CRIME DE OFENSA A ORGANISMOS
SERVIÇO OU PESSOA COLETIVA
ELEMENTOS TÍPICOS
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Sumário

É indiscutível que o requerimento de abertura de instrução deve conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal imputado.
No caso, não obstante o recorrente afirmar que os factos alegados constituem o crime que pretende ver imputado à arguida - crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva-, certo é que falha a narração de um dos elementos essenciais à estrutura objetiva típica do crime em causa, ou seja, concretamente, a afirmação ou propalação de factos inverídicos. Consequentemente, o não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução do assistente por falta de requisitos legais.
Com diversas nuances, o requerimento de abertura de instrução do assistente que não narra os factos é rejeitado por inadmissibilidade legal.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 52/21.0T9VVC, no qual, mediante despacho judicial, foi decidido não admitir o requerimento para abertura da instrução (1) apresentado pelo assistente AA, por inadmissibilidade legal.

Inconformado com essa decisão, recorreu tal assistente, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

I) O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal de Instrução Criminal de … de indeferir do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente, com fundamento na inadmissibilidade da abertura desta fase processual.

II) Porquanto, entendeu o Exmo. Senhor Dr. Juiz que “No requerimento de abertura de instrução não consta a descrição suficiente dos elementos típicos objectivos do tipo penal aplicável.”

III) Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que respeitou o preceituado nos artigos 287.º e 283.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, porquanto;

IV) O requerimento de abertura de instrução apresentado, contém:

- a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação do Arguido (vide páginas 2 a 10 do requerimento de abertura de instrução);

- a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (vide requerimento probatório);

- a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (vide páginas 4 e 5 do requerimento de abertura de instrução),

- a indicação dos factos que através de uns e outros se pretende provar (vide artigos 1.º a 15.º do requerimento de abertura de instrução).

V) Mas mais, entende o Recorrente que o requerimento de abertura de instrução apresentado, contém ainda:

- a narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança, inclusive, em termos de lugar e tempo da sua prática (vide artigos 3.º a 13.º do requerimento de abertura de instrução), bem como;

- o grau de participação do arguido neles (vide artigos 3.º a 13.º do requerimento de abertura de instrução), e;

- a indicação das disposições legais aplicáveis (vide artigo 15.º do requerimento de abertura de instrução).

VI) O Recorrente imputa à Arguida factos que consubstanciam a prática do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal.

VII) Ora, no requerimento de abertura de instrução, para além de narrar as circunstâncias da actuação da arguida – pontos 3 a 5 do RAI – o Assistente, descreve quais as expressões utilizadas pela Arguida que considera que consubstanciam o elemento objectivo do tipo (propalar factos inverídicos) – ponto 6 do RAI -, ou seja:

a) Tive conhecimento do início da empreitada de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, contudo o mesmo não me foi comunicado pelo AA;

b) O projecto não está a ser de todo cumprido;

c) o edifício está a ser alvo de demolições estruturais de grande vulto;

d) que colocam em causa toda a estrutura, morfologia e valor patrimonial;

e) alterações ilícitas (sem o acordo do autor);

f) por forma a salvaguardar o meu bom nome no envolvimento de utilização danosa de fundos comunitários, o que configura crime.

VIII) Mais, indica o Assistente as razões pelas quais aqueles factos eram inverídicos – pontos 7, 8, 9 e 10 do RAI – isto é:

a) as alterações em causa eram pontuais e não estruturais, nem de grande vulto (2 paredes interiores e um troço superior do coroamento das paredes exteriores, que ruíram aquando do desmonte da cobertura do edifício);

b) ao serem pontuais estas alterações não desvirtuavam nem colocavam em causa toda a estrutura, morfologia e valor patrimonial do edifício;

c) a arguida teve conhecimento das alterações ao projecto por as mesmas lhe terem sido comunicadas por técnico do AA;

d) à data do envio das comunicações o AA não tinha sequer requerido o pagamento de quaisquer fundos comunitários, o que era do conhecimento da arguida, logo não existia qualquer utilização danosa de fundos comunitários.

IX) Não podem assim restar dúvidas que o AA imputou à Arguida factos que consubstanciam a prática do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal.

X) Afirmar significa, desde logo, declarar com firmeza; dizer algo assumindo o carácter de verdade do que é dito; asseverar, sustentar, do mesmo modo, propalar, significa divulgar, espalhar, reiterar, apregoar (cfr. dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

XI) A propósito da distinção facto versus juízo, refere o Prof. Faria Costa in Comentário Conimbricense: “facto é o que se traduz naquilo que é ou que acontece, na medida em que se considera como um dado real da existência, facto é um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, um juízo de existência. Um facto é um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos, distinguindo-se, neste sentido, dos acontecimentos, que são também factos, mas que se expressam por conjunto de ações que se protelam no tempo. Por sua vez, o juízo, independentemente dos domínios em que pode operar (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico) deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa a existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor”. (negrito nosso)

XII) No caso concreto, as expressões proferidas e utilizadas nas missivas e e-mails difundidos pela Arguida, constituem a imputação de factos, cfr. ponto 6 do RAI. Daqui se conclui que, relativamente a estes pontos, seguramente, estamos na presença da imputação de factos que alegadamente terão sido cometidos pelo Assistente. O que nos pontos aludidos foi escrito contém a narração de realidade factual, contrariamente ao invocado pelo Dr. Juiz de Instrução Criminal.

XIII) Sendo que, no caso concreto, tais factos inverídicos eram idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devida ao Assistente.

XIV) Sendo certo que, a Arguida estava perfeitamente ciente do carácter inverídico daqueles factos, porquanto a própria se deslocou à obra para a fotografar, sabia necessariamente que não existiam demolições estruturais de grande vulto e que as demolições existentes não punham em causa a toda a estrutura, morfologia e valor patrimonial do edifício; sabendo necessariamente, por isso e por todo o demais referido no RAI, que a actuação do AA era lícita em todos os seus aspectos.

XV) Por tudo quanto foi dito, resulta claro que o requerimento de abertura de instrução não só respeitou o preceituado nos artigos 287.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, bem como, se encontram ali enunciados quer o elemento objectivo do tipo legais em apreço, quer o seu elemento subjectivo.

XVI) Assim sendo, a decisão de indeferimento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente, viola o disposto nos artigos 287.º do Código de Processo Penal, bem como, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (na vertente de acesso à Justiça e aos Tribunais), devendo, por conseguinte, ser revogada por Vossas Excelências.

Pugnando, em síntese, pelo seguinte:

“Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida, sendo admitido o requerimento de abertura de instrução do recorrente e declarada abertura da instrução, com as demais consequências legais.”

O recurso foi admitido.

Em resposta, o MP em 1.ª instância concluiu que (transcrição):

“Tratando-se de crime doloso, verifica-se que o requerimento para abertura da instrução não obedeceu à estrutura acusatória do processo, nem assegurou as garantias de defesa da arguida, nos termos previstos nos artigos 283°, nº 3, alínea b), e 287.°, n.? 2, do Código de Processo Penal, porquanto foi omisso em relação aos elementos objetivo e subjetivo de tal crime.

Pelo que, nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução por falta de indicação de factos suficientes para preenchimento do imputado crime, designadamente de factos integradores do elemento do tipo de tal ilícito criminal, sendo, portanto, este requerimento, nos termos apresentados, legalmente inadmissível.

Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na decisão recorrida, a qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.”

Pugnando, em síntese:

“Termos em que, e nos mais de direito, deverá ser mantida a douta decisão recorrida, com o que se fará JUSTIÇA!”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (2).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Em 09-11-2022 veio o assistente AA requerer a abertura de instrução imputando a CC a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo art.º 187.º, n.º 1, do Cód. Penal.

Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do C.P.P., abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação do despacho de arquivamento.

A Il. Mandatária do assistente foi notificada do despacho de arquivamento no dia 18-10-2022, presumindo-se notificada no terceiro dia posterior ao envio, ou seja, no dia 21-10-2022 (cfr. artigo 113.º, n.º 12, do C.P.P.).

Por sua vez, o assistente foi notificado por notificação simples com prova depósito no dia 20-10-2022, pelo que se considera notificado no dia 25-10-2022.

No conspecto formal, o requerimento de abertura de instrução é tempestivo e o tribunal é o competente.

No conspecto material, exige-se, pois, que o requerimento de abertura de instrução proceda à imputação objectiva e subjectiva ao agente, da factualidade ilícita e típica, mormente e no presente caso, a constante do art.º 187.º do Cód. Penal. O tipo objectivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de “factos inverídicos”, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de “juízos de valor” ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2016-04-05)

O “Facto” é um acontecimento da vida real, inserido num tempo e espaço precisos ou determináveis.

“Afirmar” significa dar por certo, corroborar, tornar firme, sustentar, fixar, fincar, pôr termo ao ajuste ou concerto de e declarar ser verdade.

Em função da matéria alegada, estão em causa as circunstâncias: tomar conhecimento de que o projecto não está a ser cumprido, o edifício está a ser alvo de demolições estruturais e a introdução de alterações pelo dono da obra.

Sucede que a assistente confessa nos pontos 7 e 9 do requerimento de abertura de instrução que as demolições ocorreram e que existiram alterações ao projecto da arguida.

Quanto à utilização de fundos comunitários, o veiculado pela arguida trata de forma genérica a utilização de fundos sem imputar algo de concreto, quando aliás é do conhecimento comum que a indevida utilização de fundos comunitários pode acarretar responsabilidade criminal; nem a arguida refere que os fundos foram à data recebidos pelo dono da obra.

Por conseguinte, os factos alegados não se reconduzem ao tipo criminal imputado.

Não se reconduzem à afirmação ou difusão concreta de factos falsos pela arguida, o que é evidente pela mera análise do requerimento de abertura de instrução.

No requerimento de abertura de instrução não consta a descrição suficiente dos elementos típicos objectivos tipo penal aplicável. Tudo o mais escrito nas diversas missivas constitui um juízo de valor e criminalmente atípico. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-05-2017, disponível em www.dgsi.pt: “As afirmações produzidas pelo arguido consubstanciam essencialmente a emissão de juízos de valor e não de factos que devam ser considerados inverídicos: O arguido não “propala factos”, limita-se a emitir opiniões, o que se reconduz a juízos valorativos atípicos perante o preceito incriminador, não constituindo, por isso, conduta típica tutelada pela norma.”.

Ressalvado o devido respeito, o requerimento de abertura de instrução não descreve os factos que legitimam a aplicação de uma pena à arguida.

Termos em que, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, nos termos do art.º artigo 287.°, n.º 3, do Código de Processo Penal.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão única a decidir no presente recurso reside na verificação ou não de fundamento legal de rejeição do RAI.

B. Decidindo.

Segundo o recorrente, o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 287.º, n.º 3 do CPP e 20.º da CRP.

Vejamos.

Atento o disposto no art.º 287.º, n.º 2, o RAI deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.°, ou seja, o RAI deve conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Consta do RAI (transcrição):

“1 – O Assistente é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autoridade pública.

2 – A Arguida é arquitecta, foi funcionária do Assistente desde 2004 até 2016, tendo a partir dessa data passado a ser funcionária da CCDR …, pelo menos até 2021 (Cfr. Publicação em Diário da República, 2.ª Série, de …2021, pag…a … - Documento n.º 1 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3 - No dia 25 de Agosto de 2020, a Arguida remeteu ao Assistente uma missiva datada de 24/08/2020, com o seguinte teor:

“Ex.mo Senhor

Presidente do AA

CC, na qualidade de arquitecta responsável pela autoria do Projecto de Arquitetura da “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos do art. 10.º do RJUE, na sua atual redação, vem pelo informar V.Exa. que:

• Tive conhecimento do início da empreitada de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, contudo o mesmo não me foi comunicado pelo AA, nem me foi solicitada a respetiva Assistência Técnica e/ou fiscalização da obra, de acordo com a legislação em vigor e aplicável. Uma vez que, o autor do projeto tem o direito a fiscalizar a obra em todas as fases e pormenores, de maneira a assegurar a exata conformidade da obra com o projecto de que é autor e coordenador.

• O projeto de que sou autora careceu de parecer vinculativo favorável da DRC…, que teve como objecto não modificar a tipologia e a morfologia do edifício contribuindo para a sua valorização do ponto de vista patrimonial funcional e estético. Contudo, tenho conhecimento de que o projeto, não está a ser de todo cumprido. O edifício está a ser alvo de demolições estruturais de grande vulto que, além de não estarem previstas, não só o desvirtuam, como colocam em causa toda a sua estrutura, morfologia e valor patrimonial. (levantamento fotográfico em anexo).

• Advém ainda que, a relevância das referidas intervenções provoca dano e desfiguração tal do projeto que este se considera afetado nas suas qualidades ou características mais marcantes, configurando-se uma violação de propriedade intelectual, que afetam a honra e a reputação do autor.

• O dono da obra pode introduzir alterações na obra projetada desde que cumprido o ónus de consultar previamente o seu autor.

• As alterações ilícitas (sem o acordo do autor) introduzidas no projeto arquitetónico permitem ao autor desvincular-se do projeto, rejeitando a sua paternidade confere-lhe o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos.

Face ao exposto, e uma vez que cessei funções como arquitecta responsável pelas unidade de Obras Municipais do AA, em …2016, venho pela presente declinar a responsabilidade da autoria do projeto de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos da al. f), do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 25/2018, na versão Lei n.º 31/2009, devendo a autarquia nomear um técnico responsável pela autoria do projeto que está a ser levado a cabo na empreitada em curso.

Saliento ainda que, o projeto e a respetiva empreitada foram candidatos ao programa …, no âmbito do “Plano de Ação de Regeneração Urbana dos centros complementares”, Aviso n.º …, operação n.º …, contratada em …-2017. Neste sentido apresento o meu “repúdio”, por forma a salvaguardar o meu nome no envolvimento da utilização danosa de fundos comunitários, que configura crime.

At.te.

CC, arq.ta (…).

…, Agosto de 2020

Anexos:

- Termo de Responsabilidade da autoria do projeto, de …2016;

- Pareceres da DRC…, de …-2016 e de …2016;

- Ata a reunião de Câmara extraordinária, de …-2016;

- Levantamento fotográfico da empreitada em curso.” (Cfr. Comunicação completa (com anexos e prova de envio) - Documento n.º 2 que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

4 – No dia 26 de Agosto de 2020, a Arguida remeteu um e-mail para a Direcção Regional da Cultura do …, concretamente dirigido à Dra. DD (Directora) e ao Arquitecto EE, com o seguinte teor:

“Ex.ma Senhora

Directora Regional da Cultura do …

Dr.a DD

CC, na qualidade de arquitecta responsável pela autoria do Projecto de Arquitetura da “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos do do art. 10.º do RJUE, na sua atual redação, vem pelo presente dar conhecimento a V.Exa. das cartas enviadas à DGPC e ao AA, a declinar a responsabilidade da autoria do projeto de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos da al. f), do n.º 2, do artigo 12.º, da Lei n.º 25/2018, na versão da Lei n.º 31/2009.

O projeto de que sou autora careceu de parecer vinculativo favorável da DRC…, que teve como objeto não modificar a tipologia e a morfologia do edifício contribuindo para a sua valorização do ponto de vista patrimonial funcional e estético, contudo, o mesmo não está a ser cumprido. O edifício está a ser alvo de demolições estruturais de grande vulto que, além de não estarem previstas, não só o desvirtuam, como colocam em causa toda a sua estrutura, morfologia e valor patrimonial, devendo a autarquia, na qualidade de Dono de Obra, nomear um técnico responsável pela autoria do projeto que está a ser levado a cabo na empreitada em curso. (levantamento fotográficos em anexo)

At.te.

CC, arq.ta (…).

5 - Em data não concretamente apurada próxima das datas referidas, a Arguida remeteu ao Director Geral do Património Cultural, Dr. FF, uma missiva datada de 24/08/2020, com o seguinte teor:

“Ex.mo Senhor

Diretor Geral da DGPC

Dr.º FF,

CC, na qualidade de arquitecta responsável pela autoria do Projecto de Arquitetura da “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos do do art. 10.º do RJUE, na sua atual redação, vem pelo presente dar conhecimento a V.Exa. da carta enviada ao AA, a declinar a responsabilidade da autoria do projeto de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, nos termos da al. f), do n.º 2, do artigo 12.º, da Lei n.º 25/2018, na versão da Lei n.º 31/2009.

O projeto de que sou autora careceu de parecer vinculativo favorável da DRC…, que teve como objeto não modificar a tipologia e a morfologia do edifício contribuindo para a sua valorização do ponto de vista patrimonial funcional e estético, contudo, o mesmo não está a ser cumprido. O edifício está a ser alvo de demolições estruturais de grande vulto que, além de não estarem previstas, não só o desvirtuam, como colocam em causa toda a sua estrutura, morfologia e valor patrimonial, devendo a autarquia, na qualidade de Dono de Obra, nomear um técnico responsável pela autoria do projeto que está a ser levado a cabo na empreitada em curso. (levantamento fotográficos em anexo)

As alterações ilícitas (sem o acordo do autor) introduzidas no projeto arquitetónico permitem ao autor desvincular-se do projeto, rejeitando a sua paternidade e confere-lhe o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos.

Face ao exposto, e tendo o projeto e a respetiva empreitada sido candidatos ao programa …, operação n.º …, contratada em …2017, apresento o meu “repúdio”, por forma a salvaguardar o meu nome no envolvimento da utilização danosa de fundos comunitários, que configura crime.

At.te.

CC, arq.ta (…).

… Agosto de 2020

Anexos:

- Termo de Responsabilidade da autoria do projeto, de …-2016;

- Pareceres da DRC…, de …-2016 e de …-2016;

- Ata a reunião de Câmara extraordinária, de …-2016;

- Levantamento fotográfico da empreitada em curso.”

6 – A Arguida não tinha qualquer fundamento, para de boa-fé, reputar como verdadeiros os seguintes factos: “Tive conhecimento do início da empreitada de “Recuperação e Reabilitação do edifício do BB”, contudo o mesmo não me foi comunicado pelo AA”, “o projecto não está a ser cumprido”, “o edifício está a ser alvo de demolições estruturais de grande vulto”, que “colocam em causa toda a estrutura, morfologia e valor patrimonial”, “alterações ilícitas (sem o acordo do autor)”, “por forma a salvaguardar o meu bom nome no envolvimento de utilização danosa de fundos comunitários, que configura crime”.

7 – As demolições em causa eram pontuais, referiam-se apenas a duas paredes interiores e ao troço superior do coroamento das paredes exteriores.

8 – Estas demolições ao serem pontuais não desvirtuavam, nem colocavam em causa toda a estrutura, morfologia e valor patrimonial do edifício.

9 – As alterações ao projecto não eram ilícitas porque foram decorrentes de erros e/ou omissões do projecto e a sua autora – aqui Arguida – foi informada das mesmas por Técnico do Município.

10 – À data do envio das comunicações referidas em 3, 4 e 5, o Município ainda não tinha recebido quaisquer fundos comunitários no âmbito da candidatura de reabilitação do edifício do “BB”.

11 – Os factos inverídicos que a Arguida propalou através das comunicações referidas em 3, 4 e 5, foram idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devida ao Município.

12 – Na sequência do envio pela Arguida das comunicações referidas em 3, 4 e 5, o Município teve que responder perante o Director de Serviços e Bens Culturais, Sr. Arquitecto EE, que integra a DREC…, assim como, à CCDR …, tendo recebido várias visitas de fiscalização destas entidades à obra em causa.

13 – A Arguida sabia que tais factos inverídicos eram idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao AA, sem ter qualquer fundamento para de boa-fé os considerar verdadeiros, mesmo assim quis divulgá-los, o que conseguiu.

14 – Bem sabia a Arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, contudo não se coibiu de a executar.

16 – Ao proceder assim, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal, cometeu a Arguida, em autoria material e na forma continuada, um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelo artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal.”

O objecto do processo que a acusação incorpora materializa-se numa unidade complexa (3) que compreende uma questão de facto (a descrição dos factos imputados) e uma questão de direito (a indicação normativa, ou seja, mais especificamente, na indicação do crime imputado). É consequência necessária da estrutura acusatória do processo penal (4) que cabe em exclusivo à entidade acusadora a definição rigorosa do respectivo objecto, ou seja, a conformação concreta da acusação, não sendo legalmente admissível qualquer interferência nesse labor, nomeadamente por parte do juiz. Na decisão recorrida afirma-se que os factos alegados não se reconduzem ao tipo criminal imputado.

Vejamos, em primeiro lugar, a norma em causa: Artigo 187.º Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva

1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

O tipo objectivo de ilícito integra, pois, necessariamente, a afirmação ou propalação de factos inverídicos. Do exposto flui que a “idoneidade ou capacidade de violação à credibilidade, prestígio ou confiança mede-se por um parâmetro que se apoie na compreensão que um normal e diligente homem comum tenha da problemática” (5), importando distinguir “expressões factuais” de meras “valorações”.

Como é, no essencial, afirmado na decisão recorrida, estão em causa as seguintes circunstâncias e o respectivo conhecimento pela arguida:

(iii) o projecto (da arguida) não está a ser (“de todo”) cumprido;

(ii) o edifício está a ser alvo de demolições estruturais (“de grande vulto”) não previstas que “desvirtuam e colocam em causa a sua estrutura, morfologia e valor patrimonial”;

(iii) estão a ser (foram) introduzidas alterações pelo dono da obra (o assistente).

Como, porém, também se afirma na decisão recorrida, o ora recorrente admite, nos pontos 7.º e 9.º do RAI, que, efectivamente, ocorreram demolições e que foram introduzidas alterações ao projecto da arguida, centrando-se a discordância no carácter estrutural / pontual das demolições e no carácter ilícito / lícito das alterações.

Deste modo, concluímos que, quanto às “expressões factuais”, é a própria recorrente que as “confessa” (como é mencionado na decisão recorrida), centrando-se a discórdia em meras “valorações”, irrelevantes sob o ponto de vista típico, como vimos.

Por último, quanto à “utilização danosa de fundos comunitários”, nem sequer existe a valoração de qualquer facto (e muito menos a imputação deste, verídico ou inverídico), apenas configurando a afirmação de uma cláusula prévia de eventual desresponsabilização da arguida face a uma mera possibilidade, nada sendo imputado, em concreto, ao ora recorrente, sendo absolutamente inócua a referência ao não recebimento de quaisquer fundos por este último. Considerando o disposto no art.º 283.º (6), constitui menção obrigatória do RAI a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Como também se menciona na decisão recorrida, os elementos em falta são estruturalmente integrantes do crime imputado. Recorde-se que o “princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame.” (7) É indiscutível que o RAI deve conter factos concretos, suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal imputado. O recorrente persiste, nesta sede, em afirmar que os factos alegados constituem o crime que pretende ver imputado à arguida. Porém, como vimos, falha a narração de um dos elementos essenciais à estrutura objectiva típica do crime em causa, ou seja, concretamente, a afirmação ou propalação de factos inverídicos. Consequentemente, “[o] não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais. Com diversas nuances, o RAI do assistente que não narra os factos é rejeitado por inadmissibilidade legal. (8)” Assim, entendemos que no despacho recorrido se efectuou uma correcta interpretação do art.º 287.º, n.º 2, improcedendo a pretensão recursória do assistente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Doravante RAI.

2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

3 A. Castanheira Neves (in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, página 236) identifica o objecto do processo como “o caso jurídico concreto apresentado e a resolver”.

4 Cfr. art.º 32.º, n.º 5 da CRP.

5 José de Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, tomo I, página 680.

6. Artigo 283.º Acusação pelo Ministério Público 1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele. 2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; (…)

7 J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 2007, 4.ª edição, página 522.

8 Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª edição, Quid Juris, 2020, página 639, que faz um historial da evolução histórica do entendimento doutrinário e jurisprudencial do conceito, remetendo-se para a numerosa jurisprudência aí referida no apontado sentido.