ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECLAMAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
IRRECORRIBILIDADE
INDEFERIMENTO
Sumário


I - É de indeferir a arguição de nulidade de acórdão do Supremo quando, sob o epíteto de “arguição de nulidades”, o recorrente está a pretender renovar a peça processual anterior, sendo o seu articulado uma repetição da discordância originária quanto ao acórdão da relação e, agora, ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
II - Se todas as questões suscitadas no recurso foram objecto de apreciação na parte cognoscível, tratando-se sempre do conhecimento de questões de que o Supremo podia conhecer após circunscrição justificada do objecto do recurso à matéria cognoscível, o acórdão não incorreu em omissão de pronúncia; não cumpria conhecer da matéria problematizada que respeitava ao recurso na parte rejeitada.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal:



1. Relatório

Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2023, foi decidido rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA na parte relativa à matéria de facto, julgando-o parcialmente procedente na parte restante, reduzindo para 30.000,00 € a indemnização fixada à assistente e alargando para dois anos o prazo de cumprimento da condição de suspensão da pena, confirmando no mais o acórdão recorrido.

 Vem agora o recorrente arguir a nulidade do acórdão.

O seu requerimento tem o seguinte teor:

“I. ENQUADRAMENTO E RAZÃO DE ORDEM

1. Na Sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ..., em 21 de outubro de 2020, e para o que ora releva, foi o Arguido absolvido da alegada prática do crime de violência doméstica.

2. Em 25 de novembro de 2020, por não se conformarem com a sobredita decisão absolutória, a Assistente e o Ministério Público vieram interpor recurso da mesma para o Tribunal da Relação da Lisboa.

3. Por Acórdão de 16 de março de 2022, o Tribunal da Relação de Lisboa, alterando quase de forma total, no que à matéria de facto diz respeito, a douta sentença que havia sido proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, condenou o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica, bem como no pagamento de uma indemnização por danos morais à Assistente e à APAV, como condição da suspensão da pena.

4. Em 26 de abril de 2022, o ora Reclamante interpôs recurso daquele Acórdão para este Supremo Tribunal de Justiça, no qual alegou a existência de vários vícios.

5. Em 15 de fevereiro de 2023, este Venerando Tribunal proferiu Acórdão nos termos do qual, surpreendentemente, se recusou a apreciar parte dos vícios invocados pelo Arguido (os respeitantes às inconstitucionalidades e à falta de fundamentação), alegando que excediam os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que versa apenas sobre matéria de direito.

6. Contudo, no mesmo aresto, e em contradição com o que havia decidido a respeito das inconstitucionalidades e da falta de fundamentação arguidas pelo aqui Reclamante, este Venerando Tribunal procedeu à análise do acórdão recorrido, também na parte em que se conheceu do recurso em matéria de facto.

7. Ora, com o acostumado respeito, o Tribunal amparou a sua decisão em argumentos que não têm qualquer correspondência com o quadro legal vigente, nem com o imposto pelos ditames constitucionais, não tendo ponderado com o devido rigor as consequências associadas à sua decisão.

8. É particularmente chocante o facto de o Supremo Tribunal de Justiça se recusar a conhecer das inconstitucionalidades arguidas pelo Arguido, por considerar que estas respeitam a matéria de facto – quando, na realidade, são matéria de direito – e, no mesmo aresto, acabar por apreciar matéria de facto para efeitos do artigo 410.º do CPP.

9. Conforme o Reclamante oportunamente alegou, a gravidade do presente caso constitui uma questão civilizacional, na medida em que o entendimento normativo feito pelo Tribunal da Relação de Lisboa conduz a um estado de terror que permitirá julgamentos apriorísticos nos quais bastará a palavra de um dos interessados, realidade nefasta que se pensava há muito estar ultrapassada. Isto porque o Acórdão da Relação ignorou por completo o princípio da presunção de inocência de um arguido e substituiu-a por uma nova presunção, a de que a versão da putativa vítima de violência doméstica é, depois de desconsideradas outras provas, uma verdade absoluta e irrefutável, sendo o arguido desde logo o presumido culpado em face das declarações da vítima.

10. Desta forma, o juiz deixa de poder apreciar livremente a prova e passará a estar vinculado à palavra da vítima e a desvalorizar a palavra do agressor. Ou seja: passa a palavra da vítima a beneficiar de força probatória plena.

11. Assim, a norma do artigo 127.º do CPP, passa a ter uma exceção quando se trate do depoimento da vítima de violência doméstica, situação em que, reitere-se, o Tribunal está vinculado a valorar apenas a palavra da vítima no confronto com a palavra do agressor, deixando de poder apreciar livremente a prova nesse caso e, consequentemente, o princípio da presunção de inocência, consagrado sem qualquer exceção na segunda parte do artigo 32.º, n.º 2, da CRP é violado, na medida em que deixa de ser aplicado aos casos de violência doméstica.

12. Termos em que, dada a falta de pronúncia sobre matérias das quais o Tribunal estava obrigado a conhecer, o douto Acórdão proferido nestes termos é nulo, justamente, por omissão de pronúncia relativamente aos vícios arguidos pelo Recorrente, aqui Reclamante, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

II. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA

13. Como se disse, no referido Acórdão da Relação de Lisboa, o Arguido, ora Reclamante, foi confrontado com uma nova versão dos factos dados como provados, que fez tábua rasa da valoração da prova feita pelo Tribunal de 1.ª instância.

14. Esta nova versão dos factos provados, relativamente à qual o Arguido não teve oportunidade de se defender, obedeceu a um pré-juízo ideológico do crime de violência doméstica, nos termos do qual as alegadas vítimas falam a verdade e o seu depoimento tem força probatória plena, prevalecendo sobre a palavra do alegado agressor.

15. A mera leitura das centenas de páginas que integram a decisão da Relação leva a que qualquer leitor imparcial das mesmas fique com a convicção de que o Arguido já se encontrava de antemão condenado antes sequer de ser julgado, não obstante ter sido absolvido por três vezes pelo Tribunal de 1.ª instância, único que cumpre plenamente com o princípio da imediação.

16. Como é de ciência certa, nos tribunais de um Estado de Direito democrático, nenhum Arguido entra em julgamento antecipadamente condenado, seja sob que pretexto for, e muito menos por questões ideológicas. O que se espera de um Tribunal é que seja imparcial para com todas as partes envolvidas, em especial no âmbito de um processo criminal, por força de princípios como o da presunção da inocência e do in dubio pro reo.

17. Contudo, a leitura do Acórdão da Relação, que nesta parte não foi alterado pelo Acórdão deste Venerando Tribunal, permite constatar, sem esforço, que desde o início que aqueles princípios não foram respeitados, pois o Arguido é sistematicamente desvalorizado, desconsiderado, adjetivado negativamente e colocado num plano muito inferior ao que é dispensado à Assistente.

18. O Arguido, aqui Reclamante, não teve qualquer oportunidade de apresentar defesa quanto aos novos factos que lhe foram imputados pela Relação de Lisboa, pelo que, nas alegações do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, arguiu um conjunto de invalidades relativas ao Acórdão proferido por aquele Tribunal.

19. Concretamente, o ora Reclamante arguiu: (i) a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável da fundamentação, conforme artigo 410.º, n.º 2, do CPP; (ii) a falta de fundamentação da matéria de facto, conforme artigo 374.º, n.º 2, do CPP; e (iii) a inconstitucionalidade de várias interpretações normativas da lei processual penal feitas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por serem contrárias às garantias de defesa do arguido e aos princípios constitucionais da presunção de inocência, da igualdade e da fundamentação das decisões judiciais.

20. Surpreendentemente, veio agora este Venerando Tribunal recusar-se a conhecer os vícios referidos nas alíneas (ii) e (iii) supra.

21. Para tanto, defende o Tribunal, em primeiro lugar que: “uma coisa é a recorribilidade do acórdão inovatoriamente condenatório da Relação, outra, dissemelhante, a definição dos poderes de cognição do Supremo quando julga em terceiro grau de jurisdição e em segundo grau de recurso, no enquadramento do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP”.

22. Ademais, considerou este Venerando Tribunal que “[n]o caso sub judice, o arguido não pretendeu lançar mão deste modo (amplo) de impugnação da matéria de facto. Mas visou discuti-la. No entanto, e independentemente da concreta via escolhida, crê-se que a opção do legislador de 2021 foi claramente a da circunscrição do objeto do recurso a matéria exclusivamente de direito. No que respeita à definição do objeto do recurso e à delimitação dos poderes de cognição do Supremo, continua a justificar-se o entendimento de que, no estado actual da legislação e da jurisprudência, o recurso se circunscreve aqui a matéria exclusivamente de direito. (…) E assim, o presente recurso só pode versar sobre matéria exclusivamente de direito, pois foi essa a determinação do legislador…”.

23. E concluiu que “[a] impossibilidade de conhecimento abrange assim (…) as inconstitucionalidades por violação dos princípios da presunção de inocência, da igualdade, e da fundamentação das decisões judiciais (arts. 32.°, n.°s 1 e 2 , 13.° e 205.°, n.° 1 da CRP), todos eles problematizados sempre por referência à decisão sobre a matéria de facto”.

24. Brevitatis causa, entendeu este Venerando Tribunal que, na medida em que os vícios alegados pelo Arguido respeitam exclusivamente a matéria de facto, a decisão impugnada é, nessa parte, irrecorrível.

25. Salvo o devido respeito, que é muito, o raciocínio aduzido por este Venerando Tribunal afigura-se manifestamente improcedente, pois que não se vislumbra qualquer sustento legal que permita extrair a conclusão jurídica firmada no Acórdão proferido.

26. Primeiro, porque como é evidente, os vícios assacados ao Acórdão do Tribunal da Relação implicam o conhecimento de matéria de direito, apesar de respeitarem a vícios cometidos na apreciação da matéria de facto e valoração da prova.

27. Em concreto, o que se requereu a este Venerando Tribunal foi que analisasse se o Acórdão proferido pela Relação de Lisboa padecia, ou não, dos identificados vícios: (i) nulidade por falta de fundamentação da matéria de facto e por não conter as menções referidas na alínea b), do n.º 3, do artigo 374.º do CPP; e (ii) inconstitucionalidades decorrentes da interpretação normativa que a Relação fez de determinados preceitos da lei processual penal, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios constitucionais da presunção de inocência, igualdade e de fundamentação das decisões judiciais.

28. Dito de outro modo, a sindicância que se pediu ao Supremo Tribunal de Justiça não pressupunha uma reapreciação da matéria de facto ou da sua valoração, mas tão-somente a reapreciação da decisão tomada pelo Tribunal a quo, do ponto de vista jurídico e do direito.

29. Logo, a recusa do Supremo Tribunal de Justiça em conhecer os vícios arguidos pelo ora Recorrente à decisão da Relação de Lisboa configura uma verdadeira omissão de pronúncia daquele, que resulta na nulidade da decisão proferida, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

30. Nulidade que se torna ainda mais evidente, considerando que, contrariamente ao entendimento inicialmente sufragado, este Venerando Tribunal apreciou nulidades que versavam sobre matéria de facto.

31. Fundamentou essa decisão no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, que confere poderes oficiosos de conhecimento dos vícios ali elencados, e concluiu que: “verdadeiramente, não pode dizer-se que, no recurso interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1, do artigo 432.º do CPP, a decisão sobre a matéria de facto escape absolutamente ao controlo do (duplo grau de) recurso (e terceiro grau de jurisdição), pois o controlo oficioso nunca deixa de ser feito”, pelo que o referido aresto acabou por proceder “a análise do acórdão recorrido também na parte em que nele se conheceu do recurso em matéria de facto”.

32. Termos em que é forçoso concluir que, tendo conhecido oficiosamente da matéria de facto, ao apreciar a valoração da prova para efeitos de nulidade da sentença, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não podia o Supremo Tribunal de Justiça eximir-se de apreciar a falta de fundamentação e as inconstitucionalidades alegadas.

33. O raciocínio do Supremo Tribunal de Justiça não procede também porque, não podendo os tribunais aplicar normas inconstitucionais, conforme dispõe o artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), as inconstitucionalidades são de conhecimento oficioso, em qualquer que seja o grau de jurisdição.

34. Finalmente, mesmo que se tratasse de matéria de facto, no que não se concede, este Venerando Tribunal, no caso concreto, não podia ter deixado de conhecer das inconstitucionalidades e da nulidade arguidas pelo ora Reclamante, em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

35. Em particular porque não é satisfatório, à luz do princípio da igualdade e das garantias de defesa do Arguido consagradas na CRP, que o arguido condenado pela primeira vez em segunda instância – como é o caso dos presentes autos, nos quais o ora Recorrente foi absolvido por três vezes pelo Tribunal de 1.ª instância – tenha um direito de defesa dessa condenação, em recurso, de conteúdo mais reduzido, do que aquele que o tenha sido no primeiro nível de jurisdição, nomeadamente quanto à imputação do julgamento de facto.

36. Caso seja esta a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, então, tal interpretação é manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e das garantias de defesa do arguido, inconstitucionalidade interpretativa que aqui se deixa expressa e cautelarmente arguida para todos os devidos e legais efeitos.

37. A este respeito, conforme sustenta HELENA MORÃO, a propósito do disposto na al. b), do n.º 1, do artigo 432.º do CPP: “assentando a decisão condenatória da Relação numa apreciação distinta da prova, esta discordância em matéria de facto só poderá ser correctamente dirimida num recurso sobre essa matéria. O direito ao recurso da defesa configura, desde modo, um limite constitucional à função de mero tribunal de revista penal do Supremo Tribunal de Justiça, tendo em atenção que outra interpretação redundaria numa estruturação do sistema de recursos contrária à presunção de inocência, i.e., em que à acusação é conferida uma melhor oportunidade de obter uma inversão de absolvição em recurso (designadamente, um pleno recurso em matéria de facto) do que ao arguido para afastar uma condenação em recurso (simples recurso de revista ampliada), o que não se pode aceitar.”

38. Refere, outrossim, a referida Autora que nos “casos em que a revista alargada se mostra claramente insuficiente para garantir um exercício efectivo do direito ao recurso da condenação, parece-nos, assim, que o disposto no artigo 434.º não resiste a um juízo de inconstitucionalidade parcial e que o Supremo terá de assumir alguns dos poderes de apelação das Relações em matéria de facto, por aplicação analógica das normas enunciadas nos artigos 412.º, n.º 6, 428.º e 431.º, alíneas a) e b), e a função de uma autêntica terceira instância em matéria penal”.

39. Neste sentido, pronunciou-se, também, PEDRO MACHETE, em declarações de voto de vencido ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016: “[a] compreensão do direito ao recurso afirmada pela maioria implicará ainda na sua lógica (…) pelo menos, o direito de o arguido recorrer de uma primeira condenação, independentemente desta ter sido proferida em primeiro ou segundo grau de jurisdição (…). Assim, a decisão condenatória proferida em segundo grau de jurisdição que reverta anterior absolvição deve assegurar um nível de tutela da posição do arguido condenado similar ao que é garantido no quadro de um recurso interposto da condenação proferida pelo tribunal de primeira instância. No caso dos autos em que foi proferido o acórdão recorrido, tal significa que o recurso a interpor pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça deverá assegurar-lhe condições de tutela análogas às que o arguido teria caso tivesse sido condenado logo no tribunal de primeira instância”.

40. E, também, em declarações de voto de vencido ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018: “(…) é mais difícil aceitar que o direito ao recurso, neste entendimento mais alargado – que parece ser o sufragado pela maioria -, não deva ter sempre o mesmo conteúdo, admitindo distinções consoante o tribunal de recurso: reexame da decisão recorrida quanto à matéria de facto e de direito, (…) no caso das relações; e mera revista alargada, no caso do Supremo Tribunal de Justiça”.

41. Donde, mesmo que se considere que o conhecimento, pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos vícios arguidos pelo aqui Reclamante, respeita a matéria de facto, ainda assim, não podia este Venerando Tribunal recusar-se a apreciá-los.

42. Dispõe o artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, sob a epígrafe “Nulidade da sentença”, que a sentença é nula: “[q]uando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

43. Por tudo o que se vem de expor, conclui-se que, no douto Acórdão sub judice, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu de vícios (inconstitucionalidades e nulidade) em relação aos quais se encontrava, salvo o devido respeito, obrigado a conhecer, o que determina a nulidade da referida decisão, nos termos do supramencionado artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.

44. Termos em que deve este Venerando Tribunal declarar a nulidade do Acórdão proferido, por omissão de pronúncia, com todas as devidas consequências legais.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve a presente Reclamação ser declarada procedente por provada e, em consequência, requer-se a V. Exas. que se dignem decretar a nulidade do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, com as necessárias consequências legais.”

Assegurado o contraditório, só o Ministério Público se pronunciou. E contrapôs:

“1. Alega recorrente, ora reclamante, padecer o Acórdão sub judice da nulidade enunciada no preceito do art. 379º/1-c) do Código do Processo Penal, ou seja, que este Tribunal (“ad quem”) deixou de “...pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar...”.

2. E suporta tal entendimento na circunstância de, no essencial: (…)

3. Dizemos nós, com todo o respeito, que não tem razão o reclamante.

4. Na verdade, o vício da sentença ou acórdão resultante da “omissão de pronúncia” decorre da disposição do art. 608º do Código de Processo Civil, especialmente do respectivo nº 2, quando estatui sobre as questões que devem aí ser conhecidas.

5. Donde: A nulidade da decisão por “omissão de pronúncia” apenas ocorre se alguma questão que devia ser conhecida não obteve aí qualquer valoração e decisão, sempre no pressuposto de que a sua resolução não tenha resultado prejudicada pelo tratamento dado a outras.

6. Ou, na formulação de Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil, Anotado”, V, 143: Realmente, uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.  Atentemos.

7. O próprio reclamante se ocupou em evidenciar – com alegação destacada supra, em 2 – que o Acórdão proferido se pronunciou sobre as questões da “falta de fundamentação da matéria de facto” e da “inconstitucionalidade”.

8. Mas ainda disse mais, fazendo uma análise crítica dos fundamentos da recusa de conhecimento dos vícios em questão: 21.Para tanto, defende o Tribunal, em primeiro lugar que: "uma coisa é a recorribilidade do acórdão inovatoriamente condenatório da Relação, outra, dissemelhante, a definição dos poderes de cognição do Supremo quando julga em terceiro grau de jurisdição e em segundo grau de recurso, no enquadramento do art. 400. °, n. ° 1, ai. e), do CPP". … …

9. E, na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça – pronunciando-se sobre as questões em discussão – decidiu, expressamente, não as conhecer, por caírem fora dos seus poderes de cognição (cfr, os arts. 434º do Código de Processo Penal e 46º da L-163/2013, de 26/08, LOSJ): … … A impossibilidade de conhecimento abrange assim: (a) a nulidade do acórdão por falta de fundamentação da matéria de facto; (b) os vícios do art. 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal (erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação) vícios arguidos também na parte referente à decisão sobre a matéria de facto; (c) as inconstitucionalidades por violação dos princípios da presunção de inocência, da igualdade, e da fundamentação das decisões judiciais (arts. 32.°, n.°s 1 e 2 , 13.° e 205.°, n.° 1 da CRP), todos eles problematizados sempre por referência à decisão sobre a matéria de facto. Ou seja, todos os temas enunciados versam sobre, e respeitam exclusivamente a (impugnação da decisão sobre a) matéria de facto. Como tal, eles não podem valer como impugnação em matéria de direito e como suscitação de questões em matéria de direito. O que se visa sempre sindicar, em todos eles, é um juízo probatório, o juízo concretamente formulado pela Relação no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto, na decisão do recurso da sentença (cfr, pág. pág. 382). … …

10. Ou seja: Sem tomar posição sobre se se trata de matéria-de-direito ou de facto (ou mista), diz o Ministério Público que da leitura e análise minimamente avisada da decisão proferida resulta, com toda a evidência, que não se verifica o invocado vício.

11. Não pode, a um tempo, sob pena de flagrante erro lógico, pugnar-se pela “omissão de pronúncia” relativamente a certas questões, e, ao mesmo tempo, contrariar-se as razões que constituíram o motivo por que, expressamente, não foram conhecidas.

12. Se o Tribunal: Não conheceu de uma questão, não pode ter julgado incorrectamente tal questão; Julgou (incorrectamente?) uma questão, impõe-se que tenha conhecido dela.

13. Sintetizando: Só ocorre tal vício quando o julgador deixa (por completo) de se manifestar sobre um determinado aspecto relevante do objecto do processo, aduzido pelos sujeitos-processuais ou de apreensão oficiosa, susceptível de se constituir num instituto jurídico-penal, ou, pelo menos, integra uma unidade conceitual (questão); O que não tem lugar quando o Tribunal se abstém motivada e expressamente de o fazer, mormente pelo operar de uma questão prévia – no caso, atinente aos poderes de cognição.

14. Veja-se, nesta matéria, o Ac. do STJ de 14.07.2022, P137/09.0TELSB.P1.S1: … … IV - O recorrente invoca que o acórdão enferma do vício de omissão de pronúncia, o qual só se verifica quando o tribunal não se pronuncia sobre questões que a lei lhe impunha conhecer e decidir, ou seja, as questões de conhecimento oficioso e as questões suscitadas pelos sujeitos processuais. V - No caso, como questão prévia ao conhecimento do recurso interposto pelo recorrente do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação competia decidir se o mesmo era admissível para este Supremo Tribunal, e só depois de se concluir pela sua admissibilidade legal é que competiria apreciar das questões nele suscitadas.

Em conclusão: O Acórdão “sub judice” não padece da arguida nulidade “omissão de pronúncia” (cfr, o art. 379º/1-c) do Código de Processo Penal), motivo por que se p. que seja indeferida a sua arguição.”


2. Fundamentação

O reclamante vem arguir a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4, do CPP). Para tanto, argumenta que  “arguiu: (i) a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável da fundamentação, conforme artigo 410.º, n.º 2, do CPP; (ii) a falta de fundamentação da matéria de facto, conforme artigo 374.º, n.º 2, do CPP; e (iii) a inconstitucionalidade de várias interpretações normativas da lei processual penal feitas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por serem contrárias às garantias de defesa do arguido e aos princípios constitucionais da presunção de inocência, da igualdade e da fundamentação das decisões judiciais”; e que, “surpreendentemente”, o Supremo se recusou a “conhecer dos vícios referidos nas alíneas (ii) e (iii) supra”, na medida em que os vícios alegados pelo arguido respeitariam exclusivamente a matéria de facto, sendo a decisão impugnada, nessa parte, irrecorrível.

Foi esta efectivamente a conclusão retirada no acórdão reclamado no que respeita ao limites do poder de cognição do Supremo no âmbito do concreto recurso interposto pelo arguido. Conclusão amplamente justificada pelo colectivo de Conselheiros que decidiram o recurso, como se pode ler no acórdão.

Ou seja, após ter-se procedido à identificação de todas as questões suscitadas pelo recorrente no seu recurso, disse-se, e sempre fundamentadamente, quais as questões que podiam ser conhecidas e integrar o objecto de conhecimento, distinguindo-as das que não podiam  integrar o objecto de conhecimento, no recurso interposto para o Supremo. E, subsequentemente, procedeu-se a um integral conhecimento das questões cognoscíveis.

 Assim, a ora apodada omissão de pronúncia mais não é do que uma discordância relativamente ao que foi decidido, insistindo-se pelo conhecimento de matéria que não podia integrar o objecto de conhecimento.

Afirma-se na reclamação que “os vícios assacados ao Acórdão do Tribunal da Relação implicam o conhecimento de matéria de direito, apesar de respeitarem a vícios cometidos na apreciação da matéria de facto e valoração da prova”. Mas tal não foi considerado no acórdão. As afirmações ora efectuadas pelo reclamante vêm na linha contrária ao decidido no acórdão, onde desenvolvidamente se justificou que assim não é, enunciando-se as questões que respeitavam à impugnação da matéria de facto e justificando-se todas as afirmações e conclusões nesta sede retiradas.

Reitera o recorrente que “a sindicância que se pediu ao Supremo Tribunal de Justiça não pressupunha uma reapreciação da matéria de facto ou da sua valoração, mas tão-somente a reapreciação da decisão tomada pelo Tribunal a quo, do ponto de vista jurídico e do direito” e que “a recusa do Supremo Tribunal de Justiça em conhecer os vícios arguidos pelo ora Recorrente à decisão da Relação de Lisboa configura uma verdadeira omissão de pronúncia daquele, que resulta na nulidade da decisão proferida, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.”

Mas decidiu-se no acórdão que a impossibilidade de conhecimento pelo Supremo abrangia a nulidade do acórdão por falta de fundamentação da matéria de facto; os vícios do art. 410.º, nº 2, do CPP (erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação) vícios arguidos também na parte referente à decisão sobre a matéria de facto; as inconstitucionalidades por violação dos princípios da presunção de inocência, da igualdade, e da fundamentação das decisões judiciais (arts. 32.°, n.°s 1 e 2 , 13.° e 205.°, n.° 1 da CRP), porque todos eles problematizados pelo recorrente sempre por referência à decisão sobre a matéria de facto.

Ou seja, considerou-se, sempre fundamentadamente, repete-se, que todos os temas enunciados versavam sobre, e respeitavam exclusivamente a (impugnação da decisão sobre a) matéria de facto. E, como tal, não podiam valer como impugnação em matéria de direito e como suscitação de questões em matéria de direito. O que o recorrente visava sempre sindicar, em todos eles, era o juízo probatório, o juízo concretamente formulado pela Relação no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto, na decisão do recurso da sentença.

Mais se lembrou que constitui jurisprudência sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça que a irrecorribilidade de uma parte da decisão cobre todas as questões suscitadas que lhe digam respeito, ou seja, que respeitem à parte irrecorrível da decisão impugnada.

Das questões subjacentes à irrecorribilidade não poderia, assim, o Supremo conhecer. E, no caso presente, a recorribilidade circunscrevia-se às questões trazidas ao recurso  que versavam matéria exclusivamente de direito, uma vez que é aí que se situa “o círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível”.

Explicou-se também, sempre fundamentadamente e com base em ampla jurisprudência, que o Tribunal Constitucional nunca considerou desconforme à Constituição a irrecorribilidade do acórdão da Relação inovatoriamente condenatório na parte em que decidiu sobre matéria de facto, desde logo porque, como afirmou aquele Tribunal expressamente em vários acórdãos (designadamente nos quatro acórdãos do Pleno citados no acórdão) as garantias de defesa se consideram suficientemente asseguradas pelo duplo grau de jurisdição e a possibilidade de alegar e contra-alegar em recurso (no recurso para a Relação) sobre a matéria de facto. E no que respeita à garantia constitucional do direito ao recurso, sempre o Tribunal Constitucional destrinçou a parte da decisão referente à culpabilidade, da parte relativa à determinação da sanção.

Apesar disso, e para cumprir o mais amplamente possível a efectiva garantia do direito ao recurso, constitucionalmente tutelado para o arguido, não deixou de se proceder a minuciosa análise integral do acórdão da Relação, mormente na parte em que se decidiu em matéria de facto no âmbito de uma eventual detecção oficiosa de vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, caso fossem observáveis no texto da decisão. Justificou-se também, a este propósito, a actualidade da jurisprudência do Supremo, uniforme e há muito constante, de que o conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º do CPP é sempre possível. O que afasta a ideia de que a decisão sobre a matéria de facto escapa totalmente ao controle do tribunal superior, no caso, o Supremo.

De tudo resulta que o recorrente não tem razão na arguição da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, pois todas as questões suscitadas no recurso foram objecto de apreciação na parte cognoscível. Necessariamente, tratar-se-ia sempre das questões de que o Supremo podia conhecer após circunscrição, sempre justificada, do recurso do arguido à matéria cognoscível.

Seria só desta matéria que o Supremo deveria, e estaria obrigado, a conhecer, dela tendo conhecido exaustivamente, e não tendo assim incorrido o acórdão em omissão de pronúncia.

Reitera-se que não cumpria conhecer da matéria problematizada precedentemente, porque respeitava ao recurso na parte rejeitada, como desenvolvidamente se explicou.

Também inexiste qualquer obrigação de pronúncia expressa sobre todos os argumentos invocados pelo recorrente, sobre todas as razões por ele aduzidas e no modo como as apresentou, pois o tribunal de recurso tem sempre de tratar das questões suscitadas do modo como as perspectiva, e não necessariamente da forma como lhe são apresentadas.

O art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP preceitua que é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”, o que se mostra ter sido, em concreto, integralmente cumprido. O preceito legal em causa não impõe, repete-se, a discussão e apreciação, fiel e seguidista, de toda a argumentação desenvolvida no recurso, mas sim o conhecimento das questões suscitadas.

De tudo resulta que, sob o epíteto de “arguição de nulidades”, pretende o recorrente  renovar a peça processual anterior, persistindo numa percepção inexacta do recurso no Código de Processo Penal. O seu articulado é uma repetição da discordância originária quanto ao acórdão da relação e, agora, ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

A presente arguição de nulidades (e de inconstitucionalidades) é, em suma, uma insistência no desacordo relativamente ao que foi decidido, continuando a pretender defender-se uma pretensão que foi integralmente conhecida, e que não é mais processualmente viável.

Inexistem as propaladas omissão de pronúncia e inconstitucionalidade(s), de que se conheceram também na exacta medida da coerência integral da decisão.

           

3. Decisão

Face ao exposto, decide-se indeferir a nulidade arguida pelo recorrente.

Custas pelo recorrente, que se fixam em 3UC (art. 524º do CPP e Tabela III do RCP).

                                                              

Lisboa, 13.04.2023


Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Teresa de Almeida, adjunta