RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
INSOLVÊNCIA DOLOSA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário


I -    A obrigação de indemnização existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, conforme art. 563.º do CC, norma que consagra a doutrina da causalidade adequada.
II -   Se os actos praticados pelo arguido/demandado – a alteração do objeto social da empresa, a subsequente transferência de mercadorias, máquinas e trabalhadores, a retirada da capacidade produtiva àquela, passando a ter uma atividade residual – foram adequados a inviabilizar o pagamento dos créditos aos fornecedores, e se esse desvio de património não permitiu também, no processo de insolvência, a apreensão de bens que servissem para liquidação das dívidas aos credores, deve concluir-se  que o ilícito desvio de património levado a cabo pelo arguido/demandado é causa adequada do prejuízo sofrido pela demandante ao não lhe ser paga a mercadoria que fornecera à empresa do arguido, pagamento que em termos de normal funcionamento da empresa ocorreria.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No processo comum n.º 224/17.1T9AMT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Local Criminal ..., por sentença proferida em 07/4/2022, foi decidido condenar o arguido AA pela prática de um crime de insolvência dolosa do art. 227.º, n.º 1, a. a) e n.º 3, do CP, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00. Mais foi decidido julgar improcedente o pedido de indemnização civil deduzido por NORTALU – Comércio de Alumínios, Lda. contra o arguido/demandado e, em consequência, absolvê-lo do peticionado.

Inconformada com o decidido em matéria cível, interpôs a demandante NORTALU–Comércio de Alumínios, Lda recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 07/12/2022, decidiu julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela demandante. Em consequência, foi revogada a decisão recorrida na parte em que tinha julgado improcedente o pedido de indemnização civil, substituindo-a pela decisão de “julgar parcialmente provado o pedido de indemnização civil formulado pela demandante NORTALU – Comércio de Alumínios, Lda. e, em consequência, condenar o arguido/demandado AA a pagar a esta demandante a quantia de €39.572,52, acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento”.

Inconformado com o decidido pela Relação do Porto, vem agora o arguido/demandado recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1 - Face ao que resultou provado e não provado, o tribunal a quo proferiu decisão sem prova que fundamente a condenação no pagamento do pedido cível formulado, incorrendo no vicio previsto no art. 410.º, n.º 2 al a) do CPP.

2 - O nexo causal que se exige para que nos termos do art. 563.º do CC, o recorrente fosse condenado, por conduta enquadrada no art 483.º do CC, não se verifica.

3 - Não ficou provado que os seus actos levaram à impossibilidade de receber o crédito da recorrente, ónus que incumbia ao recorrido – art. 487.º do CC – e que o tribunal a quo parece ter olvidado de apreciar, formulando um juízo conclusivo e sem sustentação.

4 - Não ficou provado o desvio de património, mas antes a transferência de mercadorias e de equipamentos e bens da sociedade A... para a sociedade R.... Desvio e transferência são termos com significado jurídico diferente e o acórdão usa-os com igual sentido.

5 - Também não ficou cabalmente demonstrado qual a natureza do negócio. Foram emitidas facturas mas não se apurou se o seu pagamento foi efetuado. Mas a simulação do negócio também não foi demonstrada.

6 - O acórdão faz um raciocínio baseado numa realidade inexistente ou pelo menos dúbia. Cabendo ao recorrido a prova do que alegava e não o tendo alcançado, não pode o tribunal a quo considerar que houve desvio ilícito de bens e equipamentos, com o intuito de prejudicar os credores, em manifesta violação o princípio do in dubio pró reu, plasmado no art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

7 - Acresce que não se provou se o recorrente se apoderou de qualquer quantia e lhe deu fim diverso ao da atividade da sociedade - alinea h) dos factos não provados - o que, conjugado com o facto de terem sido efetuados pagamentos a fornecedores, entre 2008 e 2010, que não foram lançados contabilisticamente (39 dos factos provados), reforça a conclusão a que chegou o tribunal de primeira instancia, sobre a falta de nexo causal.

8 - Não se pode falar em falta de intenção de pagar ao credor. Os factos provados não o demonstram. Trata-se de uma conclusão genérica, sem fundamento e que fere de nulidade o acórdão – art 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1 al a) do CPP.

9 - Impõe-se a revogação da decisão agora proferida, lavrando-se acórdão que absolva o recorrente do pedido cível formulado, conforme decidiu o tribunal de primeira instância.”

A demandante respondeu ao recurso, concluindo:

“I.    Insurge-se o demandado/recorrente contra o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, o qual condenou o recorrente no pagamento de uma indemnização cível no montante de 39.572,52€ (trinta e nove mil quinhentos e setenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos);

II.    O referido aresto não merece qualquer censura;

III.    Face à factualidade dada como provada em sede julgamento, o Tribunal a quo, decidiu, e muito bem, no nosso modesto entender, condenar o demandado no pagamento de indemnização cível;

IV.   A questão suscitada no presente cinge-se á apreciação do nexo de causalidade entre o facto ilícito praticado pelo arguido/recorrente e os danos sofridos pela demandante, nexo de causalidade que a decisão recorrida entendeu verificar-se;

V.    No mais, a matéria de facto dada como provada/ não provada na sentença do Tribunal da 1ª Instância não foi colocada em crise;

VI.    O Acórdão em crise não padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

VII.    O pedido de indemnização civil formulado pela demandante fundamenta-se no comportamento delituoso do recorrente relacionado com a sonegação de bens da sociedade insolvente  que administravam com consequente diminuição da garantia patrimonial dos credores, onde se incluía a demandante;

VIII.   O Tribunal a quo deu como assente que o recorrente agiu com o propósito de prejudicar os credores da sociedade insolvente – A..., ao sonegar o activo desta através de recurso a outra sociedade constituída para o efeito.

IX.    S.m.o., dúvidas não existem que foi a conduta premeditada do Recorrente que conduziu inevitavelmente ao empobrecimento do património da demandante;

X.     O que foi causa e efeito de graves e sérios danos na esfera jurídica da demandante.

XI.     O comportamento do recorrente foi a causa única e adequada para os prejuízos causados na esfera da demandante no que tange às perdas decorrentes das vendas realizadas à insolvente A...;

XII.    Encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, nos termos do artigo 483.º, do Código Civil, nomeadamente, o pressuposto do nexo de causalidade, razão pela qual dever-se-á manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que condenou o recorrente no pagamento de uma indemnização cível no montante de 39.572,52€ (trinta e nove mil quinhentos e setenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos).

XIII.   Qualquer decisão em sentido contrário à proferida pelo Tribunal a quo, acarretará a violação das normas jurídicas constantes dos arts. 483.º e ss. do CC.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto. O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido é do seguinte teor, na parte que releva para o recurso:

“A) Factos Provados:

1. A sociedade A..., Unipessoal, Lda. (doravante A...) era uma sociedade comercial por quotas, com o NIPC ..., constituída em 01.02.2008, inicialmente com sede na Urbanização ..., ..., ... e, a partir de 12.01.2010, com sede no Edifício ..., ..., ..., ..., e que tinha por objeto social a fabricação de elementos de construções metálicas, portas, janelas e elementos similares em metal ou em ferro;

2. O capital social da mencionada sociedade, no valor de € 5.000,00, encontrava-se concentrado numa quota, pertencente ao arguido AA, o qual exercia de facto todas as funções de gestão e administração da sociedade;

3. Com efeito, era o arguido que dava as ordens, decidia o giro económico e de afectação das receitas às despesas, assinava cheques, tomava as decisões, vinculava a empresa, assinava contratos, contratava pessoal e procedia ao pagamento dos salários, dava ordens e instruções aos funcionários, facturava os serviços prestados e representava a sociedade perante terceiros;

4. A sociedade R... - Transportes, Lda. (doravante R...) era uma sociedade por quotas, com o NIPC ..., com sede, inicialmente, na Urbanização ..., em ..., ... e, a partir de 29.12.2009, com sede na Rua ..., ..., ... e que tinha por objecto social o transporte rodoviário de mercadorias e, a partir da data acima mencionada, serviços de serralharia e comércio de materiais de construção;

5. O capital social da referida sociedade, no valor de € 125.000,00, encontrava-se dividido em duas quotas, cada uma no valor de € 62.500,00, uma pertencente ao arguido AA e a outra à sua mulher, BB, a qual, enquanto sócia-gerente exercia de facto todas as funções de gestão e administração da sociedade;

6. Com efeito, era BB que dava as ordens, decidia o giro económico e de afectação das receitas às despesas, assinava cheques, tomava as decisões, vinculava a empresa, assinava contratos, contratava pessoal e procedia ao pagamento dos salários, dava ordens e instruções aos funcionários, facturava os serviços prestados e representava a sociedade perante terceiros;

7. Em 30-10-2010 BB adquiriu a quota de AA, e a sociedade foi transformada em unipessoal por quotas;

8. Da declaração anual de 2008 (informação empresarial simplificada) consta que no ano de 2008, a sociedade “A...” tinha activos no valor de € 126.419,97, dividido, entre o mais, pelas seguintes rubricas: - imobilizado corpóreo – € 10.315,00; - existências – € 5.567,04; - depósitos bancários – € 18.690,48; - caixa – € 82.401,56.

9. No final do ano de 2008, a referida sociedade teve um resultado líquido positivo de € 1.348,22;

10. Da declaração anual de 2009 (informação empresarial simplificada) consta que no ano de 2009, a referida sociedade tinha activos no valor € 232.509,13, divido, entre o mais, pelas seguintes rubricas: - imobilizado corpóreo – € 1.035,00; - existências – € 7.010,00; - depósitos bancários – € 20.232,19; - caixa – € 162.140,01.

11. Sendo que, no final do ano de 2009, a sociedade apresentou um resultado líquido negativo de € 19.317,47;

12. Cientes das dificuldades financeiras em que a sociedade A... se encontrava, o Arguido e a sua mulher BB delinearam um plano, que puseram em prática, com o intuito de transferir equipamentos, matérias-primas e trabalhadores para a sociedade R..., da qual BB era gerente e o Arguido sócio, retirando, dessa forma, capacidade produtiva à A...;

13. Para tanto, na concretização do plano que haviam delineado, em 29-12-2009, o Arguido, e a sua mulher, alteraram o objecto social da sociedade R..., passando esta a ter como objeto, além do transporte de mercadorias, os serviços de serralharia e comércio de materiais de construção;

14. Com efeito, não obstante a situação financeira em que se encontrava, no decurso do ano de 2009, a sociedade A... adquiriu à sociedade Nortalu – Comércio de Alumínios, Lda. mercadoria, no valor de € 39.572,52, que não pagou;

15. De seguida, os arguidos, enquanto legais representantes das sociedades A... e R..., transferiram mercadorias adquiridas à Nortalu, da sociedade A... para a sociedade R...;

16. Do mesmo modo que, no seguimento do plano que haviam elaborado, transferiram também os equipamentos e bens da sociedade A... para a sociedade R...;

17. Em 28.12.2009, o arguido AA, enquanto legal representante da A..., emitiu as facturas ...5/2009, no valor de € 3.054,00, a factura ...6/2009, no valor de € 596,35 e a factura ...7/2009, no valor de € 2.101,40;

18. Aliás, também os trabalhadores da A..., em Janeiro de 2010, passaram a estar inscritos na Segurança Social como trabalhadores da R...;

19. A partir de tal data, a A... ficou sem qualquer capacidade para continuar a exercer a sua atividade e gerar rendimentos que lhe permitissem pagar as suas dívidas, no entanto, não se apresentou à insolvência;

20. Em 06.07.2010, por sentença proferida no âmbito do processo 841/10...., que correu os seus termos no Tribunal Judicial ..., foi decretada a insolvência da sociedade A..., conforme requerido pela sociedade C..., Lda., com trânsito em julgado a 23-08-2010;

21. No âmbito do processo de insolvência nada foi apreendido, por ter sido logo feito constar da sentença, que o património da sociedade insolvente era manifestamente insuficiente para fazer face às dívidas;

22. Em 27.06.2013, foi proferida sentença qualificando a insolvência da A... como culposa, afectando o arguido AA, sentença posteriormente confirmada pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 12.12.2013;

23. O Arguido sabia que ao transferir a matéria-prima, equipamentos e trabalhadores da sociedade insolvente não só retirava capacidade produtiva à sociedade, como prejudicava os credores desta e os impedia de ver os seus créditos ressarcidos com venda do produto dos mesmos;

24. Sabia, igualmente, que os negócios que envolveram a transferência de todo o património foram efetuados com o único propósito de transferir a propriedade para a sociedade R..., da qual era sócio em conjunto com a sua mulher, sendo esta gerente;

25. O Arguido agiu com o propósito concretizado de prejudicar os credores da sociedade A... retirando da sociedade o seu ativo para que o mesmo não viesse a responder pelo pagamento das dívidas que a sociedade contraiu;

26. O Arguido sabia que a conduta assumida e acima descrita era adequada e apta a colocar os credores da A..., na impossibilidade de se fazerem pagar das quantias que lhes eram devidas, objetivo que logrou alcançar, mediante a dissipação do património da insolvente;

27. O Arguido agiu ciente que os atos por si praticados eram suscetíveis de provocar a declaração de insolvência da A..., atento os valores dos créditos existentes sobre a mesma e a sua inexistência de património;

28. O Arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;

29. A Demandante é uma sociedade comercial que se dedica com intuito lucrativo, ao comércio de alumínios e acessórios de caixilharia, prestação de serviços, incluindo lacagens e anodização em alumínios;

30. No âmbito das suas relações comerciais, a Demandante forneceu no decurso do ano de 2009, a pedido do Arguido AA, à data legal representante da A..., mercadoria que ascendeu ao valor de € 39.572,52 (trinta e nove mil quinhentos e setenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos), conforme a seguir se indica: (…)

31. A sociedade A... não procedeu ao pagamento voluntário das quantias apostas nas faturas e notas de débito, não obstante os esforços encetados pela Demandante no sentido de recuperar o seu crédito;

32. Face ao incumprimento, a Demandante instaurou duas execuções que correram termos no extinto Tribunal Judicial ... – ... Juízo, sob o processo n.º 645/10.... e sob o processo n.º 696/10....;

33. Face ao incumprimento, a Demandante instaurou providência cautelar de arresto, que correu termos no extinto Tribunal Judicial ...-... Juízo Cível, sob o processo o n.º 979/10....;

34. No âmbito dos sobreditos autos, por despacho, datado de 20/04/2010, foi julgada procedente a providência cautelar, e determinado o arresto do recheio do estabelecimento comercial da sociedade devedora, bem como o direito de arrendamento e trespasse do estabelecimento e dos créditos que esta detinha sob os seus clientes;

35. Das diligências realizadas no âmbito do arresto foi possível constatar que atividade da sociedade A... era residual e que à data se cingia apenas à aquisição de mercadoria, que mais tarde seria transferida através de vendas simuladas à sociedade R... - Transportes, Lda;

36. Até ao presente momento a Demandante não foi ressarcida do valor acima mencionado, em dívida por parte da A...;

37. A Demandante despendeu várias quantias para tentar recuperar o seu crédito e que infra se discriminam: (…) tudo num total de € 5.884, 81;

38. A A... não manteve os registos contabilísticos atualizados após o encerramento em IVA e não cumpriu com a elaboração do relatório de contas e anexos de 2008 e 2009, uma contabilidade com lançamentos de recebimentos em bloco, amortizações e falta de inventários;

39. Existem pagamentos a fornecedores, entre 2008 e 2010, que não foram lançados contabilisticamente;

40. O Arguido está divorciado;

41. Tem dois filhos, maiores de idade;

42. Vive sozinho, em casa cedida por amigo;

43. Trabalha por conta de outrem, na serralharia R..., auferindo o salário mínimo nacional;

44. Foi declarado insolvente e determinada a exoneração do passivo restante, tendo o rendimento disponível sido fixado em € 900,00;

45. Tem o 6.º ano de escolaridade.

(…)

Atentas as conclusões apresentadas, a questão suscitada é a de saber se há nexo de causalidade entre o facto ilícito praticado pelo arguido/demandado e os danos sofridos pela demandante, nexo de causalidade que a decisão recorrida entendeu não se verificar porque “não foi feita prova de que se não fosse o comportamento do Arguido dado como provado e que constitui o ilícito criminal, a Demandante teria recebido a quantia correspondente ao crédito que reclama nestes autos e até em outras acções cíveis” (sic).

Desde logo cabe referir que a demandante/recorrente pretende a condenação dos arguidos/demandados           no valor que peticionou, esquecendo que em relação à arguida/demandada BB, por decisão transitada em julgado, foi julgado extinto o procedimento criminal por prescrição e julgada extinta a instância cível por impossibilidade superveniente da lide, pelo que o recurso agora interposto não pode incidir sobre a arguida/demandada.

Assim, o recurso é restrito ao arguido/demandado.

Salvo o devido respeito por opinião contrária não andou bem o tribunal a quo ao afastar na íntegra a pretensão indemnizatória da demandante.

Vejamos.

A nossa lei processual penal consagra o princípio da adesão obrigatória - art.71.º - de acordo com o qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é sempre deduzido no processo penal respetivo, só excecionalmente podendo ser pedido fora dele.

E preceitua o art.129.º do C.Penal que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

A ação cível que adere ao processo penal é a que tem por objeto a indemnização de perdas e danos emergentes da prática do crime. Trata-se da responsabilidade civil por factos ilícitos ou aquiliana, estando afastada a responsabilidade civil contratual.

Os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos estão previstos no art. 483.º, n.º1, do C.Civil, o qual dispõe “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

São, assim, pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto ilícito, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No que se refere a este último requisito, estabelece o art.563.º do C.Civil “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”

Consagra este preceito a teoria da “causalidade adequada”, segundo a qual para que um facto seja causa adequada de um determinado dano, “não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano”, sendo essencial que o “facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como vulgarmente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª Edição, 1993, pág.893).

Como refere o Ac.STJ de 2/11/20103 (Proc. n.º2290/04 – 0TBBCL.G1. S1, relatado pelo Conselheiro sebastião Póvoas, disponível in www.dgsi.pt), “O artigo 563.º do Código Civil consagra o princípio da causalidade adequada na sua formulação negativa.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto (…)

É a consagração do ensinado por Enneccerus-Lehman, que para o Dr. Ribeiro de Faria, conduz a que «a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu pelas referidas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias». (…)

Parte-se, pois, de uma situação real, posterior ao facto, e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão provavelmente resultado da lesão.

Ou como julgou este Supremo Tribunal, a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias”.

Revertendo ao caso sub juditio e aplicando as considerações doutrinais e jurisprudenciais expostas, em face da factualidade dada como provada, os atos levados a cabo pelo arguido/demandado - alteração do objeto social da empresa R... -Transportes, Lda., a qual passou a ter um objeto social em parte coincidente com o da empresa A...– Unipessoal, Lda. (empresa a quem a demandante forneceu mercadorias) com a subsequente transferência de mercadorias, máquinas e trabalhadores da A...-Unipessoal, Lda. para a R... - Transportes, Lda, o que retirou capacidade produtiva àquela, passando a ter uma atividade residual - são adequados a inviabilizar o pagamento dos créditos dos fornecedores.

Tendo o arguido desviado da empresa A... os seus equipamentos, mercadoria e mão-de-obra, deixou aquela de poder laborar normalmente e consequentemente não obteve proventos para satisfazer o pagamento das mercadorias que adquirira. Esse desvio de património não permitiu também, no processo de insolvência, a apreensão de bens que servissem para liquidação das dívidas aos credores.

Assim, o ilícito desvio de património da A...– Unipessoal, Lda levado a cabo pelo arguido/demandado é causa adequada do prejuízo sofrido pela demandante ao não lhe ser paga a mercadoria, no valor de €39.572,52, que fornecera àquela empresa, pagamento que em termos de normal funcionamento de uma empresa ocorreria.

Porém, este comportamento do arguido não é causa adequada da totalidade dos danos invocados pela demandante recorrente, concretamente dos juros vencidos pelo não pagamento atempado das mercadorias e que foram contabilizados aquando da dedução do pedido de indemnização civil em €33.704,94, nem das despesas dadas como provadas sob o ponto 37 dos factos provados e contabilizadas em €5.884,81.

Com efeito, em relação aos juros reclamados pelo não pagamento das mercadorias na data do vencimento das respetivas faturas, a demandante está a fundamentar essa parcela do pedido na responsabilidade contratual, sendo que a indemnização no âmbito do processo penal só pode ter por causa de pedir a responsabilidade civil extracontratual. Quanto às despesas efetuadas pela demandante, designadamente em pagamento de honorários com a instauração de ações cíveis e outras despesas com estas relacionadas, não podem qualificar-se como um prejuízo patrimonial, direta e necessariamente decorrente do facto ilícito praticado pelo lesante, não podendo enquadrar-se no âmbito da obrigação de indemnizar a cargo deste.

Como se lê no sumário do Ac.STJ de 15/1/2019 (Proc. n.º 5792/15.0TBALM.L1.S2, relatado pela Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado, disponível in www.dgsi.pt) “Salvo nos casos de litigância de má fé e de demanda quando a obrigação ainda não era exigível, as despesas realizadas com o processo, incluindo o pagamento dos honorários, apenas podem ser compensadas a título de custa de parte, nos termos previstos nas disposições correspondentes do Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.” Salienta ainda o referido Acórdão, citando o Ac. de 6/12/2016, proc. nº 413/14.0TBOAZ.P1.S1, relatado pelo Juiz Conselheiro Júlio Gomes (Ac. não publicado) “Tem sido entendimento dominante da jurisprudência civil que “quando o legislador pretendeu fazer incidir sobre qualquer das partes intervenientes na lide a obrigação relativa à satisfação integral das despesas relativas a honorários, indicou expressamente as situações e a parte sobre a qual tal imposição impendia, situações essas, todavia, que apenas têm lugar em dois casos específicos, qual sejam o da indemnização por litigância de má fé e a da inexigibilidade da obrigação (...) o que leva, portanto, a concluir que, na generalidade das ações judiciais, a procuradoria (...) se engloba nas custas judiciais” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2002, SOUSA LEITE). Dir-se-á, contudo, que assim se viola o princípio de que o lesante deve reparar integralmente os danos que foram causados, em termos de causalidade adequada, pela sua conduta, e a intervenção necessária de um Advogado em processos como o presente é um desses danos. Mas o montante de honorários acordado pelo lesado com o Advogado que escolheu, fora das hipóteses de defensor oficioso, é que depende de uma opção do lesado que rompe esse nexo. Nas palavras do Acórdão já citado, “a existência do regime do apoio judiciário, a possibilidade de acordo extrajudicial relativamente ao quantitativo da indemnização a atribuir ao lesado, a eventual atuação do mandatário judicial por mera obsequiosidade ou ainda a existência de atividade forense por aquele desenvolvida poder eventualmente englobar-se no exercício de serviços integrados em avença forense celebrada com o lesado, constituem fatores impeditivos dos honorários em causa se poderem qualificar, em abstrato, como um prejuízo patrimonial direta e necessariamente decorrente do facto ilícito praticado pelo lesante”.

Em conclusão, as despesas efetuadas pela ora recorrente/demandante para cobrança da dívida da A...- Unipessoal, Lda. enquadram-se apenas no âmbito das custas dos respetivos processos, não revestindo a natureza de despesas a englobar no domínio de qualquer indemnização devida a título de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.

Face ao exposto, o demandado, por força do seu comportamento ilícito e culposo, tem a obrigação de indemnizar a demandante na quantia de €39.572,52, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização civil até pagamento integral (art.805.º, n.º3, do C.Civil).”


2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar respeita exclusivamente à indemnização cível.

O recorrente arguido/demandado impugna o acórdão da Relação na parte em que, julgando parcialmente procedente o recurso interposto pela demandante e assim revertendo a decisão, nesta parte absolutória, de 1.ª instância, o condenou no pagamento da quantia de €39.572,52, acrescida de juros. E parece pretender fazê-lo não apenas em matéria de direito, mas só aparentemente.

Numa argumentação algo confusa, defende, que “face ao que resultou provado e não provado, o tribunal proferiu decisão sem prova que fundamente a condenação no pagamento do pedido cível formulado, incorrendo no vicio previsto no art. 410.º, n.º 2 al a) do CPP” e que “o nexo causal que se exige para que nos termos do art. 563.º do CC o recorrente fosse condenado, por conduta enquadrada no art 483.º do CC, não se verifica”. Mais afirma que “não ficou provado que os seus actos levaram à impossibilidade de receber o crédito da recorrente, ónus que incumbia ao recorrido – art. 487.º do CC – e que o tribunal a quo parece ter olvidado de apreciar, formulando um juízo conclusivo e sem sustentação”. Conclui que se impõe “a revogação da decisão agora proferida, lavrando-se acórdão que absolva o recorrente do pedido cível formulado, conforme decidiu o tribunal de primeira instância.”

A recorrida defende a manutenção do decidido.

Apesar da ausência de clareza na impugnação efectuada – por um lado, parece pretender questionar-se os resultados probatórios a que se chegou no acórdão, pelo outro, procede-se a nomeação do vício do art. . 410.º, n.º 2 al. a) do CPP sem sustentação argumentativa adequada –, é ainda possível retirar do recurso que, verdadeiramente, se está a pretender apenas impugnar o acórdão em matéria de direito (e na parte relativa à indemnização).

Acresce que, processualmente, a impugnação em matéria de facto, seja por via ampla ou alargada, seja por via da invocação dos vícios da decisão, sempre seria aqui inviável.

A recorribilidade do acórdão da Relação é evidente (art. 400.º, n.ºs 2 e 3 do CPP. Mas uma coisa é a recorribilidade do acórdão, outra, a definição dos poderes de cognição do Supremo quando julga em terceiro grau de jurisdição e em segundo grau de recurso.

O acórdão sub judice é uma decisão proferida em recurso - que, inovatoriamente face à absolvição em matéria cível, ocorrida em 1.ª instância, condenou o arguido em indemnização – e, no que respeita à definição do objecto do recurso e à delimitação dos poderes de cognição do Supremo, o recurso  circunscreve-se necessariamente a matéria exclusivamente de direito.

Na verdade, o art. 434.º do CPP estatui que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432”, segmento final ora aditado.

Esta norma estipula, como regra, que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Exceptua duas (únicas) situações, que são as que resultam das als. a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP. O art. 432.º, n.º 1, al. a) do CPP, estabelece a possibilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, e a al. c), “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”. Nestes dois casos, trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo, o que justifica solução legislativa própria.

Já no caso sub judice, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em primeira instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de primeira instância. Trata-se, sim, de um recurso interposto de um acórdão da Relação que decidiu já recurso anterior. E, neste caso, mantém-se a impossibilidade de o recurso poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Se a admissibilidade do recurso é evidente, como se disse, no que respeita ao seu âmbito e aos poderes de cognição do Supremo  o  recurso interposto pelo arguido segue a regra geral (pois encontra-se  fora da previsão das (únicas) alíneas que prevêem a excepção ao regime-regra). Ou seja, o recurso de acórdão da Relação que decide em recurso, continua a poder visar apenas o reexame em matéria exclusivamente de direito. E  os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se circunscritos a esse conhecimento (sem prejuízo duma possibilidade de detecção positiva e oficiosa de vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP).

No entanto, apesar das referidas alusões vagas a factos e a provas, do recurso na sua globalidade é possível retirar que, afinal,  o arguido está  apenas a invocar o erro de direito.

No essencial, defende o recorrente que da base factual relevante para a decisão não se poderia retirar, juridicamente, a sua condenação em indemnização, antes se justificando a absolvição. Sempre na sua alegação, faltaria o nexo causal entre os factos por si praticados e o dano causado à demandante.  

Os factos provados do acórdão da Relação são os mesmos factos provados da sentença de 1.ª instância, desde logo porque o recurso desta interposto visou já, exclusivamente, matéria de direito. E, adianta-se, a decisão da Relação, de reversão da absolvição em condenação cível por razões exclusivamente de direito, mostra-se correcta. Pois era a sentença de 1.ª instância, e não o acórdão da Relação, a enfermar de erro de direito.

Não se apresenta aqui controverso que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (art. 129.º do CP) e que são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos a prática de um facto voluntário ilícito, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (art. 483.º do CC).

Estabilizada está também no processo a matéria relativa à prática pelo arguido do facto ilícito e culposo, uma vez que foi condenado por crime de insolvência dolosa, decisão que nunca refutou na fase dos recursos. Assim sucede igualmente em relação aos danos sofridos pela demandante, quantificados na medida considerada no acórdão, sem impugnação. A quantificação dos danos não integra o objecto do recurso e o recorrente discute apenas o nexo de causalidade.

A obrigação de indemnização existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563.º do CC). Esta norma consagra a doutrina da causalidade adequada, que congrega um nexo naturalístico e um nexo de adequação. E considera-se que o facto condição do dano deixa de ser sua causa adequada quando tiverem contribuído decisivamente para o dano outras circunstâncias anormais e excepcionais, que interferiram no caso concreto.

Daí que, acertadamente, se tenha considerado no acórdão, citando relevante jurisprudência do Supremo, que “não basta que o evento tenha produzido, naturalisticamente, certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele”, sendo ainda “necessário que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito”. E que “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto”.  “Ou como julgou este Supremo Tribunal, a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias”.

Na interpretação correcta da lei, no acórdão procedeu-se ao acertado enquadramento dos factos provados, considerando-se que  os actos praticados pelo arguido/demandado – a alteração do objeto social da empresa R... -Transportes, Lda., a subsequente transferência de mercadorias, máquinas e trabalhadores da A...-Unipessoal, Lda. para a R..., a retirada da capacidade produtiva àquela, passando a ter uma atividade residual – todos esses actos foram adequados a inviabilizar o pagamento dos créditos dos fornecedores. Pois, como se disse também, na leitura evidente dos factos provados, “tendo o arguido desviado da empresa A... os seus equipamentos, mercadoria e mão-de-obra, deixou aquela de poder laborar normalmente e consequentemente não obteve proventos para satisfazer o pagamento das mercadorias que adquirira”; e “esse desvio de património não permitiu também, no processo de insolvência, a apreensão de bens que servissem para liquidação das dívidas aos credores”. Para se concluir, sempre justificadamente, que “o ilícito desvio de património da A...– Unipessoal, Lda levado a cabo pelo arguido/demandado é causa adequada do prejuízo sofrido pela demandante ao não lhe ser paga a mercadoria, no valor de €39.572,52, que fornecera àquela empresa, pagamento que em termos de normal funcionamento de uma empresa ocorreria.”

Por tudo, mostra-se acertada a conclusão retirada no acórdão, no sentido de que o demandado, por força do seu comportamento ilícito e culposo, tem a obrigação de indemnizar a demandante na quantia de €39.572,52, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização civil até pagamento integral (art. 805.º, n.º 3, do CC).

           

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas cíveis pelo recorrente.


Lisboa, 13.04.2023


Ana Barata Brito, relatora 

Maria do Carmo Silva Dias, adjunta      

Pedro Branquinho Dias, adjunto