ABERTURA DE INSTRUÇÃO
TEMPESTIVIDADE
ERROS DE SECRETARIA
Sumário

Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
Assim, se a secretaria (erradamente ou não) comunicou à ilustre defensora da arguida a acusação contra esta deduzida, tal comunicação faz presumir que está a efetuar a notificação da mesma, com a determinação do prazo para apresentar RAI a ser definida de acordo com tal notificação. Do exposto flui que não pode a defesa ser prejudicada com a contagem de um prazo inferior (ainda que possa ser este o legalmente previsto para o caso)
Consequentemente, presumindo-se a notificação da acusação efectuada no dia 14.11.2022 e tendo o RAI sido apresentado em 29.11.2022, foi respeitado o prazo de 20 dias previsto na lei para o efeito (art.º 287.º, n.º 1, alínea a)), inexistindo motivo para, com fundamento no desrespeito pelo mesmo, ser aquele rejeitado.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Instrução Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo de instrução n.º 103/22.0GTSTB, no qual, mediante despacho judicial, foi rejeitado o requerimento para abertura da instrução (1) apresentado pela arguida AA, com fundamento na sua extemporaneidade.

Inconformada com essa decisão, recorreu tal arguida, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:

“I - A arguida/recorrente veio atempadamente, perante o tribunal, e o juiz competente, requerer de forma articulada a abertura da “Instrução Contraditória “, nº 1 al. a) do Artº 287º do C.P.P.

II - Cabia nos poderes conferidos ao meritíssimo juiz de Instrução Criminal nos termos do disposto pelo nº 1 do artº. 128.º e 140.º do C.P.P, deferir a pretensão da arguida, que visava determinar, com a inquirição das testemunhas e sua audição, se a arguida praticou o crime que consta da acusação.

III - Quanto ao despacho que rejeita o requerimento de Abertura de Instrução dando como extemporâneo, deixa à Recorrente sérias dúvidas.

IV - O despacho de Acusação foi notificado à Arguida dia 22/10/2022, indicada pelo distribuidor do serviço postal do depósito da carta artigo 113 n.º 3 do CPP.

V - Não se considerou a mandatária da arguida notificada no dia 24/10/2022, conforme consta do despacho da Meritíssima Juiz de Instrução.

VI - A mandatária, teve conhecimento da acusação, através de email o qual se junta, no dia 9/11/2022; onde a senhora funcionária alude que procedeu “à notificação da mandatária via CTT”, sendo que veio devolvida por menção “não atendeu”, realizada na pesquisa da ordem, a morada é a mesma para onde se remeteu a notificação, pelo que a envio por esta via.”

VII - No despacho de rejeição do requerimento, presume-se que a mandatária foi notificada de forma regular, tendo havido términus no dia 16/11/2022, tendo em conta, os três dias úteis para a prática do ato mediante pagamento da multa, o prazo terminaria em 21/11/2022.

VIII - Ora, uma vez que a mandatária da arguida só teve conhecimento do conteúdo da acusação no dia 9/11/2022; e não havendo nada na lei que indique que esta notificação via email tem efeitos retroativos; entregou o respetivo requerimento de Abertura de Instrução no dia 29/11/2022.

IX - Pensando assim estar a cumprir o estipulado no artigo 113 n.º (s) 10.º, 11.º e 12 do CPP. , atendendo ao espírito da lei “artigo 113.º n.º 10,do CPP “…neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.”

X - A Recorrente não considerou a sua mandatária notificada em 24/10/2022, mas só em 09/11/2022; trata-se de uma diferente interpretação da lei, sendo que salvo melhor consideração, que respeitamos, o requerimento de Abertura de instrução não pode ser considerado extemporâneo.

XI - A mandatária da recorrente, em regra está no escritório e recebe a correspondência registada, contudo é advogada em prática isolada e se tiver uma semana de diligências torna-se complicado de gerir a agenda para estar no escritório à hora que carteiro trás o correio.

XII - Sendo que tinha alguns dias para ir ao posto dos CTT, levantar o correio, porém o A/R não foi colocado na caixa de correio devida, e quando chegou à sua caixa de correio já estava fora do prazo.

XIII - Pelo que a recorrente só considerou a sua mandatária notificada a partir do dia 9/11/2022.

XIV - Impõe-se assim, uma resolução diferente da recorrida, tendo em conta o supra exposto no presente recurso assim como alegado no RAI., e que considere este (RAI) entregue de forma atempada e dentro do prazo.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Impõe-se assim uma decisão diversa da Recorrida, tendo em conta o explanado. Nestes termos e nos demais de Direito, deve o Presente Recurso merecer o provimento, e em

Consequência, ser revogada a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que admita o requerimento de Abertura de Instrução e em consequência permita a realização do debate Instrutório com a audição da arguida e das Testemunhas por esta indicadas.”

O recurso foi admitido.

O MP em 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo o seguinte (transcrição):

“1 - Interpôs a arguida AA recurso do douto despacho proferido a fls. 65 dos autos supra epigrafados, que, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, rejeitou, com fundamento na (manifesta) extemporaneidade dessa peça processual, o requerimento de abertura de instrução de fls. 49-61 dos mesmos autos (apresentado por aquele sujeito processual);

2 - Pugna a ora recorrente, a final, no sentido de dever ter lugar a revogação e consequente substituição daquele despacho por outro que admita semelhante requerimento de abertura de instrução e, como tal, a realização, nessa fase processual, das correspondentes diligências;

3 - Estará aqui em causa, no essencial e no que interessa relativamente ao douto despacho neste momento posto em crise, aquilatar da tempestividade do requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida AA, ora recorrente;

4 - Inconformada com a acusação contra si deduzida pelo Ministério Público a fls. 32-34, peticionou a arguida AA, mediante o requerimento corporizado a fls. 49-61 dos autos supra referenciados, a abertura da instrução, o que fez, segundo resulta do processado, em 29.11.2022;

5 - Ora, dispõe o art.º 113.º, n.º 10, do Código de Processo Penal que «[a]s notificações do arguido, (…) podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado, ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação, (…) as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar»;

6 - Assim, e visando concretizar semelhante desiderato notificativo, foram expedidas, em 19.10.2022, carta, por via postal simples, endereçada à arguida AA, cfr. fls. 40, e carta registada, por via postal registada, endereçada à Ilustre mandatária do mesmo sujeito processual, cfr. fls. 41, em conformidade com o preceituado nas als. c) e b), respectivamente, do n.º 1 do art.º 113.º do Código de Processo Penal;

7 - Ora, se aquela primeira carta foi depositada no receptáculo postal da arguida notificanda em 24.10.2022, disso tendo logo sido lavrada a correspondente declaração, cfr. fls. 40 v.º, “considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada na declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal”, in casu, no dia 29.10.2022, nos termos previstos no art.º 113.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, já a carta registada endereçada à Ilustre mandatária veio a ser enviada pelos CTT em 04.11.2022 ao tribunal remetente com a menção de “[o]bjeto não reclamado”, bem assim de não ter este sido entregue no domicílio porque o destinatário “[n]ão atendeu” em 29.10.2022, tendo, porém, sido deixado aviso para efeitos de levantamento de tal correspondência na respectiva Estação de Correios, cfr. fls. 43;

8 - Assim, e percorrido todo o iter processual, muito mais do que não ser de pressupor que tivesse tido lugar a notificação de tal Ilustre mandatária, é, antes, de questionar, se todo o expediente reportado ao pretendido (mas não concretizado) procedimento notificativo se encontra, precisamente, nos autos, reitere-se, a fls. 43, que melhor prova poderá existir no sentido de que semelhante notificação da acusação (mediante expedição da correspondente carta registada, por via postal registada) não ocorreu, ou seja, não foi efectuada, do que apelar ao que consta do próprio processado, quando isso é o que deste último resulta cristalinamente?

9 - Por outro lado, importa salientar que, prevendo o art.º 113.º, n.º 7, do Código de Processo Penal a possibilidade de verificação de vicissitudes diversas aquando da realização de procedimentos notificativos em matéria de via postal registada, existem situações em que foi aí expressamente previsto que “val[e] o acto como notificação”, tal não sendo o que sucede na hipótese de não ter sido possível pela ausência do destinatário bem assim de terceira pessoa efectuar qualquer entrega da carta, sendo essa, precisamente, a hipótese ocorrida in casu, contemplada na respectiva al. d);

10 - Na sequência da devolução ao tribunal remetente da supra mencionada carta registada, foi em 09.11.2022 enviado à Ilustre mandatária da arguida AA, via correio electrónico, e-mail através do qual foi a mesma advogada notificada da acima aludida acusação [“Procedi à sua notificação via CTT (despacho de arquivamento/Acusação), sendo que veio devolvida com menção “Não Atendeu”, realizada pesquisa na Ordem, a morada que lá consta é a mesma para onde se remeteu a notificação, pelo que envio-a por esta via”, conforme documento em suporte informático anexo], cfr. fls. 45, notificação essa que se presume feita, in casu, no dia 14.11.2022 (2.ª-feira), nos termos estatuídos no art.º 113.º, n.º 12, do Código de Processo Penal [onde se prevê que, «[q]uando efetuadas por via eletrónica, as notificações presumem-se feitas no terceiro dia posterior ao do seu envio, quando seja útil, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja»] – efectivamente, como, a título meramente exemplificativo, se refere, de modo lapidar, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2022, Processo n.º 179/21.8GASBG.C1, Relatora: Ana Carolina Cardoso, acessível in www.dgsi.pt, é «clara a aplicabilidade da dilação de 3 dias às notificações efetuadas por via eletrónica e, assim, ao advogado ou defensor»;

11 - Sucedendo ser aquela última data, 14.11.2022, a que relevará, designadamente, ante o disposto no art.º 113.º, n.º 10, in fine, do Código de Processo Penal [«sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar», transcrição já constante supra], para a contagem do prazo de 20 dias para requerer a abertura da instrução previsto no art.º 287.º, n.º 1, “proémio”, ainda do citado compêndio normativo, temos, por conseguinte, como certo que, em face de todas as considerações acima expendidas, foi, pois, tempestiva a apresentação em 29.11.2022, por parte da arguida AA, do requerimento de abertura de instrução aqui controvertido.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Face a todo o exposto, entendemos que deverá, em conformidade, ser dado provimento ao recurso interposto pela arguida AA.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto “merece provimento”.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (2).

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“A arguida AA apresentou em 29/11/2022 requerimento de abertura de instrução (ver fls. 49 e ss).

O despacho de acusação foi notificado à arguida no dia 27/10/22 fls. 40 e 40 v. – 5º dia posterior à data de 22/10/22 indicada pelo distribuidor do serviço postal do depósito da carta — art.º 113º n.º 3 do CPP). E, a mandatário da arguida foi notificada a 24/10/22 (fls. 41 – 3º dia útil posterior à data indicada no expediente para notificação — art.º 113º n.º 2 do CPP e 248º CPC), iniciando-se a partir de tal notificação o prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução

Assim, o prazo de 20 dias ( artigo 287º, nº1, a) CPP) para requerer a abertura da instrução terminou no dia 16/11/22 (1º dia útil após os referidos 20 dias — artigo 104º CPP e 138º, 2 CPC). Acrescendo s três dias úteis para a prática do ato mediante o pagamento da multa, o prazo sempre terminaria em 21/11/22

Assim sendo, e sem necessidade de mais considerando e evitando, ao abrigo do disposto no art. 287º, nº 3 do C.P.P. rejeito o requerimento de abertura de instrução, por extemporâneo, uma vez que foi, inclusivamente, ultrapassado o prazo de três dias previsto no artigo 145º do C.P.C., aplicável ex-vi do artigo 107º, nº 5 do CPP.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Importa, no presente recurso, responder a uma única questão, que se traduz na (in)tempestividade da apresentação do RAI nos presentes autos.

B. Decidindo.

Segundo o art.º 113.º, n.º 10, as notificações do arguido (…) podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado, ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação (…), as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.

A questão essencial reside na consideração da data da notificação da acusação à ilustre defensora da arguida, uma vez que, indiscutivelmente, a mesma ocorreu depois da notificação daquela peça processual à arguida.

Desde logo, importa sublinhar que foi expedida, em 19.10.2022, carta registada endereçada à ilustre defensora da arguida, para o mencionado efeito. (cfr. fls. 41)

Tal carta veio a ser devolvida pelos CTT em 04.11.2022 ao tribunal remetente com a menção de “[o]bjeto não reclamado” e de não ter este sido entregue na morada indicada porque o destinatário “[n]ão atendeu” em 29.10.2022, tendo, porém, sido deixado aviso para efeitos de levantamento de tal correspondência na respectiva Estação de Correios. (cfr. fls. 43)

Após a mencionada devolução, foi, em 09.11.2022, enviado à ilustre defensora da arguida, através de correio electrónico, um e-mail com o seguinte teor: “Procedi à sua notificação via CTT (despacho de arquivamento/Acusação), sendo que veio devolvida com menção “Não Atendeu”, realizada pesquisa na Ordem , a morada que lá consta é a mesma para onde se remeteu a notificação, pelo que envio-a por esta via”. (cfr. fls. 45)

Esta notificação presume-se feita no dia 14.11.2022 (segunda-feira), atento o disposto no art.º 113.º, n.º 12, onde se prevê que, “[q]uando efetuadas por via eletrónica, as notificações presumem-se feitas no terceiro dia posterior ao do seu envio, quando seja útil, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.”

Cumpre assinalar que se nos afigura como incontestado que esta última notificação, procedendo ao envio da acusação, terá de considerar-se como notificação da mesma, independentemente de se presumir (ou não) que tal notificação já havia ocorrido previamente através do envio de carta registada para a morada da ilustre defensora.

Ou seja, a secretaria (erradamente ou não), ao enviar a acusação à ilustre defensora, transmitiu a ideia de que estava a proceder à notificação da acusação (que, aliás, aquela efectivamente, não recebeu, uma vez que a carta foi devolvida), o que, obviamente condiciona o prazo para requerer a abertura da instrução. É de sublinhar que, nos termos do art.º 157.º, n.º 6 do CPC, ex vi do art.º 4.º do CPP, os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

Assim, se a secretaria (erradamente ou não) comunicou à ilustre defensora da arguida a acusação contra esta deduzida, tal comunicação faz presumir que está a efectuar a notificação da mesma, com a determinação do prazo para apresentar RAI a ser definida de acordo com tal notificação. Do exposto flui que, no nosso entendimento, não pode a defesa ser prejudicada com a contagem de um prazo inferior (ainda que possa ser este o legalmente previsto para o caso). (3)

Em sentido semelhante, veja-se o Acórdão do STJ de 03.03.2004 proferido no processo n.º 03P4421 (Relator Henriques Gaspar), disponível em www.dgsi.pt:

“Entre os princípios estruturantes do processo penal democrático deve salientar-se o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também no artigo 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos - instrumentos internacionais de que Portugal é Parte - e que comanda toda a formulação das garantias inscritas no artigo 32º da Constituição.

Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.”

Consequentemente, presumindo-se a notificação da acusação efectuada no dia 14.11.2022 e tendo o RAI sido apresentado em 29.11.2022 (cfr. fls. 49 e seguintes), respeitou o prazo de 20 dias previsto na lei para o efeito (art.º 287.º, n.º 1, alínea a)), inexistindo motivo para, com fundamento no desrespeito pelo mesmo, ser aquele rejeitado.

O recurso deve, assim, proceder.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá apreciar o requerimento para abertura de instrução sem o rejeitar por extemporaneidade.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

1 Doravante RAI.

2 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores, sem indicação diversa.

3 Neste sentido, entre muitos outros, vide o Acórdão do TRP de 23.11.2016 proferido no processo 4065/14.0T9PRT-A.P1 (relator João Pedro Nunes Maldonado) disponível em www.dgsi.pt: “I - De acordo com o artº 157º nº 6 do CPC, os erros dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes. II - Tal princípio é aplicável ao processo penal (artº 4º CPP). III - Um sujeito processual ou até interveniente pode valer-se dos prazos erroneamente declarados nas comunicações escritas efetuadas pelos funcionários de justiça no âmbito do cumprimento de ordens da autoridade judiciária que excedam os prazos legais de caducidade para a prática de actos processuais.” Por seu turno, o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 714/04, de 21.12, disponível no respectivo site institucional) também já se pronunciou sobre a questão, entendendo que “[n]o caso de existência de erro da secretaria não reparado por intervenção oficiosa ou motivada do autor, há que notar que a solução elegida pelo legislador encontra acolhimento desde logo, na garantia constitucional do acesso aos tribunais nas suas dimensões de direito a uma tutela efectiva e eficaz e de proibição de indefesa, consagrada no art.º 20º, e no princípio da tutela da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, a demandar que se deva confiar nos actos dos funcionários judiciais praticados no processo enquanto agentes que estes são dos Tribunais e enquanto os mesmos não forem revogados ou modificados, este decorrente do art.º 2º, ambos os preceitos da CRP.”