ACIDENTE DE VIAÇÃO
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário


1 – A legitimidade substantiva consiste na posição pessoal numa relação existente entre o sujeito e o objeto do negócio, que justifica que o primeiro se ocupe juridicamente do segundo.
2 – Dispõe de legitimidade substantiva a autora que peticiona, enquanto lesada num acidente de viação e perante a respetiva responsável civil, o ressarcimento da quantia de que é devedora a uma unidade de cuidados continuados, no âmbito de uma relação jurídica estabelecida entre ambas.
3 – Na concreta determinação do quantitativo da compensação dos danos não patrimoniais, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjetivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adotados pela jurisprudência em casos análogos.
4 – Não pode ser reduzida por se mostrar adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 20.000,00 a lesada de 86 anos de idade, atropelada numa passadeira, que sofreu várias fraturas e outras lesões, dores físicas quantificáveis de grau 5, numa escala crescente de 1 a 7, ficou a padecer de défice permanente da integridade física e psíquica de 6 pontos, com incapacidade para desenvolver qualquer atividade profissional, desportiva, tarefa diária ou outra, e passou a estar dependente de uma terceira pessoa para todas as atividades da vida diária.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra L..., Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta:
«A - A pagar, a título de indemnização, a quantia líquida de € 153.640,00 – cento e cinquenta e três mil, seiscentos e quarenta euros, por todos os danos sofridos em resultado do acidente supra descrito, sendo que o montante de € 40.000,00 – quarenta mil euros, diz respeito a danos não patrimoniais.
B - Condenação da ré no pagamento à identificada unidade, ou outra escolhida para o efeito, do custo mensal dos serviços, cuidados médicos e de fisioterapia prestados á autora, contados desde a presente data até ao fim da sua vida.
C - Condenação da ré no pagamento á autora de todas as despesas com acompanhamento médico e medicamentoso, suportando ainda os custos e encargos com as intervenções cirúrgicas, internamentos, tratamentos, fisioterapia e psiquiatria, contados desde a presente data até ao fim da vida da autora.
D – Sobre as quantias identificadas em A) acrescem juros à taxa de 4%/ano a calcular sobre a indemnização fixada, a contar desde a data da citação.»
Para o efeito, alegou ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência do acidente de viação que descreve, cuja ocorrência imputa à conduta culposa da condutora do veículo segurado na Ré.

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A Ré contestou, aceitando a responsabilidade, mas impugnando a matéria relativa às consequências do evento e os montantes indemnizatórios peticionados pela Autora.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a:

«- condenar a R. a pagar à A. a quantia de 133.640,00 € (cento e trinta e três mil, seiscentos e quarenta euros), a que acrescem juros de mora à taxa legal, civil, vigente em cada momento, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
- condenar a R. a pagar à A. a quantia mensal de 3.900,00 € (três mil e novecentos euros), contados desde Julho de 2020 até à presente data, correspondentes aos custos com internamento, cuidados médicos e de reabilitação da A.;
- condenar a R. a pagar à A. a quantia mensal de 3.900,00 € (três mil e novecentos euros), correspondentes aos custos com internamento, cuidados médicos e de reabilitação da A., contados desde a presente data até ao fim da vida da A.;
- absolver a R. do demais peticionado.»
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1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1-A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, porquanto na mesma não houve uma apreciação correta dos pressupostos de direito, e de facto, constantes dos presentes autos.
2-A Autora não tem legitimidade substantiva para reclamar o montante de €113.640,00, por resultar dos autos que tal dano não se gerou na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, a Unidade de Cuidados Continuados ..., nada podendo obter para si relativamente ao valor dos cuidados médicos realizados por esta entidade.
3-Aos pontos 1 e 2 do dispositivo da sentença, seria sempre necessário descontar a quantia de €28,120.00 já liquidada, pela Recorrente, diretamente à Unidade de Cuidados Continuados, assim como, o valor de €53.000,00, liquidados diretamente à A, de acordo com a providencia cautelar com o número de processo 3247/20.0 T8BRG-A G1, com Acórdão proferido na 2ª Secção Cível desta Relação, factos que o tribunal a quo não teve em consideração.
4-Quanto à matéria de facto, considerou o tribunal a quo como provado o facto OO, o que a Recorrente não concorda porque, face à prova testemunhal produzida em audiência, cujas transcrições constam das alegações, e documental do processo, a assistência da A. não tinha que ser, exclusivamente, assegurada pela Unidade de Cuidados Continuados ..., assim como, não há necessidade da mesma ser assistida, para o futuro, através daquela unidade.
5-Nos termos do artigo 102 da Lei do Contrato de Seguro a Recorrente, através do seu médico, que viu a A. inúmeras vezes, concluiu que, para repor a A. à situação anterior ao acidente, não seria necessária a assistência continua na unidade de cuidados continuados, podendo esta regressar a casa com a ajuda de terceira pessoa, diária e inicial de 4 horas.
6-Não teve o tribunal a quo em conta que ao tempo do acidente a Recorrente tinha já 86 anos de idade, com antecedentes pessoais de prótese de ambos os joelhos por patologia osteoarticular, sendo que antes do acidente a A. deambularia já com uma canadiana, e que, de acordo com o relatório pericial de 23 de Outubro de 2021, a A. antes do acidente, era já parcialmente dependente de terceira pessoa.
7-A questão da desnecessidade da assistência continua na unidade de cuidados continuados é constatada pelo documento junto em audiência de 29.09.2022, da Clinica Médico Cirúrgica – BB, e ignorado pela juiz a quo na sentença, o qual não foi colocado em causa pela A., que reconhece que esta, em janeiro de 2018, já não necessitava de cuidados continuados.
8-Do próprio relatório pericial de 23.10.2021 não está prevista a necessidade da manutenção do internamento da A. na Unidade de Cuidados Continuados ..., e a data de consolidação, 20.06.2018, coincide com a data em que a A. tinha já alguns ganhos a nível de autonomia, tendo em conta as declarações da testemunha CC.
9- Não existe qualquer dano futuro relacionados com a assistência na unidade de cuidados continuados.
10-A A. teve uma infeção respiratória em 2020, na unidade de cuidados continuados, que nada teve a ver com o acidente dos autos, e que lhe agravou o estado, tendo a A., através dos serviços médicos sempre defendido que após Maio de 2018 não era necessário a permanência da A. nos cuidados continuados, pelo que a necessidade de assistência naquela unidade não pode ser imputada à A.
11- De acordo com o Acórdão da Relação de Guimarães de 14-01-2021, 2ª Secção Cível, na parte do Direito Aplicável, relacionado com o recurso da providencia cautelar deste processo, refere-se que as lesões da A. não determinam, em termos de causalidade, a necessidade de permanência da requerente na Unidade de Cuidados Continuados ....
12- Entende a Recorrente que o facto OO) da matéria de facto provada deve ser dado como não provado, por conseguinte não existe qualquer dano futuro previsível.
13- As características arquitetónicas da casa da A, tendo em conta as sequelas desta, não podem ser oponíveis à recorrente porque aquelas já existiam antes do acidente, sendo a A. já dependente na altura.
14- No relatório pericial não existe qualquer conclusão quanto à impossibilidade da A. em residir na sua casa, ou até mesmo quanto a uma eventual adaptação do lar, por causa das sequelas.
15- Do documento ...1 junto com a P.I é referido que a casa da A “é composta por cozinha, sala, quarto e casa de banho, apresentando razoáveis condições de habitabilidade e salubridade” o que foi ignorado pelo tribunal a quo.
16- Entende a Recorrente que o depoimento da testemunha DD, coordenador geral da Misericórdia de ..., foi parcial porque representa uma entidade, a unidade de cuidados continuados, que tem interesse na causa, tendo em conta os montantes em divida reclamados nesta acção.
17- Os serviços externos da Recorrente procederam á inspeção da casa da A. e verificaram que na mesma era possível que se efetuassem todos os tratamentos médicos necessários à A., assim como, a realização da ajuda de terceira pessoa, conforme depoimento testemunhal da testemunha EE cuja transcrição consta das alegações.
18-Entende a Recorrente que não ficou provada a impossibilidade de a A. receber em sua casa toda a assistência que necessitava.
19-Não concorda a Recorrente quanto à fixação do valor de €3.900,00 euros mensais para ajuda de terceira pessoa permanente, valor que vem a ser cobrado pela unidade de cuidados continuados, porque tal valor á manifestamente exagerado e desproporcional, ainda para mais, quando a Recorrente conseguia, através dos seus serviços médicos, prestar assistência 24 de terceira pessoa à A., em sua própria casa, por metade do preço, tendo em conta as declarações da testemunha EE transcritas nas alegações.
20- Entende a Recorrente que o valor de €3.900,00 mensal é manifestamente exagerado, atentador das regras de equidade, e ao mesmo tempo não pode ser oponível à Recorrente, quando esta consegue prestar os mesmos serviços de assistência 24 horas a terceira pessoa, incluindo tratamentos médicos, pelo valor de €1.700,00
21- Insurge-se a Recorrente quanto ao montante indemnizatório fixado pelo tribunal a quo a título de dano não patrimonial, por ser manifestamente atentador das regras de equidade e contrário a algumas decisões dos tribunais superiores para casos semelhantes, cujos exemplos constam das alegações.
22- Perante todo o supra exposto, pugna a ora Recorrente pela revogação da Sentença proferida pelo douto tribunal “a quo”.»
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A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a Recorrente suscita as seguintes questões:

i) Erro no julgamento da matéria de facto, quanto ao ponto OO) dos factos provados;
ii) No que concerne à matéria de direito, em consonância também com a eventual modificação da matéria de facto preconizada pela Recorrente, constituem questões a decidir:
a) Ilegitimidade substantiva da Autora para reclamar o montante de € 113.640,00;
b) Caso improceda a questão identificada em a) e no que respeita aos pontos 1 e 2 do dispositivo da sentença, apurar da necessidade de descontar as quantias de € 28,120.00 e de € 53.000,00;
c) Injustificação e desproporção da indemnização no valor mensal de € 3.900,00;
d) Redução do valor indemnizatório atribuído para compensação dos danos não patrimoniais.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

«A) No dia 22/07/2017, pelas 18.30 horas, na Rua ..., na passadeira existente em frente à agência bancária Banco 1..., freguesia ..., ..., ocorreu um acidente de viação.
B) Foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-UM, propriedade de FF e conduzido por GG, residente na Rua ..., ..., ..., e a autora/peão AA.
C) O acidente ocorreu durante o dia e o tempo estava com chuviscos.
D) A via, com piso betuminoso, estava molhada em razoável estado de conservação.
E) No local do acidente, a rua tem sentido único em direcção a ..., com inclinação descendente acentuada.
F) Nestas circunstâncias de tempo e lugar, quando a autora atravessava a passadeira existente na Rua ..., ..., (local conhecido como o ...), no sentido poente/nascente, travessia que iniciou após ter constatado que da sua direita não se aproximava qualquer veículo,
G) E que realizou no local destinado ao atravessamento por peões, constituído por barras longitudinais paralelos ao eixo da via, alternados por intervalos regulares – Marca M11, passadeira ainda sinalizada no local por sinal de trânsito vertical H7,
H) e quando já havia percorrido cerca de 3 metros na faixa de rodagem, foi abalroada pelo veículo seguro na ré, que circulava na Rua ... e, ao chegar ao cruzamento existente no local, virou para a esquerda em direção a ....
I) O condutor da viatura “UM” não imobilizou o veículo antes da passadeira, de forma a permitir o atravessamento pela autora, imprimindo ao veículo velocidade superior a 50 km/h,
J) O atropelamento ocorreu na passadeira, sensivelmente a meio da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha ... – ..., por onde circulava a viatura “UM”.
K) Naquela via, antes do local do acidente, e atento o sentido de marcha da viatura “UM”, existe sinalização vertical de limitação de velocidade a 50 km/h, sinalização vertical de aproximação de entroncamento e sinalização vertical de passagem para peões.
L) Para além de se tratar de rua ladeada, em ambos os lados, por edificações, casas de habitação e estabelecimentos comerciais, com saída directa para a via.
M) Como consequência directa e necessária do acidente de viação supra descrito, a autora sofreu lesões, nomeadamente:
. Traumatismo do hemitorax direito,
. Fratura do 3º ao 10º arcos costais direitos e hemotórax de pequeno volume;
. Fratura clavícula direita;
. Traumatismo punho direito;
. Fractura cominutiva distal do radio direito;
. Traumatismo da bacia;
. Fratura ramo ísquio-público direito;
. Traumatismo joelho direito;
. Fratura periprotésica do joelho, região proximal da tíbia com afundamento do prato tibial interno;
. escoriações no corpo.
N) O que motivou que fosse transportada para o Hospital ... onde foi observada por cirurgia Geral e Ortopedia.
O) Foi submetida a redução da fractura do rádio com imobilização com tala gessada antebraquipalmar e a imobilização de fractura periotésica do joelho com tala gessada cruro-podálica e analgesia.
P) Por necessidade de prosseguir o estudo por tomografia computorizada e observação por neurocirurgia, foi transferida em 22 de Julho de 2017, para o Hospital ....
Q) Nesta Unidade de saúde foi observada em cirurgia geral, realizou estudo por TAC (torácico, abdominal, pélvico e crânio encefálico).
R) Estudo computorizado que confirmou todas as fracturas atrás descritas.
S) Manteve-se internada em unidade de cuidados intermédios médicos de serviço de urgência em vigilância de perdas hemáticas e estado respiratório até ao dia 26 de Julho de 2017.
T) Nesta data foi transferida novamente para o Hospital ... para manter seguimento de cuidados.
U) Manteve internamento em enfermaria de Ortopedia do Hospital de Barcelos de 26 de Julho até 14 de Agosto de 2017.
V) Nesta data teve alta com imobilização do membro superior e inferior direito, orientada para a Unidade de Cuidados Continuados ..., onde se encontra atualmente dado o seu estado de saúde.
W) Manteve talas imobilizadoras até 20 de Setembro de 2017.
X) Após remoção das imobilizações gessadas, retomou treino de marcha e de optimização das mobilidades articulares.
Y) Manteve seguimento de consulta de ortopedia até 2 de Março de 2018, data em que teve alta de ortopedia.
Z) Em 20 de Junho de 2018 teve alta clínica.
AA) Nesta data apresentava consolidação das fracturas, sendo capaz de deambular curtas distâncias com ajuda de andarilho.
BB) Manteve os tratamentos fisiátricos diários na unidade de cuidados continuados identificada e seguimento periódico em consulta de medicina física e de reabilitação.
CC) A A. está dependente da ajuda de terceira pessoa, que lhe dá banho, que a leva à casa de banho, que a veste.
DD) A A. sentiu e sente dores.
EE) Apesar dos tratamentos a que se submeteu, a autora [em] consequência directa e necessária do acidente ficou a padecer de:
. Dificuldade em manter ortostatismo (permanecer em pé) por períodos médios de tempo, marcha de base alargada com apoio de duas canadianas se auxiliada na transição ao ortostatismo por terceira pessoa;
. Desequilíbrio na passagem de posição (deitada para sentada, sentada para pé);
. Dificuldade na manipulação e gestos finos, dismorfia do punho direito;
. Sentimentos de tristeza pela impossibilidade de retoma de autonomia prévia;
. Uso de fralda de proteção;
. Queixas álgicas na região proximal da perna direita;
. Défice global de força que contribui para as dificuldades na transição de posição e marcha.
. Dificuldade nos atos de higiene – ficou dependente de ajuda de terceira pessoa para todos os cuidados de higiene – uso de sanita requer auxílio de terceira pessoa;
. Dificuldade em se vestir – requer auxílio de terceira pessoa;
. Não consegue abotoar peças de roupa, trabalhar fechos pequenos, apertar atacadores, vestir calças ou meias.
. Ficou com dificuldade em manipular talheres e recipientes com líquidos;
. Marcha dificultada por perda fácil de equilíbrio, com necessidade de auxiliares de marcha (muletas ou andarilho), uso de corrimão bilateral de apoio para subir e descer escadas;
. Marcha com necessidade de uso de canadianas e terceira pessoa para transição da cadeira de rodas e da cadeira de rodas para o leito. Marcha em escadas, 3 a 4 degraus, possível com ajuda de corrimão duplo.
. Dificuldade em assumir ortostatismo, sentar e deitar no leito com necessidade de ajuda de terceira pessoa para as transições;
. Limitação do movimento de extensão do punho direito, deformidade dorsal do punho e desvio radial do carpo e mão direita;
. Nos membros inferiores apresenta dor a apalpação da região tibial proximal direita.
. Arco de mobilidade do joelho direito de 0-80 graus.
FF) As sequelas referidas acarretam para a demandante uma desvalorização funcional, uma afectação permanente físico-psíquica de 6 pontos.
GG) Actualmente, a A. locomove-se em cadeira de rodas e auxiliada por terceira pessoa.
HH) Estas sequelas incapacitam a demandante para qualquer actividade profissional, desportiva, tarefa diária ou outra.
II) À data do acidente, a demandante tinha 86 anos de idade, era autónoma, reformada, viúva, vivia sozinha em casa arrendada, à qual nunca mais voltou.
JJ) Cuidava do seu aspecto físico.
KK) Realiza diariamente fisioterapia.
LL) Necessita de acompanhamento permanente médico e medicamentoso.
MM) A A. aufere uma pensão de velhice e outra de sobrevivência, cujo montante global atinge o valor mensal médio de 390,40 euros.
NN) Com o que fazia face as todas as suas despesas – alimentação, vestuário, medicação e renda da habitação.
OO) A assistência de que a A. necessita em consequência do acidente tem sido prestada pela Unidade Cuidados Continuados ... de ..., Unidade ..., Rua ..., Quinta ..., ... ..., onde a autora se encontra internada.
PP) Com o custo mensal no valor aproximado de € 3.900,00.
QQ) Este valor foi pago pela ré até ao mês de Fevereiro de 2018, data em que comunicou à instituição de cuidados continuados em causa que não assumia mais o internamento da autora.
RR) As despesas com a unidade de cuidados continuados, à data da instauração da acção, ascendiam a 113.640,00 €
SS) A autora vivia sozinha no momento do acidente, em habitação, arrendada, sita no 1º andar, com degraus de acesso ao seu interior. TT) Sem acesso para pessoas de mobilidade reduzida, concretamente, cadeira de rodas ou muletas.
UU) A habitação era composta por cozinha, sala, um quarto e casa de banho.
VV) A casa de banho, de pequenas dimensões, possui banheira, sem base de chuveiro.
WW) A casa de banho não se encontrava adaptada à dependência da arrendatária/autora, não apresentando espaço de circulação e poliban, que facilitaria a prestação de cuidados de higiene pessoal.
XX) O quarto da autora, de pequena dimensão, dificulta a circulação.
YY) As portas do arrendado são de pequena largura não permitindo a circulação de cadeira de rodas no interior da habitação ou a circulação de outro mecanismo de apoio à mobilidade da autora/sinistrada, no mínimo para aceder entre quarto, a casa de banho e cozinha.
ZZ) A cozinha de pequena dimensão não permite a circulação à volta da mesa com quatro cadeiras existentes.
AAA) A cozinha tem gás de botija e a altura dos móveis impede que a autora a eles consiga aceder, em face da sua limitação.
BBB) A existência de escadas exteriores na habitação torna impossível o acesso e saída da autora.
CCC) A ré Companhia de Seguros L..., através do contrato de seguro, titulado pela apólice nº ...61, válida e eficaz à data do acidente, assumiu a responsabilidade civil perante terceiros pela circulação do veículo matrícula ..-..-UM.»
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«1- A A. foi submetida a intervenções cirúrgicas.
2- A A. está dependente de ajuda médica e de enfermagem para ir à casa de banho, tomar banho e vestir-se.
3- A A. tinha dificuldades em dormir, dado que não encontrava qualquer posição confortável e qualquer movimento lhe era doloroso.
4- As dores, a falta de mobilidade, as dificuldades em dormir, o sono agitado, causam na autora grave angústia, grande sofrimento, desespero, noites e noites sem descanso.
5- Toda esta situação, para além das dores e incómodos, deixa a autora melindrada e até vexada e humilhada por não ser auto-suficiente e depender de terceiros para todos os mais primários actos da vida corrente.
6- Neste período, e actualmente, para além das dores que sentia, a autora estava impedida de movimentar o corpo,
7- o que se agravava nas noites, na cama, tendo passado diversos dias e noites sem dormir, dado que não “tinha posição para dormir” ou tinha que mudar de posição constantemente mercê das dores.
8- As dores causadas pelas sequelas do acidente vão acompanhá-la para o resto da vida e exacerbam-se com as mudanças do tempo.
9- À data do acidente a A. era saudável.
10- Toma, diariamente, ansiolíticos, anti-inflamatórios, relaxantes musculares, antidepressivos, indutores de sono.
11- A A. fazia caminhadas, participava em todos eventos religiosos, excursões.
12- As sequelas referidas acarretam para a A. uma desvalorização funcional, uma afectação permanente físico-psíquica de, pelo menos, 13 pontos.»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto – conclusões 4ª a 18ª

A Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que respeita ao ponto de facto constante da alínea OO) dos factos assentes (conclusão 4ª), o qual tem o seguinte teor:
«OO) A assistência de que a A. necessita em consequência do acidente tem sido prestada pela Unidade Cuidados Continuados ... de ..., Unidade ..., Rua ..., Quinta ..., ... ..., onde a autora se encontra internada.»
Como se lê na página 18 das alegações, «entende a Recorrente que o facto OO) da matéria de facto provada deve ser dado como não provado».
A Recorrente invoca passagens da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC (médico que a Recorrente identifica por CC), HH (sobrinho da Autora) e EE (funcionário da Ré) e o documento nº ...1 junto com a p.i. (“Informação Social” prestada pela Unidade de Cuidados Continuados ...”, da Santa Casa da Misericórdia ...), a informação da clínica médico-cirúrgica de BB (junto na audiência final em 29.09.2022) e os relatórios periciais, bem como o teor do acórdão proferido no procedimento cautelar apenso.
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Partindo dos fundamentos alegados pela Recorrente, procedemos à análise dos articulados, requerimentos, relatórios periciais e documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação da audiência final (registo dos depoimentos de todas as testemunhas e não apenas dos prestados pelas três testemunhas referidas pela Recorrente), incluindo as alegações dos Srs. Advogados.

Revista toda a prova produzida, importa começar por fazer notar que é destituído de relevância probatória, sobre a questão factual relativa à alínea OO) dos factos provados, o acórdão desta Relação proferido no recurso interposto de decisão no procedimento cautelar apenso, o qual é invocado pela Recorrente na conclusão 11ª das alegações da presente apelação. A argumentação esgrimida no acórdão, em sede de aplicação do Direito, nada prova sobre a eventual desnecessidade de permanência da Autora na Unidade de Cuidados Continuados. Além disso, aquele acórdão de 14.01.2021 foi lavrado com base em factos apurados de forma sumária, enquanto que a decisão ora recorrida foi prolatada depois de uma produção probatória ampla e aprofundada, bastando atentar na circunstância de terem sido levadas a cabo duas perícias.
Quanto ao documento junto na sessão de 29.09.2022 da audiência final, verifica-se que constitui uma informação prestada pelo médico Dr. II, alegadamente produzido em 03.01.2018 a pedido da ..., que interveio a solicitação da Ré (segundo o gestor do sinistro, EE, ouvido como testemunha), no qual consta o seguinte, que reproduzimos nos seus precisos termos, incluindo os erros e as deficiências de tratamento/processamento de texto:
«- 2018-01-02 Consulta de Ortopodia – Danos Corporais (JJ)
O acompanhante (sobrinho) refere agora que afinal ainda está em seguimento na consulta de ortopedia do Hospital de Barcelos, tendo tido consulta em Dezembro e novo agendamento para 20/01/2018refere sentir-se melhor, já deambula com andarilhomobilidades do joelho 0 100º bilateralmente, sem dor ecom força grau IV-VNo meu entender já não necessita de cuiddos continuados, necessitando apenas de ajuda depessoaemarco para apos consulta de ortopedia do Hospital».
Com o devido respeito, recorrendo a linguagem corrente, trata-se de uma informação feita “em cima do joelho”, que suscita fundadas dúvidas sobre o seu conteúdo, e que é parcialmente ininteligível.
Desde logo, não se percebe a referência a “JJ”, quando supostamente a consulta respeitaria à Autora. Igualmente incompreensíveis são as menções a “refere agora” e “afinal”. É ininteligível a referência a «marco para apos consulta de ortopedia do Hospital» (o que é que se marca para depois de consulta de ortopedia?)
Depois, não identifica sequer qual o “joelho” a que se refere.
Pior, sem que se saiba se é o direito ou o esquerdo, afirma que as “mobilidades” “do joelho” são de «0 100º bilateralmente». Ora, isso é pouco plausível e mostra-se contrariado pelos relatórios periciais e até o Dr. CC, médico da ..., refere no seu relatório (doc. nº ... da p.i.), que em consulta de 13.04.2018 (no relatório, por erro, este médico referiu que a observação foi em 13.04.2017, data em que nem sequer o atropelamento tinha ainda ocorrido) «Arco de mobilidade do joelho de 90º à esquerda e de 70º à direita»; segundo o mesmo clínico, só em 22.05.2018 é que passou a ter «arco de mobilidade do joelho direito de 0-80º e do joelho esquerdo de 0-95º». Nem sequer à data da consolidação a mobilidade era a referida na informação de 03.01.2018.
Finalmente, a referida informação é imprecisa quando refere que «já deambula com andarilho», pois não refere se tal facto foi presenciado pelo médico (ou se lhe foi dito pelo acompanhante ou pela Autora) e qual o tipo de andarilho (e durante a audiência foram referidos pelo menos dois tipos de andarilhos) e, sobretudo, se precisava de supervisão devido ao risco de queda (e a necessidade de supervisão parece-nos evidente face aos demais elementos de prova, sobretudo os relatórios periciais). O mesmo se diga da afirmada necessidade «apenas de ajuda de pessoa» (sic), ajuda essa cuja natureza e extensão não se refere.
Deste modo a conclusão aí extraída, para mais em 03.01.2018, numa altura em que a Autora ainda estava longe da consolidação das lesões, não merece a mínima credibilidade, sendo frontalmente contrariada pelos demais meios de prova, em especial as perícias.

No que concerne ao invocado documento nº ...1 junto com a p.i., consistente numa “Informação Social” prestada pela Unidade de Cuidados Continuados ...”, da Santa Casa da Misericórdia ..., na sequência de uma visita domiciliária à habitação da Autora, realizada por uma técnica de serviço social (vulgo “assistente social”) e por um enfermeiro, onde a referida técnica descreve o que constataram.
O aludido documento nenhum apoio dá à tese factual defendida pela Ré. Pelo contrário, o conteúdo do documento, o qual está em consonância com o relatado pelas testemunhas KK (sobrinha da Autora), HH (sobrinho da Autora) e DD (diretor técnico da Unidade de Cuidados Continuados ...), demonstra, sem margem para dúvidas, em face das severas limitações que a Autora possui em consequência das lesões e que se mostram confirmadas pelos resultados das duas perícias, que era inviável o seu regresso a casa, designadamente com a assistência de uma pessoa durante 4 horas por dia.

Passando agora à apreciação dos depoimentos das testemunhas, verificamos que EE não tem conhecimento direto dos factos. É um funcionário da Ré, com a função de gestor de processos de sinistros, que se limitou a comentar ou descrever o que no seu entender resulta dos elementos juntos aos autos. Não conhece a Autora, nunca falou com um familiar desta nem se deslocou à casa dela, assim como não possui conhecimentos especiais que o Tribunal não possua sobre a questão factual constante da alínea OO) dos factos provados.
Daí que o seu depoimento não permita afirmar a desnecessidade de assistência por parte da Unidade Cuidados Continuados ... de ....

Invoca a Recorrente o depoimento da testemunha HH, que é sobrinho da Autora, mas é patente que do mesmo não se extrai a conclusão preconizada nas alegações. A testemunha afirmou por diversas vezes, fundamentando as suas respostas, que a sua tia necessita da assistência que lhe é prestada atualmente pela Unidade de Cuidados Continuados. Ao contrário da testemunha EE, a testemunha HH prestou esclarecimentos sobre factos de que tem direto conhecimento e explicou sempre a sua razão de ciência.

Resta o invocado depoimento da testemunha CC, médico ortopedista que, segundo disse (v. gravação a partir de 04:05, da primeira parte do depoimento, ou seja, antes de interrompido para o Exmo. Mandatário da Ré requerer a junção aos autos de um documento), observou a Autora em 25.08.2017, 13.04.2018, 22.05.2018, 20.06.2018 e 30.09.2020. É de recordar que o documento nº ... junto com a petição inicial constitui um relatório elaborado por esta testemunha, o qual foi assiduamente consultado pela testemunha para responder às perguntas que lhe iam sendo feitas.

Apreciado este depoimento, concluímos que o mesmo não convence da desnecessidade da assistência prestada à Autora pela Unidade Cuidados Continuados ... de ....

O depoimento desta testemunha assenta nas seguintes ideias base, as quais também já eram percetíveis no documento nº ... por si elaborado:

a) um inicial otimismo exacerbado na recuperação quase total da Autora;
b) a Autora estava em condições de regressar à sua casa, bastando a reiterada vontade desta e a ajuda prestada por uma terceira pessoa durante quatro horas diárias, sendo duas no início da manhã e duas à noite (ou final da tarde);
c) foram os familiares e a Unidade de Cuidados Continuados que desistiram de incentivar e de preparar a Autora para regressar a casa, optando pela manutenção naquela Unidade;
d) a Autora, durante o ano de 2020, foi acometida de uma infeção pulmonar (também referiu pneumonia) e foi esta doença que lhe agravou o seu estado de saúde e provocou as suas atuais limitações.
Se mais não houvesse, verifica-se que o depoimento é contrariado pelos resultados das duas perícias realizadas nos autos, que só por si desconstroem as linhas gerais defendidas pela testemunha. Só isso já seria suficiente para desconsiderar as conclusões a que a testemunha chega.
Depois, qualquer pessoa isenta que analise o depoimento e o confronte com os elementos objetivos fornecidos pelos documentos e perícias, conclui que era irreal a ideia inicial de que a Autora iria atingir um patamar de recuperação quase total, em face da idade da Autora (o atropelamento foi a 22.07.2017 e a Autora iria fazer 87 anos a 19.10.2017), das suas condições físicas e de saúde à data do acidente e das inúmeras lesões sofridas. Se até uma pessoa não idosa teria dificuldade em recuperar das lesões provocadas pelo atropelamento, por maioria de razão assim sucederia com uma mulher bastante idosa e já muito condicionada pelo seu estado de saúde (v., por exemplo, as próteses que já usava e a necessidade de se locomover com o apoio de uma canadiana). As lesões sofridas só podem ser qualificadas como significativas e de difícil recuperação no concreto circunstancialismo pessoal da Autora: traumatismo do hemitórax direito; fratura do 3º ao 10º arcos costais direitos e hemotórax de pequeno volume; fratura da clavícula direita; traumatismo do punho direito; fratura cominutiva distal do rádio direito; traumatismo da bacia; fratura do ramo isquiopúbico direito; traumatismo do joelho direito; fratura periprotésica do joelho; região proximal da tíbia com afundamento do prato tibial interno; escoriações no corpo.
A testemunha defendeu a tese de que a Autora, logo em 2018, não necessitava de estar na Unidade de Cuidados Continuados e que podia estabelecer-se na sua casa, bastando o apoio diário de uma pessoa indiferenciada durante quatro horas, prestando o serviço durante duas horas de manhã e outras duas à noite/fim da tarde.
O mínimo que se pode dizer é que esta tese não tem qualquer apoio nos elementos dos autos, que diretamente a infirmam. Pior: a testemunha fez a aludida afirmação sem conhecer a casa da Autora e as condições desta, bem como sem falar com qualquer familiar daquela, de modo a perceber o enquadramento e viabilidade do que sugeria. E a triste realidade é que a Autora vivia sozinha antes do acidente e que a sua casa, sita num primeiro andar, possui degraus de acesso ao seu interior (alínea SS) dos factos provados), o que, só por si (a existência de escadas exteriores na habitação), torna impossível o acesso e saída da Autora (BBB) ou a qualquer pessoa com mobilidade reduzida que precise de se locomover com cadeira de rodas ou muletas (TT). A casa de banho não se encontrava adaptada à dependência da Autora, por não apresentar espaço de circulação e poliban, que facilitaria a prestação de cuidados de higiene pessoal (WW). O próprio quarto da Autora, por ser de pequena dimensão, é de difícil circulação (XX). Também as portas da casa são de pequena largura não permitindo a circulação de cadeira de rodas no interior da habitação ou a circulação de outro mecanismo de apoio à mobilidade da Autora, no mínimo para aceder entre o quarto, a casa de banho e a cozinha (YY). Igualmente a cozinha é de pequena dimensão e não permite a circulação à volta da mesa com as quatro cadeiras existentes (ZZ), sendo que essa cozinha tem gás de botija e a altura dos móveis impede que a Autora a eles consiga aceder, em face das suas limitações (AAA).
Mesmo que a casa não possuísse tais condicionantes físicas, o certo é que sempre seria impossível a Autora conseguir viver na sua casa durante as restantes 20 horas em que não teria a ajuda de qualquer pessoa (na tese da testemunha, a ajuda de 3ª pessoa duraria apenas 4 horas por dia). É preciso ter em conta que a Autora está dependente da ajuda de terceira pessoa, que lhe dá banho, que a leva à casa de banho e que a veste (CC); continua a sentir dores (DD) e padece objetivamente de (EE):
- Dificuldade em manter ortostatismo (permanecer em pé) por períodos médios de tempo, marcha de base alargada com apoio de duas canadianas se auxiliada na transição ao ortostatismo por terceira pessoa;
- Desequilíbrio na passagem de posição (deitada para sentada, sentada para em pé);
- Dificuldade na manipulação e gestos finos, dismorfia do punho direito;
- Sentimentos de tristeza pela impossibilidade de retoma de autonomia prévia;
- Uso de fralda de proteção;
- Queixas álgicas na região proximal da perna direita;
- Défice global de força que contribui para as dificuldades na transição de posição e marcha;
- Dificuldade nos atos de higiene – ficou dependente de ajuda de terceira pessoa para todos os cuidados de higiene – uso de sanita requer auxílio de terceira pessoa;
- Dificuldade em se vestir – requer auxílio de terceira pessoa;
- Não consegue abotoar peças de roupa, trabalhar fechos pequenos, apertar atacadores, vestir calças ou meias;
- Ficou com dificuldade em manipular talheres e recipientes com líquidos;
- Marcha dificultada por perda fácil de equilíbrio, com necessidade de auxiliares de marcha (muletas ou andarilho), uso de corrimão bilateral de apoio para subir e descer escadas;
- Marcha com necessidade de uso de canadianas e terceira pessoa para transição da cadeira de rodas e da cadeira de rodas para o leito;
- Marcha em escadas, 3 a 4 degraus, possível com ajuda de corrimão duplo;
- Dificuldade em assumir ortostatismo, sentar e deitar no leito com necessidade de ajuda de terceira pessoa para as transições;
- Limitação do movimento de extensão do punho direito, deformidade dorsal do punho e desvio radial do carpo e mão direita;
- Nos membros inferiores apresenta dor a apalpação da região tibial proximal direita;
- Arco de mobilidade do joelho direito de 0-80 graus.
Em suma, uma pessoa com todas estas limitações (em especial as que enfatizamos a negrito), pura e simplesmente, não consegue estar sozinha numa casa durante 20 horas (basta pensar que no período em que estaria sozinha ficaria impossibilitada de satisfazer as suas necessidades fisiológicas). É de notar que tudo isto, além de se encontrar detalhado mediante prova pericial, resulta dos depoimentos prestados pelos dois sobrinhos da Autora (as testemunhas KK e HH) e pelo diretor técnico da Unidade de Cuidados Continuados ... (a testemunha DD), que conhecem a casa da Autora e diretamente presenciaram as consequências das lesões (o dito diretor técnico em virtude das suas funções que exerce na instituição e as outras duas testemunhas por visitarem a sua tia).

Também o alegado desinteresse na recuperação da Autora, com o objetivo de a manter na Unidade de Cuidados Continuados, e de a infeção pulmonar, contraída em 2020 (v. depoimento da testemunha CC, a partir dos 07:12 minutos da segunda parte da gravação, que a Recorrente denomina como “áudio 2”), ter sido a causa das suas atuais limitações e agravamento do estado de saúde (v. depoimento da testemunha CC, sobretudo a partir dos 07:24 da segunda parte da gravação), não passam de hipóteses sem qualquer sustentação factual.
Por um lado, é de notar que no relatório médico junto à p.i. como documento nº ..., elaborado em Abril de 2019, já consta que a Autora, logo no período em que esteve internada na unidade de cuidados intermédios médicos do serviço de urgência até 26.07.2017 (o atropelamento foi a 22.07.2017), registou «o desenvolvimento de infeção respiratória, tendo iniciado antibioterapia», tendo por TAC pulmonar de 25.07.2017 sido confirmado «derrame plural de moderado volume à direita e pequeno à esquerda», o que já evidenciava a suscetibilidade a infeções pulmonares e esta em concreto não pode ser atribuída à Unidade de Cuidados Continuados. Mas o essencial é que a testemunha DD, diretor técnico da Unidade de Cuidados Continuados ..., confirmou que a Autora teve uma pneumonia, como também teve infeções urinárias, mas nega que isso tenha produzido definitivamente um agravamento do seu estado de saúde ou que constitua causa das suas atuais limitações, o que também é secundado pelos depoimentos das testemunhas HH e KK.
Por outro lado, o alegado desinteresse na recuperação da Autora, seja por que motivo for, é frontalmente contrariado pelos depoimentos das testemunhas KK, HH e DD, sendo este particularmente impressivo pelos concretos elementos que forneceu (v., por exemplo, a partir dos 23:30).
Sobre o grau de dependência da Autora e da necessidade de apoio por terceira pessoa é expressivo o esclarecimento prestado ao relatório pericial da segunda perícia: «(…) à data de consolidação médico-legal das lesões considera-se que ficou dependente para todas as atividades da vida diária não se podendo deslocar de forma autónoma ou executar de forma autónoma nenhuma atividade da vida diária, com exceção da alimentação (ato de comer), pelo que necessita de apoio total de terceira pessoa 24 horas por dia para as atividades básicas como as idas à casa de banho e higiene diária» (semelhante conclusão também já constava do relatório pericial). É esta a objetiva situação da Autora.

Pelas razões expostas, sendo certo que várias outras ainda poderiam ser aduzidas, consideramos não existir erro de julgamento no que respeita à questão factual que consta da alínea OO) dos factos provados. Pelo contrário, subscrevemos inteiramente a apreciação crítica da prova produzida formulada pelo Tribunal recorrido na motivação da decisão sobre a matéria de facto, na parte onde se exarou:
«Tudo conjugado e avaliado criticamente, à luz das regras da experiência comum e critérios de normalidade, concluímos que a tese da R., sustentada num relatório elaborado pela testemunha CC, não convence. Efectivamente, a avaliação realizada por esse médico ortopedista não é confirmada por mais nenhum relatório médico ou pericial junto aos autos, nomeadamente, quanto à questão essencial da capacidade da A. voltar a residir na sua casa, com as caraterísticas que a mesma apresentava, e sem apoio permanente de terceira pessoa. O apoio de terceira pessoa sugerido pela testemunha no relatório em análise, de apenas 4 horas diárias, é completamente afastado por qualquer um dos dois relatórios de perícia de avaliação do dano corporal realizados pelo Gabinete Médico-Legal. A alegada decisão familiar de não regresso da A. à sua residência, apoiada pela unidade de cuidados continuados, quando esse regresso seria possível, quer atentas as características da casa quer considerado o apoio de quatro horas diárias de terceira pessoa, também não foi confirmada por qualquer meio de prova, sendo que a própria testemunha CC admitiu que nunca visitou a casa da A. Quanto à testemunha EE não revelou conhecimento directo dos factos relativos a esta matéria.»

Termos em que se julga improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2. Reapreciação de Direito
2.2.1. Ilegitimidade substantiva – questão a)

Na conclusão 2ª das suas alegações, a Recorrente alega que a «Autora não tem legitimidade substantiva para reclamar o montante de €113.640,00, por resultar dos autos que tal dano não se gerou na sua esfera jurídica, mas na de terceiro, a Unidade de Cuidados Continuados ..., nada podendo obter para si relativamente ao valor dos cuidados médicos realizados por esta entidade.»
O Tribunal recorrido condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 133.640,00 (cento e trinta e três mil, seiscentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora a contar da data da citação. Nesse montante estão incluídos € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, pelo que é relativamente ao remanescente, no montante de € 113.640,00, que a Recorrente suscita a questão da ilegitimidade substantiva da Recorrida para obter o respetivo pagamento.
Essa quantia respeita às «despesas com a unidade de cuidados continuados, [as quais,] à data da instauração da acção, ascendiam a 113.640,00 €».

A noção de legitimidade substantiva está intimamente ligada à ideia de relação jurídica. É, por isso, um conceito de relação. Na lição de Castro Mendes[1], chama-se legitimidade à posição pessoal numa relação existente entre o sujeito e o objeto do negócio, que justifica que o primeiro se ocupe juridicamente do segundo. Na perspetiva do sujeito, exprime a posição pessoal deste nessa relação.
Por conseguinte, os sujeitos da relação jurídica material dispõem de legitimidade substantiva para se ocuparem desta.
Atento o circunscrito objeto do recurso, é irrelevante desenvolvermos esta matéria, no que respeita à titularidade de situações jurídicas, designadamente de situações jurídicas absolutas. Apenas se faz notar que a legitimidade respeita à relação entre o sujeito e o objeto do acto jurídico e consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, pelo sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído. Traduz o poder de disposição atribuído pelo direito substantivo ao autor do acto jurídico.
Apesar da sua natureza substantiva ou material, no âmbito do processo, é apreciada em face de um concreto pedido e da causa de pedir que o fundamenta, pelo que respeita ao mérito da causa, constituindo um requisito de procedência do pedido.
Na perspetiva mais simples de relação jurídica, respeita à efetividade desta. Se o autor, por não ser titular de direito emergente da relação material, não pode pedir a condenação do réu no cumprimento coercivo de determinada obrigação, então este último será absolvido do pedido.

Com recurso aos apontados conceitos, facilmente se verifica que nenhuma relação jurídica se estabeleceu entre a Ré e a Unidade de Cuidados Continuados .... A relação material que existe é entre a dita Unidade e a Autora, sendo que a Recorrente em momento algum alega ter estabelecido uma relação jurídica com a referida prestadora de serviços.
Além disso, aquela instituição presta um serviço à Autora e não à Ré, sendo que esta não é, direta ou indiretamente, beneficiária do serviço.
Mas um exemplo simples ajuda a dissipar quaisquer dúvidas. Suponha-se que a presente ação é julgada improcedente, quem deveria pagar a quantia de € 113.640,00, que é o montante em que importa o serviço prestado à Autora pela Unidade de Cuidados Continuados ...?
Obviamente que a devedora da aludida quantia é a Autora, pois a relação estabeleceu-se entre ela e a referida Unidade. E como o serviço foi prestado, a correspondente retribuição é devida.
Invoca a Recorrente o disposto no artigo 495º, nº 2 do Código Civil (CCiv), respeitante à indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, onde se dispõe: «Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorrerem o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou a assistência da vítima».
É verdade que a aludida disposição atribui a terceiros o direito de serem indemnizados pelo socorro prestado ao lesado ou que tenham contribuído para o seu tratamento ou assistência.
Porém, conforme enfatizam Pires de Lima e Antunes Varela[2] o «preceituado no nº 2 constitui uma excepção, não há regra que apenas manda indemnizar os danos ligados à relação jurídica directamente atingida pela lesão, mas sim à regra de que só o lesado goza do direito de exigir a indemnização. (…) A concessão do direito de indemnização contra o terceiro responsável a todos aqueles que contribuíram para o tratamento ou assistência da vítima não exclui o direito de indemnização que estas pessoas possam ter contra o próprio lesado ou seus herdeiros. Trata-se apenas de reforçar a segurança do seu crédito, através de uma nova responsabilidade.»
Por conseguinte, se o credor das despesas de tratamento ou assistência pode exercer o seu direito de crédito contra o próprio lesado, por o nº 2 do artigo 495º do CCiv consagrar apenas o reforço da segurança do seu crédito, então obviamente que o lesado não perde o direito de demandar o terceiro responsável pela indemnização. Dito de outro modo, o nº 2 do artigo 495º do CCiv não afasta o direito de o lesado exigir a indemnização ao responsável para posteriormente solver a sua dívida perante o credor das despesas de tratamento ou assistência; apenas confere ao credor o direito de demandar diretamente o responsável, em vez do lesado. É uma nova responsabilidade que não afasta a emergente da relação jurídica original.
Acresce que no caso vertente a intervenção da Unidade de Cuidados Continuados ... foi solicitada pela Autora (não é propriamente uma situação de prestação de socorro, tratamento e assistência sem base contratual ou sem ser solicitada), no quadro de uma relação jurídica entre ambas estabelecida, pela que há um direto nexo entre os serviços prestados por aquela Unidade e a obrigação de pagamento da respetiva retribuição a cargo da Autora. A devedora de tal quantia perante a referida instituição é a Autora, a qual demanda a Ré enquanto responsável civil.

Em conclusão: a Autora dispõe de legitimidade substantiva para exigir da Ré, responsável, a quantia de € 113.640,00.
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2.2.2. Desconto de quantias já pagas pela Ré – questão b)

Na conclusão 3ª das suas alegações, a Recorrente sustenta que é «necessário descontar a quantia de €28,120.00 já liquidada, pela Recorrente, diretamente à Unidade de Cuidados Continuados, assim como, o valor de €53.000,00, liquidados diretamente à A».

Compulsados os autos, verifica-se, em primeiro lugar, que a Recorrente não especifica onde se encontram documentados os pagamentos ora alegados.
Em segundo lugar, a Ré não alegou na contestação ter efetuado qualquer pagamento.
Em terceiro lugar, verifica-se que em momento algum a Autora produziu uma confissão sobre tais pagamentos.
Em quarto lugar, sendo o pagamento um facto extintivo do direito invocado pela Autora e podendo tal facto ser deduzido no processo através de articulado superveniente (art. 588º, nº 1, do CPC), constatamos que nenhum articulado superveniente foi oferecido nos autos.
Em quinto lugar, não consta da matéria de facto qualquer referência a um pagamento realizado pela Ré, nem a Recorrente impugna a decisão da matéria de facto sobre tal matéria.

Pelo exposto, inexiste fundamento para deduzir aos montantes indemnizatórios quantias cujo pagamento não foi demonstrado.
Termos em que improcede a questão suscitada pela Recorrente.
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2.2.3. Da injustificação e desproporção da indemnização no valor mensal de € 3.900,00 – questão c)

No ponto 2 do dispositivo da sentença decidiu-se «condenar a R. a pagar à A. a quantia mensal de 3.900,00 € (três mil e novecentos euros), contados desde Julho de 2020 até à presente data, correspondentes aos custos com internamento, cuidados médicos e de reabilitação da A.». O ponto 1 do mesmo dispositivo, no que respeita ao período precedente, também contempla a aludida quantia mensal.
Nas conclusões 19ª e 20ª das suas alegações a Recorrente afirma a sua discordância relativamente a esse valor, alegando que é «manifestamente exagerado e desproporcional, ainda para mais, quando a Recorrente conseguia, através dos seus serviços médicos, prestar assistência 24 [horas por dia] de terceira pessoa à A., em sua própria casa, por metade do preço, tendo em conta as declarações da testemunha EE transcritas nas alegações». Sustenta que tal valor «não pode ser oponível à Recorrente, quando esta consegue prestar os mesmos serviços de assistência 24 horas a terceira pessoa, incluindo tratamentos médicos, pelo valor de €1.700,00».

Já foi apreciada anteriormente, no âmbito do recurso da matéria de facto, a questão da necessidade da assistência que tem vindo a ser prestada à Autora pela .... Está demonstrada a prestação da aludida assistência e a necessidade da mesma – v. al. OO) dos factos assentes. Provou-se, como se vê na alínea PP) da factualidade apurada, que essa assistência tem um custo mensal de € 3.900,00.
Acresce que não está demonstrado que a Ré consiga, através dos seus serviços médicos, prestar assistência à Autora durante 24 horas por dia, mediante ajuda de terceira pessoa, «por metade do preço» ou «pelo valor de €1.700,00». Aliás, a Ré nem sequer alegou tal facto na contestação.
Por isso, a questão suscitada pela Recorrente, seja na vertente da desnecessidade da assistência ou do exagero do seu valor, não tem qualquer suporte factual.
Porém, inserida nas conclusões referentes à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, concretamente na 9ª, a Recorrente afirma que «[n]ão existe qualquer dano futuro relacionados com a assistência na unidade de cuidados continuados», pelo que importa apreciar este argumento.

Em conformidade com o disposto no artigo 483º, nº 1, do CCiv, a Recorrente, em virtude do contrato de seguro, está obrigada «a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», ou seja, reconstituindo a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º do CCiv). Portanto, a obrigação de indemnização abrange tudo quanto for necessário para repor o lesado na situação em que ele estaria se não tivesse ocorrido o evento danoso.
Se ocorreu o evento lesivo e este causou um dano patrimonial, ainda que futuro, o responsável civil está obrigado a indemnizar esse dano. Isto porque, nos termos do artigo 564º, nº 2, do CCiv, «na fixação da indemnização pode o tribunal atender nos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior».
Por conseguinte, para poderem ser indemnizados, a lei apenas exige que os danos futuros sejam previsíveis, sendo que a sua determinabilidade ou averiguação do valor exato dos danos já é um problema distinto, para o qual a lei também tem solução.
No caso em apreço, está demonstrado que a Autora, desde o sinistro, em virtude das lesões sofridas (discriminadas em M) e das suas sequelas (especificadas em EE) está dependente de terceira pessoa para as tarefas elementares e básicas do dia a dia: é essa pessoa que lhe dá banho, que a leva à casa de banho, que a veste (CC), sendo que precisa também desse apoio para se alimentar, dada a sua dificuldade em manipular talheres e recipientes com líquidos (v. EE), e para todas as situações de transição entre estados (v. novamente EE). Necessita, para se locomover em cadeira de rodas, do auxílio de terceira pessoa (GG). Sabe-se, ainda, que as sequelas incapacitam a demandante para qualquer atividade profissional, desportiva, tarefa diária ou outra (HH) e que necessita de acompanhamento permanente médico e medicamentoso (LL).
No nosso entender, a necessidade de assistência permanente por uma terceira pessoa, com o âmbito referido, consubstancia um dano patrimonial autónomo que resulta da verificação do evento lesivo. Sendo uma situação definitiva, em que nenhuma melhoria é expectável, atenta a natureza das lesões, as suas repercussões permanentes e a idade da Autora (tem atualmente 92 anos de idade e perfaz 93 a 19.10.2023), é perfeitamente previsível que tenha futuramente de despender quantia monetária para assegurar a assistência de que necessita. Daí que a Recorrida tenha direito a obter a respetiva reparação.
Trata-se de um dano futuro, previsível e carecido de ser indemnizado. E sabe-se qual o seu exato valor: € 3.900,00 por mês (PP). É esse o valor que tem vindo a ser cobrado pela instituição que lhe presta a assistência de que carece (assistência essa que irá manter-se previsivelmente durante todo o resto da sua vida), e que corresponde também ao valor que lhe será exigido no futuro.
Daí que nos pareça inteiramente curial o juízo valorativo formulado na sentença: «considerando que a ajuda de terceira pessoa em questão se destina de forma permanente às actividades da vida, afigura-se-nos proporcional e adequado fixar o valor os 3.900 euros mensais que têm vindo a ser cobrados, em média, pela unidade de cuidados continuados. Esse montante deverá ser entregue pela R. à A., mensalmente, e até ao fim da vida desta».
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre esta matéria.
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2.2.4. Redução da indemnização por danos não patrimoniais – questão d)

A Recorrente, no âmbito do seu recurso, defende que deve ser reduzida a compensação pelos danos não patrimoniais, por o valor fixado na sentença a esse título, no montante € 20.000,00, «ser manifestamente atentador das regras de equidade e contrário a algumas decisões dos tribunais superiores para casos semelhantes, cujos exemplos constam das alegações» (conclusão 21ª). Não indica qual o concreto valor que reputa como adequado.
Vejamos se existem razões substanciais para reduzir aquele quantum indemnizatório
Segundo o nº 1 do artigo 496º do CCiv., são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Cumprido o critério da gravidade dos danos, o montante da indemnização, nos termos do nº 4 do artigo 496º, deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
Os danos não patrimoniais, por natureza insuscetíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a beleza, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação, da afetação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação. Na feliz síntese feita no acórdão do STJ de 15.01.2002 (proc. 4048/01 - 2ª Secção), os componentes mais importantes do dano não patrimonial, são os seguintes: o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissio­nal, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” - em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valo­riza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.
Como os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é, trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer. O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória.
Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjetivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adotados na jurisprudência em casos análogos[3].

Merecem particular relevo, para a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais:
(i) as concretas lesões sofridas pela Autora no acidente (traumatismo do hemitórax direito; fratura do 3º ao 10º arcos costais direitos e hemotórax de pequeno volume; fratura da clavícula direita; traumatismo do punho direito; fratura cominutiva distal do rádio direito; traumatismo da bacia; fratura do ramo isquiopúbico direito; traumatismo do joelho direito; fratura periprotésica do joelho; região proximal da tíbia com afundamento do prato tibial interno; escoriações no corpo);
(ii) os exames médicos e tratamentos a que foi submetida, assim como as deslocações que teve de fazer para o efeito (v. os pontos N) a BB) da matéria de facto);
(iii) a demora da consolidação médico-legal das lesões, verificada em 20.06.2018 (o acidente ocorreu em 22.07.2017);
(iv) as sequelas de que ficou a padecer (descritas em EE);
(v) o défice da integridade física e psíquica de 6 pontos de que ficou a padecer permanentemente em consequência das sequelas das lesões;
(vi) a circunstância de as sequelas incapacitarem a Autora para desenvolver qualquer atividade profissional, desportiva, tarefa diária ou outra (HH);
(vii) a dependência de terceira pessoa para todas as atividades da vida diária;
(viii) as dores físicas sofridas pela Autora (v. DD, cujo quantum doloris foi fixado na segunda perícia no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente, sendo que na primeira havia sido fixada no grau 6);
(ix) a necessidade de acompanhamento permanente médico e medicamentoso;
(x) a idade da Autora à data do acidente, que era de 86 anos (nasceu a .../.../1930).

O quadro factual descrito não deixa dúvidas que estamos perante danos de natureza não patrimonial que justificam uma indemnização, devendo ainda relevar-se que a Autora em nada contribuiu para o acidente, que ficou a dever-se à atuação descuidada e imprudente da condutora do veículo seguro na Ré, que atropelou a lesada quando esta procedia ao atravessamento da rua em plena passadeira e dentro do núcleo urbano de uma localidade. O elevado grau de culpa da lesante, numa situação como a dos autos, não pode deixar de refletir-se no montante da compensação a arbitrar à lesada, sendo certo que a Ré responde na medida dessa culpa (arts. 496º, nº 4 e 494º do CCiv.).
Segundo julgamos, o quantum indemnizatório fixado na 1ª instância está em linha com os valores habitualmente seguidos pelos Tribunais superiores, em especial pelo Supremo Tribunal de Justiça, em casos com os quais se pode estabelecer uma comparação relevante. Embora não tenhamos encontrado decisões publicadas versando casos inteiramente idênticos ao da Autora, para situações parecidas ou comparáveis com a dos autos ou que, pelo menos, nos permitem estabelecer algum paralelismo, apontam-se os seguintes exemplos atuais (arestos já da presente década) de valorização de danos não patrimoniais pelo Supremo Tribunal de Justiça, todos disponíveis em www.dgsi.pt:
- O acórdão do STJ de 16.12.2020, proferido no processo 6295/15.8T8SNT.L1.S1, relatado Maria da Graça Trigo, confirmou a indemnização de € 25.000,00 fixada na Relação a um sinistrado em acidente de viação que à data do acidente tinha 43 anos, que sofreu fratura da tíbia e do perónio, com dores de grau 5 numa escala de 7, dano estético de 4, 17 meses de incapacidade (total e parcial), tendo ficado afetado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos.
- O acórdão do STJ de 25.02.2021, proferido no processo 3014/14.0T8GMR.G1.S1, relatado por Bernardo Domingos, confirmou a indemnização de € 25.000,00 fixada na Relação a um autor que em consequência de acidente de viação sofreu um traumatismo crânio-encefálico com ferida na testa e lesão no tornozelo esquerdo, subsistindo, mesmo após intervenção cirúrgica, cicatriz na testa e a falta de total recuperação do tornozelo; teve um período de incapacidade temporária absoluta de 113 (dias) e 194 (dias) de incapacidade temporária parcial; foi-lhe fixada uma incapacidade permanente parcial de 6% que lhe afeta as suas capacidades gerais físico-psíquicas, exigindo-lhe maior esforço na execução das suas atividades pessoais e profissionais; quantum doloris de 5 pontos numa escala de 7; 4 pontos de dano estético; afetado nas suas atividades desportivas e de lazer em 2 pontos; sofreu, no momento do acidente, a angústia de vir a morrer e tem desgosto de ter ficado com a cicatriz na testa, o que o inibe, socialmente.
- O acórdão do STJ de 11.03.2021, proferido no processo 1330/17.8T8PVZ.P1.S1, relatado por Bernardo Domingos, fixou em € 32.500,00 a indemnização por danos patrimoniais a um sinistrado em acidente de viação ocorrido em 01.09.2013, altura em que tinha 38 anos de idade, que sofreu traumatismo do joelho direito por compressão, foi sujeito a 5 intervenções cirúrgicas, esteve internado em hospital durante 126 dias, as lesões sofridas provocaram-lhe incapacidade total durante 480 dias e parcial de 202 dias, durante o período de tratamento sentiu um quantum doloris de grau 5 numa escala de gravidade crescente de 7 graus, as sequelas – compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual mas com esforços acrescidos – determinaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, uma repercussão nas atividades desportivas e de lazer de grau 1, e as cicatrizes representam um dano estético de grau 2.
- No acórdão do STJ de 19.10.2021, proferido no processo 2601/19.4T8BRG.G1.S1, relatado por Manuel Capelo, considerou-se que respeita os imperativos de equidade uma indemnização por danos morais no montante de € 45.000,00,00, de acordo com a jurisprudência e seu sentido evolutivo, que atendeu à circunstância de o autor, de 44 anos de idade, pessoa saudável, que por força do acidente esteve dois anos de baixa médica dos quais 22 dias em internamento hospitalar contínuo, sofreu dores quantificáveis no grau 5, que ao nível do pé/tornozelo direito se manterão para o resto da vida, um dano estético quantificado no grau 3, e ficou com um défice funcional permanente de 15 pontos não mais deixando de claudicar.
- O acórdão do STJ de 23.09.2021, proferido no processo 162/19.3T8VRS.E1.S1, relatado por Catarina Serra, manteve a indemnização fixada pelo Tribunal da Relação em € 10.000,00 a um autor de 64 anos de idade à data do acidente de viação, reformado, que não necessitou de ser internado nem ficou dependente da ajuda de terceiros, que sofreu fraturas da clavícula esquerda e da 7ª costela esquerda, com contusão do tórax e da coluna vertebral, do que resultou encurtamento de três centímetros do ombro esquerdo e artrose na articulação do ombro, e ficou a padecer de dificuldade em levantar pesos e, ocasionalmente, dores e sensibilidade na zona da lesão.
- No acórdão do STJ de 27.04.2022, proferido no processo 820/20.0T8PDL.L1.S1, relatado por Maria Olinda Garcia, concluiu-se que «encontra-se dentro dos padrões indemnizatórios, jurisprudencialmente seguidos em casos equiparáveis, a condenação da ré seguradora a pagar uma compensação de € 15.000,00 ao autor lesado que, à data do atropelamento, tinha 59 anos de idade, foi submetido a intervenção cirúrgica e a múltiplos tratamentos de fisioterapia, ficou com reduzida mobilidade do ombro e braço esquerdos; sofreu um quantum doloris fixado em 4 numa escala de 7; e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8%».
- No acórdão do STJ de 29.11.2022, proferido no processo 9957/19.7T8VNG.P1.S1, relatado por António Magalhães, numa situação que não é mais grave do que a da Autora nestes autos, considerou-se ajustada a indemnização de € 20 000,00 por danos não patrimoniais, atribuída a sinistrada com 44 anos de idade à data do acidente, ocorrido em novembro de 2018, «que, em resultado do embate, sofreu uma luxação lombar, padeceu de uma dor quantificável num grau 3, numa escala até 7 (quantum doloris), que, para tratamento da lesão, realizou 17 consultas de ortopedia e de psiquiatria e 75 sessões de fisioterapia, que esteve privada da utilização de uma viatura pessoal durante cerca de um mês, que ficou muito assustada com o embate, tendo passado a sofrer de ansiedade, que ficou com medo de conduzir e com dificuldade acrescida para realizar as suas atividades habituais, como algumas tarefas domésticas, yoga, caminhadas e corridas, levantar pesos ou conduzir durante muito tempo».

Estes exemplos, entre os quais figuram situações mais graves e outras menos graves do que a da Autora, permitem, ao fazer a comparação, concluir que o valor fixado pelo Tribunal recorrido a título da indemnização devida à Autora pelos danos de natureza não patrimonial se mostra equilibrada e conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pelo que será de manter o decidido.
Não pode perder-se de vista que a determinação da compensação por danos não patrimoniais faz-se segundo juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum, ou seja, ponderando as particularidades e especificidades do caso concreto. Desde que o julgador se tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, o juízo prudencial e casuístico por ele emitido deve ser mantido. Só em casos em que o critério aplicado se afasta, de modo substancial e injustificado, dos padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, é que se justifica a alteração.

Pelo exposto, improcede totalmente a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 18.05.2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos


[1] Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, pág. 39.
[2] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 498.
[3] Deve considerar-se preponderante a jurisprudência do STJ, dada a natureza da sua intervenção e a função de uniformização da jurisprudência.