VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO
ELEMENTOS DO TIPO DE ILÍCITO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGIME DE PROVA
CUMPRIMENTO DE DEVERES
INDEMNIZAÇÃO DA VÍTIMA
Sumário

I. No crime de violência doméstica o bem jurídico protegido reconduz-se à integridade pessoal e física das pessoas, talqualmente a caracteriza a Constituição, nos seus artigos 25.º e 26.º. Considerando-se que no atual quadro típico cingir o bem jurídico à saúde, ainda que na sua dimensão ampla, integrando a saúde física, psíquica e mental será redutor.
II. O crime de violência doméstica visa punir as condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam como um exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a intimidade, a liberdade ou a honra do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes tratada como uma mera «coisa»). Este referente axiológico entretece-se com questões de natureza cultural, de mentalidades e de índole socioeconómica.
III. Contrariamente ao comportamento apenas agressivo, o comportamento violento não giza (apenas) fazer mal à outra pessoa (ainda que habitualmente isso aconteça). O objetivo final do comportamento violento é submeter o outro mediante o uso da força.
IV. O tipo objetivo tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.
V. Sendo o elemento subjetivo composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), «o dolo implicará o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, assim como o conhecimento e vontade da conduta e do resultado, consoante os comportamentos em causa configurem tipos formais ou materiais». Não exigindo o ilícito de violência doméstica qualquer elemento subjetivo específico.
VI. A fixação de regime de prova e de cumprimento de deveres como condição da suspensão da execução da pena de prisão, está prevista na lei, incluindo, a subordinação da suspensão ao pagamento (no todo ou em parte) da indemnização devida ao lesado.
VII. Trata-se de um modo de através da pena lograr a reparação do mal causado pelo crime, numa perspetiva aproximativa ao paradigma da justiça restaurativa, com efeitos benévolos numa perspetiva de preventiva (de satisfação concomitante das exigências de prevenção geral com as necessidades de prevenção especial).

Texto Integral

I – Relatório
1. No 2.º Juízo (1) Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, com tribunal singular, de AA, nascido a …1965, com os demais sinais dos autos, a quem a acusação imputava a autoria, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b), § 2.º, al. a), § 4.º e § 6.º do Código Penal (CP).

BB, ofendida, constituída assistente, formulou pedido civil (PIC), peticionando a condenação do arguido/demandado no pagamento de uma indemnização de 2 500€, a título de danos não patrimoniais sofridos, decorrentes da conduta perpetrada daquele sobre a sua pessoa.

A final o tribunal proferiu sentença na qual condenou o arguido como autor de um crime de violência doméstica agravado, previsto no artigo 152.º, § 1.º, al. b) e c), § 2.º, al. a) e § 4 CP, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, sujeitando-o a um regime de prova, assente num plano de reinserção social que integre as vertentes da inserção socioprofissional e de sujeição a um acompanhamento especializado ao nível da problemática da violência doméstica; e na condição de pagar a indemnização fixada à ofendida, no prazo de 2 anos; mais o condenando na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida durante o período de 2 anos (com exceção dos contatos estritamente necessários aos assuntos do filho comum).

Mais o condenando no pagamento à assistente/demandante civil de uma indemnização no valor de 1 700€, a título de danos não patrimoniais causados, acrescida esta de juros moratórios «vencidos e vincendos, calculados desde a data da notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento».

Inconformado com a decisão recorreu o arguido, rematando a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

«1. O arguido foi julgado, vindo a ser condenado pelo tribunal ora recorrido pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de 1 crime de violência doméstica, p. e p. nos art.ºs 152.º, ns.º 1, als. b) e c) e 2, al. a), do CP.

2. Porém, entende-se que, tendo em conta os factos dados como provados, o Tribunal deveria ter concluído pela ausência da verificação dos elementos do tipo do crime de violência doméstica.

3. De facto, entende a Jurisprudência que “a conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.”

4. Ora, a conduta do arguido, consubstanciada nos factos dados como provados, embora penalmente relevante, não representa uma situação de maus tratos da qual resulte, ou seja suscetível de resultar, sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima, que em nenhum dos casos teve necessidade de recorrer a assistência médica ou hospitalar.

5. Aliás, os dois episódios ocorridos em dois momentos, mediados por cerca de dois anos de diferença entre si, não transcendem a proteção oferecida pelos crimes de ofensas à integridade física simples e de injúrias (sem prejuízo das necessárias condições objetivas de procedibilidade).

6. Face à relativa baixa gravidade da conduta do recorrente e grande dispersão temporal, não resulta que tivesse sido intenção do arguido maltratar física e psicologicamente assistente, causando-lhe medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher.

Deste modo,

7. Verifica-se, manifestamente erro na aplicação do direito: o arguido foi condenado por crime de violência doméstica quando dos factos provados resultou não se mostrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo.

8. De facto, para que se possa considerar que existe crime de violência doméstica, para além de se verificar esse preenchimento, deve ficar demonstrado o ascendente físico ou psicológico do agressor sobre aquele ou aquela que, não é um mero ofendido, mas uma verdadeira vítima.

9. Assim, não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que ali cabem, mas só aquelas que se revistam de uma certa gravidade, só aquelas que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação.

10. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de "maus tratos". E estes só se verificam quando a ação do agente concretiza atos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima.

11. Para que o crime se verifique, é essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal atuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objeto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar”, o que no caso não se verificou.

12. Assim, não resulta do elenco dos factos provados uma atuação, por banda do arguido, que houvesse causado lesões graves, intoleráveis ou pesadas na assistente, ou que revelem desprezo e desconsideração pela ex-companheira.

13. Do exposto se conclui que o Tribunal a quo, na avaliação da prova, apesar do esforço na fundamentação, errou na qualificação jurídica dos factos ao condenar o arguido pelo crime de violência doméstica, donde, inexistindo os elementos objetivo e subjetivo do crime, o arguido terá de ser absolvido da prática deste crime, com todas as consequências legais daí advenientes, o que ora se requer.

Por cautela de patrocínio

14. Se a posição assumida pelo recorrente não tiver acolhimento por V. Exas., sempre se dirá que a condenação sofrida pelo arguido é excessiva, atento o disposto nos art.ºs 40.º e 70º do CP.

15. O Douto Acórdão recorrido não sopesou, como deveria, as condições pessoais do arguido, vertidas no Relatório Social, mormente, as atinentes aos motivos que conduziram aos episódios a que se reportam os autos, ou seja, o consumo, por banda do casal, de produtos estupefacientes e a atual abstinência do recorrente.

16. Assim, e em abstrato, aduz-se que há que atender ao princípio de que as penas devem ter uma função ressocializadora.

17. Aliás, a aplicação de penas, conforme dispõe o art.º 40º do CP, visa não só a proteção de bens jurídicos mas também a reintegração do agente na sociedade.

18. Donde, a manter-se qualquer condenação, esta deverá ser reduzida e substituída por outra que cumpra as finalidades da punição.

19. O que se não verificou em primeira instância, violando, deste modo, a teoria do fim das penas, pilar do nosso direito penal, na vertente da ressocialização.

20. De facto, o Tribunal a quo não só aplicou uma pena de prisão pesada ao arguido como sujeitou a sua suspensão ao pagamento da quantia de 1750,00 € à assistente, bem sabendo que o recorrente não tem condições económicas e financeiras de a pagar.

21. Ora, atenta a prova produzida quanto às condições sociais do arguido, tal condição é manifestamente impossível de cumprir.

22. Nos termos do n.º 2 do art.º 51º do CP, os deveres impostos como condição para a suspensão da pena “… não podem, em caso algum, representar para o condenado, obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.

23. O arguido encontra-se desempregado, com 57 anos de idade, sem formação que lhe permita, no atual mercado de trabalho, conseguir emprego.

24. E também é certo que o arguido não tem condições para obter qualquer empréstimo junto de qualquer instituição financeira que lhe permita cumprir a condição.

25. E, se as condições de vida do arguido se alterarem a assistente sempre poderá executar o património do recorrente!

26. Assim, a manterem-se os termos da condição imposta, mostra-se violado o direito fundamental da igualdade perante a Lei, consignado no art.º 13º da CRP, segundo o qual ninguém pode ser prejudicado em razão da sua situação económica.

27. Ora, à aplicação desta condição, subjaz o preconceito de que quem tiver capacidade económica vê a execução da pena de prisão suspensa e, quem a não tiver, cumpre pena de prisão efetiva.

28. A aplicar-se o art.º 51º do CPP no sentido em que se pode aplicar condição para a suspensão da pena absolutamente impossível de cumprir, tal entendimento é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 2º, 13º e 18º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente se argui.

29. A manter-se a condição da suspensão da pena de prisão, e não foi isso que o Tribunal a quo pretendeu, o arguido cumprirá efetivamente a pena em que foi condenado

30. Donde, se mostra violado, também, o disposto no art.º 51º do CPP.

31. Afastada que fosse a violação dos citados normativos, e afastando-se a aplicação da condição para a suspensão da pena de prisão, o Douto Tribunal decidir-se-ia como pugnado, o que ora se requer.

Por fim,

32. Quanto à reparação arbitrada a favor da vítima, e caso se não entenda pela absolvição do recorrente, o montante arbitrado é claramente desproporcional, atentos os critérios definidos na Lei Civil.

33. O Douto Tribunal desconsiderou as circunstâncias de vida do arguido, violando o princípio da equidade, bem sabendo, porquanto resultou provado, que o arguido é pobre e vive com ajuda de familiares próximos.

34. Não resulta de qualquer elemento ou prova produzida nos autos que a assistente tenha ficado com sequelas permanentes, quer seja a nível físico quer seja a nível psicológico

35. Assim, e atentos os critérios consignados no art.º 496º do CC, que no caso se mostra violado, por desaplicação, a compensação de 1750,00 € é manifestamente exagerada e desproporcional pelo que, caso se não entenda pela absolvição do arguido, com todas as consequências legais daí decorrentes, deverá ser fixado montante “indemnizatório” que leve em conta os danos, praticamente inexistentes da assistente, mas também as reais possibilidades do condenado, o que ora se requer.

Tendo em consideração todo o exposto;

Sem prescindir do douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser apreciado em conformidade, merecer provimento, e

Decidir-se pelo erro na subsunção dos factos ao direito no que tange ao crime de violência doméstica, absolvendo-se o arguido da prática deste crime.

ou

Mantendo-se a condenação, reduzir-se a pena para os mínimos legais, por se mostrarem, deste modo, cumpridas as finalidades da punição, revogando-se a condição para a suspensão da pena.

Ou, caso a condenação se mantenha,

Revogar a sentença no que tange à condição de suspensão da pena e, ainda,

Decidir-se pela redução do montante arbitrado a título de reparação, em cumprimento do princípio da equidade.»

Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência e improcedência, aduzindo, conclusivamente, que:

«1. A sentença recorrida condenou o arguido relativos ao filho comum; pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, nº 1, al. b) e c) e nº 2, al. a) do C.P., na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, com subordinação a regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que deverá observar as vertentes da inserção socioprofissional e de sujeição a um acompanhamento especializado ao nível da problemática da violência doméstica, e na condição de o arguido, pelo prazo de 2 (dois) anos, se afastar da vítima BB, sendo que a proibição de contacto é por qualquer meio, seja diretamente, seja por interposta pessoa, e sob todas as formas (proibição de contactos telefónicos, presenciais e/ou por redes sociais), incluindo a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar à residência da vítima ou ao seu local de trabalho, e na condição de o arguido, no prazo de 2 anos, a contar da data do trânsito em julgado da presente sentença, proceder ao pagamento à demandante BB de uma quantia não inferior a € 1.750,00; mais condenou o arguido AA na pena acessória de proibição de contacto com a sua ex-companheira, a vítima BB, pelo período de 2 (dois) anos, excetuando-se os contactos estritamente necessários para tratar de assuntos relativos ao filho comum;

2. Os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra. Trata-se de um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), na medida em que a sua consumação pressupõe, respetivamente, uma lesão no bem jurídico;

3. Este ilícito pressupõe que a vítima se encontre numa das situações descritas nas alíneas do n.º 1 do referido preceito legal, sendo um crime específico, ou seja, um crime que apenas pode ser perpetrado por uma pessoa com determinadas qualidades (em relação à vítima) previstas na norma incriminadora;

4. O tipo subjetivo só pode ser preenchido dolosamente. O conhecimento correto da identidade e das características da vítima é aqui fundamental para a conformação do dolo do agente.

5. Como muito bem se refere na fundamentação do douto Acórdão da Relação de Évora, de 19.01.2016: “Tratando-se de um crime de execução não vinculada, requer-se apenas que a conduta maltratante consubstancie atos ou omissões adequadas, pela sua intensidade ou pela sua reiteração, a afetar a saúde física ou psíquica da vítima. O conceito de “maus-tratos” inclui tanto os casos de “micro violência continuada”, caracterizados pela “opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica que, apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação”, como “os atos que pelo seu carácter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima” (Nuno Brandão, na Revista Julgar, nº 12).”

6. Vertendo as presentes considerações aos factos, e tendo em conta a factualidade provada, em nosso entender encontram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica;

7. Desde logo está identificada a especial relação entre agente e vítima, exigida pelo tipo de crime; o arguido AA viveu em comunhão de mesa e habitação com a vítima BB, como se casados fossem, durante um período de cerca de dois anos e quatro meses, desde meados do mês de novembro de 2018, até finais do mês de março de 2021.

8. Acresce que as condutas do arguido causaram à vítima BB, de modo repetido, como foi propósito do arguido, dores, humilhação, sofrimento e medo, com clara violação de dever de respeito, como pessoa, companheira e mãe do seu filho, ofendendo-a na sua integridade física, honra e consideração, humilhando-a.

9. Na verdade, a factualidade apurada, reveste elevada ilicitude e gravidade, demonstrando claramente a vontade do arguido em impor a sua superioridade física à pessoa da ofendida, pelo uso de violência física, verbal e sexual, não obstante saber tratar-se da sua companheira e da mãe do seu filho;

10. Nesta conformidade, considera-se que bem andou a decisão em crise pois da prova produzida em audiência de julgamento resultaram demonstrados factos integradores de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, do CP, crime pelo qual o arguido foi corretamente condenado.

11. No que respeita à medida concreta da pena, a mesma terá como limite máximo a culpa do agente revelada nos factos por si praticados (art.º 40º, nº2, do C.P., e terá de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral que, in casu, são consideráveis tendo em conta as mais elementares regras de convivência social consagradas na nossa Lei fundamental, que afastam este tipo de condutas nefastas, razão pela qual se impõe a afirmação, de modo urgente e indubitável, da efetividade e da validade das normas que punem tais condutas, através da condenação de quem incorre nas mesmas;

12. Importará, assim, aqui sopesar as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, para alcançar a medida da pena justa e adequada à satisfação das mencionadas necessidades e cumprimento das aludidas finalidades que presidem às penas, tendo por base a moldura penal abstrata que, no caso concreto, se situa entre os 2 e os 5 anos de prisão;

13. A favor do arguido temos as suas condições pessoais, encontrando-se inserido familiarmente;

14. Contra o arguido temos: o grau de ilicitude dos factos, que se afigura elevado atendendo ao modo, reiteração, sendo que pate dos factos ocorreram no interior do domicílio comum; o grau de culpa do arguido, também elevado, que atuou com dolo direto, revelando falta de autodomínio e refreamento de impulsos; as exigências de prevenção especial, que não são reduzidas uma vez que o arguido à data dos factos já tinha sido alvo de condenações e em julgamento demitiu-se das suas responsabilidades, tendo negado os factos demonstrando ausência de juízo crítico e falta de arrependimento; as exigências de prevenção geral, que são elevadas, atenta a frequência deste tipo de crimes na nossa sociedade, sendo um fenómeno transversal a todos os estratos sociais; e as exigências de prevenção especial, que não podem considerar-se reduzidas atentas as condenações anteriores e a postura do arguido caracterizada pela demissão das responsabilidades, tendo negado a prática dos factos demonstrando ausência de juízo crítico para com o desvalor dos mesmos e falta de arrependimento genuíno

15. Atendendo ao exposto, tudo ponderado, olhando os factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, consideramos adequada e ajustada a pena aplicada e fixada em concreto nos 3 anos de prisão, já que tendo em conta o exposto a pena aplicada não poderia ser fixada junto do limite mínimo.

Deste modo, entendemos que a douta sentença não merece censura devendo ser mantida na integra.»

A assistente não recorreu nem apresentou resposta ao recurso do arguido.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, secundou integralmente a posição assumida na resposta produzida na 1.ª instância.

No exercício do contraditório nenhuma resposta se apresentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação A. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP). E, nessa sequência, as questões que cumpre apreciar são as seguintes: 1. Erro de julgamento quanto à qualificação jurídica dos factos praticados; 2. Erro de julgamento na determinação concreta da medida da pena; 3. Erro de julgamento quanto à condição fixada à suspensão da execução da pena de prisão; 4. Erro de julgamento relativamente ao montante fixada à indemnização.

B. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

«Da discussão da causa, com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em meados do mês de novembro de 2018, o arguido e a ofendida BB, iniciaram relação análoga à dos cônjuges, com comunhão de cama e mesa, fixando a casa de morada de família na Rua …, n.º…, em ….

2. Deste relacionamento, resultou o nascimento do filho de ambos, CC, em …2020.

3. Este relacionamento análogo ao dos cônjuges, durou cerca de 3 anos, ocorrendo várias interrupções, motivadas por discussões.

4. No dia 2 de agosto de 2019, pela 01H00, a ofendida após sair do trabalho, dirigiu-se à casa de morada de família, local onde foi abordada pelo arguido, que a agarrou de forma violenta e a atirou para cima da cama do quarto do casal, chamando-a de “puta” e de “cabra”.

5. Ato continuo, o arguido colocou-se sobre o corpo da ofendida, imobilizando-a, e seguidamente colocou um dos dedos da mão, no interior da boca da companheira, puxando-a.

6. Em resultado desta conduta do arguido, a ofendida ficou com marcas arroxeadas visíveis nos membros superiores e sofreu ferimento no lábio.

7. Em novembro de 2019, a ofendida engravidou do filho menor de ambos.

8. No dia 26 de março de 2021, em hora não apurada, no interior da casa de morada de família, à data situada na Rua …, …, em …, a ofendida comunicou ao arguido que pretendia cessar a relação que mantinham, solicitando-lhe que abandonasse o imóvel que partilhavam e que lhe devolvesse a chave da residência.

9. Mas o arguido não aceitou esta decisão, e reagiu de imediato violentamente, agarrando com força os dois membros superiores da ofendida e aproximando a sua boca, da boca da companheira, com intensão de lhe morder um dos lábios.

10. Ato contínuo, o arguido desferiu um pontapé sobre o membro inferior da ofendida.

11. Posto isto, o arguido desferiu um empurrão sobre o corpo da ofendida, cuja violência do impacto levou a que esta fosse projetada contra a parede do imóvel, desequilibrando-se e caindo no solo.

12. Em resultado desta conduta do arguido, a ofendida BB, sofreu marcas visíveis nos membros inferiores e nos membros superiores, sem necessidade de assistência hospitalar.

13. O arguido e a ofendida terminaram definitivamente o relacionamento em março de 2021, altura em que passaram a residir em domicílios distintos.

14. As injurias e agressões supra descritas ocorreram no interior da residência da vitima.

15. O arguido agiu da forma supra descrita, bem sabendo que atingia o corpo e a saúde da sua companheira BB, dirigindo-lhe expressões e condutas humilhantes, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física, prejudicando o seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua honra e dignidade humana e colocando em causa a sua paz e sossego.

16. O arguido sabia que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de as realizar.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:

17. A ofendida BB possui, como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade.

18. Exerce a atividade profissional de gestora comercial, auferindo um salário líquido mensal variável, que se computa entre entre os 500€ e os 650€.

19. Vive em casa arrendada, na companhia do filho CC.

20. Paga a quantia mensal de € 552,37 de renda de casa.

21. Beneficia da ajuda económica dos pais e do irmão.

22. O arguido AA nasceu há 57 anos em …, inserido no agregado familiar de origem, composto pelos pais e irmãos, sendo o segundo de uma fratria de cinco filhos do casal. O pai do arguido era médico e a mãe assumia a gestão doméstica e o cuidado dos descendentes.

23. O agregado familiar regressou a Portugal em 1975, no contexto do processo de descolonização, processo sentido pelo arguido, que à data tinha 10 anos de idade, como muito traumático, tendo sentido dificuldades na adaptação ao novo contexto.

24. O percurso escolar do arguido em Portugal teve início num colégio privado em …, que frequentou até à conclusão do primeiro ciclo do ensino básico, tendo concluído os estudos secundários no ensino público, através da frequência de um curso técnico-profissional na área da construção civil, que lhe conferiu equivalência ao 12.º ano de escolaridade.

25. O percurso laboral de AA teve início aos 18 anos de idade, como ajudante de despachante para o Despachante Oficial “…”, em paralelo com o casamento com a namorada, na sequência de gravidez não planeada, tendo sido pai aos 19 anos. O relacionamento conjugal durou cerca de 8 anos, ficando a menor entregue aos cuidados da progenitora, após a separação do casal.

26. No final dos anos 80, o arguido perdeu o trabalho no Despachante Oficial, tendo então frequentado um curso de Consultor de Comércio Externo. Em 1997 passou a trabalhar no …, no controlo de qualidade da pintura automóvel, onde se manteve até 1999.

27. Em 1999 o arguido emigrou para …, onde permaneceu durante cerca de 12 anos, trabalhando inicialmente como funcionário numa estação de serviço/gasolineira, progredindo até atingir um posto de supervisão. Nesse período, o arguido frequentou vários cursos de formação profissional naquele país, incluindo o de “Personal Trainer” e “Gestão de Condomínios”, tendo também desenvolvido atividades laborais nestas áreas.

28. Em paralelo, o arguido manteve uma união de facto durante cerca de 8 anos com uma cidadã inglesa, contexto em que nasceu o seu segundo filho. Para a rutura desta relação contribuiu a prisão do arguido, acusado e posteriormente condenado pela prática de um crime de auxílio à emigração ilegal, numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva, de que cumpriu dois anos, em Inglaterra, entre 2009 e 2011, aceitando a deportação para Portugal nessa altura.

29. O regresso ao país ocorreu em 2011, fixando-se o arguido na zona de …, na sequência de uma oportunidade de trabalho como “personal trainer” num condomínio privado, que conseguiu por intermédio de uma amiga, DD, com quem posteriormente, em 2013, encetou relacionamento que evoluiu para união de facto.

30. Este período da vida do arguido foi pautado pelo consumo de estupefacientes, nomeadamente cocaína, o que se traduziu no regresso a um estilo de vida desregrado e centrado nos necessários expedientes para obtenção das drogas, tendo ingressado, com o apoio financeiro da família, numa Comunidade Terapêutica em …, de onde saiu passados três meses, sem alta clínica.

31. O arguido e a companheira, DD, mudaram-se para … em 2015, registando elevada mobilidade a nível habitacional, subsistindo dos rendimentos de uma farmácia de que a segunda era proprietária, localizada no norte do país, e de trabalhos intermitentes do arguido em restaurantes, tendo o relacionamento de ambos terminado no ano de 2018.

32. No período da relação do arguido com a vítima BB, o casal vivia de forma modesta, subsistindo com os rendimentos das atividades laborais de ambos, trabalhando inicialmente a ofendida como gerente de um restaurante de “fast-food” e o arguido como empregado num restaurante em …, tendo-se a situação financeira agravado no contexto da situação de pandemia, com a inatividade laboral do arguido, tendo BB passado a trabalhar como comercial.

33. Desde a separação do casal, o arguido reside com a mãe em …, e tem trabalhado de forma intermitente na construção civil, em restauro de móveis e na restauração. Desde setembro último encontra-se a trabalhar, juntamente com um empreiteiro, para um seu ex-cunhado, na remodelação de uma casa de sua propriedade. Aufere cerca de 45€ por dia de trabalho (trabalha 6 dias por semana), mantendo um estilo de vida centrado na atividade laboral, deslocando-se em transporte público entre … e …, com um custo de 30€ mensais referente ao passe social. Cumpre o pagamento da pensão de alimentos a favor do filho, no valor de 100€ e contribui com 100€ mensais para as despesas domésticas.

34. O arguido mantém um contacto regular com o filho adolescente, residente em Inglaterra, que o vem visitar a Portugal, mantendo um relacionamento cordial com as mães dos seus filhos mais velhos.

35. Encontra-se inscrito no Centro de Emprego e Formação Profissional e mantém um processo de procura ativa de trabalho, com o objetivo de conseguir uma colocação laboral que lhe proporcione um contrato e uma maior estabilidade.

36. Encontra-se abstinente do uso de cocaína há cerca de um ano e sete meses, frequentando regularmente as reuniões dos Narcóticos Anónimos.

37. O arguido AA tem as seguintes condenações averbadas no respetivo registo criminal:

- pela prática, em 20/08/2012, de um crime de furto simples, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 10€, o que perfez o total de 500€, por sentença transitada em julgado em 01/02/2013, já declarada extinta em virtude do pagamento;

- pela prática, em 23/08/2012, de um crime de furto simples, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6€, o que perfez o total de 720€, por sentença transitada em julgado em 26/04/2013, já declarada extinta em virtude do pagamento;

- pela prática, em 05/06/2013, de um crime de injúria, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 10€, o que perfez o total de 600€, por sentença transitada em julgado em 04/04/2016; e

- pela prática, em 13/05/2013, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos de prisão, declarada suspensa na sua execução por igual período, com subordinação a regime de prova e à condição de, no prazo de dois anos a contar da data do trânsito em julgado, proceder ao pagamento à demandante uma parcela mínima de 2 500€ da indemnização civil arbitrada, por sentença transitada em julgado em 13/11/2017, já declarada extinta.»

C. Conhecendo dos fundamentos do recurso

C.1 Da qualificação jurídica dos factos

Sustenta o recorrente que os factos provados não são integradores do ilícito de violência doméstica, previsto no artigo 152.º CP, mas apenas de dois crimes de ofensa à integridade física e um crime de injúria, previstos nos artigos 143.º, § 1.º e 181.º, § 1.º CP. Para tanto considera que para a verificação do crime de violência doméstica «é essencial que fique demonstrado que a conduta ilícita “atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade”, de molde a poder concluir-se que, com tal atuação, o agressor tratou a vítima como mera “coisa” ou “objeto” e não como sua igual, como pessoa livre, titular de direitos que está obrigado a respeitar.»

Sustenta que o traço caracterizador e «distintivo» deste crime, «relativamente aos demais que protegem a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.» Mas não tem razão. Como bem lembra o Ministério Público o crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do Código Penal, é um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objeto da ação), na medida em que a sua consumação pressupõe, respetivamente, uma lesão no bem jurídico. O bem jurídico protegido reconduz-se à integridade pessoal e física das pessoas, talqualmente a caracteriza a Constituição, nos seus artigos 25.º e 26.º. Considerando-se que no atual quadro típico cingir o bem jurídico à saúde, ainda que na sua dimensão ampla, integrando a saúde física, psíquica e mental (2) será redutor. Se bem se vir a atual descrição típica do ilícito dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito para além do espartilho que a inserção sistemática do tipo de ilícito em causa indicia (o crime de violência doméstica está inserido no capítulo do Código Penal dedicado aos crimes contra a integridade física).

Com efeito, a atual formulação do tipo de ilícito, introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro (que até então se denominava de «maus tratos»), passou a abranger também, expressis verbis, as limitações à liberdade e a liberdade sexual, tutelando igualmente a reserva da intimidade da vida privada e a honra.

Ora, a integridade pessoal e física das pessoas constitui-se como um bem jurídico autónomo, pluriofensivo, com expressão nos citados artigos 25.º e 26.º da Constituição, (3) reportado a um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, umbilicalmente ligado à sua própria dignidade, nos termos em que se funda o Estado português (artigo 1.º da Constituição).

Ademais o princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base de todos os direitos constitucionalmente consagrados. «Os direitos fundamentais não têm sentido nem valem apenas pela vontade (…) que historicamente os impõe». (4)

É, pois, justamente por referência à tutela da integridade pessoal, que o crime de violência doméstica visa punir as condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam como um exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a intimidade, a liberdade ou a honra do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes tratada como uma mera «coisa»). (5) Este referente axiológico entretece-se com questões de natureza cultural, de mentalidades e de índole socioeconómica.

A violência conjugal ou equiparada constitui deveras «uma forma de exercício do poder, mediante o uso da força (física, psicológica, económica, política). Constituindo-se o recurso à força como um método possível de resolução de conflitos interpessoais, procurando o agressor que a vítima se sujeite ao que ele pretende, que concorde com ele ou, pura e simplesmente, que se anule e lhe reforce a sua posição/identidade.» (6)

No entanto, e contrariamente ao comportamento apenas agressivo, o comportamento violento não giza (apenas) fazer mal à outra pessoa (ainda que habitualmente isso aconteça). O objetivo final do comportamento violento é submeter o outro mediante o uso da força. O tipo objetivo tem por referência a inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa equiparada, neles se incluindo as condutas que se substanciem em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual e privações da liberdade que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

Sendo o elemento subjetivo composto pelo dolo genérico, id est (o conhecimento e vontade de praticar o facto), em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual), «o dolo implicará o conhecimento da relação subjacente à incriminação da violência doméstica, assim como o conhecimento e vontade da conduta e do resultado, consoante os comportamentos em causa configurem tipos formais ou materiais».(7) Não exigindo o ilícito de violência doméstica qualquer elemento subjetivo específico (8), como parece preconizar o recorrente.

Vejamos, então, como é que a sentença recorrida descreve o quadro circunstancial das agressões:

«4. No dia 2 de agosto de 2019, pela 1h, a ofendida após sair do trabalho, dirigiu-se à casa de morada de família, local onde foi abordada pelo arguido, que a agarrou de forma violenta e a atirou para cima da cama do quarto do casal, chamando-a de “puta” e de “cabra”.

5. Ato continuo, o arguido colocou-se sobre o corpo da ofendida, imobilizando-a, e seguidamente colocou um dos dedos da mão, no interior da boca da companheira, puxando-a. 6. Em resultado desta conduta do arguido, a ofendida ficou com marcas arroxeadas visíveis nos membros superiores e sofreu ferimento no lábio. (…)

8. No dia 26 de março de 2021, em hora não apurada, no interior da casa de morada de família, à data situada na Rua …, em …, a ofendida comunicou ao arguido que pretendia cessar a relação que mantinham, solicitando-lhe que abandonasse o imóvel que partilhavam e que lhe devolvesse a chave da residência.

9. Mas o arguido não aceitou esta decisão, e reagiu de imediato violentamente, agarrando com força os dois membros superiores da ofendida e aproximando a sua boca, da boca da companheira, com intensão de lhe morder um dos lábios.

10. Ato contínuo, o arguido desferiu um pontapé sobre o membro inferior da ofendida.

11. Posto isto, o arguido desferiu um empurrão sobre o corpo da ofendida, cuja violência do impacto levou a que esta fosse projetada contra a parede do imóvel, desequilibrando-se e caindo no solo.

12. Em resultado desta conduta do arguido, a ofendida BB, sofreu marcas visíveis nos membros inferiores e nos membros superiores, sem necessidade de assistência hospitalar. (…) 15. O arguido agiu da forma supra descrita, bem sabendo que atingia o corpo e a saúde da sua companheira BB, dirigindo-lhe expressões e condutas humilhantes, debilitando-a psicologicamente, fazendo-a recear pela sua integridade física, prejudicando o seu bem-estar psicossocial, ofendendo-a na sua honra e dignidade humana e colocando em causa a sua paz e sossego.

16. O arguido sabia que tais condutas lhe estavam vedadas por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de as realizar.»

As condutas protagonizadas pelo arguido nos dois momentos de violência que se descrevem, caracterizam-se não apenas pelos atos objetivamente praticados, mas também pelo quadro circunstancial e intencional que aqueles revelam.

Deste modo se evidenciando que o arguido agrediu a vítima, sua companheira, nessas duas diferentes ocasiões, no espaço comum de habitação, porque sabia que ela estava à sua mercê e que não tinha como obstar à sua vontade, o que, indubitavelmente, remete tais agressões para o âmbito da tutela conferida pelo crime de violência doméstica.

E, deveras, como tais agressões ocorreram no domicílio comum do casal, o crime foi praticado na sua forma agravada, nos termos previstos na al. a) do § 2.º do artigo 152.º do CP. Não se verifica, pois, qualquer erro de julgamento na qualificação jurídica dos factos provados.

C.2 Da medida concreta da pena Decorre da lei processual e vem sendo sublinhado pela doutrina e pela jurisprudência, que os recursos penais estão vocacionados para corrigir erros de julgamento, despistando ou corrigindo, cirurgicamente, eventuais erros in judicando (por violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (por violação de normas de direito processual), paradigma esse que abrange o iter decisório sobre a pena. (9) Por isso a reapreciação pelo tribunal superior deve partir dos fundamentos assinalados pelo recorrente, aferindo se na decisão recorrida se desconsideraram ou se desrespeitaram princípios constitucionais ou legais, ou se preteriram regras e vetores relevantes para escolha e determinação da medida da pena. Não abrangendo tal reapreciação «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada».(10)

Vejamos, então.

O recorrente sustenta no essencial que a pena concreta é excessiva e por isso injusta, devendo fixar-se próximo do limite mínimo da moldura abstrata, tendo em consideração o princípio de que as penas devem ter uma função ressocializadora (artigo 40.º CP) e as regras atinentes à escolha da pena (70.º CP). Não se tendo devidamente valorado o quadro circunstancial de consumo de estupefacientes por banda do casal e a atual abstinência do recorrente.

Neste conspecto o Ministério Público considera que a pena aplicada se mostra ajustada a todo o quadro circunstancial, referindo especialmente ser elevado o grau da ilicitude dos factos e elevada também a culpa, havendo razões de prevenção especial (antecedentes criminais e por ter «negado os factos demonstrando ausência de juízo crítico e falta de arrependimento»).

O crime cometido pelo recorrente é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos (artigo 152.º, § 2.º CP).

A sentença recorrida motivou nos seguintes termos o balanceamento feito tendo em vista a fixação da pena concreta:

«Para graduar a pena a aplicar ao arguido, há que ter em conta os critérios previstos no art. 71.º do Cód. Penal, tendo como referência a culpa do agente e as exigências de prevenção.

O n.º 2 da citada disposição legal estabelece que o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem contra ou a favor do agente, enunciando algumas dessas circunstâncias nas suas alíneas:

(…)

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do Cód. Penal devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afetados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afetados.

Assim, nesta perspetiva, valorando a matéria fáctica provada nos termos do art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, importa atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do arguido e contra ele, designadamente:

- quanto à culpa, a mesma molda-se, no caso, na modalidade de dolo direto, sendo de grau elevado, resultando das factos provados que o arguido deve ser alvo de elevado juízo de censura ético-social;

- a ilicitude presente na prática dos factos atingiu muito elevado grau, tendo em consideração que as suas atuações foram levadas a cabo em duas ocasiões distintas, a saber, no dia 2 de agosto de 2019 e no dia 26 de março de 2021, considerando ainda as concretas condutas do arguido e as consequência no corpo, na saúde e na honra e consideração da vítima BB, e tendo em conta o respetivo modo de execução, de que resultaram relevantes consequências, uma vez que a ofendida, em consequência direta e necessária das agressões de que foi vítima, sofreu, para além de dores, numa ocasião, marcas arroxeadas visíveis nos membros superiores e ferimento no lábio, e na segunda ocasião, marcas visíveis nos membros inferiores e nos membros superiores, não tendo, em nenhuma das ocasiões, carecido de receber tratamento médico ou hospitalar, e, em consequência das expressões injuriosas que lhe foram endereçadas, sentiu-se humilhada na sua honra e consideração;

- as razões de prevenção geral são muito elevadas, uma vez que a violência doméstica é um crime frequente, tratando-se de um fenómeno social transversal a todos os estratos sociais, perturbando fortemente as relações familiares e a paz social, que importa reforçar, aliado ao sentimento de relativa impunidade que ainda hoje se faz sentir neste âmbito, por persistir na atualidade desconforto na denúncia de crimes que se prendam com a vida íntima alheia, e, noutros casos, receio de denunciar crimes praticados no próprio seio familiar. Não será despiciendo recordar que, como tem sido amplamente publicitado nos meios de comunicação social, de 2004 a 2021 morreram em Portugal mais de 580 mulheres vítimas de violência doméstica, tratando-se, por isso, de um crime com forte estigma social e fortes exigências ao nível da prevenção geral que reclama uma reação vigorosa por parte dos tribunais;

- o comportamento do arguido, anterior e posterior ao factos, importando, a este respeito, ponderar que o arguido, que contava a idade de 53 anos, à data do início da prática dos factos, evidenciava já passado criminal pela prática de um total de quatro crimes, a saber, dois crimes de furto simples, um crime de injúria e um crime de furto qualificado, cuja prática remonta aos anos de 2012 e de 2013, e que desde a data em que cessou o comportamento criminoso objeto dos presentes autos, decorrido que se encontra um período superior a um ano e sete meses, não há notícia que tivesse voltado a incorrer na prática de qualquer outro crime;

- a situação pessoal do arguido, descrita na matéria de facto.

Numa visão de conjunto, e ponderadas as circunstâncias pessoais, a intensidade do dolo, o grau de ilicitude, a gravidade da culpa, e todas as circunstâncias preventivas ou retributivas dentro da moldura penal abstrata suscetíveis de consideração, tem-se por justo e adequado, fixar uma pena de 3 anos de prisão, situada abaixo do ponto intermédio da diferença entre o mínimo e máximo aplicáveis, no primeiro terço da moldura abstrata aplicável.»

Adiante-se que o recorrente não tem razão nos argumentos que desenvolve. O mesmo se podendo dizer das motivações apontadas pelo Ministério Público, ainda que por razões distintas.

Não a tem o recorrente na medida em que a fundamentação extratada evidencia que o tribunal não se viu nas circunstâncias previstas no artigo 70.º CP, pelo que não poderia optar pela pena de multa; atendeu aos critérios de determinação concreta da pena (artigo 71.º CP); e não valorou factos que não integram o objeto do processo (como o alegado «quadro circunstancial de consumo de estupefacientes por banda do casal e a atual abstinência do recorrente»!).

Mas o tribunal não perdeu de vista os fins das penas (artigo 40.º CP), sendo essa a razão pela qual, como se afigura óbvio, que veio a entender suspender a execução da pena de prisão que se graduou.

E também a não tem o Ministério Público na parte em que considera ser fator agravante da pena a circunstância de o arguido ter exercido o direito ao silêncio!

Efetivamente, o direito ao silêncio por banda do arguido relativamente às imputações que lhe são feitas, previsto no artigo 61.º, § 1.º, al. d) CPP, tem origem no direito à não autoincriminação, corolário do processo equitativo (fair trial), a que se reportam os artigos 20.º, § 4.º da Constituição da República; 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos), cuja formulação latina se expressa pelo brocardo nemo tenetur se ipsum accusare).

O direito ao silêncio implica não apenas a proibição da coação direta e indireta sobre o arguido, mas também a proibição de valoração do seu silêncio total, parcial ou temporário. (11) Daqui decorrendo que a opção pelo silêncio (em qualquer das aludidas modalidades) não o poderá desfavorecer.

O facto de atitude contrária (confissão) constituir fator abonatório, quando tal significa assunção inequívoca da responsabilidade, bem assim como o rebate de consciência (o arrependimento), nessa medida (só nessa medida), contribuem para a graduação da pena (por tal evidenciar que o processo de ressocialização já se iniciou) - estando naturalmente sujeitas a valoração do tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º CP.

Mas a atitude contrária (exercício do direito ao silêncio – ou mesmo declarando em sua defesa factos não verdadeiros ) - não significa, de todo, que possa valorar-se negativamente (12), a isso se opondo o artigo 32.º, § 1.º da Constituição, o 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os artigos 61.º, § 1.º, al. d) e 343.º, § 1.º CPP e 150.º, § 2.º CPC). Em suma, a sentença recorrida evidencia uma correta compreensão do quadro legal punitivo, faz uma ponderação e uma valoração assertivas das circunstâncias, no campo da fixação da medida da pena principal, respeitando os impostergáveis parâmetros relativos às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial (artigo 40.º CP). Não se evidenciando razão para alterar a medida fixada à pena de prisão.

C.3 Da condição fixada à suspensão da execução da pena de prisão

O tribunal recorrido decidiu suspender na sua execução, por 2 anos e 6 meses, a pena de prisão fixada na sentença, sujeitando-a ao cumprimento de certos deveres: - regime de prova, assente num plano de reinserção social que integre as vertentes da inserção socioprofissional e de sujeição a um acompanhamento especializado ao nível da problemática da violência doméstica; e.

- na condição de pagar a indemnização fixada à ofendida, no prazo de 2 anos.

O recorrente insurge-se com a condição de pagamento da indemnização (de 1 750€) à ofendida, aduzindo no essencial que as condições económicas do arguido, como ficou provado, são muito precárias, sendo aquela condição impossível de cumprir.

Importará referir que a fixação de deveres como condição da suspensão da execução da pena de prisão, está prevista na lei, incluindo, a subordinação da referida suspensão ao pagamento (no todo ou em parte) da indemnização devida ao lesado (artigo 51.º, § 1.º, al. a) CP). Trata-se de um modo de através da pena lograr a reparação do mal causado pelo crime, numa perspetiva aproximativa ao paradigma da justiça restaurativa, com efeitos benévolos numa perspetiva de preventiva (de satisfação concomitante das exigências de prevenção geral com as necessidades de prevenção especial). Ponto é que o seu objeto seja viável (possível). Não se desconhece (conforme decorre dos factos provados) a situação económica do recorrente, reconhecendo-se ser a mesma precária. Mas ele tem capacidade para trabalhar e, nessa medida, tem o dever social – ético e de cidadania - de o fazer. O prazo fixado para o cumprimento da indemnização ao lesado como condição de suspensão da execução da pena foi de dois anos, correspondendo o seu montante a pouco mais de dois salários mínimos nacionais. Donde, a condição não é impossível. É possível e conforme aos fins das penas e à justiça do caso concreto. Ademais, se por manifesto infortúnio (comprovado infortúnio) o recorrente não conseguisse satisfazer essa condição, isso não teria consequências irremediáveis, conforme decorre dos regimes previstos nos artigos 55.º e 56.º CP. Sendo que o acompanhamento mediante o regime de prova que se mostra também fixado não deixará de fazer esse acompanhamento e devido escrutínio. Pelo que também este fundamento do recurso se mostra inconsistente.

C.4 Excessiva indemnização

O recorrente coloca em crise o quantum da compensação, fixado pelo tribunal a quo, decorrente das agressões por si perpetradas sobre a sua companheira, mãe do filho de ambos, no interior da residência comum. Considera o valor de 1 700€ excessivo face à dimensão do dano e às demais circunstâncias provadas – designadamente por a demandante não ter «ficado com sequelas permanentes, quer seja a nível físico quer seja a nível psicológico», atentos os critérios consignados no artigo 496 do Código Civil.

Pois bem.

Preceitua o artigo 496.º, § 1.º CC que na fixação da indemnização dos danos não patrimoniais, na responsabilidade civil por factos ilícitos, se deve atender aos que pela sua gravidade são merecedores da tutela do direito. Restringindo-se a tutela destes danos aos que assumam um significativo grau de gravidade.

Este conceito indeterminado deve ser densificado pelo julgador com referência às circunstâncias concretas de cada caso, à luz de um critério objetivo, que deve excluir a influência da subjetividade inerente a uma eventual especial sensibilidade do lesado, e ter em conta as conceções de justiça vigentes. (13)

«A apreciação da gravidade do dano não patrimonial, e do consequente merecimento da tutela do direito, deve ter em consideração o respeito pela preservação da pessoa humana e dos seus direitos, com o objetivo de alcançar uma efetiva tutela da respetiva dignidade» (14).

A dimensão imaterial dos danos não patrimoniais inviabiliza uma direta correspondência com uma determinada quantia em dinheiro. Tal circunstância impede a efetiva reparação dos danos, como sucede no âmbito dos danos patrimoniais.

Mas isso não impede, naturalmente, a sua compensação, nomeadamente por referência aos padecimentos e outros sofrimentos de ordem física ou psicológica, através da atribuição de uma quantia pecuniária que possa proporcionar ao lesado um certo bem-estar que viabilize um efetivo lenitivo e mitigue os efeitos do ato lesivo.

«Tal indemnização reveste, além daquela natureza compensatória, um carácter sancionatório, visando reprovar ou castigar a conduta do lesante (...) Visa[ando] proporcionar, ao lesado, satisfação que atenue ou neutralize o sofrimento físico ou espiritual, a indemnização tem, a título principal, uma função compensatória. Tal finalidade principal não impede, porém, a assunção pela responsabilidade civil de outras finalidades acessórias, designadamente de cariz sancionatório, desde que respeitados os pressupostos e limites por aquela definidos, isto é, no âmbito da existência e da extensão do dano a indemnizar.» (15)

No caso concreto a compensação pelos danos não patrimoniais impõe-se em resultado da afeção significativa de direitos de personalidade da demandante, decorrente das agressões físicas, verbais e psicológicas sofridas, perpetradas pelo demandado.

Conforme referido a compensação pelos danos não patrimoniais deve tender a viabilizar um efetivo lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isso, nesse âmbito, ninguém nem nada conseguirá. Et pour cause a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico. (16)

Donde, na ponderação sobre todas as circunstâncias geradoras das perturbações referidas e que se mostram provadas, bem assim como das referentes às circunstâncias pessoais da demandante e do demandado, nos termos previstos nos artigos 493.º, § 3.º, 494.º - ex vi 496.º, § 4.º - e 566.º, § 2.º do C. Civil, concluímos não haver justificação para alterar o montante fixado.

Teremos que alterar, isso sim, a condenação relativa aos juros moratórios.

Respeitando a indemnização fixada exclusivamente a danos não patrimoniais, a sentença decretou que o montante fixado fosse «acrescido dos respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados desde a data da notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento.»

Ora, se é verdade que nos casos de responsabilidade por facto ilícito, relativamente aos danos patrimoniais, são efetivamente devidos juros moratórios desde a citação até integral pagamento (artigo 805.º C. Civil); já quanto aos danos não patrimoniais, porque na sua ponderação se consideraram os danos produzidos até ao momento em que os mesmos são liquidados, quaisquer juros que sejam devidos só poderão ser contados da correspondente fixação pelo tribunal, isto é, da data da sentença. (17)

Termos em que o recurso só logra obter provimento quanto a esta aspeto final, relativo à data a partir da qual se deverão contar os juros moratórios da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais.

III – Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) dar provimento ao recurso apenas quanto à data de início da contagem dos juros moratórios relativos ao quantitativo indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais, que se contarão apenas da data da sentença da primeira instância.

b) Negar (quanto ao demais) provimento ao recurso e, em consequência, pelas razões expendidas, manter a douta sentença recorrida.

c) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario)

Évora, 25 de maio de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 António Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricence do Código Penal, Parte Especial, tomo I, 2.º ed., 2012, pp. 512 (em anotação ao artigo 152.º).

3 Neste sentido, p. ex. André Lamas Leite, A Violência Relacional Íntima: Reflexões Cruzadas entre o Direito penal e a Criminologia, revista JULGAR, n.º 12, 2010, pp. 25 ss.; em sentido não muito distinto Nuno Brandão, A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, revista JULGAR, n.º 12, 2010, p. 9 ss.

4 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª Ed., pág. 110.

5 Neste sentido podem ver-se: Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, UAL, pp. 32, 33 e 42. Maria Também Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, 2005, Almedina; e Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. I, 2017, pp. 569 ss., BFDUC); Sara Margarida das Neves Simões, 2015, UCP, pp. 8 ss.

6 Madalena Alarcão, (des) Equilíbrios Familiares, Quarteto, 2000, pp. 296.

7 Maria Elisabete Ferreira, O Crime de Violência Doméstica na Jurisprudência Portuguesa (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 2017, Instituto Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra – Studia Iuridica, 1008, p. 583, BFDUC)

8 Neste sentido, por todos, com as referencias de enquadramento nele vertidas cf. Maria Elisabete Ferreira, O crime de violência doméstica na jurisprudência portuguesa. Do pseudo requisito da intensidade da conduta típica à exigência revistada de dolo específico, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 2017, Instituto Jurídico, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra – Studia Iuridica, 1008, pp. 569 ss.

9 Neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 197; Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 295; Sérgio Gonçalves Poças, Revista Julgar, n.º 10, 2010, pp. 22; e na jurisp. (por todos) Ac. TRÉvora, de 16jun2015, proc. 25/14.9GAAVS.E1 Desemb. Clemente Lima; Ac. TRCoimbra, de 5abr2017, proc. 47/5.2IDLRA.C1, Desemb. Olga Maurício; DSum. TRE, 20/2/2019, proc. 1862/17.8PAPTM.E1, Desemb. Ana Brito; Ac. TRLisboa, de 12jan2021, proc. 2127/19.6PBLSB.L1-5, Desemb. Paulo Barreto, todos disponíveis em www.dgsi.pt

10 Idem.

11 Cf. Sandra Oliveira e Silva, O Arguido Como Meio de Prova Contra Si Mesmo, 2018, Almedina, 420 ss., maxime 432/433.

12 Havendo um amplo consenso na doutrina sobre este aspeto, conforme, por todos, descreve Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. IV, 2022, p 442 (em anotação ao artigo 343.º CPP).

13 Por todos, Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite, A equidade na indemnização dos danos não patrimoniais, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2015, pp.13 - https://run.unl.pt/bitstream/10362/16261/1/leite_2015.pdf

14 Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite, idem, pp. 14.

15 Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite, idem, pp. 29 e 30.

16 É este o caminho que a jurisprudência vem trilhando e nele evoluindo. Já assim o afirmava o Supremo Tribunal de Justiça, em 1993 (cf. acórdão de 16/12/1993, Cons. Cardona Ferreira, CJ-STJ, ano I, tomo III, pp. 181).

17 Neste sentido cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de maio, publicado no Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27 de junho de 2002; e acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2007, da pena do Cons. Salvador da Costa, www.dgsi.pt proc.º n.º 07B2382