ARTIGO 152º-B DO CP
NORMA PENAL EM BRANCO
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
Sumário

I - Atendendo à sua configuração, é amplamente reconhecido que o tipo penal previsto e punido no 152º-B do CP assume a natureza de norma penal em branco, uma vez que, como norma primária e sancionadora, remete parte da sua concretização para outra norma, a norma complementar ou integradora, com fonte normativa inferior.
II - Relativamente à questão de saber se a norma penal em branco assegura a existência de suficiente garantia de certeza e segurança quanto aos factos que constituem o tipo legal de crime – questão que estritamente decorre do princípio da tipicidade – importa sobretudo que a descrição da matéria proibida e de todos os demais requisitos da incriminação, seja consignada de forma a que sejam determináveis os comportamentos proibidos e sancionados.
III - Não contendo a acusação as normas legais que densificam e delimitam o ilícito penal p. e p. no artigo 152º-B do CP que nele se imputa aos arguidos, indicando apenas normas programáticas relativas à segurança no trabalho, de conteúdo absolutamente genérico, que não concretizam as condutas que deveriam ter sido observadas pelos arguidos, a mesma padece de um vício estrutural, consubstanciado na falta de indicação das normas legais aplicáveis e dos factos que, uma vez provados, determinariam a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança.
IV - Tal deficiência encontra-se especialmente prevista na norma que respeita aos respetivos requisitos formais da acusação, aí sendo cominada com o vício da nulidade – artigo 283.º, nº 3 alíneas b) e d) do CPP – nulidade que deverá ser declarada em sede de decisão instrutória, nos termos previstos pelo artigo 308º, nº 3 do CPP.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de instrução que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º Processo n.º 290/20.2GBMMN, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos AA , filho de BB e de CC, natural da freguesia de …, …, onde nasceu em …1982, divorciado, empresário, titular do número de identificação civil …, residente na …, … e DD, Lda., pessoa coletiva n.º…, com sede na …, …, que se encontravam acusados pela prática do crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo artigo 152.º- B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) e 11, n.º 2, alínea a) do Código Penal, em articulação com os artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, 8, artigo 18.º, n.º 1, 19.º, n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 4 e 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro.

*

Inconformados com tal decisão, vieram o Ministério Público e o assistente interpor recursos da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

Recurso interposto pelo Ministério Público

“A. Nos termos do preceituado no artigo 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, o despacho de pronúncia ou não pronúncia deverá conter, sob pena de nulidade, a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança.

B. O despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito, com força vinculativa dentro e fora do processo onde foi proferida, constituindo caso julgado, pelo que deverão ser descritos os factos que não se consideram suficientemente indiciados.

C. Não se extrai da decisão recorrida qual a posição assumida pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal quanto aos factos descritos nos pontos 17 e 18 da acusação, i.e., se os mesmos se encontravam indiciados ou não indiciados.

D. Deveria o Exmo. Juiz de Instrução Criminal ter tomado posição expressa sobre os pontos 17 e 18 da acusação. Ao não o fazer, incorreu em nulidade, que se invoca para todos os efeitos legais.

E. Destarte, deverá o despacho de não pronúncia ora recorrido ser revogado, o qual deverá ser substituído por outro que supra a omissão na apontada falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao despacho de acusação.

F. Mais acresce que quanto ao ponto 16 da acusação, pode ler-se no despacho de não pronúncia que "Por outro lado, donde se extrai que a tal actividade de carga e descarga de veículos, não era adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz? "

G. A resposta a esta questão encontra-se vertida do elemento probatório indicado na acusação e que corresponde ao relatório pericial, concretamente na resposta ao quesito 4, ponto e) e quesito 5, ponto f).

H. Levando em consideração que o relatório pericial se pronuncia expressamente sobre a desadequação de um trabalhador com a categoria de aprendiz de mecânico realizar a tarefa de carga/descarga de veículos, deveria tal ponto da acusação ter sido considerado indiciado, uma vez que do despacho de não pronúncia não resulta qual a posição do Exmo. Juiz de Instrução Criminal, no sentido de afastar o juízo técnico-científico do perito.

I. O despacho de não pronúncia considerou que a integração fáctico-normativa da acusação era insuficiente por entender que a mesma peça processual não mencionava como deveria ter o empregador procedido para evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde do trabalhador e por omitir as disposições legais violadas.

J. Impõe-se ao Ministério Público, titular da ação penal, a descrição da factualidade que determina a aplicação, a um sujeito determinado, de uma pena ou medida de segurança e identificar a que norma se subsume o comportamento imputado, indicação essa que tem que ser feita de forma clara e inteligível.

K. A acusação deverá conter, sob pena de nulidade, a narração dos factos essenciais e a indicação das normas aplicáveis, pois esta é a peça do processo que vai fixar os poderes de cognição do tribunal, sendo a factualidade nela descrita, considerando-se indiciada, que será levada a julgamento.

L. O artigo 7. 0 da acusação descreve outros elementos que deveriam ter sido contemplados pelos arguidos, além das cintas já existentes, para a actividade de descarga de veículos — necessidade de outra protecção para impedir deslizamento, necessidade de utilização de capacete e luvas de protecção do trabalhador.

M. Os artigos 12.º a 26.º descrevem todos os factos omissivos imputados aos arguidos.

N. Da conjugação destes artigos da acusação, retiram-se as medidas que deveriam ter sido tomadas pelos arguidos e que não foram observadas, sendo que em sede de dispositivo, aos arguidos foram imputadas as violações das disposições legais constantes dos artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, 8, artigo 18. º, n.º 1 , 19.º, n.º 1 , a), n.º 2, a), n.º 3 e nº 4 e 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro.

O. Quanto ao Decreto-Lei n.º 50/2005 de 25 de Fevereiro, não se nos afigura que o facto de a acusação não mencionar este diploma se traduza na alegada insuficiência, tal como concluído pela decisão de recorrida, porquanto foram apontadas, de forma suficientemente inteligível, quais as normas concretamente violadas e previstas quer no Código do Trabalho, quer na Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro, enformando este último diploma legal o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho.

P. Por sua vez, os artigos 19.º, 20.º e 22.º, tal como configurados pelo Ministério Público, dizem respeito ao elemento subjectivo do ilícito imputado, o qual se nos afigura encontrar-se suficientemente descrito, não sendo exigível pelo artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal a descrição/indicação neste segmento, das normas concretamente violadas.

Q. Na acusação deduzida pelo Ministério Público, foram indicados no corpo da acusação todos os factos omitidos pelos arguidos - omissão dos deveres legais exigíveis em termos de condições de segurança no trabalho - e no dispositivo final indicadas as normas legais inobservadas e por isso violadas, concluindo pela qualificação jurídica dos factos e imputação aos arguidos do crime de violação de regras de segurança.

R. Assim, afigura-se-nos que os mencionados artigos 19.º, 20º e 22º da acusação não violam o disposto no artigo 283º, 3, c,) do Código de Processo Penal, pelo que não deveria ter sido declarada a nulidade dos pontos 19.º, 20.º e 22.º da acusação.

S. Por fim, afigura-se-nos que existem indícios suficientes para concluir pela verificação do nexo de causalidade entre a omissão dos deveres dos arguidos e a produção do acidente.

T. No despacho ora recorrido pode ler-se o seguinte:

"Mesmo estando assente que não deu formação ao sinistrado, a conclusão pericial de que não é possível afirmar peremptoriamente que a inexistência de avaliação de riscos profissionais para a actividade de carregamento e descarregamento de camiões é causa adequada à verificação do acidente, beneficia a posição do arguido, conjugada com a circunstância de inexistirem testemunhas presenciais dos factos em apreço.

Conforme ao requerimento de abertura de instrução, não se demonstra o nexo causal entre o acidente e o incumprimento desse referido dever geral de formação, ou seja, não existe o competente nexo entre a formação de segurança e saúde no trabalho e o acidente sofrido pelo ofendido. Tanto mais que esta conclusão é compatível com as regras de experiência comum aplicáveis à situação em apreço, porquanto o sinistrado colocou-se, e salienta-se, debaixo da viatura; área segundo a testemunha EE: "O local do camião onde FF se encontrava, designadamente, na parte de baixo da viatura, é o local mais perigoso onde nunca se deve estar, Não sabe das razões para que o mesmo se tenha colocado naquele local.

U. Afigura-se-nos, salvo o devido respeito por posição diversa, que o Exmo. Juiz de Instrução Criminal não poderia concluir no sentido que ficou transcrito, porquanto o relatório pericial encerra a conclusão de verificação de um risco de lesão como consequência da acção omissiva dos arguidos.

V. O relatório pericial não excluiu a ocorrência do acidente. A sua conclusão no sentido de "não ser possível afirmar de uma forma peremptória... " jamais poderá conduzir à interpretação vertida no despacho de não pronúncia.

W. Como resposta ao quesito 4, o relatório pericial concluiu que a actividade de carga/descarga de veículos era uma actividade que apresentava elevada perigosidade, com risco de esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com objectos, de risco alto, categoria do dano correspondente a catastrófico ou sério, com classe de probabilidade provável, e não adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz, sem supervisão.

X. Como resposta ao quesito 5, o relatório pericial confirma a inexistência de previsão da actividade de carga/descarga de veículos automóveis na avaliação de riscos em vigor na empresa e quais os procedimentos que deveriam ter sido adoptados.

Y. Como resposta ao quesito 7, pode ler-se no relatório pericial que "Pode sim dizer-se que a existência da dita avaliação de riscos contribuiria para a redução da probabilidade de ocorrência desse mesmo acidente."

Z. O julgador apenas deve decidir a favor do arguido se, face à prova, tiver dúvidas sobre qualquer facto, mas tal dúvida tem que ser irredutível, insanável.

Perante a prova elencada na acusação, o Exmo. Juiz de Instrução Criminal não podia ter ficado com quaisquer dúvidas que justificassem o recurso ao princípio in dubio pro reo, pelo menos da forma como fundamenta a sua posição.

Como se concluiu em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.05.2020 (proc. n.º 6359/17.3T9VNG.Pl, acessível em www.dgsi.pt): "demonstrado que um facto (ainda que omissivo) foi uma condição do dano (no caso, o incumprimento de regras de segurança), esse facto só deixa de ser causa adequada se for de todo em todo indiferente, na ordem natural das coisas, para a produção do dano. Ou, dito de outro modo, nas palavras de ANTUNES VARELA (ob., cit., p. 894) "só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais (que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito) repugnará considerar o facto (ilícito) imputável ao devedor ou agente como causa adequada do dano".

cc. As omissões imputadas aos arguidos e constantes do despacho de acusação, bem como as conclusões do relatório pericial não são indiferentes para a produção do dano. Pelo contrário, as omissões imputadas aos arguidos contribuíram para a verificação do dano.

DD. Face ao conteúdo do relatório pericial que se demonstrou supra, afigura-se-nos que existem indícios suficientes para se concluir pelo nexo causal entre o acidente e o incumprimento dos deveres de promoção da segurança e saúde dos trabalhadores que recaíam sobre os arguidos, e que o Exmo. Juiz de Instrução Criminal deveria ter concluído nesse sentido.

EE. Na decisão recorrida questiona-se a circunstância de o ofendido se ter colocado no local mais perigoso e onde nunca se deveria ter colocado (i.e. debaixo da viatura).

FF. Face a toda a factualidade imputada aos arguidos e das prova pericial junta aos autos, segundo as regras de experiência comum subsumidas ao caso em análise, tal atitude poderá ter efectivamente resultado da inexperiência do trabalhador associada igualmente à categoria profissional — articulada com a circunstância de os arguidos não terem observado as normas da promoção da segurança e saúde no trabalho.

Sendo o ofendido desconhecedor dos riscos associados à função que desempenhou — por omissão da sua previsão, omissão da sua comunicação e omissão de formação adequada para o efeito — deveria o Exmo. Juiz de Instrução Criminal ter concluído, também por via deste raciocínio, encontrarem-se verificados indícios do nexo de causalidade entre a omissão de tais deveres e a verificação do dano.

Tal conclusão seria perfeitamente compatível com as regras da experiência comum.

II. Não se compreende a afirmação plasmada na decisão de não pronúncia quando se conclui que "Além do mais não permitem os elementos indiciários apurados afirmar que a sociedade arguida e o seu representante tivessem incumbido FF das funções em causa, nem tal é dito pelo Ministério Público,

JJ. Ficou indiciado o ponto 5 e 6 da acusação.

KK. A testemunha GG, referiu que a tarefa de carga/descarga de veículos se encontravam afectas à actividade dos mecânicos da sociedade arguida.

LL. A testemunha EE, mecânico, referiu, em sede de inquirição, que "Não lhe são dadas ordens em concreto para tal situação. Ou seja, a viatura chega e o depoente vai logo tratar da mesma."

MM. De acordo com as regras de experiência comum, a incumbência das tarefas resultam da própria função desempenhada, em virtude do contrato de trabalho celebrado.

NN O Ministério Público indicou de forma suficiente— em concreto o ponto 3, 5 e 6 indiciados — as tarefas que cabiam ao trabalhador FF, resultando as mesmas do contrato de trabalho, indicado como prova da acusação, e do qual decorre a categoria de aprendiz de mecânico, sendo as funções a desempenhar as que lhe fossem viessem a ser determinadas pela sua entidade empregadora.

00. Não se compreende igualmente qual a fundamentação associada à conclusão vertida no despacho de não pronúncia, quando se menciona que "E seguro que tal evento verificou-se por FF, ter decidido, por sua exclusiva iniciativa, realizar o descarregamento nos termos referidos".

PP. O Exmo. Juiz de Instrução Criminal também não indica, comprovadamente, de onde retirou tal conclusão, não tendo sido certamente do depoimento da testemunha EE, porquanto o que esta testemunha afirmou foi "O local do camião onde FF se encontrava, designadamente, na parte de baixo da viatura, é o local mais perigoso onde nunca se deve estar. Não sabe das razões para que o mesmo se tenha colocado naquele local. 'J . Em momento algum, esta testemunha ou qualquer outra testemunha, mencionou que o ofendido decidiu, por sua exclusiva iniciativa realizar, o descarregamento do veículo.

QQ. Assim, por tudo quanto exposto deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá o despacho de não pronuncia ser revogado e proferido despacho de pronúncia.”.

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos pela prática do um crime de violação de regras de segurança pelo qual vêm acusados.

Recurso interposto pelo assistente

“a) - Decorre de toda a prova pericial, documental e testemunhal junta aos autos e para a qual se remete e também do Despacho recorrido, que se considera:

"suficientemente indiciado, com interesse para a decisão, que no dia 9 de Novembro de 2020, durante a operação de descarregamento de uma viatura ligeira de passageiros utilizada em competição, na …, em…, dentro de um camião, resultou um acidente que provocou a morte a FF, e constatou-se que a sociedade arguida não procedeu à identificação, avaliação dos perigos e riscos a que se expõem os trabalhadores nas operações de descarregamento e carregamento de viaturas.

b) - Consta do Auto de inquirição junto aos autos fls. 122 a 124 segundo as declarações do trabalhador EE que "No dia dos factos, o depoente tinha como função tratar da viatura que vinha dentro do camião.(...)" e que " (...) No dia dos factos estava acompanhado pelo FF. "

c) - Também resulta da auto da GNR elaborado, em 2020/1 1/09, pelo Cabo HH, número …, que "O participante através de uma testemunha constatou que a viatura se encontrava no interior de um camião para ser descarregado um veículo todo terreno de desporto, e que ao

despertar as cintas de retenção que prendem o veículo todo terreno, e ao desapertar a última cinta, por motivos desconhecidos o veículo descaiu

d) - E resulta do Inquérito de acidente de trabalho, n. …, de 2020/1 1/09, realizado pela Autoridade para as Condições do Trabalho e que também se encontra junto aos autos e para o qual se remete, que em auto de declarações o trabalhador EE disse que "procedia à operação de descarregar o veículo sendo auxiliado pelo sinistrado FF.

Refere o trabalhador EE que, quando começaram a operação, se movimentou em redor do camião, procedendo a tarefas preparatórias de descarga do carro, que se iniciam descendo a plataforma (abre a traseira do camião) e em seguida colocar as rampas e os tripés (r.

e) - Pelo que, é ponto assente que o sinistrado se encontrava a realizar as funções de descarga de veículo sob ordem e direção da entidade patronal/arguidos/recorridos.

f) - Tal como decorre do ponto 5 e 6 da acusação.

g) - O falecido FF, à data do fatídico sinistro, detinha a categoria profissional de aprendiz de mecânico, trabalhando por conta dos arguidos, da empresa DD Lda e do seu representante legal/gerente AA.

h) - O sinistrado, encontrava-se a auxiliar sob a orientação permanente e profissional do trabalhador EE, uma vez que o sinistrado detinha apenas a qualidade de aprendiz sem qualquer formação, a descarregar um veículo, cumprindo diligentemente com aquilo que lhe seria transmitido.

i) - Não pode nunca, prevalecer a ideia de que agiu por sua iniciativa e que desconheciam o que é que o mesmo estava a fazer.

j) - Foi em cumprimento de ordens dos arguidos que o sinistrado foi incumbido de efectuar as funções em causa, auxiliando o trabalhador EE.

l) - Ao sinistrado foram atribuídas/distribuídas tarefas e ordenada a execução de um trabalho perigoso, sem que o mesmo o soubesse fazer em segurança nem estivesse formado ou profissionalmente habilitado e capacitado para o efeito.

m) - Consta do relatório fotográfico elaborado pela G.N.R, para o qual se remete, o processo de descarga já teria iniciado e já se encontravam colocadas as rampas necessárias para realizar a descida do veículo do camião.

n) - Com efeito, foi em cumprimento de ordens à execução da tarefa que havia sido dada ao sinistrado, que se deu a morte do trabalhador.

o) - No caso em apreço, estamos perante um crime previsto e punido pelo artigo 152. 2 -B, do Cód. Penal.

- Considerando toda a prova junto aos autos, o Tribunal constatou "que a sociedade arguida não procedeu à identificação, avaliação dos perigos e riscos a que se expõe os trabalhadores nas operações de descarregamento e carregamento de viaturas'l

p) - Consta do Inquérito de acidente de trabalho, n. …, de 2020/1 1 /09, realizado pela Autoridade para as Condições do Trabalho que "a avaliação de riscos feita pela empresa prestadora de serviços de … não procedeu à identificação dos riscos a que se encontram expostos os trabalhadores, associados à operação de carregamento e descarregamento das viaturas de competição para o interior do camião, quando estas são transportadas para outros locais, como por exemplo locais onde decorrem competições.

Foi a empresa notificada para que proceda à avaliação do risco a que se encontram expostos os trabalhadores, incluindo esta no relatório de avaliação de riscos da empresa, e elabore instruções de segurança para a operação referida, as quais devem ser respeitadas pelos trabalhadores quando realizam a operação e as diferentes tarefas compreendidas nesta

q) - Tal facto, ficou também provado pela confissão dos arguidos.

r) - Tendo originado a instauração de dois autos de notícia por contraordenação, tal como se retira do n. 0 10 desse mesmo relatório — art. Q 281 do Código do Trabalho.

s) E levou também a que os arguidos, posteriormente ao acidente, procedessem à afixação, nas paredes das instalações, as instruções necessárias para realizar a tarefa em causa.

t) - O falecido não teve formação profissional nem na área de descargas de veículos transportados, nem na área da segurança e prevenção de acidentes de trabalho, nem sequer existe qualquer comprovativo ou certificado que a mesma havia sido recebida pelo sinistrado.

u) - Até porque, logo no número 6 do relatório ACT, consta que o trabalhador não teve formação, quanto a matéria de gestão e prevenção, para além das omissões claras e evidentes sobre esta matéria, por parte dos arguidos/recorridos.

v) - Nunca foi explicado ao trabalhador qual a forma para realizar aquela tarefa e quais os perigos a ela inerentes, nem lhe foi disponibilizado informação e a formação com vista a minimizar os riscos da concertada mesma, designadamente quais os procedimentos de trabalho a realizar, quais as medidas de trabalho a realizar, quais as medidas e procedimentos de protecção, expondo-o, assim, a riscos, particularmente de esmagamento/entalamento, como veio a acontecer.

x) - Porquanto, o FFl não conhecia os procedimentos em causa, os quais nunca lhe haviam sido ensinados ou transmitidos e nunca havia antes realizado tal tarefa, tal como consta das inquirições juntas aos autos e para as quais se remetem.

z) - Nem o mesmo possuía autonomia, conhecimentos ou capacidade para realizar a tarefa, uma vez que se tratava de um Aprendiz de Mecânico e que se encontrava, nessa medida, aos cuidados da respectiva entidade patronal.

aa) - Acresce o facto do falecido aprendiz, não ter sido informado sobre a necessidade da utilização dos equipamentos de protecção individual.

ab) - Equipamentos estes que, segundo o Relatório Pericial, para a actividade em causa "são o capacete com características adequadas a prevenir danos resultantes de impacto da cabeça com obstáculos; luvas de proteção também adequadas às características da tarefa a realizar (manipulação das cintas), e, se for caso disso, mascara de protecção para prevenir a inalação de fumos de escape do veículo".

ac) - Relatório esse que, descreve que a actividade de descarga de veículo automóveis em camião era uma actividade que necessitava de formação no posto de trabalho obedecendo, entre outros pontos, aos seguintes parâmetros (ponto 6):

"(...) Procedimentos de trabalho em segurança para carregar e descarregar o veículo em camião.

Equipamentos de protecção individual a utilizar nas tarefas de carga e descarga do veículo de camião".

ad) - Nunca tendo os mesmos equipamentos sido fornecidos aos trabalhadores, nem ao sinistrado, pelos arguidos.

ae) - Nem tendo sido transmitido a necessidade do uso dos mesmos, decorrente da perigosidade da actividade em causa, conforme ponto 25.º da acusação.

af) - Os arguidos/recorridos com estas omissões, não observaram as obrigações legais específicas devidas para a execução daquele trabalho de carga e descarga de veículo, concretamente as relativas às prescrições mínimas de segurança e de saúde no trabalho e a formação adequada à prevenção de riscos de acidente ou doença, tudo de forma a evitar o esmagamento/entalamento.

ag) - Tendo o trabalhador, com dolo eventual, sido sujeito a uma clamorosa e inequívoca situação de perigo para a sua vida e para a qual não se encontrava minimamente preparado.

ah) - Tanto que, no Despacho recorrido, ficou assente o seguinte: "O local do camião onde FF se encontrava, designadamente, na parte de baixo da viatura, é o local mais perigoso onde nunca se deve estar. '

ai) - O FF não tinha formação, nem conhecimentos para efectuar tal tarefa e, muito menos, com a negligente supervisão que lhe foi dada, caso contrário nunca se teria colocado perante a morte de forma tão "ridícula" e leviana.

aj)) - Se os arguidos tivessem fornecido ao trabalhador aprendiz formação e instruções quanto à forma de execução daquela tarefa em concreto, embora pudesse ou não ser evitado o descaimento do veículo, poderia ser sempre evitado que a sua cabeça ficasse entalada entre o veículo e o solo, bastando, para tal, ter-lhe sido transmitido que a posição correcta durante a realização da tarefa em causa seria na parte lateral do veículo e não na parte de baixo da zona elevatória — tal como decorre do Relatório Pericial junto aos autos.

al) - Esmagamento/Entalamento que, segundo o Relatório Pericial, era previsível e que consta da avaliação de riscos realizada posteriormente ao acidente.

am) - Os pontos 12 ao 22 da Acusação devem ser considerados suficientemente indiciados, por tudo o que vem exposto supra e infra. Senão vejamos, an) - Resulta também do relatório pericial junto aos autos que, para evitar o acidente, deveriam ter sido adoptados procedimentos de trabalho em segurança para a descarga de veículo, tais como:

1. Q A actividade deve ser realizada por uma equipa de, pelo menos, 2 pessoas, uma devidamente habilitada para aceder ao interior do veículo e ali permanecer durante as operações de carga e descarga do mesmo e outra para retirar as cintas que imobilizam a viatura durante o transporte.

2. ç - Verificar o estado da bateria e, se for caso disso, colocá-la a carregar antes de instalar no veículo.

3. 0 - Colocação das rampas de carga e descarga do veiculo na posição própria para o efeito e com os respectivos de segurança aplicados(.. .) ".

ao) - Assim, o trabalhador/acompanhante EE, no âmbito da realização da tarefa em causa, encontrava-se a instalar a bateria no veículo, aceder ao interior do mesmo e ali permanecia para assegurar as tarefas enunciadas no procedimento anteriormente descrito, enquanto o FF retirava as cintas que imobilizavam o veículo durante o transporte (al. c) do Relatório Perícial).

ap) - Acresce o facto de, constar do Relatório Pericial junto aos autos, que a "formação para trabalhadores com a categoria de aprendiz/estagiário seria mais detalhada, com características próprias para quem está a iniciar uma profissão e toma contacto com a actividade pela primeira vez, enquanto a formação para outros trabalhadores com categoria profissionais correspondentes a pessoas experientes e conhecedoras do âmbito de actividade da empresa, a formação poderia ser mais breve e dirigida para consolidação de procedimentos" aq) - Pelo que, dúvidas não podem prevalecer de que foi a omissão de todos estes factores (omissão das disposições legais e regulamentares), que determinaram a sujeição do trabalhador ao perigo para a vida, conforme estipulam os artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, artigo 18.º, n.º 1 , 19.º, n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 2 4 e 20.º da Lei 102/2009 de 10 de Setembro, bem definidos e preechidos na acusação.

ar) - Pelo que não colhe a posição do Tribunal recorrido quando refere que a "integração fático-normativa da acusação é insuficiente", ou na parte em que conclui "sobre a insuficiência de identificação dos riscos e perigos, consulta de trabalhadores, informação aos trabalhadores e formação dos trabalhadores, que nada diz sobre como o empregador deveria proceder para evitar o perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou na saúde do trabalhador", ou que 'Não se demonstra o nexo causal entre o acidente e o cumprimento desse referido dever geral de formação". Posição que se considera incorrecta e ilegal, a qual se impugna.

as) - Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal recorrido fez tábua rasa de toda a prova constante nos autos e de toda a integração fático-normativa da acusação; at) - Pelo exposto, também não se compreende como pode o Tribunal recorrido entender que os pontos 19.0 , 20. 0 e 22. 2 da acusação são conclusivos e declarar a nulidade parcial da acusação, motivo pelo qual, se impugna para todos os devidos e legais efeitos.

au) - Mais não passa do que uma decisão abusiva e ilegal, porquanto todos estes pontos 19.º, 20.º e 22.º, encontram-se corroborados pelas provas juntas aos autos e pela factualidade documental descrita supra e infra, e constante não só na prova testemunhal como também do Relatório Pericial.

av) - Logo, o Despacho recorrido, pelos apontados motivos, enferma do vício da al. c) artigo 410.º , n.º 2, do CPP.

ax) - Porquanto, apenas se justifica esta morte com a falta de formação, cuidados, zelo, vigilância pela entidade empregadora/recorridos.

az) - Os arguidos, de forma livre, voluntária e consciente, não observaram as disposições legais aplicáveis, não implementando as condições de segurança legalmente previstas para a execução da tarefa laboral acometida ao sinistrado, bem sabendo que desse modo o expunham a perigo para a vida, ou pelo menos de grave ofensa para a sua integridade física ou saúde, com o que se conformaram

aaa) - Bastava a formação para que o trabalhador falecido soubesse que a posição correcta para a realização da operação em causa seria na lateral do veiculo, ao invés da posição onde o mesmo se encontrava — NO LOCAL MAIS PERIGOSO..

aab) - O que resulta do dolo eventual dos arguidos, pela sua omissão, ficando provado o desconhecimento e incapacidade do sinistrado, em virtude deste apenas possuir a categoria de aprendiz de mecânico ao abrigo do contrato de trabalho a termo certo celebrado em 01.09.2020, - 2 (dois) meses antes do sinistro.

aac) - Acresce o facto de, tal como resulta do Relatório Pericial e do art. 16 da acusação, a actividade "de carga e descarga de veículos, dada a sua elevada perigosidade, não ser adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz, sem supervisão.

aad) - Foi o próprio trabalhador EE, que referiu acompanhar o aprendiz em tal tarefa de descarga de veículo, sob as ordens e direcção dos arguidos/recorridos.

aae) - Ora, quando se determina que uma actividade, face à sua perigosidade de esmagamento, entalamento e impacto da cabeça com obstáculos, terá de ser realizada por, no mínimo duas pessoas habilitadas;

aaf) - Não se compreende, como é que a descarga do veículo em causa, foi ordenada a um aprendiz, sem formação, sem meios de equipamento de protecção individual e com pouca ou nenhuma supervisão?

aag) - Pelo exposto, a matéria de facto constante nos autos é assaz elucidativa sobre a existência de dolo eventual, sendo certo que a circunstância de estar aqui em causa uma conduta omissiva não assume particular relevância.

aah) - Os arguidos/recorridos ao omitirem os cuidados que podiam, e deviam ministrar, conformaram-se com o resultado da ofensa à integridade física que poderia advir como resultado da sua omissão, colocando o aprendiz em perigo para a vida ao realizar uma tarefa para o qual não tinha a mínima preparação, conhecimento e supervisão.

aai) - Ficando preenchido o previsto e punível no artigo 152.º B n.º 1 , n.º 2, n.º 4 alínea b) do Código Penal, em articulação com os artigos 127.º , n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º , n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, artigo 18.º , n.º 1 , 19.º n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 4 e 20.º da Lei 102/2009 de 10 de Setembro, conforme quadro factual e imputação contante da acusação. Ao invés da decisão constante do Despacho recorrido.

aaj) - Dispõe o art.º 283.º, n.º 2 do C.P.P. que "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

aal) Neste sentido e por tudo o quanto vem exposto, encontram-se também preenchido os artigos 283.º, n.º 2 e 308.º n.º 1, ambos do C.P.P.

aam) - Assim, havendo indícios suficientes para submissão dos arguidos a julgamento que permitem concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, pugna-se, pelo Despacho de pronúncia pelos factos e ilícitos descritos e constantes da douta a acusação pública, a qual deve ser de manter.”

Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos pela prática do um crime de violação de regras de segurança pelo qual vêm acusados.

*

Os recursos foram admitidos.

Notificados os arguidos da interposição dos recursos, apresentaram os mesmos a sua resposta, tendo pugnado pela respetiva improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida e tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1.ª - Os respondentes ao recurso não encontram que os recorrentes tenham indicado as normas jurídicas violadas, nem na motivação nem nas conclusões o que tem como consequência a rejeição do recurso. Só na conclusão av é que o assistente diz que o despacho recorrido enferma do vício da alínea c) artigo 410.º do CPP. Não obstante, tal alegação não corresponde ao invocar de um vício de uma norma legal, dizendo antes que está de acordo com o vício estabelecido na sobredita disposição legal. As conclusões são omissas quanto às indicações exigidas pelo n.º 2 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal. Aqui estamos perante falta do próprio conteúdo das conclusões e faltando nas conclusões do recurso alguma das menções exigidas nos n.ºs 1, 2, 3, 4 não há que convidar os recorrentes a corrigir o seu requerimento de recurso, devendo o mesmo ser rejeitado. Neste sentido, o Ac. do STJ em que foi Relator LOPES ROCHA, de 5-07-1995, in www.dgsi.pt, processo com o número 048265, JSTJ00028707, onde se decidiu que “A falta de indicação nas conclusões da motivação, da norma ou normas jurídicas violadas acarreta a rejeição do recurso” e a decisão individual proferida pela Relação de Lisboa, processo n.º 349/17.3JDLSB.L1-9, por FILIPA COSTA LOURENÇO supra citada.

Pela falta da indicação das normas legais violadas na decisão recorrida devem ser rejeitados os recursos do MP e do assistente.

2.ª - Sem prescindir, para se obter o conceito de prova indiciária, seja ela em sede de inquérito, artigo 283.º n.º 2 do Cód. Proc. Penal, seja ela em sede de instrução, onde se aplica o mesmo comando legal, por força do disposto no artigo 308.º n.º 1 e 2 do Cód. Proc. Penal, tem que se de recorrer à definição constante do artigo 283.º n.º 2 Cód. proc. Penal. A norma não contém uma simples definição de prova indiciária dos factos, a qual está pressuposta, mas uma exigência de antecipação de um juízo de culpa que se tem de fazer num momento anterior do processo.

3.ª - Indícios suficientes da prática do crime verificam-se quando “já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, FIGUEIREDO DIAS, Ob. e loc. cits..

4.ª - Na perspetiva do legislador, os indícios suficientes pressupõem um ponto de vista da acusação sobre a culpa do agente, sendo certo que para se deduzir acusação ou para sustentar uma pronúncia, exige-se que se faça uma antecipação do juízo da culpa do arguido.

A relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é o que caracteriza a suficiência de indícios. Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade razoável de condenação são os indícios que são suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere diretamente à natureza dos indícios, nomeadamente à sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade.

5.ª - “Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação” e a pronúncia, também, “são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma interferência de tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável. E é assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável de condenação”, FERNANDA PALMA, Ob. e Loc. Cits.

6.ª - Os factos que o Mmo. Juiz dá por indiciados são os que constam do despacho de não pronúncia.

7.ª - Com a abertura de instrução visa-se obter a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

8.ª - O Juiz não tem que tomar posição expressa sobre o que o MP entende que se encontra indiciado ou não. Ao comprovar judicialmente a decisão de deduzir ou não acusação o Juiz pronuncia-se sobre os factos que entende estarem indiciariamente provados, não tendo, por ter uma visão diferente, de tomar posição expressa sobre o que o MP entende dos factos indiciariamente dados por provados. Não há pois aqui qualquer nulidade.

9.ª - “O valor probatório da perícia é fixado pela lei em termos que subtraem o juízo do perito ao princípio da livre apreciação da prova o que quer dizer que o resultado da perícia não é livremente valorável pelo julgador. A limitação do julgador consiste em que ele deve fundamentar a sua divergência em relação às conclusões do perito”, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Ob. e loc. cits.. Trata-se de um especial ou acrescido dever de fundamentação. A lei não se basta com o comando constante do artigo 205.º da CRP, nem com os comandos do artigo 97.º n.º 5 e 374.º n.º 2, no que tange a decisões judiciais. O julgador deve pois fundamentar a razão clara de forma absolutamente convincente da sua razão ou razões que o levaram a divergir do juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial.

10.ª - Este artigo, deve ler-se em sede de inquérito, mutatis mutadis, no que ao MP tange em sede de inquérito, porque é ele o dono da ação penal nessa fase, e sempre que o MP divergir do entendimento do perito deve fundamentar essa divergência.

O MP ordenou a realização de uma perícia, sendo que dos quesitos que formulou, havia 2 quesitos cuja resposta seria de importância capital para poder deduzir ou não acusação e que eram os quesitos 7 e 8.

Assim,

- no quesito 7 perguntava-se ao senhor perito se a inexistência de uma avaliação de riscos profissionais para a atividade de carregamento e descarregamento de camiões constituiu causa adequada à verificação do acidente?

- e no quesito 8, pergunta-se ao senhor perito se a inexistência de avaliação de riscos profissionais para a atividade de carregamento e descarregamento de camiões constituiu causa adequada à verificação do acidente?

A resposta a estes dois quesitos foi a mesma e foi a seguinte:

“Não é possível afirmar perentoriamente que a inexistência de uma avaliação de riscos profissionais vertida num relatório, para a atividade de carregamento e descarregamento de camiões, como a que está em causa na perícia aqui reportada constitui causa adequada à verificação do acidente. Pode sim dizer-se que a existência da avaliação de riscos contribuiria para a redução da probabilidade séria de ocorrência desse mesmo acidente”, sendo os caracteres nossos.

11.ª - O MP para formular a acusação deveria ter fundamentado a sua divergência do conhecimento pericial demonstrado pelo Senhor Perito. Não obstante, não o fez.

12.ª - O perito afirmou com o seu conhecimento técnico e científico que não se pode estabelecer a causa adequada entre a inexistência de uma avaliação de riscos profissionais vertida num relatório, para a atividade de carregamento e descarregamento de camiões e a ocorrência do acidente. Isto é, nem do ponto de vista indiciário, se estabelece uma possibilidade de ser mais provável a condenação que a absolvição dos arguidos.

O Senhor Perito vem afirmar que tal não se pode dizer ou afirmar e o MP em vez de acatar a prova pericial ou no caso de divergência, de fundamentar a mesma, não o fez, deduzindo acusação sem fundamentar a divergência com o perito.

13.ª - Mas não o fez em sede de acusação, nem tão pouco o volta a fazer. Os recorrentes nem sequer discreteiam sobre a sua divergência da opinião do perito. Mesmo com o resultado da prova pericial, o MP acusa sem analisar os elementos da investigação que deveriam ser tidos em conta na investigação que deve ser feita à charge et decharge.

14.ª - A CRP contém normas de direito processual penal e de direito penal que obriga a que os códigos devam obediência à norma constitucional. O artigo 32.º n.º 2 da CRP estabelece o princípio da presunção da inocência, bem como, impõe ao juiz que julgue no prazo mais curto de tempo compatível e harmonizado com as garantias de defesa. O princípio in dubio pro reo encontra-se fundado no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, artigo 32.º n.º 2 CRP.

Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao réu (arguido em processo penal), quando não tiver a certeza absoluta sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Ao ordenar que a dúvida seja resolvida a favor do réu, o princípio funciona como complemento ao princípio da prova livre. O facto de existir uma orientação vinculativa para os casos duvidosos limita a liberdade de apreciação do juiz… impede-o de decidir com o seu critério pelo menos uma parte do objeto da prova: os factos duvidosos desfavoráveis ao arguido.

O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento de emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos desfavoráveis ao arguido. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se por provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza” .

Norma idêntica, equivalente, ou com o mesmo efeito, desta norma do artigo 32.º têm todos os países da União Europeia. O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia promulgaram a Diretiva (EU) 2016/343 de 9 de março para o “reforço de certos aspetos da presunção de inocência”.

15.ª - O in dubio pro reo condiciona a livre apreciação da prova na medida também no inquérito, sempre que a decisão a tomar está condicionada precisamente pelos factos dos quais ao MP e depois ao juiz possa afigurar-se a existência de dúvida. De acordo com o princípio que enunciámos, este impõe que se analisem todos os factos à luz da prova produzida e que após uma análise crítica sobre a prova a mesma seja crivada pelo in dubio pro reo. Ou seja, quais são os factos que tenho a certeza absoluta que se provaram? Quais são os que tenho dúvidas? Quais sei que não se provaram?

Ao analisar os factos o MP ou o juiz tem ainda de estar ciente que o universo dos factos a dar como provados, nos termos do princípio in dúbio pro reo tem duas vertentes que recebem um tratamento diferente no momento de emissão da decisão ao mesmo tempo que a condicionam: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos desfavoráveis ao arguido. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se por provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para prova dos segundos se exige certeza absoluta.

16.ª - E em face da prova produzida em sede de inquérito o conhecimento pericial impõe que se dê como assente no que tange aos factos favoráveis aos arguidos aqueles certos ou duvidosos. Se o próprio perito afasta a causa adequada então tem de se dar por assente que o acidente possa ter acontecido por sua falta, ou que pelo menos não aconteceu por culpa dos arguidos recorridos.

17.ª - Não se pode esquecer que no dia do acidente só estava presente no local a testemunha EE. Por isso se tem de atender ao depoimento que prestou.

18.ª - E acerca do acidente não se pode sustentar, ao contrário à prova indiciária recolhida, que FF estava a arrumar o material utilizado na prova automobilística, onde nessas tarefas se incluía descarregar o veículo que participou nas corridas. O FF, repete-se, não tinha como função descarregar a viatura, sendo essa função de EE e de mais duas pessoas, conforme resulta do depoimento desta testemunha.

19.ª - EE afirma que as cintas frontais da viatura não foram retiradas. A cinta traseira esquerda também não. O que aconteceu, ou melhor, o que só pode ter acontecido para a ocorrência do acidente é que o sinistrado afrouxou uma das cintas das rodas.

20.ª - O veículo tinha proteção para impedir. Toda a operação de retirada da viatura é feita com a viatura presa às cintas e o EE sabia que o FF estava dentro do carro. O FF estava dentro do carro, não ia fazer ou desempenhar qualquer tarefa no descarregar o carro. Além disso o carro estava amarrado pelas cintas. E nenhuma das cintas deveria ter sido afrouxada.

21.ª - Pelo mesmo motivo os pontos 12, 13, 15, 16 a 26 não podem sequer ser indiciariamente dados por assentes, uma vez que a atividade de descarga de veículos transportados não fazia parte das tarefas do sinistrado, nem ele tão pouco ia realizar essa tarefa.

22.ª - Como consta do despacho de não pronúncia, “é seguro que tal evento verificou-se por FF ter decidido, por sua exclusiva iniciativa realizar o descarregamento nos termos referidos. Não basta que se verifique violação de regras para responsabilizar a entidade empregadora e o seu representante pelas consequências do acidente, tornando-se ainda, necessária a prova do nexo de causalidade entre essa conduta ou inobservância e a produção do acidente. O que em face do relatório pericial constante dos autos: não existe”. … Mais, “E temos para nós que a inobservância das regras de segurança apontadas pelo Ministério Público na sua acusação não foi causal em relação ao evento porquanto se as mesmas tivessem sido observadas o acidente podia ter ocorrido.

Por outro lado, donde se extrai que se a tal atividade de carga e descarga de veículos, não era adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz? Quais os equipamentos que deveriam ser zelados pela sociedade arguida e pelo seu representante para prevenir os acidentes de trabalho? Sobre a circunstância de não ter sido facultado a FF o equipamento de proteção individual: não existia por completo? Ou foi facultado e não utilizado pelo trabalhador? Quais as devidas medidas de proteção para obstar o esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos? Não existem elementos probatórios que suportem tais asserções. Saliente-se quem no que concerne ao equipamento de proteção individual, a fls. 51 verso, no ponto 4.14.4 EPI (distribuição e manutenção), confirma-se a sua existência.

Por fim afigura-se contraditório alegar que o veículo não tinha qualquer outra proteção para impedir deslizamento, quando existiam cintos traseiros colocados nas rodas que foram retirados pelo sinistrado”, sendo os caracteres nossos.

23.ª - Não existe nenhum tipo de norma legal que regule a ação de retirar viaturas de dentro de um camião e para tanto terão de ser válidas as indicações dadas pelo empregador em relação à situação em concreto.

24.ª - O que nós sabemos é que quem iria fazer aquela manobra era o EE e que afirmou que a mesma só se pode fazer acompanhada com pelo menos mais duas ou mais pessoas, e que as cintas só podem ser retiradas quando a bateria já está instalada e quando se encontra alguém dentro da viatura, tempos de concluir que a culpa na ocorrência foi de facto do FF, o que sempre muito se lamenta.

25.ª - O artigo 152.º B do Cód. Penal, artigo esse pelo qual os arguidos se encontram acusados, estatui que “quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou”.

Isto quer dizer que inexistem disposições legais e regulamentares acerca da atividade. Assim, nunca podem ser os arguidos acusados pela prática deste crime. Por outro lado, a verdade é que o sinistrado não ia realizar qualquer tarefa por ordem da entidade empregadora que lhe pudesse fazer perigar a sua vida ou saúde. O que ele foi fazer não foi por ordem da sua entidade patronal e não era ele quem o ia fazer, como ficou indiciariamente assente.

25.ª - Diz o assistente que na alínea q) das suas conclusões que os arguidos confessaram os factos, o que não é verdade. Os arguidos não confessaram o que quer que seja.

26.ª - Por todo o exposto, foi proferido o despacho de não pronuncia sendo decidido que “perante estas considerações é manifesta a insuficiência dos elementos probatórios para sustentar a remessa dos autos para julgamento porque não é provável que os arguidos sejam condenados, o que determina a respetiva não pronúncia”. Este despacho deve ser mantido porque é justo.

Termos em que deve ser mantido o despacho recorrido de não pronúncia para os arguidos por inexistirem indícios suficientes e por inexistirem factos que permitam a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança, como é de inteira JUSTIÇA!”

*

O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso apresentado pelo Ministério Público.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso, considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes das respetivas motivações e as questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir:

A) Saber se, face à matéria de facto e às referências normativas constantes da acusação, se encontram verificados os pressupostos de que depende a imputação aos arguidos de um crime de crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo artigo 152.º- B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) e 11, n.º 2, alínea a) do Código Penal. (ambos os recursos)

B) Caso se verifique que os factos e as referências normativas constantes da acusação se revelam suficientes para a referida imputação, determinar:

- Se o despacho recorrido enferma de nulidade decorrente da falta de referência, na enumeração dos factos indiciados e não indiciados, a todos os factos constantes do despacho de acusação. (recurso do Ministério Público)

- Se se revela admissível a invocação dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP relativamente à decisão instrutória. (recurso do assistente)

- Se a factualidade constante da acusação se encontra suficientemente indiciada nos autos e se, consequentemente, os arguidos deverão ser pronunciados pela prática do referido crime. (ambos os recursos)

***

II.II - A decisão recorrida e a acusação.

Reproduz-se a decisão recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso, optando-se por se não transcreverem as partes que contêm exposição meramente teórica:

“(…) III. DA VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE SE TEREM VERIFICADO OS PRESSUPOSTOS DE QUE DEPENDE A APLICAÇÃO AO(S) ARGUIDO(S) DE UMA PENA OU MEDIDA DE SEGURANÇA:

(…)

Os indícios só são suficientes e a prova bastante, quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição. O juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido. A decisão deve resultar da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução devendo existir a convicção de forte possibilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação ou de que o não seja, sendo este caso para a não pronúncia.

O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica da prova recolhida durante as fases de inquérito e instrução. A prova foi valorada atendendo ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º CPP), o que significa, não é um juízo arbitrário e/ou meramente subjectivo acerca da prova produzida, mas sim «uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96).

Importa analisar a prova obtida nos autos, com excepção de HH, por ser militar da Guarda Nacional Republicana, foram inquiridos os trabalhadores da sociedade arguida bem como técnicas da Autoridade para as Condições no Trabalho, sobre as circunstâncias que levaram ao sinistro de FF, trabalhador da sociedade arguida. Em sede de inquérito, foram interrogados os arguidos que decidiram não prestar declarações sobre os factos imputados.

Dos depoimentos ressalta que inexistiram testemunhas presenciais dos factos, sendo a testemunha mais próxima dos factos EE. Inquirido esta testemunha a mesma afirmou acompanhar o sinistrado antes dos factos e na actividade de descarga de veículos de competição a viatura tem de ser presa à estrutura do camião, nas suas quatro rodas, sendo utilizadas cintas próprias para tal, pois não têm travão de mão. Neste ponto a informação da testemunha é imprecisa, porque o travão de mão existe mas não é levantado. Devido ao afrouxamento da cinta esquerda pelo sinistrado, a viatura descaiu e provocou o esmagamento do crânio. Mais disse que o local do camião onde FF se encontrava, designadamente, na parte de baixo da viatura, é o local mais perigoso onde nunca se deve estar.

Referiu que, quando começou a trabalhar naquela empresa, foi-lhe ministrada formação para realização da tarefa de retirar as viaturas de dentro dos camiões através da prática e da observação que fazia dos demais colegas que ali trabalhavam; mas nunca assinou qualquer documento referente à sua formação. Tem a convicção de que o FF também recebeu a mesma formação. Todavia, desconhece se tal ocorreu ou não.

Procedeu-se à realização de perícia.

No âmbito pericial, concluiu-se em apertada síntese que o relatório de avaliação de riscos não contemplava a carga e a descarga de veículos automóveis em camião; a actividade em causa é de elevada perigosidade e não ser possível afirmar que a inexistência de uma avaliação de riscos profissionais, vertida num relatório, para a actividade de carregamento e descarregamento constitui a causa adequada à verificação do acidente, mas apenas contribuía para a redução de ocorrência desse mesmo acidente.

O Ministério Público na acusação refere, em síntese, que pelos arguidos foi omitida a formação de FF de forma a abranger os riscos existentes e no âmbito das funções o sinistrado colocou-se na parte de baixo da zona elevatória onde se encontrava o veículo automóvel (utilizado na corrida) e retirou os cintos traseiros colocados nas rodas e que o veículo não tinha qualquer outra protecção para impedir deslizamento; bem como que FF não usava capacete, nem luvas de protecção, tendo o veículo deslizado e indo embater na cabeça de FF, determinando a sua morte.

Refere ainda que foi omitida a formação e a informação de FF de forma a abranger os riscos existentes e medidas de proteção adequadas no âmbito da actividade de descarga de veículos transportados, bem como a detecção e a avaliação de riscos daquela operação e que os arguidos não tinham facultado a FF equipamento de proteção individual.

Como nota prévia, são conclusivos os pontos 19º, 20º e 22º da acusação do Ministério Público e nessa medida deverá ser declarada a nulidade parcial da acusação por violação do art.º 283.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, no segmento em que impõe sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.

*

Analisados conjugada e criticamente os elementos probatórios, o Tribunal considera suficientemente indiciado, com interesse para a decisão, que no dia 9 de Novembro de 2020, durante a operação de descarregamento de uma viatura ligeira de passageiros utilizada em competição, na …, em …, dentro de um camião, resultou um acidente que provocou a morte de FF, e constatou-se que a sociedade arguida não procedeu à identificação, avaliação dos perigos e riscos a que se expõem os trabalhadores nas operações de descarregamento e carregamento de viaturas.

Ante este complexo fáctico importa fazer a subsunção jurídica do ilícito em questão, tendo em conta o alegado no requerimento de abertura de instrução.

Dispõe o artigo 152.º-B, do Cód. Penal: «1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2- Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.

3- Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:

a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.

4 - Se dos factos previstos nos n.os 1 e 2 resultar a morte o agente é punido: a) Com pena de prisão de três a dez anos no caso do n.º 1;

b) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.»

Estamos perante um crime específico e de perigo concreto que se consuma independentemente da verificação de qualquer resultado lesivo do bem jurídico sendo que o risco de lesão decorre da própria acção tipificada.

A acção típica envolve a não observância de disposições legais e regulamentares, que devam ser consideradas durante a execução do contrato de trabalho, e a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo ou saúde.

A acção típica tanto pode ser preenchida por via da acção como por via da omissão, nos termos do art.º 10.º , n.º1 do Cód. Penal.

As regras de segurança têm fonte na lei e no regulamento. Há que considerar que se trata de crime omissivo de violação de dever no qual não se exige o domínio do facto, bastando a titularidade do dever violado no momento típico do domínio. A responsabilidade está restringida à obrigação decorrente da lei laboral e engloba a obrigação de facto, desde que tenha ocorrido uma delegação de tarefas relativas às medidas de segurança, onde o delegado “assume a posição de garante”. Assim, podem existir vários responsáveis, cuja responsabilidade se apurará segundo o grau de culpabilidade que lhes seja exigível.

A legislação laboral elenca os deveres dos empregadores no art.º 127.º do Código de Trabalho, dos quais se extraia que o empregador deve, nomeadamente, adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho (alínea h) do mencionado preceito).

Existe, nos termos do art.º 127.º, n.º2 do Código de Trabalho, a obrigação legal de, na organização da actividade, observar o princípio geral da adaptação do trabalho à pessoa, com vista nomeadamente a atenuar o trabalho monótono ou cadenciado em função do tipo de actividade, e as exigências em matéria de segurança e saúde, designadamente no que se refere a pausas durante o tempo de trabalho.

O empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção (art.º 281.º, n.º2 do Código de Trabalho).

De igual modo, os trabalhadores devem cumprir as prescrições de segurança e saúde no trabalho estabelecidas na lei ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, ou determinadas pelo empregador (art.º 281.º, n.º7 do Código de Trabalho).

Neste aspecto importa considerar a regulamentação específica de prevenção e reparação da segurança e da saúde no trabalho constante da Lei 102/2009, que aprovou o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, e do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro (art.º 284.º do Código de Trabalho; art.º 1.º al. a) da Lei 102/2009). Está assente que o empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho (art.º 15.º, n.º1 da Lei 102/2009), sendo que para o efeito, o empregador deve organizar o serviço de segurança e saúde no trabalho de acordo com as modalidades previstas.

De acordo com o Decreto-lei n.º 50/2005, todos os ramos de actividade dos sectores privado, cooperativo e social, administração pública central, regional e local, institutos públicos e demais pessoas colectivas de direito público, bem como a trabalhadores por conta própria encontram-se sujeitos às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho (art.º 1.º do Decreto-lei n.º 50/2005).

*

No caso em apreciação, o Ministério Público estruturou a acusação na violação do dever geral de formação em matéria de segurança e saúde no Trabalho que o sinistrado não tinha. Porém, a integração fáctico-normativa da acusação é insuficiente, porquanto, conjugada a norma constante do preceito incriminador, com o art.º 127.º, n.º 1, alíneas h) [Adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;] e i) [Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença], do Código de Trabalho, não resulta da qual a concreta medida de segurança e saúde no Trabalho violada pela entidade empregadora.

A igual conclusão se chega quanto à menção dos artigos 15.º, 18.º, 19.º, 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro, sobre a existência de identificação de riscos e perigos, consulta de trabalhadores, informação aos trabalhadores e formação dos trabalhadores, que nada diz sobre como o empregador deveria proceder para evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde do trabalhador.

Não obstante, refere-se ao longo da acusação que:

- foi omitida a formação de FF de forma a abranger os riscos existentes e medidas de proteção adequadas no âmbito da actividade de descarga de veículos transportados;

- foi omitida informação sobre os procedimentos a adoptar no âmbito da actividade de descarga de veículos transportados;

- foi omitida a observância das regras de segurança, mais concretamente a ausência de detecção dos riscos a que se encontravam expostos os trabalhadores que realizassem a operação de carga e descarga dos veículos de competição para o interior do veículo pesado quando estes são transportados para os locais onde decorrem as competições e daí para a sede da sociedade arguida, bem como não realizaram a avaliação de riscos profissionais quanto à actividade de carga e descarga de veículos, com fichas que previssem os riscos associados à concreta tarefa desempenhada pela vítima;

- competia zelar pela implementação dos equipamentos destinados a prevenir acidentes no trabalho, formação e conhecimento aos trabalhadores das medidas de segurança e prevenção de acidentes de trabalho;

- Tal actividade de carga e descarga de veículos, dada a sua elevada perigosidade, não era adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz, sem supervisão;

- não foi facultado a FF equipamento de proteção individual;

No tipo de crime previsto no artigo 152.º-B, do Cód. Penal, como está em causa uma acção que se traduz em, no âmbito da sua actividade laboral, o agente infringir regras legais ou regulamentares que devem ser observadas, sendo que o perigo aí previsto continua a ser para a vida ou para a integridade física de outrem.

Com efeito, o agente tem de actuar contra regras legais ou regulamentares, exteriores ao conteúdo do preceito incriminador.

Cada actividade laboral determina a aplicação de regras próprias dessa. Estas regras são as que se referem à execução da actividade laboral, e têm em comum o dizerem respeito à segurança da mesma, no que respeita ao local onde é exercida e ao equipamento manuseado, nomeadamente, as que decorrem do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro. Portanto, as regras aplicáveis são as resultantes de diploma legal, atinentes às actividades levadas a cabo nas diversas áreas em que o trabalho se desenvolve e que abranjam os respectivos riscos comportados na sua execução.

Aqui chegados, o titular da acção penal não esclarece quais são as regras aplicáveis à execução do trabalho pelo sinistrado. Omitiu-se o que a lei ou o regulamento prescrevem nesta matéria, com a indicação da disposição legal ou regulamentar violada, nem se refere qualquer dispositivo normativo constante do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro. Mesmo estando assente que não deu formação ao sinistrado, a conclusão pericial de que não é possível afirmar peremptoriamente que a inexistência de avaliação de riscos profissionais para a actividade de carregamento e descarregamento de camiões é causa adequada à verificação do acidente, beneficia a posição do arguido, conjugada com a circunstância de inexistirem testemunhas presenciais dos factos em apreço.

Conforme ao requerimento de abertura de instrução, não se demonstra o nexo causal entre o acidente e o incumprimento desse referido dever geral de formação, ou seja, não existe o competente nexo entre a formação de segurança e saúde no trabalho e o acidente sofrido pelo ofendido. Tanto mais que esta conclusão é compatível com as regras de experiência comum aplicáveis à situação em apreço, porquanto o sinistrado colocou-se, e salienta-se, debaixo da viatura; área segundo a testemunha EE: “O local do camião onde FF se encontrava, designadamente, na parte de baixo da viatura, é o local mais perigoso onde nunca se deve estar. Não sabe das razões para que o mesmo se tenha colocado naquele local.”.

Além do mais não permitem os elementos indiciários apurados afirmar que a sociedade arguida e o seu representante tivessem incumbido FF das funções em causa, nem tal é dito pelo Ministério Público, ou quais eram as funções habituais do sinistrado, repare-se que a actividade de carga e descarga de veículos era uma actividade normal da sociedade, realizada cerca de 20 (vinte) vezes durante um ano, pelo que a falta de formação está a montante dos actos praticados aquando do acidente.

É seguro que tal evento verificou-se por FF, ter decidido, por sua exclusiva iniciativa, realizar o descarregamento nos termos referidos. Não basta que se verifique a violação de regras, para responsabilizar a entidade empregadora e o seu representante pelas consequências do acidente, tornando-se, ainda, necessária a prova do nexo de causalidade entre essa conduta ou inobservância e a produção do acidente. O que em face do relatório pericial constante dos autos: não existe.

É assim necessário que ocorra a violação de uma regra, ou norma, concreta sobre a segurança no trabalho; não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do art.º 152.º-B, do Cód. Penal, e que estabeleça o nexo entre a violação e o acidente. É nosso entendimento que a acusação não descreve o nexo de causalidade adequada entre a omissão da entidade patronal e o evento danoso. Nessa medida falece a asserção de que a falta de formação ou informação ao trabalhador foi a condição da verificação do evento num juízo de prognose póstuma. E temos, para nós, que a inobservância das regras apontadas pelo Ministério Público na sua acusação não foi causal em relação ao evento porquanto se as mesmas tivessem sido observadas o acidente poderia ter ocorrido. Por outro lado, donde se extrai que a tal actividade de carga e descarga de veículos, não era adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz? Quais os equipamentos que deveriam ser zelados pela sociedade arguida e pelo seu representante para prevenir os acidentes de trabalho? Sobre a circunstância de não ter sido facultado a FF o equipamento de proteção individual: não existia por completo? Ou foi facultado e não utilizado pelo trabalhador? Quais as devidas medidas de protecção para obstar a esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos? Não existem elementos probatórios que suportem tais asserções. Saliente-se que no concerne ao equipamento de proteção individual, a fls. 51 verso, no ponto 4.14.4 EPI (distribuição e manutenção), confirma-se a sua existência.

Por fim, afigura-se-nos contraditório alegar que o veículo não tinha qualquer outra protecção para impedir deslizamento, quando existiam cintos traseiros colocados nas rodas que foram retirados pelo sinistrado.

Perante estas considerações, é manifesta a insuficiência dos elementos probatórios para sustentar a remessa dos autos para julgamento porque não é provável que os arguidos sejam condenados, o que determina a respetiva não pronúncia.

Em face do exposto considera-se suficientemente indiciados os factos descritos em 1 a 11, 12, 13, 14, 15 e os factos descritos em 16, 21, 23, 24, 25 e 26 da acusação não indiciados.

No que se refere aos factos do elemento subjectivo, conforme ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-02-2019, disponível em www.dgsi.pt, “são, em regra, objeto de prova indireta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum”, e como já se adiantou, não se indiciam porquanto não é demonstrável que a possibilidade do sinistrado se colocar por baixo do veículo, numa “zona mais proibida e perigosa”, fosse sequer acessível/cogitável à entidade empregadora e que daí adviesse a morte de um trabalhador, bem como o nexo entre a falta de formação e o sinistro ou que inexistem os equipamentos de protecção pessoal.

Em conclusão, os arguidos não praticaram, na forma consumada, e em autoria material, o crime de violação de regras de segurança, previsto e punível no artigo 152.º B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) do Código Penal, em articulação com os artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, 8, artigo 18.º, n.º 1, 19.º, n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 4 e 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro.

Atento no art.º 308.º, n.º1, do Cód. Processo Penal, importa proferir despacho de não pronúncia.(…)”

*

Da acusação consta que:

“1. A arguida DD, LDA. é uma sociedade comercial por quotas que, em Novembro de 2020, tinha por objecto o aluguer de máquinas e equipamentos, manutenção e reparação de veículos automóveis, actividades de engenharia e técnicas afins, realização de eventos.

2. A gerência da sociedade esteve sempre a cargo de AA.

3. Em Novembro de 2020, FF, trabalhava por conta da arguida na …, em…, ao abrigo de um contrato de trabalho a termo certo celebrado em 01.09.2020, tendo como categoria profissional aprendiz de mecânico.

4. No fim de semana do dia 7 e 8 de Novembro decorreu em … a prova automobilística denominada …, na qual a arguida participou.

5. No dia 09.11.2020, na …, em …, FF, no âmbito das suas funções, realizou os trabalhos de arrumação do material utilizado na mencionada prova automobilística, incluindo descarregar o veículo que participou nas corridas, o qual foi transportado até ao estabelecimento da empresa dentro de um veículo pesado com matrícula …, preso por quadro cintos ao veículo pesado, dois frontais e dois traseiros.

6. Assim, no dia 09.11.2020, pelas 08h20m, no âmbito das funções e por conta da sociedade arguida, FF iniciou o trabalho com EE, subiu para o camião, colocou-se na parte de baixo da zona elevatória onde se encontrava o veiculo automóvel (utilizado na corrida) e retirou os cintos traseiros colocados nas rodas.

7. O veículo não tinha qualquer outra protecção para impedir deslizamento e FF não usava capacete, nem luvas de protecção.

8. Em tal momento, no decurso desse trabalho e quando se encontrava ainda no interior do camião por baixo do veículo ligeiro, este deslizou indo embater na cabeça de FF, projectando-o ao solo, ficando a sua cabeça entalada entre o veículo e o solo.

9. FF permaneceu entalado entre o veículo e o solo até à chegada dos Bombeiros de … e INEM, tendo a equipa médica que o assistiu verificado o óbito no local, pelas 09h30m.

10. Em consequência direta e necessária do embate de que FF foi vítima, sofreu fractura complexa da base do crânio, com afastamento significativo dos topos de fractura, desde a fractura dos côndilos occipitais, passando pela da porção petrosa temporal direita e grande asa do esfenoide à direita; fractura complexa da escama temporal direita; hemorragia subaracnoídea generalizada; focos de contusão generalizados com hemorragia intracerebral; sangue nos ventrículos laterais; tronco cerebral e e cerebelo com focos de contusão dispersos; equimose com escoriação e edema na região temporoparietal esquerda com crepitação, escoriações abrasivas sobre a hemiface direita; escoriação malar esquerda, edema do couro cabeludo na região temporal direita; equimose na face anterior do ombro esquerdo e grande peitoral e equimose sobre o flanco direito do abdómen, infiltração sanguínea generalizada nas partes moles da cabeça; ferida na língua e vestíbulo à esquerda.

11. Estas lesões traumáticas crânio-encefálicas foram causa adequada da morte de FF compatível com a conclusão de morte por esmagamento do crânio sobre o eixo sagital.

12. Pelo arguido e pela sociedade arguida sua representada foi omitida a formação de FF de forma a abranger os riscos existentes e medidas de proteção adequadas no âmbito da actividade de descarga de veículos transportados.

13. Pelo arguido e pela sociedade arguida sua representada foi omitida a informação sobre os procedimentos a adoptar no âmbito da actividade de descarga de veículos transportados.

14. Pelo arguido e pela sociedade arguida sua representada foi omitida a observância das regras de segurança, mais concretamente a ausência de detecção dos riscos a que se encontravam expostos os trabalhadores que realizassem a operação de carga e descarga dos veículos de competição para o interior do veículo pesado quando estes são transportados para os locais onde decorrem as competições e daí para a sede da sociedade arguida, bem como não realizaram a avaliação de riscos profissionais quanto à actividade de carga e descarga de veículos, com fichas que previssem os riscos associados à concreta tarefa desempenhada pela vítima.

15. A actividade de carga e descarga de veículos, realizada por FF em 09.11.2020, era uma actividade normal da sociedade, realizada cerca de 20 (vinte) vezes durante um ano e apresentava elevada perigosidade, sendo os principais riscos associados à mesma os riscos de esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos.

16. Tal actividade de carga e descarga de veículos, dada a sua elevada perigosidade, não era adequada a ser desempenhada por um trabalhador com a categoria de aprendiz, sem supervisão.

17. Ao arguido AA competia, em nome da sociedade arguida que geria, zelar pela implementação dos equipamentos destinados a prevenir acidentes no trabalho, formação e conhecimento aos trabalhadores das medidas de segurança e prevenção de acidentes de trabalho.

18. O arguido AA, em seu nome e representação da sociedade arguida não tinha facultado a FF equipamento de proteção individual.

19. O arguido AA, em seu nome e representação da sociedade arguida em virtude de não garantir a adoção das devidas medidas de proteção, que obstassem ao esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos, tinha o dever funcional de agir de determinada maneira, até mesmo na responsabilidade fundada na relação de vigilância.

20. O arguido AA, em seu nome e representação da sociedade arguida omitiu o cumprimento desse dever que no âmbito da sua atividade profissional se impunha e infringiu regras legais, regulamentares ou técnicas para garantir a segurança contra comportamentos suscetíveis de colocar em perigo a vida do trabalhador.

21. A situação de perigo foi criada pelo arguido em seu nome e representação da sociedade arguida e causou a morte a FF, e era responsável pela segurança do mesmo, conhecia, ou devia conhecer as “legis artis” aplicáveis que lhe exigiam a adoção de medidas concretas e específicas para evitar esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos do trabalhador.

22. O arguido em seu nome e representação da sociedade arguida omitiu a implementação de meios ou medidas necessárias e adequadas, que tinha ao seu dispor, para prevenir e minimizar os riscos evidenciados e evitar tal resultado, tendo criado uma situação de perigo, que resultou na morte de FF, seu trabalhador.

23. O arguido agiu livre e conscientemente, prevendo como possível que na execução do trabalho de descarga de veículos naquelas circunstâncias colocava em risco a vida e a integridade física de FF, e que tal podia causar a sua morte, o que sucedeu.

24. Mais sabia o arguido que deveriam ser utilizados equipamentos de proteção individual e medidas complementares que está obrigado a implementar, neste caso, avaliação do risco, formação do trabalhador.

25. Ao optar por não instalar essas medidas de proteção e segurança e ao não prever pela implementação dos equipamentos destinados a prevenir acidentes no trabalho, formação e conhecimento aos trabalhadores das medidas de segurança e prevenção de acidentes de trabalho na execução daquela concreta actividade, o arguido conformou-se com o resultado perigo concreto e confiou que tal perigo não se viesse sequer a concretizar.

26. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Pelo exposto, o arguido AA incorreu como autor material, na forma consumada, na prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punível no artigo 152.º B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) do Código Penal, em articulação com os artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, 8, artigo 18.º, n.º 1, 19.º, n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 4 e 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro.

A sociedade DD, LDA. é responsável penalmente pela prática de tal crime nos termos do artigo 11, n.º 2, alínea a) bem como do artigo 90.º-A, e 90.º B do Código Penal.

***

II.III - Apreciação do recurso.

A) Da suficiência dos factos e das referências normativas constantes da acusação para a imputação aos arguidos do crime de crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo artigo 152.º- B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) e 11, n.º 2, alínea a) do Código Penal.

A finalidade da fase da instrução, conforme resulta do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, é a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, o arguido a julgamento.

Atendendo ao preceituado no artigo 308.º, nº 1 do Código de Processo Penal, será proferida decisão de pronúncia quando a prova produzida permitir concluir pela presença de indícios suficientes da prática de um crime, sendo certo que o juízo acerca da suficiência dos indícios decorre da apreciação da prova realizada quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução. Nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal, na decisão instrutória “o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.”

O tribunal recorrido, em estrito cumprimento de tal comando legal, no ponto II da decisão, enunciou precisamente que procederia ao “II. CONHECIMENTO DE NULIDADES E OUTRAS QUESTÕES PRÉVIAS OU INCIDENTAIS DE QUE SE POSSA CONHECER (ARTIGO 308º, NÚMERO 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL)”. Sucede, porém, que, contrariamente ao que anunciou, não conheceu em tal ponto das nulidades da acusação, nulidades que veio a declarar no ponto seguinte intitulado de “III. DA VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE SE TEREM VERIFICADO OS PRESSUPOSTOS DE QUE DEPENDE A APLICAÇÃO AO(S) ARGUIDO(S) DE UMA PENA OU MEDIDA DE SEGURANÇA”. conjuntamente com a apreciação da suficiência dos indícios. Verificamos, pois, que, pese embora o tenha feito de forma pouco sistematizada – uma vez que, descurando as regras de precedência lógica, aliás, expressamente consignadas no nº 3 do artigo 308º do CPP acima referido, começou por apreciar a suficiência dos indícios analisando a prova produzida no inquérito – o tribunal recorrido acabou por conhecer efetivamente nas nulidades da acusação, em termos que se encontram postos em causa em ambos os recursos.

Ora, e fazendo novamente apelo às regras de precedência lógica a respeitar no que tange à ordem de conhecimento das questões que constituem o objeto dos recursos, impõe-se começar por apreciar o bem ou mal fundado da decisão recorrida no que tange aos vícios que assacou à acusação, pois que, como está bom de ver, a decisão de tal questão, para além de se revelar um imperativo legal nos termos do nº 3 do artigo 308º do CPP, condicionará o conhecimento das restantes acima enunciadas.

Identificou a decisão recorrida na acusação os seguintes vícios:

- Nulidade parcial, por violação do art.º 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, em virtude de serem conclusivos os pontos 19º, 20º e 22º, tendo-se consignado na decisão, a este propósito que: “Como nota prévia, são conclusivos os pontos 19º, 20º e 22º da acusação do Ministério Público e nessa medida deverá ser declarada a nulidade parcial da acusação por violação do art.º 283.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, no segmento em que impõe sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.”

- Insuficiência fáctica e normativa, também por violação do art.º 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, em virtude de, quer a factualidade descrita, quer as normas legais indicadas na acusação se não revelarem suficientes para fundamentar a incriminação, tendo-se consignado na decisão, a este propósito que: “No caso em apreciação, o Ministério Público estruturou a acusação na violação do dever geral de formação em matéria de segurança e saúde no Trabalho que o sinistrado não tinha. Porém, a integração fáctico-normativa da acusação é insuficiente, porquanto, conjugada a norma constante do preceito incriminador, com o art.º 127.º, n.º 1, alíneas h) [Adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;] e i) [Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença], do Código de Trabalho, não resulta da qual a concreta medida de segurança e saúde no Trabalho violada pela entidade empregadora. A igual conclusão se chega quanto à menção dos artigos 15.º, 18.º, 19.º, 20.º da Lei1 n.º 102/2009 de 10 de Setembro, sobre a existência de identificação de riscos e perigos consulta de trabalhadores, informação aos trabalhadores e formação dos trabalhadores, que nada diz sobre como o empregador deveria proceder para evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde do trabalhador.(…)

É assim necessário que ocorra a violação de uma regra, ou norma, concreta sobre a segurança no trabalho; não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do art.º 152.º-B, do Cód. Penal, e que estabeleça o nexo entre a violação e o acidente. É nosso entendimento que a acusação não descreve o nexo de causalidade adequada entre a omissão da entidade patronal e o evento danoso. Nessa medida falece a asserção de que a falta de formação ou informação ao trabalhador foi a condição da verificação do evento num juízo de prognose póstuma. (…)

Quais os equipamentos que deveriam ser zelados pela sociedade arguida e pelo seu representante para prevenir os acidentes de trabalho? Sobre a circunstância de não ter sido facultado a FF o equipamento de proteção individual: não existia por completo? Ou foi facultado e não utilizado pelo trabalhador? Quais as devidas medidas de proteção para obstar a esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos? (…)

Perante estas considerações, é manifesta a insuficiência dos elementos probatórios [faltando referir, mas certamente querendo significar-se – considerando as considerações anteriormente expendidas na decisão – que é também manifesta a insuficiência da factualidade e das referências normativas constantes da acusação] para sustentar a remessa dos autos para julgamento porque não é provável que os arguidos sejam condenados, o que determina a respetiva não pronúncia.

*

A apreciação da questão da suficiência ou da nulidade da acusação, que agora constitui o objeto da nossa análise, demanda que façamos uma breve referência ao enquadramento jurídico-penal do crime de crime de violação de regras de segurança p. e p. pelo artigo 152.º- B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) e 11, n.º 2, alínea a) do Código Penal imputado aos arguidos.

Comete um crime de violação de regras de segurança quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde.

Trata-se de:

- Um crime específico próprio, posto que a sua prática pressupõe uma relação de subordinação laboral entre o agente e a vítima, tutelando a norma penal incriminadora os bens jurídicos reportados à vida, à integridade física e à saúde psíquica ou mental do trabalhador por conta de outrem. O agente do crime é, pois, a pessoa que detém uma posição de domínio sobre o trabalhador no âmbito da relação laboral entre ambos estabelecida, e sobre quem recai a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho legalmente previstas (1).

- Um crime de perigo concreto, uma vez que exige a sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto de lesão da sua vida, de lesão grave da sua integridade física ou da sua saúde, demandando a demonstração da sujeição do trabalhador à realização de uma atividade manifestamente perigosa sem observância das respetivas regras ou condições de segurança eliminadoras ou minimizadoras do perigo.

No que diz respeito aos elementos subjetivos do tipo, o crime previsto no n.º 1 exige o dolo: dolo em relação à não observância das regras legais e regulamentares e dolo em relação ao perigo que a atividade imposta ao trabalhador implica para a vida, integridade física ou saúde deste, quando não são cumpridas aquelas regras (2). No nº 2, continuando a prever-se o dolo em relação à não observância das regras legais e regulamentares, exige-se apenas a negligência relativamente à criação do perigo. Fazendo apelo à apresentação clássica da estruturação tripartida quanto à imputação de gravidade crescente com que os crimes de perigo se encontram consagrados no Código Penal – dolo de ação/omissão + dolo de perigo; dolo de ação/omissão + negligência de perigo e negligência de ação/omissão + negligência de resultado de perigo – clarifica-se que, ao contrário do que sucede no crime de violação das regras da construção p. e p. pelo artigo 277º do CP, no crime de violação de regras que segurança p. e p. pelo artigo 152º-B do CP, nos presentes autos imputado aos arguidos, não se encontra prevista a combinação negligência da conduta/negligência do perigo. Pedindo de empréstimo as palavras da Professora Maria João Antunes na sua comunicação sobre “Responsabilidade Criminal Emergente de Acidente de Trabalho” (3), a propósito da distinção entre os mencionados tipos penais, diremos que “(…) À complexidade dogmática própria dos crimes de perigo, de perigo concreto no caso, dos comportamentos omissivos, dos crimes específicos e dos casos de agravação da pena pelo resultado e à sempre questionável remissão para normas legais, regulamentares ou técnicas, o legislador juntou as questões postas pelo concurso de normas ou concurso aparente de crimes – de crimes de violação de regras de segurança, de infração de regras de construção, de dano em instalações, de omissão de instalação de meios ou de aparelhagem, de homicídio negligente e de ofensa à integridade física grave e negligente.

Com o cuidado, apesar de tudo, de estabelecer uma relação de subsidiariedade entre o tipo legal de violação de regras de segurança e os outros tipos legais, dispondo o artigo 152.º-B que o arguido é punido com a pena aí prevista, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Com o cuidado: (…) de não punir o comportamento de quem, negligentemente, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar o trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde – no artigo 277.º, n.º 3, pune-se quem, por negligência, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas, omitir a instalação de meios ou aparelhagem destinados a prevenir acidentes;(…)” (4) (5)

Finalmente, a incriminação pelos nº 3 e 4 demanda a verificação do nexo de causalidade adequada entre a conduta do agente causadora do perigo e os resultados ali previstos, respetivamente a ofensa à integridade física grave e a morte. Relativamente à teoria da causalidade adequada, registamos que, pese embora tal teoria limite o estabelecimento do nexo de causalidade entre o facto e o dano aos danos que sejam consequência apropriada do facto, a mesma não pressupõe a exclusividade do facto determinante do dano. De outra sorte, de acordo com a formulação negativa da teoria da causalidade adequada que tem vindo a ser adotada na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores, os factos que contribuíram para a produção do dano só não serão causa adequada do mesmo quando se verifique que se revelaram totalmente irrelevantes para a sua produção. Isto é, serão causas adequadas todos os factos, ou seja, todas as condições que, uma vez suprimidas, afastam a produção do dano: são as denominadas “conditio sine qua non”, sendo que a adequação inerente ao conceito de causalidade a que alude o artigo 10.º do CP, em vista do resultado, deverá ser avaliada segundo um juízo de “prognose póstuma”. Ou seja, deverá limitar-se a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção daquele, pelo que se revela imprescindível proceder à análise da conexão do risco, devendo apenas imputar-se o resultado típico às condutas que tenham criado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico.

Ainda que o perigo tenha sido causado por negligência, tal como sucede na imputação constante dos autos, efetuada nos termos do nº 2 do artigo 152º-B do CP, a ordem jurídica, no nºs 3 e 4 do mesmo preceito, não prescinde, objetivamente, da imputação do resultado à conduta do agente, dentro da problemática da causalidade, com as especificidades de se tratar de um facto meramente culposo fundado na violação do dever objetivo de cuidado. (6)

Atendendo à sua configuração, é amplamente reconhecido que o tipo penal em análise assume a natureza de norma penal em branco, uma vez que recorre a outras normas para parcialmente descrever os pressupostos da punição. A norma penal em branco – norma primária e sancionadora – remete parte da sua concretização para outra norma – norma complementar ou integradora – com fonte normativa inferior. (7)

Algumas problemáticas associadas às normas penais em branco, mormente as que se reportam à vulneração do princípio da legalidade – colocando-se a questão de saber se a remissão de normas penais para leis, regulamentos ou até para atos administrativos põe em causa o respeito por tal princípio constitucional – têm vindo a ser tratadas na nossa doutrina e jurisprudência.

Relativamente à questão da exigência de reserva de lei na definição dos crimes, dos seus pressupostos e das respetivas penas – questão que estritamente decorre do princípio da legalidade – é entendimento unânime que desde que a norma remetente conste de lei formal (como é o caso do artigo 152º - B do CP), não existe qualquer violação do princípio da legalidade. (8)

Já no que tange à questão de saber se a norma penal em branco assegura a existência de suficiente garantia de certeza e segurança quanto aos factos que constituem o tipo legal de crime – questão que estritamente decorre do princípio da tipicidade – importa sobretudo que a descrição da matéria proibida e de todos os demais requisitos da incriminação, seja consignada de forma a que sejam determináveis os comportamentos proibidos e sancionados. O respeito pelo princípio da tipicidade nas normas penais em branco dependerá, pois, da clareza ou determinabilidade da norma para a qual a lei penal remetente reenvia, uma vez que a disposição legal ou regulamentar integra o tipo penal.

Uma última nota, em sede de considerações teóricas, relativamente à responsabilidade das pessoas coletivas. Nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 2, alínea a), do CP, as pessoas coletivas e entidades equiparadas – com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público – são responsáveis, entre outros, pelo crime p. e p. no artigo 152.º-B do CP, quando cometido em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança. O facto deverá ainda ser praticado em nome da pessoa coletiva, ou seja, é preciso que o agente, que constitui o pressuposto formal da imputação, atue formalmente no exercício das suas funções, atuando no âmbito da sua competência (9).

*

Realizado o enquadramento normativo do tipo legal imputado aos arguidos, à luz do qual deveremos apreciar a validade e suficiência do despacho acusatório, desde já adiantamos que se nos afigura não assistir razão aos recorrentes, encontrando-se, a nosso ver, a acusação deduzida nos autos ferida de nulidade, quer pelas razões, parcialmente invocadas na decisão recorrida, quer por outras que passamos a analisar com maior detalhe.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 283º, nº 3, alínea b) do CPP, “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”

Como sabemos, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são aqueles que permitem, uma vez julgados provados, considerar verificada a prática de um ilícito criminal, ou seja, fazendo apelo à definição legal de crime contida na alínea a) do artigo 1º do CPP, aqueles que formarão “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança”.

No caso dos autos, os arguidos estão acusados da prática do crime de violação de regras de segurança, “p. e p. pelo artigo 152.º- B n.º 1, n.º 2, n.º 4 alínea b) e 11, n.º 2, alínea a) do Código Penal, em articulação com os artigos 127.º, n.º 1 h), i) do Código de Trabalho e 15.º, n.º 1, n.º 2, alínea a), c), d) e), l) n.º 3 a 5, 8, artigo 18.º, n.º 1, 19.º, n.º 1, a), n.º 2, a), n.º 3 e n.º 4 e 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de setembro”.

Subsumindo o caso dos autos às explanações acima realizadas quanto aos elementos objetivos e subjetivos e demais pressupostos de punição do crime em referência e considerando que o mesmo vem imputado aos arguidos nos termos dos n.º 2 e 4 alínea b) do artigo 152º-B do CP, ou seja, na combinação dolo de conduta + negligência de perigo agravado pelo resultado morte, a que acima nos reportámos, o seu preenchimento exigirá a verificação dos seguintes elementos:

- A não observância consciente e voluntária, ou seja, dolosa, de concretas disposições legais ou regulamentares destinadas a evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde do trabalhador;

- A existência de uma relação laboral entre os arguidos e a vítima da qual decorra um dever jurídico que pessoalmente os obrigue a evitar esse perigo;

- A previsibilidade da produção do evento lesivo desses bens jurídicos e a possibilidade de o agente, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, o prever;

- A verificação do resultado típico, consubstanciado na sujeição do trabalhador a perigo para a vida, agravado pelo resultado morte e o nexo de causalidade adequada entre este e a omissão do dever de observar as disposições legais ou regulamentares aplicáveis.

Ora, tendo presentes tais coordenadas jurídicas, estamos convictos de que a acusação deduzida contra os arguidos padece de deficiência e de insuficiência insanáveis quer ao nível da indicação das concretas normas legais incriminadoras – tal como consta da decisão recorrida – quer quanto à narração dos factos, não permitindo os factos ali descritos e as normas aí indicadas fundamentar, a final, a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança, pelo que não poderemos deixar de lhe assacar o vício da nulidade.

Com efeito, a mais de a vários passos, se encontrar feita de forma conclusiva e repetitiva (10), a descrição factual constante da acusação não inclui elementos fundamentais atinentes quer aos elementos do tipo. É certo que o relatório de inquérito de acidente de trabalho realizado pela ACT e documentação conexa, juntos aos autos em 05.11.2021, assumem a vários passos um pendor conclusivo, não contendo, também eles, os factos que permitiriam sustentar o preenchimento típico do crime imputado. Porém, deveremos ter em conta que, diferentemente do despacho acusatório, que define o objeto processual, a finalidade de tal relatório é a de garantir a implementação de medidas de prevenção adequadas nos locais de trabalho, e não apurar responsabilidade criminal de potenciais infratores. Reeditando o que acima expusemos relativamente às normas penais em branco, temos por certo que o crime que na acusação se encontra imputado aos arguidos não está previsto apenas na previsão do artigo 152.º-B do CP, mas neste e nas normas legais ou regulamentares nas quais se prescrevem as regras de segurança a observar. Contrariamente ao que se afirma nos recursos, o libelo acusatório não contém as normas legais que densificam e delimitam o ilícito penal que nele se imputa aos arguidos. O que a acusação faz é indicar normas programáticas relativas à segurança no trabalho, de conteúdo absolutamente genérico, que não concretizam as condutas que deveriam ter sido observadas pelos arguidos.

Na verdade, lida a acusação, ficamos sem saber:

- Quais as concretas normas legais ou regulamentares a que se reporta a norma penal incriminadora que não foram observadas pelos arguidos;

- Quais os concretos procedimentos de segurança relativos à atividade causadora do perigo, riscos a avaliar e medidas de prevenção legalmente previstas que deveriam ter sido adotados pelos arguidos e que pelos mesmos foram desrespeitados.

- Se a observância dos concretos procedimentos de segurança relativos à atividade causadora do perigo (que não sabemos quais são!) teria permitido evitar o resultado morte.

Acresce que a acusação não concretiza igualmente quais as concretas tarefas habituais do trabalhador sinistrado, e, não obstante se afirmar que aquando do sinistro o sinistrado atuava no âmbito das suas funções e por conta da arguida (artigos 5º e 6º da acusação), não refere se o mesmo havia sido incumbido de proceder à tarefa que em concreto se encontrava a realizar, nem tão pouco se havia, ou não, sido determinado pelos arguidos que, de acordo com a sua categoria profissional de aprendiz de mecânico, o sinistrado deveria atuar sempre segundo as indicações e supervisão do colega que com ele se encontrava a realizar a descarga do veículo (artigo 6º da acusação).

Com efeito, para além de se omitirem as normas legais violadas e o que as mesmas determinariam na matéria em causa, nada, de concreto, se consignou na acusação acerca do modo de realização da descarga do veículo e quais os factos que permitem concluir que não foram acautelados, ou seja, eliminados ou mitigados, os riscos associados a tal tarefa. Ficou ainda por dizer afinal o que falhou exatamente na formação e informação transmitida ao sinistrado, especificamente a que se reporta à realização do serviço que o mesmo se encontrava a executar aquando do acidente, tendo-se omitido novamente o que prescreve a lei nesta matéria, com indicação da disposição legal ou regulamentar violada. Em concreto nada se disse sobre a metodologia adequada para descarregar o veículo, sobre as cautelas a observar no posicionamento dos trabalhadores, sobre a articulação da atuação dos mesmos, sobre os EPI´s (equipamentos de proteção individual) apropriados ou sobre eventuais medidas de proteção coletiva. Em rigor, na situação dos autos, lida a acusação, ficamos apenas a saber que a descarga do veículo se encontrava a ser realizada por dois trabalhadores, o sinistrado e o seu colega EE (artigo 6º da acusação).

Sendo o crime imputado aos arguidos um crime de omissão pura – porquanto se impõe ao agente um dever de organizar a prestação de trabalho de forma a evitar que o trabalhador corra perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde – a sua comissão ocorre por omissão das ações necessárias preconizadas nas normas legais ou regulamentares indicadas no tipo legal (artigo 10.º, nº 2 do CP). Revela-se, pois imprescindível, em nome da certeza jurídica e do princípio da tipicidade a que acima aludimos, que a acusação concretize qual ou quais delas é que prescrevem o dever de agir de determinado modo por parte dos arguidos, pois só assim será possível imputar-lhes, de forma congruente, uma omissão penalmente relevante.

Tal como pertinentemente se consignou na decisão recorrida, “(…) No caso em apreciação, o Ministério Público estruturou a acusação na violação do dever geral de formação em matéria de segurança e saúde no Trabalho que o sinistrado não tinha. Porém, a integração fáctico-normativa da acusação é insuficiente, porquanto, conjugada a norma constante do preceito incriminador, com o art.º 127.º, n.º 1, alíneas h) [Adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;] e i) [Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença], do Código de Trabalho, não resulta da qual a concreta medida de segurança e saúde no Trabalho violada pela entidade empregadora.

A igual conclusão se chega quanto à menção dos artigos 15.º, 18.º, 19.º, 20.º da Lei n.º 102/2009 de 10 de Setembro, sobre a existência de identificação de riscos e perigos, consulta de trabalhadores, informação aos trabalhadores e formação dos trabalhadores, que nada diz sobre como o empregador deveria proceder para evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde do trabalhador. (…)

Cada actividade laboral determina a aplicação de regras próprias dessa. Estas regras são as que se referem à execução da actividade laboral, e têm em comum o dizerem respeito à segurança da mesma, no que respeita ao local onde é exercida e ao equipamento manuseado, nomeadamente, as que decorrem do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro. Portanto, as regras aplicáveis são as resultantes de diploma legal, atinentes às actividades levadas a cabo nas diversas áreas em que o trabalho se desenvolve e que abranjam os respectivos riscos comportados na sua execução.

Aqui chegados, o titular da acção penal não esclarece quais são as regras aplicáveis à execução do trabalho pelo sinistrado. Omitiu-se o que a lei ou o regulamento prescrevem nesta matéria, com a indicação da disposição legal ou regulamentar violada, nem se refere qualquer dispositivo normativo constante do Decreto-lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro. (…)

É assim necessário que ocorra a violação de uma regra, ou norma, concreta sobre a segurança no trabalho; não bastando a violação de regras genéricas ou programáticas sobre esta segurança para que se dê como preenchida a previsão do nº 1 do art.º 152.º-B, do Cód. Penal, e que estabeleça o nexo entre a violação e o acidente. É nosso entendimento que a acusação não descreve o nexo de causalidade adequada entre a omissão da entidade patronal e o evento danoso. Nessa medida falece a asserção de que a falta de formação ou informação ao trabalhador foi a condição da verificação do evento num juízo de prognose póstuma. E temos, para nós, que a inobservância das regras apontadas pelo Ministério Público na sua acusação não foi causal em relação ao evento porquanto se as mesmas tivessem sido observadas o acidente poderia ter ocorrido. (…)”

*

E se as deficiências apontadas ao nível da enunciação das normas incriminadoras e dos factos atinentes ao elemento objetivo do tipo criminal imputado, concretamente no que diz respeito à violação das concretas regras de segurança, seriam por si só suficientes para reconhecer que a acusação se encontra ferida de nulidade, verificamos ainda que outra falha se regista no conteúdo de tal peça processual, desta feita porquanto da mesma também não consta qualquer alusão ao nexo de causalidade adequada que deverá ser estabelecido entre o resultado típico e a conduta omissiva dos arguidos. Com efeito, revisitando o que acima explanámos, o preenchimento do tipo não se basta com a existência de uma omissão voluntária do dever de observar as concretas disposições legais ou regulamentares aplicáveis e a verificação do resultado típico, consubstanciado na sujeição do trabalhador a perigo para a vida ou integridade física, que lhe veio a causar a morte. Necessário é ainda que se estabeleça entre uma e outro o necessário nexo de causalidade adequada, por forma a que se possa concluir que não fora aquela omissão e o resultado típico não teria ocorrido. A verdade, porém, é que tais elementos não se encontram contemplados no elenco factual enunciado na acusação deduzida nos autos contra os arguidos.

Uma breve e última referência quanto ao elemento subjetivo do tipo relativo à violação das regras de segurança, ou seja, quanto ao dolo, apenas para deixar consignado que, pese embora o conhecimento e vontade de realização do tipo previsto pelo nº 1 do artigo 152º-B e pressuposto pelo nº 2, se não encontre a nosso ver consignado factualmente da forma mais explícita – em nenhum artigo da acusação pode ler-se que os arguidos quiseram não observar as regras de segurança legalmente previstas, ou seja que agiram voluntariamente – entendemos que a leitura concatenada de todos os artigos do despacho acusatório permite considerar incluída a narração factual do dolo, na modalidade de dolo eventual, nos ponto 24. e 25. (11), afigurando-se-nos que a expressão utilizada no ponto 24. “optar”, não pode deixar de significar a existência de uma escolha, ou seja, de uma decisão voluntária.

*

O processo penal português tem estrutura basicamente acusatória, da qual decorre que a acusação delimita o objeto do processo. O tribunal não atenderá, pois, a factos que não foram objeto de acusação, limitando a sua atividade cognitiva e decisória ao acervo factual que integra tal peça processual. Subjacentes a tal princípio fundamental do nosso processo penal encontramos razões atinentes à salvaguarda das garantias de defesa do acusado, que impõem que a imputação de um crime a alguém seja feita de forma clara e rigorosa, com narração dos factos concretos dos quais aquele deverá defender-se e com indicação das normas que os criminalizam. Importante é ainda realçar neste domínio que a relevância jurídica dos factos que constituem o objeto do processo resulta da incriminação que lhes está associada. Estas serão sem dúvida as razões pelas quais a lei exige ao Ministério Público que, na acusação, faça a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança e que indique as disposições legais aplicáveis, nos termos expressamente estabelecidos no artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e d) do CPP.

*

Do que vai dito, emerge como necessária a conclusão de que a acusação se mostra duplamente inquinada: por um lado, por uma descrição factual insuficiente, conclusiva e não concretizada dos factos integradores dos elementos objetivos do tipo e do necessário nexo de causalidade adequada entre as condutas penalmente relevantes e o resultado típico e, por outro lado, pela omissão de indicação das concretas regras legais violadas e das prescrições das mesmas decorrentes.

*

Nessa medida, resulta prejudicada a apreciação das restantes questões acima enunciadas e que constituíam objeto do recurso, atinentes à suficiência ou insuficiência dos indícios da prática dos factos descritos na acusação para sustentar a decisão de pronúncia ou de não pronúncia.

Sempre se dirá, porém, relativamente à invocação dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP reportados à decisão instrutória, nos termos constantes do recurso do assistente, que a mesma se não mostra admissível, uma vez que, em linha com a jurisprudência largamente maioritária, entendemos que os mesmos são vícios próprios da sentença. (12)

No que tange ao juízo indiciário constante da decisão recorrida que, reiteramos, atendendo à verificação da nulidade da acusação, não somos já chamados a apreciar, consignamos apenas que, quer no que diz respeito às funções concretamente atribuídas ao trabalhador sinistrado, quer no que tange às informações que lhe haviam sido transmitidas verbalmente sobre a realização daquele concreto trabalho, quer quanto ao conhecimento e vontade de não respeitar as normas que estipulam as concretas regras de segurança a observar, quer ainda no que diz respeito ao nexo de causalidade adequada entre as condutas omissivas e o resultado típico, os autos não contêm, a nosso ver, suporte probatório bastante para que tais factos se considerassem suficientemente indiciados, pelo que, não fora o vício de nulidade que inquina à acusação, conhecido nos termos do artigo 308.º, n.º3 do CPP, sempre seria de manter o despacho de não pronúncia proferido pelo tribunal recorrido.

***

Nesta conformidade e pelas razões expostas, somos a concluir padecer a acusação de um vício estrutural, consubstanciado na falta de indicação das normas legais aplicáveis e dos factos que, uma vez provados, determinariam a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança. Tal deficiência encontra-se especialmente prevista na norma que respeita aos respetivos requisitos formais da acusação, aí sendo cominada com o vício da nulidade – artigo 283.º, nº 3 alíneas b) e d) do CPP – devendo aqui ser declarada nos termos previstos pelo artigo 308º, nº 3 do CPP.

Tal vício não está somente previsto no artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e d) do CPP, pois a ele se refere também a al. c) do nº 3 do artigo 311.º do mesmo Código. Com efeito, e pese embora esta última norma respeite a outra fase processual, a verdade é que se o juiz de julgamento deve rejeitar a acusação que não indique as disposições legais aplicáveis, outro não poderá ser o procedimento a adotar na fase de instrução em que os presentes autos se encontram, sendo certo que tal sindicância apenas poderia ser feita pelo juiz do julgamento caso o processo lhe tivesse sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, em conformidade com o disposto no artigo 311.º, nº 2 do CPP. (13)

Impõe-se, pois, reconhecer o vício estrutural da acusação e declarar a respetiva nulidade, (14) improcedendo, assim, ambos os recursos e devendo manter-se a decisão recorrida no que diz respeito à determinação de arquivamento dos autos, ainda que com fundamentos parcialmente diversos dos aí consignados.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos e, consequentemente, em declarar a nulidade da acusação deduzida pelo Ministério Público e determinar o arquivamento dos autos.

*

Sem custas quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público (artigo 522º, n.º 1 do CPP)

Custas pelo assistente quanto ao recurso pelo mesmo interposto, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigo 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III anexa ao RCP).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 25 de maio de 2023

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

1 Cfr. a este propósito Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, página 543.

2 Idem, página 543.

3 Maria João Antunes, “Responsabilidade Criminal Emergente de Acidente de Trabalho”, Colóquio do Direito do Trabalho, 2019, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/01/cdt2019_mariajoaoantunes_responsabilidadecriminalemergenteacidentetrabalho.pdf

4 Negrito acrescentado

5 No mesmo sentido, assumindo “a ausência da previsão no crime de violação de regras de segurança da combinação negligência da conduta/negligência do perigo, que se encontra prevista no n.º 3 do artigo 277.º”, decidiu o acórdão da Relação de Lisboa, de 07.06.2022, relatado pelo Desembargador Fernando Ventura e disponível em www.dgsi.pt.

6 A propósito da teoria da causalidade adequada neste tipo de crimes (de perigo concreto), no sentido que agora explanámos, cfr., entre outros, o acórdão desta Relação, de 12.05.2020, relatado pelo Desembargador Carlos Berguete Coelho e o acórdão da Relação do Porto de 27.05.2020, relatado pela Desembargadora Élia São Pedro, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

7 Relativamente a esta matéria, cfr. Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto, “O regime legal do erro e as normas penais em branco”, Coimbra, 1999, págs. 31 e 32.

8 Neste sentido, Figueiredo Dias Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, p.172 e vários arestos do Tribunal Constitucional que se debruçaram sobre o assunto, entre os quais os acórdãos n.ºs 427/95 de 06.07.1995; 534/98 de 07.08.1998;102/2008 de 19.02.2008 e 115/2008 de 20.02.2008, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.

9 Neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, in Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, Verbo, 2009, página 259.

10 Exemplos claros de narração conclusiva são os artigos 19º, 20º, 21º e 22º, com o seguinte teor:

“19. O arguido AA, em seu nome e representação da sociedade arguida em virtude de não garantir a adoção das devidas medidas de proteção, que obstassem ao esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos, tinha o dever funcional de agir de determinada maneira, até mesmo na responsabilidade fundada na relação de vigilância.

20. O arguido AA, em seu nome e representação da sociedade arguida omitiu o cumprimento desse dever que no âmbito da sua atividade profissional se impunha e infringiu regras legais, regulamentares ou técnicas para garantir a segurança contra comportamentos suscetíveis de colocar em perigo a vida do trabalhador.

21. A situação de perigo foi criada pelo arguido em seu nome e representação da sociedade arguida e causou a morte a FF, e era responsável pela segurança do mesmo, conhecia, ou devia conhecer as “legis artis” aplicáveis que lhe exigiam a adoção de medidas concretas e específicas para evitar esmagamento, entalamento e impacto na cabeça com obstáculos do trabalhador.

22. O arguido em seu nome e representação da sociedade arguida omitiu a implementação de meios ou medidas necessárias e adequadas, que tinha ao seu dispor, para prevenir e minimizar os riscos evidenciados e evitar tal resultado, tendo criado uma situação de perigo, que resultou na morte de FF, seu trabalhador.”

11 Têm a seguinte redação os mencionados pontos do despacho acusatório: “24. Mais sabia o arguido que deveriam ser utilizados equipamentos de proteção individual e medidas complementares que está obrigado a implementar, neste caso, avaliação do risco, formação do trabalhador.

25. Ao optar por não instalar essas medidas de proteção e segurança e ao não prever pela implementação dos equipamentos destinados a prevenir acidentes no trabalho, formação e conhecimento aos trabalhadores das medidas de segurança e prevenção de acidentes de trabalho na execução daquela concreta atividade, o arguido conformou-se com o resultado perigo concreto e confiou que tal perigo não se viesse sequer a concretizar.”

12 Efetivamente, reportando-se os aludidos vícios à matéria de facto provada e não provada, parece-nos evidente, com o devido respeito por diferente entendimento, que os mesmos só poderão dizer respeito à sentença e não à decisão instrutória, conquanto nesta última, consabidamente, não existe matéria de facto provada e não provada, mas apenas a matéria de facto suficientemente indiciada ou não suficientemente indiciada. Acresce que o facto de os aludidos vícios terem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, excluindo o recurso a quaisquer elementos externos à decisão, reforça, naturalmente o entendimento de que os mesmos não poderão ser convocados para a apreciação do recurso da decisão instrutória, pois que o conhecimento de tal recurso demanda a análise de todos os elementos indiciários constantes do processo. Por último, corroborando o entendimento propugnado, haverá ainda que atender à consequência estabelecida pelos artigos 426º e 426º-A do CPP para a verificação de qualquer um dos vícios enunciados no artigo 410º, nº 2 do mesmo código, qual seja a do “reenvio do processo para novo julgamento”, o que, para além de pressupor que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior, e não de diligências realizadas no inquérito e na instrução, obviamente, se não coaduna com a fase processual da instrução que culminou na prolação da decisão recorrida.

13 Assim decidiu também o acórdão desta Relação, de 24.05.2022, relatado pelo Desembargador Moreira das Neves, disponível em www.dgsi.pt.

14 Neste sentido se pronunciam igualmente, entre outros, João Conde Correia, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, 2022, Almedina, pp. 1201/1202 (notas ao artigo 283.º); Maia Costa, in “Código de Processo Penal Comentado”, 2021, Almedina, pp. 956/957 (notas ao artigo 283.º CPP) e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2011, Universidade Católica Editora, pp. 771 (notas ao artigo 283.º).