recurso não merece provimento.


V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, e confirma na íntegra o despacho recorrido.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 18.5.2023

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)
2º Adjunto
(Joaquim Boavida)


[1] Destaque nosso.