ARGUIDO
RECUSA DE PERITO
INQUÉRITO
COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
Sumário

I. A Constituição afirma que o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa» ao arguido (artigo 32.º, § 1.º) querendo, desde logo, significar que o arguido é um sujeito do processo (e não mero objeto dele), daí lhe advindo a titularidade de direitos, dentre os quais o de poder participar no devir processual, incluindo na fase de inquérito (artigo 61.º, § 1.º, al. g) CPP), designadamente o de suscitar a recusa de perito.
II. O princípio constitucional da reserva de função jurisdicional (ou reserva de juiz) e o conjunto dos atos que se incluem no seu âmbito de competência exige a compatibilização com o princípio da estrutura acusatória do processo (artigo 32.º, 4 5.º da Constituição) e a tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º).
III. Havendo várias possibilidades de interpretação de uma norma, umas conformes e outras desconformes à Constituição, só dentre as primeiras se pode eleger a que melhor se ajusta aos valores nela impregnados.
IV. Seria contraditório, a mais de juridicamente insuportável, que a Constituição consagrasse um catálogo de direitos fundamentais e erigisse uma ampla tutela dos mesmos, atribuindo-lhes garantia jurisdicional direta (artigo 20.º, § 5.º e 32.º, § 4.º CRP) e depois permitisse ao legislador ordinário a liberdade de restringir tal catálogo.
V. É o artigo 17.º CPP que traça o perímetro ordinário da competência do juiz de instrução criminal no inquérito.
VI. A recusa de perito por um arguido no inquérito criminal não está expressamente prevista em nenhuma das alíneas do artigo 268.º CPP daquele artigo, nem precisa de estar, porque encontra expressa previsão no artigo 47.º CPP.
VII. Só o juiz ou o tribunal possuem essas características de imparcialidade e de neutralidade, não apenas do ponto de vista constitucional e estatutário, mas também (como é manifestamente óbvio) por não estarem comprometidos com a investigação - tal-qualmente (especialmente) prevê o artigo 47.º CPP.

Texto Integral

I – Relatório
1. Nos autos de inquérito com o n.º 62/18.4T9FAL, que corre termos nos Serviços do Ministério Público de …, na comarca de …, investiga-se a eventual prática de crime de poluição (artigo 279.º do Código Penal), com referência às condições de laboração da instalação fabril da sociedade comercial arguida AA, S.A., em Lugar de …, concelho de …, designadamente no que respeita às respetivas emissões atmosféricas poluentes, resíduos e partículas que, segundo as denúncias, se depositam nas habitações, terrenos, plantas e culturas circundantes, causam mau cheiro, impedem a população de desfrutar do meio ambiente e afetam a sua saúde e bem estar.

Nesse âmbito, atenta a especificidade técnica subjacente à matéria sob investigação, o Ministério Público determinou a realização de perícia, tendo para tanto nomeado um perito, na circunstância um técnico da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT).

Notificado o despacho de nomeação aos arguidos, nos termos previstos no artigo 154.º, § 4.º CPP, a sociedade comercial arguida AA, S.A., apresentou requerimento dirigido ao Mmº Juiz de Instrução Criminal, suscitar a recusa da intervenção do perito nomeado.

Sequentemente o Ministério Público remeteu os autos ao Juízo Local de Competência Genérica de …, promovendo o indeferimento do requerido por falta de competência do Juiz de Instrução Criminal e, subsidiariamente, alinhou razões para o indeferimento da recusa invocada.

Apresentados os autos ao M.mo Juiz de Instrução Criminal, este considerou não ser competente para apreciar o apresentado requerimento de recusa, devolvendo os autos ao Ministério Público.

2. Inconformado com tal decisão a sociedade comercial arguida/impetrante interpôs o presente recurso, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«A. O presente recurso versa sobre a decisão proferida em 19.01.2023.

B. Na fase de inquérito, não só a lei impõe que os incidentes de recusa sejam decididos e dirigidos ao tribunal ou ao juiz de instrução, como, na verdade, a decisão que sobre eles recair é definitiva, o que apenas é apreensível e se afigura aceitável caso seja decidido por um Juiz (seja de julgamento, seja de instrução), e não pelo Ministério Público, que, de resto, foi quem nomeou o perito em causa.

C. Só é compreensível que tais incidentes sejam “apreciados e imediata e definitivamente decididos” caso os mesmos sejam sujeitos à tutela jurisdicional.

D. A referência expressa “ao tribunal ou ao juiz de instrução perante os quais correr o processo”, constante do artigo 47.º/2 do CPP, não permite concluir, sem mais, que, na fase de inquérito, correndo o processo termos perante o Ministério Público, se encontra afastada a possibilidade de ser um Juiz a decidir o incidente.

E. Compete ao Juiz de Instrução exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos do artigo 268.º do CPP.

F. Especificamente quanto aos incidentes de recusa da intervenção de perito nomeado na fase de inquérito, estamos perante ato que a lei expressamente prevê que seja praticado por juiz – artigo 47.º, n.º 2, do CPP.

G. É a própria lei que se refere expressa e inequivocamente ao tribunal ou juiz de instrução e não, como seria o caso se o legislador tivesse idêntico entendimento ao plasmado no despacho em crise, a autoridade judiciária – vide artigo 1.º, alínea b), do CPP.

H. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine que o Juiz de Instrução aprecie e decida do pedido de recusa da intervenção do perito em causa ou, inclusivamente, que tal incidente seja decidido nesta sede.

I. A decisão recorrida violou o estatuído nos artigos 47.º, n.º 2, 153.º, n.º 2, 268.º, n.º 1, alínea f), do CPP.

Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, requer-se a V. Exas. se dignem revogar o despacho recorrido e, em consequência, determinar que o Juiz de Instrução aprecie e decida do pedido de recusa da intervenção do perito em causa ou, inclusivamente, que tal incidente seja decidido nesta sede.»

3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, concluindo, no essencial, do seguinte modo:

«1.º - Os presentes autos encontram-se na fase processual de inquérito, cabendo a sua direção do Ministério Público, nos termos do disposto nos arts. 262º, nº 1 e 263º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.

2.º- A estrutura acusatória do processo penal, consagrada no art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, impõe uma delimitação de funções entre o Ministério Público, o Juiz de Instrução Criminal e o Juiz de Julgamento.

3.º- Na fase de inquérito, o Juiz de Instrução Criminal apenas intervém nos atos que lhe estão legalmente incumbidos, de acordo com o disposto nos arts 268º, nº 1, do Cód. Proc. Penal (atos que lhe compete praticar em exclusividade) e 269º, nº 1, do mesmo código (atos que lhe cabe ordenar ou autorizar).

4.º- Entre esses atos não se integra a decisão acerca do incidente de recusa de perito, em concreto, nos autos, do incidente de recusa de perito suscitado pela sociedade comercial arguida AA, S.A., na sequência da nomeação efetuada pelo Ministério Público.

5.º- Embora a redação da norma contida no art. 47º, nº 2, do Cód. Proc. Penal, possa, num primeiro momento, levar o intérprete a atribuir ao Juiz de Instrução Criminal a competência para decidir acerca do incidente de recusa de perito, uma interpretação mais ponderada exclui, em nosso entender, essa conclusão.

6.º- Apesar da norma dispor que “a declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao tribunal ou ao juiz de instrução”, acrescenta “perante os quais correr o processo em que o incidente se suscitar…”

7.º- Este último segmento da norma, segundo a interpretação por nós defendida, leva a excluir da competência do Juiz de Instrução a decisão acerca de pedido de recusa de perito efetuado em sede de inquérito, eventualmente com a ressalva dos incidentes relativos aos peritos nomeados pelo Juiz de Instrução Criminal ao abrigo do disposto no art. 154º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, na medida em que decorrem de ato que lhe está legalmente atribuído ordenar ou autorizar.

8.º- Nesta fase processual, o processo não corre perante o Juiz de Instrução, mas sim perante o Ministério Público, titular do processo na fase processual de inquérito, pelo que, em nosso entender, cabe ao Ministério Público e não ao Juiz de Instrução Criminal decidir a questão da recusa do perito.

9.º- Embora a norma termine com a expressão “…e são por eles apreciados e imediata e definitivamente decididos, sem submissão a formalismo especial”, tal não leva a alterar a referida interpretação, cabendo a decisão, imediata e definitiva, do incidente ao Ministério Público, ao Juiz de Instrução ou ao Juiz de Julgamento, consoante a fase processual em que o processo se encontra, respetivamente, na fase de inquérito, na fase de instrução ou na fase de julgamento.

10.º- Também a norma contida no nº 3 do referido art. 47º do Cód. Proc. Penal, quanto à designação do substituto do perito recusado não afasta a aludia interpretação, na medida em que esta norma surge na sequência da norma do referido nº 2 do preceito legal e, consequentemente, como esta deve ser interpretada, cabendo a designação do substituo ao Ministério Público, ao juiz de Instrução Criminal ou ao Juiz de julgamento, consoante a fase processual em que a questão se colocar.

11.º- No sentido da interpretação por nós defendida para as normas processuais penais em causa, pronunciou-se Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação aos arts. 47º, 53º e 153º do Código de Processo Penal (cfr. Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição, Universidade Católica Editora, págs. 141, 156 e 439).

12.º- Conclui-se, assim, e, salvo melhor entendimento, que o douto despacho recorrido não merece qualquer reparo, antes se concordando inteiramente com a posição defendida pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal no despacho recorrido, ao declarar-se material e funcionalmente incompetente para conhecer da questão referente à recusa de perito.

13.º- Consequentemente, pugna-se pela manutenção do despacho recorrido.»

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da improcedência do recurso.

5. No exercício do contraditório o recorrente nada acrescentou.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1), estando suscitada apenas uma questão: i) Se é da competência do Juiz de Instrução (JI) na fase de inquérito pronunciar-se sobre a recusa de perito suscitada pelo arguido.

a) Do despacho recorrido

O teor do despacho recorrido é o seguinte:

«Por despacho de 30 de novembro de 2022, o Ministério Público nomeou, para realização de perícia, BB. inspetor do IGAMAOT.

Veio, porém, a arguida AA S. A., pelo requerimento supra referido, apresentar a este Juiz de Instrução, pedido de recusa da intervenção do perito indicado pelos motivos aí referidos, para os quais se remete.

Nesse seguimento, o Ministério Público veio no despacho indicado considerar, em primeiro lugar, que, estando o processo em fase de inquérito, o requerimento de recusa de perito não deverá ser dirigido, nem decidido, pelo juiz de instrução criminal, mas sim pelo próprio Ministério Público, uma vez que tal diligência foi por si determinada, sendo também da sua competência a direção do inquérito.

Assim sendo, vejamos se este Juiz de Instrução Criminal tem competência funcional para decidir sobre a recusa de perito suscitada pela arguida.

*

É nos artigos 268.º e 269.º do C.P.P que são determinados quais os atos de inquérito que competem ao juiz de instrução criminal praticar, ordenar ou autorizar.

Para o que agora interessa, estatui o artigo 268.º, n.º 1, f) que, durante o inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução, praticar quaisquer atos que a lei expressamente lhe reservar. E segundo o artigo 269.º, n.º 1, a) e f) do mesmo código, durante o inquérito, cabe ao juiz de instrução ordenar ou autorizar: a efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º; a prática de quaisquer outros atos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

In casu, não estamos perante qualquer perícia como a prevista no artigo 154.º, n.º 3 do C.P.P, pelo que este juiz apenas terá competência para apreciar o requerimento da arguida, caso a lei expressamente o determinar.

Determina o artigo 47.º, n.º 1 do C.P.P, que o disposto nos números seguintes dessa norma são aplicáveis, com as devidas adaptações, aos peritos. E logo no n.º 2 se estipula que o requerimento de recusa é dirigido ao tribunal ou ao juiz de instrução perante os quais correr o processo em que o incidente se suscitar e são por eles apreciados e imediata e definitivamente decididos.

Uma leitura rápida da norma poderia levar o intérprete a considerar que a competência para apreciar o pedido de recusa de perito, ainda que o mesmo haja sido nomeado pelo Ministério Público, e como tal sem qualquer intervenção do Juiz, cabia a este último.

Porém, tendo em atenção o teor da norma, o aí indicado apenas se aplicará quando o processo estiver em fase de instrução ou de julgamento – casos em que o Juiz (de instrução ou de julgamento) é já o verdadeiro dominus do processo. Veja-se que a norma refere o seguinte – o requerimento de recusa é dirigido ao tribunal ou ao juiz de instrução perante o qual correr o processo em que o incidente se suscitar.

Ora, num caso como o destes autos, o processo em que momento algum corria perante este Juiz de Instrução, pois encontramo-nos ainda na fase de inquérito.

A este elemento da letra da lei, há também que ter em conta que na fase de inquérito o seu dominus é o Ministério Público, cabendo a este órgão determinar as diligências que são levadas a cabo para a descoberta da verdade, devendo o Juiz de Instrução limitar-se à prática de atos expressamente previstos na lei e, na sua maioria, direcionados à proteção de direitos, liberdades e garantias dos visados.

Neste caso, é evidente que não está em causa quaisquer direitos, liberdades e garantias, nem o perito em questão, cuja recusa é solicitada pela arguida, foi nomeado pelo Tribunal, pelo que seria até inusitado ser este Juiz de Instrução a decidir sobre um pedido de recusa do mesmo.

Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2018, p. 141), “Na fase de inquérito, o Ministério Público decide sobre (…) o requerimento de recusa (…) do perito (…) com ressalva dos incidentes relativos a peritos (…) que intervenham em atos processuais presididos pelo juiz (…)”.

E assim também, Santos Cabral (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, 2021, p. 599), “Os incidentes relativos ao impedimento, à escusa e à recusa do perito são decididos pelo juiz, quando o perito tenha nomeado pelo mesmo. Quando o perito tenha sido nomeado pelo Ministério Público no inquérito, os incidentes são decididos por esta entidade no âmbito do seu poder de direção”.

Face ao exposto, há que concluir que este Juiz de Instrução não detém competência para apreciar o requerimento apresentado pela arguida.

Com os fundamentos supra indicados, ao abrigo do disposto nos artigos 17.º, 53.º, 153.º, 268.º e 269.º, todos do C.P.P, este Juiz de Instrução Criminal declara-se material e funcionalmente incompetente para conhecer do Requerimento de recusa do perito nomeado pelo Ministério Público e dirigido pela arguida AA, S.A.»

b) Da competência do JI relativamente a atos do MP no inquérito

Sustenta a recorrente que a letra da lei no artigo 47.º, § 2.º do CPP impõe que só um juiz possa decidir a questão da recusa de perito na fase de inquérito. Acrescentando que até por ser definitiva a decisão que se tome no incidente, não podia tal decisão caber à entidade que procedeu à nomeação posta em crise com a recusa. Pelo que considera terem sido violadas as normas constantes dos artigos 47.º, § 2.º, 153.º, § 2.º e 268.º, § 1.º, al. f) do CPP.

O Ministério Público, por seu turno, escorando-se na opinião expressa por um prestigiado académico, entende que é ao Ministério Público, na fase de inquérito, que cabe apreciar e decidir o incidente de recusa de perito, previsto no artigo 47.º, § 2.º CPP.

Adianta-se que a razão está do lado da recorrente.

Comecemos por recordar que quando a Constituição afirma que o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa» ao arguido (32.º, § 1.º CRP) quer, desde logo, significar que o arguido é um sujeito do processo (e não mero objeto dele), daí lhe advindo a titularidade de direitos, dentre os quais o de poder participar no devir processual, incluindo na fase de inquérito (artigo 61.º, § 1.º, al. g) CPP).

Sendo exatamente este o contexto da intervenção da sociedade arguida quando suscitou o incidente de recusa de perito.

Preceitua o artigo 47.º CPP que:

«1 - As disposições do presente capítulo são aplicáveis, com as adaptações necessárias, nomeadamente as constantes dos números seguintes, aos peritos, intérpretes e funcionários de justiça.

2 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao tribunal ou ao juiz de instrução perante os quais correr o processo em que o incidente se suscitar e são por eles apreciados e imediata e definitivamente decididos, sem submissão a formalismo especial.

3 - Se não houver quem legalmente substitua o impedido, recusado ou escusado, o tribunal ou o juiz de instrução designam o substituto.»

Começando por afirmar que «é nos artigos 268.º e 269.º do C.P.P que são determinados quais os atos de inquérito que competem ao juiz de instrução criminal praticar, ordenar ou autorizar», o despacho recorrido também se refere que durante o inquérito compete exclusivamente ao JI praticar quaisquer atos que a lei expressamente lhe reservar (al. f) do § 1.º do artigo 268.º CPP).

Pois bem. Vejamos se é assim.

Começaremos por afirmar não ser por acaso que aquela referência normativa final (da al. f) do § 1.º do artigo 268.º CPP) se mostra alinhada com a regra magna plasmada no artigo 17.º CPP, a qual contém (esta sim) o perímetro da competência do JI no inquérito e, para o que aqui agora releva: que tem a competência para «decidir quanto ao exercício de funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento.»

Com efeito, decorre da estrutura basicamente acusatória do processo penal, a atribuição ao Ministério Público, investido pela Constituição (CRP) em verdadeiro órgão de justiça, na titularidade do inquérito e consequente direção da investigação criminal (artigos 32.º, § 5.º e 219.º CRP e 53.º, 262.º, 263.º, 277.º e 283.º CPP).

Direção essa que se exerce sem prejuízo da intervenção do JI no inquérito, na qualidade de juiz das liberdades (e não como juiz de investigação), no respeito pelo modelo constitucional de divisão de funções entre a magistratura judicial (os órgãos judiciais) e a magistratura do Ministério Público (cf. artigos 32.º, n.º 4 e 5, e 219.º da CRP).

«Numa leitura dos poderes do Juiz de Instrução Criminal está em causa o significado do princípio constitucional da reserva de função jurisdicional (ou reserva de juiz) e o conjunto dos atos que se incluem no seu âmbito de competência. Na sua definição, impõe-se a compatibilização do disposto nos artigos 202.º e 32.º, n.º 4, da CRP com o princípio da estrutura acusatória do processo (n.º 5 do artigo 32.º da CRP) e a tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP).» (2)

É exatamente este o esteio constitucional, que concomitantemente pressupõe e delimita a intervenção do JI na fase processual de inquérito: o JI intervém não para se imiscuir na investigação criminal, cuja direção cabe exclusivamente ao MP (i. e. o JI não toma iniciativa relativamente a qualquer diligência probatória, ao modo de proceder ou define a estratégia de investigação - sequer os sugere), mas para cumprir o papel que a Constituição lhe reserva de guardião efetivo dos direitos fundamentais das pessoas – o juiz das liberdades (não juiz da investigação) (3).

A decisão recorrida – em linha com a posição sustentada pelo MP – arrima-se numa tese conhecida (4) segundo a qual na fase de inquérito é ao MP – e só ao MP - que cabe tudo realizar, cingindo-se a tutela jurisdicional a um catálogo (taxativo) contido nos artigos 268.º e 269.º CPP ou à possibilidade de sindicar a decisão final do inquérito em sede de instrução. Isto é, a intervenção do JI no inquérito tem caráter excecional e marginal, cingida aos atos lesivos de direitos fundamentais que o legislador elegeu e vazou naqueles retábulos normativos e noutros especialmente previstos, nos termos da remissão feita na al. f) do § 1.º dos artigos 268.º e 269.º CPP. E só esses!

Nesta restritiva interpretação dos normativos, valores e princípios norteadores do Direito, espartilha-se o controlo jurisdicional dos atos do inquérito, coo o que se faz uma leitura legal da Constituição, ao invés da (devida) interpretação das normas de direito ordinário em conformidade com a lei fundamental.

Em retas contas, como é sabido, havendo várias possibilidades de interpretação de uma norma, umas conformes e outras desconformes à Constituição, só dentre as primeiras se pode eleger a que melhor se ajusta aos valores nela impregnados (5), pois que o comando normativo da interpretação conforme à Constituição (artigo 3.º CRP) (6) tem a estrutura de uma regra (e não de um princípio (7)), daí derivando a recusa das interpretações inconstitucionais.

Vejamos, então, adiantando o juízo, por que razão a conclusão que subjaz ao raciocínio a que aderiu a decisão recorrida, se mostra arredia dos marcos jurídico-constitucionais e, logo por isso, sendo resultado de uma deficiente interpretação das normas de direito ordinário.

Sobre as relações entre o processo penal e a Constituição costuma significar-se que «o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição de um Estado, dependendo a estrutura e a caracterização do processo penal das orientações políticas típicas historicamente afirmadas». (8)

«É verdadeiro direito constitucional aplicado, numa dupla dimensão: os fundamentos do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado; a concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada jurídico-constitucionalmente.»(9)

Comecemos por assinalar que seria contraditório, a mais de juridicamente insuportável, que a Constituição consagrasse um catálogo de direitos fundamentais e erigisse uma ampla tutela dos mesmos, atribuindo-lhes garantia jurisdicional direta (artigo 20.º, § 5.º e 32.º, § 4.º CRP) e depois permitisse ao legislador ordinário a liberdade de restringir tal catálogo. Ou, no que redundaria em espécie do mesmo género, atribuir a qualquer outra autoridade a competência para aferir da lesividade dos atos que relevantemente afetem os direitos ou liberdades fundamentais dos cidadãos (e por mor disso também dos cidadãos ou sociedades arguidas).

Reconhecendo-se a impossibilidade ontológica do «terceiro absoluto» (como assinala Paul Ricoeur (10)), é, não obstante, tão velho como o mundo o sábio princípio de que ninguém é bom juiz em causa própria. (11) Sendo (também) por isso que a Constituição reserva ao JI a competência para no inquérito: praticar, ordenar, autorizar e validar atos que diretamente se prendam com os direitos e liberdades fundamentais das pessoas (v. g. artigos 27.º, § 2.º, 28.º, § 1.º, 32.º, § 4.º e 34.º, § 2.º da Constituição; 17.º, 268.º, 269.º CPP; e 119.º, § 1.º da LOSJ (12)) ou outros atos que serão sempre materialmente jurisdicionais. E isso pela elementar razão de o JI não só se encontrar descomprometido com a investigação, como por razão do seu estatuto

(jurisdicional) impregnar a neutralidade que é suposta. (13) Só o JI é (e só ele pode ser) o tercero en discordia (14).

O argumento matricial da decisão recorrida é: a apreciação da recusa do perito nomeado no inquérito pelo seu titular não se encontra no catálogo dos artigos 268.º e 269.º CPP.

Mas nem essa afirmação é correta, em razão da norma remissiva da al. f) do artigo 268.º («compete ao juiz de instrução praticar quaisquer outros atos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução»).

Realmente a recusa de perito não está expressamente prevista em nenhuma das demais alíneas daquele artigo. Mas não precisa de estar. Porque está especificamente previsto no artigo 47.º CPP.

O mesmo, de resto, sucedendo, com muitos outros atos materialmente jurisdicionais que ali não encontram descrição específica, como sucede p. ex. com os atos previstos nos artigos 68.º, 116.º, § 1.º e 2.º, 141.º, 178.º, 185.º, 186.º, 215.º, § 4.º, 271.º todos do CPP. Em todos eles se trata de atos materialmente jurisdicionais e por isso da competência do JI.

É este o sentido em que se vem pronunciando a doutrina mais qualificada, como é o caso de Jorge de Figueiredo Dias, Nuno Brandão, Maria João Antunes e José Mouraz Lopes (15), expressando os dois primeiros, com proficiente clareza que:

«No nosso sistema legal, a participação do juiz de instrução no inquérito não se cinge à prática dos atos referidos no n.º 1 do art. 268.º do CPP e à ordenação ou autorização dos atos referidos no n.º 1 do art. 269.º do CPP.

(…) Um exemplo de atos legalmente atribuídos ao juiz de instrução que extravasam o elenco de competências previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP é o das decisões de validação que ao juiz de instrução são confiadas em vários domínios: v.g., a validação da aplicação do segredo de justiça decidido pelo Ministério Público (art. 86.º, n.º 3, do CPP); ou a validação de buscas, não domiciliárias e domiciliárias, efetuadas por órgão de polícia criminal sem prévia autorização de autoridade judiciária nos caso de terrorismo e de criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa (artigos 174.º, n.º 6, e 177.º, n.º 4, do CPP).

A consagração legal destas intervenções judiciais a posteriori, com a natureza de atos de validação, é demonstrativa de que o Código reserva ao juiz de instrução um papel que vai para além da esfera de competência delimitada pelos artigos 268.º e 269.º do CPP.

(…) Todos os dados normativos, constitucionais e legais, apontam enfim, de modo cabal, no sentido de que o juiz de instrução detém competência para, durante o inquérito, conhecer e decidir pedidos que lhe sejam dirigidos pelo arguido ou por outras pessoas com interesse em agir para sindicar atos, do Ministério Público ou de órgãos de polícia criminal, que possam contrariar normas consagradoras de proibições de prova. Poder decisório que não se encontra limitado ao elenco de atos previsto nos artigos 268.º e 269.º do CPP e no qual vai implicada a possibilidade de o juiz de instrução decretar a proibição de utilização ou valoração das provas maculadas em virtude de inobservância dessas normas. Proibição que, quando devida, pode (e desejavelmente, deve) ser declarada mesmo antes de efetivamente ocorrer a ingerência estadual questionada.»

Acresce que na concreta questão aqui colocada, tendo por referência o § 2.º do artigo 47.º CPP, o elemento literal da interpretação se mostra inarredável, porquanto com menção aos peritos, ali expressamente se refere que «o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao tribunal ou ao juiz de instrução».

A robustez deste argumento não se cinge à literalidade do segmento normativo extratado, mas à magna circunstância de não haver no código de processo penal português nenhuma referência a «tribunal» ou a «juiz» querendo significar «Ministério Público». E como poderia?!

A norma em análise (artigo 47.º CPP) integra-se no Capítulo VI do Título I do CPP, respeitante aos «impedimentos, recusas e escusas» do juiz. Tal norma estende aos peritos o regime aplicável aos juízes «com as adaptações necessárias».

E tal não sucede por acaso, mas por consequência. (16) Porque é ao JI que a Constituição e a lei deferem a competência para dirimir os conflitos entre os órgãos encarregados da perseguição criminal e os titulares de direitos liberdades ou garantias fundamentais por aqueles afligidos. (17)

A prudência de critério do legislador – e, linha com o programa constitucional - evidencia-se ainda no facto de não ter estendido a estes profissionais o regime de impedimentos, recusas e escusas do Ministério Público (cf. artigo 54.º CPP), justamente por entender que pode haver questões a estes respeitantes contendentes com a sua imparcialidade.

Claro está que o Ministério Público tem deveres de objetividade na sua atuação (artigos 3.º e 104.º do Estatuto MP – Lei 68/2019, de 27 de agosto e 53.º CPP), mas a sua posição no processo não lhe aporta a imparcialidade/neutralidade exigível, o que se torna particularmente evidente quando (como aqui sucede) é posta em causa, por um arguido, a imparcialidade de um perito nomeado pelo próprio Ministério Público.

Só o juiz ou o tribunal possuem essas características de imparcialidade e de neutralidade, não apenas do ponto de vista constitucional e estatutário, mas também (como é manifestamente óbvio) por não estarem comprometidos com a investigação.

E noutro plano, aliás igualmente de primeira grandeza, na dimensão dos direitos fundamentais, a recusa de perito por um arguido no inquérito criminal não é matéria longínqua da tutela de dos seus direitos fundamentais, pois que, se bem se atentar na especial força probatória da prova pericial (artigo 163.º CPP), logo se torna evidente a relevância que isso pode vir a ter na decisão final do tribunal de julgamento (18).

Finalmente, em necessária decorrência da literalidade da norma de extensão (§ 1.º do artigo 47.º CPP), mas também da teleologia dessa extensão, só um juiz pode conhecer do respetivo incidente, conforme depois prevê o artigo 45.º CPP.

Breve e concluindo: o juiz de instrução é a entidade competente para apreciar e decidir o incidente de recusa de perito nomeado pelo Ministério Público no inquérito, tal-qualmente (especialmente) prevê o artigo 47.º CPP. Razão pela qual o recurso é merecedor de integral provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) revogar o despacho recorrido;

b) declarar que o juiz de instrução é materialmente competente para apreciar e decidir o requerimento apresentado pela arguida/recorrente AA, S. A.

c) Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).

d) Notifique-se.

Évora, 25 de maio de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 121/2021, de 9fev2021, Cons. Mariana Canotilho.

3 Neste preciso sentido Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, pp. 297 ss. (em anot. ao artigo 17.º CPP); e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 387/2019, de 26jun2019, Cons. Fátima Mata-Mouros.

4 Na doutrina sustentadas por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2011, anotação aos artigos 53.º, 118.º e 277.º; e Paulo Dá Mesquita, Coimbra Editora, 2003, Direção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pp. 95 e ss.

5 Neste exato sentido, cf. Lothar Kuhlen, La interpretación conforme a la Constitución de las leis penales, Marcial Pons, 2012, pp. 24 ss.

6 Sobre a interpretação conforme à Constituição cf. Lothar Kuhlen, La interpretación conforme a la Constitución de las leyes penales, 2012, Marcial Pons, pp. 34 e ss.

7 Sobre a distinção dogmática entre princípios e regras cf. Manuel Atienza y Juan Ruiz Manero, Sobre Principios y Reglas, DOXA, Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 19, 1991, pp. 101 ss., maxime pp. 108 – Biblioteca Virtual Miguel Cervantes.

8 Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, München, 1987, pp. 9, apud Maria João Antunes, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional, JULGAR, n.º 21, 2013, pp, 103.

9 Maria João Antunes, ob. e loc. cit.

10 Paul Ricoeur, La memoria, la historia, el olvido, Editorial Trotta, Madrid, 2003, pp. 419.

11 Veja-se esta referência, entre muito outros, p. ex. em Thomas Hobbes, Tratado sobre el cuidadano, Editorial Trotta, Madrid, 1999, pp. 38.

12 Lei de Organização do Sistema Judiciário, Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

13 Sobre a distinção da função jurisdicional relativamente a outras funções do Estado, cf. Maria de Fátima Mata-Mouros, Juiz das liberdades – Desconstrução de um mito do processo penal, Almedina, 2011, pp. 65 ss.

14 Perfecto Andrés Ibañez, Tercero en discordia – Jurisdición y juez del Estado Constitucional, Editorial Trotta, 2015.

15 Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, O controlo pelo juiz de instrução das invalidades e proibições de prova durante a fase de inquérito, 2020, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Universidade Católica Editora, Vol. II, pp. 1155 ss.. No mesmo sentido cf. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2.ª edição, Almedina, 2019, pp. 85/86; ainda a mesma autora, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional, Julgar, n.º 21, 2013, pp, 104/105; também José António Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no direito processual penal português, Coimbra Editora, 2005, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia iuridica, 83, pp. 27/28. Com idêntico posicionamento, João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra Editora, 1999, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia iuridica, 44, pp. 190. Também José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, vol. II, 1997, pp. 29/30.

16 Cf. Sendo este o entendimento expresso no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, pela pena de José Mouraz Lopes, no tomo I, 2019, Almedina, pp. 503, 504 e 506.

17 Neste exato sentido cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 387/2019, de 26jun2019, Cons. Fátima Mata-Mouros.

18 Neste exato sentido cf. José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, 2019, Almedina, pp. 504.