ARROLAMENTO
ARRESTO
REQUISITOS
CONVOLAÇÃO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Sumário


I. Sendo os bens que a requerente de arrolamento pretende arrolar propriedade dos requeridos, como a própria afirma, pese embora tal não consubstancie uma condição de legitimidade, o facto é que constitui uma condição de fundo, um requisito de procedência do pedido, que se não verifica, o que leva à manifesta improcedência do mesmo.
II. Nada impede que seja equacionada em sede de procedimento cautelar de arresto a figura da desconsideração da personalidade jurídica, sempre que se verifiquem os pressupostos da sua aplicação.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

*
Relatório.

... – Comércio de mobiliário, Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., intentou a presente providência cautelar de arrolamento contra AA, residente na Travessa ..., ..., ... M...- Unipessoal, Lda., com sede na Travessa ..., ..., ... M..., Lda., com sede na Av. ..., ... ....
Alegou, em síntese, que intentou contra a 3ª requerida S..., LDA., uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, que correu os seus termos no Juízo ... ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... sob o número de Processo 3105/19...., acção essa que foi julgada totalmente procedente por sentença transitada em julgado, condenando a 3ª requerida a pagar à requerente o montante de € 2.993,55, bem como condenou a sociedade a suprir os vícios existentes no prédio urbano objecto da empreitada, com o limite máximo de € 45.500,16.
Na sequência do trânsito em julgado de tal sentença foi iniciado, pela requerente, o respectivo procedimento de liquidação, tendo sido proferida sentença condenando a 3.ª requerida a pagar à requerente a quantia de € 45.500,16.
No âmbito do referido processo, a Requerente apresentou, ainda, a respectiva nota discriminativa e justificativa de custas de parte, no valor total de € 1.428,00.
 A 3ª requerida nada pagou à requerente até este momento.
Em momento anterior ao da prolação da sentença referida, já a requerente tinha lançado mão de processo executivo contra a 3ª requerida, pelos montantes que eram, à data, líquidos.
Nessa execução veio a requerente a tomar conhecimento de que a 3.ª requerida não tinha quaisquer bens na sua titularidade, com excepção de um veículo de marca ..., com a matrícula ..-II-.., que se encontrava, em 20.05.2022, onerado com uma reserva de propriedade a favor do 1.º requerido, veículo esse que foi, logo a seguir, em 29.07.2022, transferido para a esfera da 2.ª requerida, sendo esta actualmente a sua proprietária.
Esta 2ª requerida foi constituída a 15.07.2022, constando o 1.º requerido como único sócio e gerente, sendo a sede da mesma na residência do 1º requerido.
Invoca a requerente a desconsideração da personalidade jurídica das 3.ª e 2ª requeridas, bem como a verificação dos pressupostos para que seja decretado o requerido arrolamento.
Termina peticionando o seguinte:
“Nestes termos e naqueles que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se que a presente providência seja julgada procedente, por provada, procedendo-se, em consequência, à desconsideração da personalidade coletiva das 2.ª e 3.ª requeridas, sendo também responsáveis pelo crédito da requerente sobre a 3ª requerida o 1º requerido e a 2ª requerida, cujos patrimónios devem responder por tal crédito.
….
Bens a arrolar
a) O veículo de marca ..., com a matrícula ..-II-.., cuja propriedade se encontra registada a favor da 2.ª Requerida pela AP. ...27, de 29.07.2022;
b) Todos os imóveis dos Requeridos, devendo, para o efeito, ser oficiada a Autoridade Tributária para vir indicar se, em nome dos mesmos, se encontram registados bens imóveis e qual a sua identificação;
c) Os saldos de contas bancárias tituladas pelos Requeridos em todas as instituições bancárias, devendo, para o efeito, oficiar-se o Banco de Portugal para indicar em que bancos detêm, os mesmos, contas bancárias.”.
*
Por despacho de 29.12.2022, foi designado o dia 12 de Janeiro para inquirição das testemunhas arroladas.
A 05.01.2023, foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
“Decisão:
Pelo exposto, atenta a inexistência dos pressupostos substanciais de que depende o decretamento da providência requerida ou de qualquer outra providência cautelar, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar de arrolamento.
**
Custas pela requerente.
Registe e notifique.
**
Dou sem efeito a realização da diligência já agendada.”.
*
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a requerente.
Veio a ser proferida decisão sumária pela ora relatora, com o seguinte dispositivo:
“Perante o exposto, decide-se julgar a apelação procedente, em consequência do que se declara nula a decisão recorrida, determinando que os autos voltem ao Tribunal de 1.ª instância para que aí seja dado cumprimento ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, in fine, do CPC, assegurando-se o contraditório mediante a prolação de despacho que alerte a requerente/apelante para a eventualidade de vir a ser proferida decisão no âmbito do quadro normativo supra indicado e a convide a pronunciar-se quanto à aludida questão de direito.”.
*
Nessa sequência, após cumprido o contraditório, veio a ser proferida nova decisão, com o mesmo dispositivo:
“Decisão:
Pelo exposto, atenta a inexistência dos pressupostos substanciais de que depende o decretamento da providência requerida ou de qualquer outra providência cautelar, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar de arrolamento.
**
Custas pela requerente.
Registe e notifique.”.
*
Novamente inconformada, apelou a requerente, terminando com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“CONCLUSÕES

I. Vem a ora Recorrente interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo versando, o mesmo, sobre matéria de direito;
II. No entendimento da ora Recorrente, ficou demonstrado que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 365º, n.º 1, 376º, n.º 3, 403º, n.º 1, e 404º, todos do CPC, ao indeferir liminarmente a providência cautelar de arrolamento contra os Requeridos;
III. O Tribunal a quo, mesmo tendo dado “como indiciariamente assente toda a factualidade alegada pela requerente”, entendeu que, quanto ao arrolamento, à Requerente não assiste legitimidade para o requerer e, quanto ao arresto, aplicável por via do artigo 376º, n.º 3, do CPC, os pressupostos processuais para o seu decretamento não estariam verificados;
IV. Estamos na presença, com o devido respeito, de um evidente erro de julgamento;
V. Os fundamentos da providência cautelar requerida pela Recorrente são claros, sendo o arrolamento o meio processual adequado e necessário para garantir a utilidade da lide principal, por forma a assegurar a permanência ou a conservação de bens pertencentes aos Requeridos;
VI. A Recorrente alegou e demonstrou a verificação dos pressupostos referentes à figura do arrolamento,
VII. Tanto que o Tribunal a quo considerou indiciariamente assente toda a matéria de facto alegada pela Recorrente;
VIII. O Tribunal a quo, caso subsistissem dúvidas quanto ao decretamento da providência cautelar requerida, deveria ter ordenado a produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, o que, com o devido respeito, erradamente também não fez;
IX. O Tribunal a quo não atendeu às especificidades do procedimento cautelar em causa, porquanto não estamos perante uma situação típica de arrolamento;
X. O Tribunal a quo ignorou assim, com todo o respeito por opinião diversa, os seus poderes-deveres no âmbito da adequada gestão processual;
XI. Estatuiu o artigo 404º, n.º 1, do CPC que tem legitimidade para requerer a providência cautelar de arrolamento “qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”;
XII. A Recorrente, face à matéria em causa nos autos, apenas poderia recorrer ao arrolamento;
XIII. Para prova do seu direito, a Recorrente demonstrou (i) que a 3ª Requerida é sua devedora e que aquela foi condenada a pagar-lhe os valores inscritos no RI; (ii) que na execução que intentou contra a 3ª Requerida, a mesma não tinha quaisquer bens ou valores penhoráveis com exceção do veículo de marca ..., com a matrícula ..-II-.., que se encontrava, em 20.05.2022, onerado com uma reserva de propriedade a favor do 1.º Requerido; (iii) que aquele veículo, logo a seguir, em 29.07.2022, foi transferido para a esfera da 2.ª Requerida e que (iv) a 2ª e a 3ª Requeridas são ambas detidas pelo 1º Requerido;
XIV. Não subsistem dúvidas de que os Requeridos, em especial o 1º Requerido, usou e abusou da personalidade coletiva para furtar a 3º Requerida do cumprimento das suas obrigações perante terceiros;
XV. Tudo isto fundamenta o pedido da Recorrente que recorreu, no âmbito deste meio processual, à desconsideração da personalidade jurídica das Requeridas sociedades;
XVI. A Requerente fundamentou e indicou ao Tribunal a quo a necessidade do recurso a este instituto para repor a harmonia nas relações comerciais e jurídicas em crise, podendo, assim, satisfazer o seu crédito;
XVII. Mesmo que assim não considerasse, o Tribunal a quo, demonstrada que foi, indiciariamente, a matéria alegada no RI, sempre deveria ter lançado mão dos pressupostos processuais do arresto de bens,
XVIII. Meio processual também aplicável, em tese, ao descrito no RI e porque verificados também os seus pressupostos,
XIX. A isso não sendo obstáculo o facto de, em 29.07.2022, a 3ª Requerida não ser titular de nenhum outro bem suscetível de penhora porque o alienou, nessa data à 2ª Requerida,
XX. Podendo, entretanto, ter adquirido algum bem ou vir a fazê-lo;
XXI. O meio cautelar é o único meio processual adequado a pôr cobro ao comportamento dos Requeridos;
XXII. Assim, ou por via do arrolamento ou por via do arresto, deve a presente providência cautelar ser decretada,
XXIII. Afetando os bens dos Requeridos,
XXIV. Revogando-se, por isso, a decisão que ora se impugna e que deve ser substituída por acórdão que decida no referido sentido,
XXV. Submete-se, desta forma, o presente à apreciação dos Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães relativamente ao erro de julgamento sobre a matéria de direito.
Termos em que deve a decisão de que ora se recorre ser revogada e substituída por outra que decrete o arrolamento (ou, em alternativa, o arresto) dos bens indicados no RI uma vez indiciariamente demonstrada a matéria de facto alegada no mesmo,
Assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!”.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Objecto do recurso.             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC - ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes:

- saber se se verificam os pressupostos para que possa vir a ser decretado o requerido arrolamento;
- em caso de resposta negativa, saber se se verificam os pressupostos para que possa vir a ser decretado o arresto dos bens.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
*
IV. Do objecto do recurso.          
  
1. Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
Comecemos por verificar se se verificam os pressupostos para que possa vir a ser decretado o requerido arrolamento.

Dispõe o art. 403.º do CPC, o seguinte:

“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2. O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
À luz desta norma, o arrolamento é uma medida cautelar de carácter conservatório que pode apresentar-se sob duas vertentes:
a) como medida destinada a assegurar a manutenção de certos bens litigiosos, enquanto a titularidade do direito sobre eles estiver em discussão na acção principal;
b) como medida destinada a garantir a conservação de documentos necessários para provar a titularidade do direito.
No que à economia dos autos interessa (a primeira das vertentes), o arrolamento  difere do arresto quanto à situação de perigo que visa prevenir: em lugar do perigo de perda de garantia patrimonial, típica do arresto, o arrolamento visa eliminar o risco de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos.
Analisando os requisitos do arrolamento e estabelecendo o seu confronto com os requisitos do arresto, o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição–reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 116), afirma: “o arrolamento funciona como meio de obter a conservação dos bens [que é o que também diz o n.º 1 do artigo 404.º da código actual], e não como garantia do pagamento de dívidas [que é a finalidade do arresto]. Em princípio, só pode socorrer-se do arrolamento a pessoa que se arrogue direito certo ou eventual aos bens a arrolar; não é lícito, portanto, em regra, ao credor requerer o arrolamento dos bens do devedor, a título de que está em perigo a satisfação do seu direito de crédito”.
A única excepção é a que ora consta do n.º 2 do artigo 404.º do CPC, ou seja, “nos casos em que haja lugar à arrecadação da herança”.
Quanto à legitimidade do requerente, o n.º 1 do artigo 404.º do CPC dispõe que: “O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”.

Em face das normas legais transcritas, pode dizer-se que constituem requisitos do arrolamento:

1) ser titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar;
2) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens.

No que diz respeito ao “interesse na conservação dos bens” a que alude o n.º 1 do artigo 404.º do CPC como pressuposto material da legitimidade de requerer o arrolamento, o Prof. Alberto dos Reis (in ob cit., p. 120) esclarece “Ter ou não interesse equivale a ter ou não direito (certo ou eventual) aos bens que se pretendem por a coberto do risco de extravio ou dissipação. Segue-se daí que, embora pareça tratar-se de uma condição de legitimidade, na realidade trata-se de um a condição de fundo, de um requisito de procedência do pedido”. E assim, “se o requerente não tiver direito algum aos bens, o pedido não pode ser atendido, a providência não pode ser decretada”.
  Ou seja, o arrolamento só se justifica quando o requerente se arrogue e demonstre, ainda que indiciariamente, que tem ou pode vir a ter (existência actual ou futura) um direito sobre os bens em relação aos quais se verifica o perigo de extravio, ocultação ou dissipação.
No caso dos autos, temos que a requerente não é titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar. Os bens que a mesma pretende arrolar são propriedade dos requeridos, como a própria afirma. Nesta medida, pese embora tal não consubstancie uma condição de legitimidade, como se entendeu na decisão apelada, o facto é que constitui uma condição de fundo, um requisito de procedência do pedido, que se não verifica, o que leva à manifesta improcedência do mesmo.
Assim, improcede a apelação nesta vertente.
*
2. Cabe agora verificar se se mostram verificados os pressupostos para que possa vir a ser decretado o arresto dos bens.
O arresto, além de ser um dos meios de conservação da garantia patrimonial, constitui um procedimento cautelar nominado.
Encontra a sua disciplina legal nos arts. 619º a 622 do Código Civil [abreviadamente CC)] e nos arts. 391º a 399º do CPC.
Inserido no capítulo dos procedimentos cautelares especificados, dispõe o n.º 1 do art. 391º do CPC que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor” (ver também o n.º 1 do art. 619º do CC), ou de bens adquiridos por terceiros ao devedor, se tiver sido judicialmente impugnada a transmissão (art. 392º, n.º 2 do CPC e art. 619º, n.º 2 do CC), consistindo esta providência numa apreensão judicial de bens cujo valor seja suficiente para assegurar a satisfação patrimonial do crédito invocado (art. 619º do CC), à qual são aplicáveis, na parte aplicável, as disposições relativas à penhora (art. 622º, n.º 2 do CC e art. 391º, n.º 2 do CPC). (cfr. Ac. RG de 09.04.2019, Alcides Rodrigues, www.dgsi.pt).

São, pois, pressupostos cumulativos do seu decretamento:

a) a existência de um crédito; e
b) o justificado receio de perda da garantia patrimonial.

Ao credor/requerente incumbe deduzir factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (art. 392º, nº 1 do CPC).
Quanto ao primeiro requisito, tal como nos demais procedimentos cautelares, basta a prova de uma séria probabilidade de existência do crédito.
No que diz respeito ao segundo requisito, “o fundado receio de perder a garantia patrimonial só será justificado, fundado ou justo quando está criado um perigo de insatisfação do crédito, por o seu titular se deparar com a ameaça de estar a ser lesado aquilo que lho garantia: o património do devedor” (Cfr. Ac. da RE de 04.05.2006, relatora Maria Alexandra Santos, in www.dgsi.pt).
Afirma Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, págs. 191 e 193, que “este receio é o que no arresto preenche o periculum in mora, que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares. (...) Como é natural, o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjeturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva”.
Isto é, para que se prove o justo receio da perda da garantia patrimonial, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjectivo por parte do requerente. É preciso que haja razões objectivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular (Cfr., Acs. da RP de 16.06.2009, relatora Anabela Dias da Silva, e da RL de 28.11.2013, relatora Fernanda Isabel Pereira, ambos in www.dgsi.pt); e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 18/26, e Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, 3ª ed., p. 191, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª ed., p. 453).
O citado requisito poderá resultar, além do mais, da prova sumária de que o requerido corre o risco de ficar em situação de insolvência por dissipação ou oneração do património; de que tenha praticado factos ou assumido atitudes que, razoavelmente interpretadas, conduzam à suspeita de que está a preparar-se para subtrair os seus bens à acção do devedor; a prática de actos do requerido de oneração dos bens que poderiam servir de garantia; a ausência do requerido para parte incerta; a insuficiência do património conhecido do devedor, aliada ao facto de este ter abandonado a actividade profissional que constituía a sua única fonte rendimento; a frustração de contactos com o devedor por facto que lhe seja imputável, associada ao risco de dissipação do seu património. (cfr. Ac. RG de 09.04.2019 acima citado).
Tendo o devedor praticado actos de “delapidação ou alienação do seu património”, permite a lei que o credor lance mão do arresto, não só quanto aos bens que se encontrem na posse de terceiro – art. 391º, nº 2 e 747º CPC -, como quanto aos bens objecto de alienação, desde que tais actos possam ser judicialmente impugnados e se verifiquem os pressupostos da providência em causa, como resulta do disposto nos arts. 619º, nº 2 do CC, e 392º, nº 2 do CPC.
De facto, apesar de normalmente o arresto incidir sobre bens do devedor e em poder deste, há ainda a possibilidade de o arresto poder recair sobre bens que se encontrem na posse de terceiro, ou ainda de bens alegadamente pertencentes ao devedor, mas que este, para os furtar à acção do credor, transfere para a titularidade de terceiro, ou inscreve-os em nome deste.
No domínio da autonomia privada, assiste à generalidade das pessoas o direito de constituir pessoas colectivas e de exercer actividade por intermédio delas, conformando-as aos seus interesses, não podendo, porém, ser desvirtuado o princípio subjacente à “atribuição” da personalidade colectiva (de instrumento jurídico ao serviço da vida económica), não podendo ser ultrapassados os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito. É, precisamente, por, em certas situações, se mostrarem ultrapassados esses limites que se vem considerando, perante circunstâncias excepcionais, a utilização do instituto denominado de levantamento ou de desconsideração da personalidade colectiva. (Ac. TRL de 21.04.2020, relatora Cristina Coelho, in www.dgsi.pt; Luís Brito Correia, em Sociedades Comerciais, Vol. II, 1993, AAFDL, pág. 327).
A desconsideração da personalidade jurídica é uma solução jurídica para o problema do abuso da personalidade jurídica.
Como afirma Ana Perestrelo de Oliveira, in “A insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial…”, Revista de Direito da Sociedades, nº. 4, 2009, Almedina, pág. 105, trata-se “de via para controlar o uso das sociedades pelos sócios para (objectiva ou subjectivamente) alcançarem fins ilícitos e repudiados pela ordem jurídica, na ausência de previsão legal adequada”. Ou, José A. Engrácia Antunes, in “Os grupos de sociedades, Estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária”, 2ª edição, Almedina, Maio 2002, pág. 599, de “um instituto através do qual o julgador, sem norma legal que o suporte, mas por exigência do sistema jurídico, afasta a personalidade jurídica ou moral de um ente colectivo com vista a imputar um determinado efeito jurídico à realidade a ela subjacente.”
Como se escreveu no Ac. do STJ de 7.11.2017, relator Alexandre Reis, in www.dgsi.pt, “…o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e, quando estejam em causa práticas ilícitas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros, a personalidade coletiva não pode ter uma finalidade redutora, não pode ter a natureza de um manto ou véu de proteção dessas mesmas práticas. … Devido a comportamentos abusivos e fraudulentos, que não são substancialmente da sociedade mas dos que estão por detrás da sua autonomia (ficcionada) e a controlam (ou ao invés), a mesma pode ser utilizada desonestamente e, funcionalmente, ao arrepio do seu fim social ou com desvio da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, para servir de véu para encobrir uma realidade ou para mascarar uma situação. Com a liberdade que o julgador tem na concretização daquilo que é o direito, tal resultado não pode ser tolerado, por se traduzir, afinal, no desrespeito pelo princípio da autonomia e da separação que a atribuição da personalidade deveria prosseguir (…). Em tese geral, justifica-se, nesses casos, a desconsideração, o levantamento ou a superação da personalidade jurídica da pessoa coletiva, por imposição dos ditames da boa-fé”.
Entende a maioria da doutrina e da jurisprudência que, por não ter consagração legal e o seu uso se justificar como forma de evitar um resultado injusto a que o direito positivo não permitiria dar solução justa, a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva deve ter carácter subsidiário e excepcional.
Contudo, como se afirma no Ac. TRL de 21.04.2020, acima citado, “nada impede que tal seja equacionado em sede de procedimento cautelar, sempre que se verifiquem os pressupostos da sua aplicação.
Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 215, ao discorrer sobre o “arresto de bens de terceiro”, e depois de se referir ao arresto requerido na pendência funcional da ação de impugnação pauliana, ao arresto que incide sobre bens do devedor que se encontrem na posse de terceiro, e ao arresto de bens alegadamente pertencentes ao devedor mas que, entretanto, já passaram para a titularidade de terceiros ou foram inscritos em seu nome no registo (predial, comercial ou automóvel), escreve que “Diversa de todas as situações referenciadas é ainda aquela em que só na aparência se verifica uma autonomia jurídica entre o devedor e o titular dos bens, como ocorre em situações que a doutrina e a jurisprudência qualificam como de “desconsideração da personalidade jurídica”. Apurados os factos integrantes de situação de abuso de direito de personalidade jurídica, pode o credor requerer o arresto de bens para garantia de crédito de pessoa singular, ainda que formalmente se encontrem inscritos na esfera jurídica de uma sociedade oportunamente constituída para iludir credores”.
Com interesse sobre esta questão, vejam-se, entre outros, os Acs. Ac. da RC de 8.3.2006, P. 3013/05 (Hélder Almeida), da RC de 18.12.2013, P. 3126/13.7TJCBR.C1 (Moreira do Carmo), da RL de 28.5.2008, P. 2402/2008-4 (Seara Paixão), da RL de 2.7.2009, P. 3435/08.7TBTVD-B.L1-6 (Manuel Gonçalves), da RL de 4.10.2011, P. 646/11.1TVLSB-B.L1-1 (Manuel Marques), da RL de 6.11.2012, P. 6320/12.4TBOER-A.L1-7 (Ana Resende), da RL de 8.11.2012, P. 1988/11.1TVLSB-B.L1-2 (Pedro Martins), e da RP de 22.6.2009, P. 1201/09.1TBMAI.P1 (Maria de Deus Correia), todos em www.dgsi.pt, onde foi equacionada a aplicação do referido instituto no âmbito da providência cautelar de arresto.
 Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil, vol. IV, pág. 709 e ss., agrupa em três os casos em que se justifica o recurso a este instituto, a saber:
 - Quando haja confusão de esferas jurídicas, de sorte a que, devido ao incumprimento de certas regras societárias ou por virtude de circunstâncias concretas, não seja possível estabelecer uma linha delimitadora entre o património da sociedade e o património do sócio.
- Quando haja subcapitalização, ou seja, a sociedade tenha sido constituída com capital que se revele insuficiente, quer em face do seu objeto social, quer perante a sua concreta atuação;
- Quando haja atentado a terceiros ou abuso do instituto da personalidade coletiva, verificando-se este último sempre que “com recurso a uma pessoa coletiva, se contorne uma lei, se violem deveres contratuais ou se prejudiquem fraudulentamente terceiros”, ou ainda quando a pessoa coletiva seja usada para “frustrar o escopo de uma norma ou de um negócio”, devendo prevalecer os escopos e regras dirigidas a pessoas singulares.
E no Manual de Direito Comercial”, vol. II, págs. 191/192, o mesmo autor escreve que “O atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade coletiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar”.
Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que exigem a desconsideração, nomeadamente a mistura do património do indivíduo e das sociedades, a subcapitalização das sociedades face ao volume de negócios em jogo, a alteração de activos de uma sociedade para outra, dentro do mesmo grupo, mantendo os activos a mesma afectação quer antes quer depois da transferência (que se mostra meramente formal) (cfr. Ac. RG de 17.12.2018, relatora Sandra Melo, in www.dgsi.pt).
“Merece também registo o facto de, actualmente, ter já algum estágio de amadurecimento a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, mediante a quebra da autonomia patrimonial, com que se busca responsabilizar a sociedade no tocante a dívidas ou actos praticados pelos sócios, sempre que for apurado o uso abusivo, simulado ou fraudulento da pessoa jurídica, isto é, que estejam suficientemente caracterizados nos factos o desvio de bens, a fraude ou abuso de direito por parte dos que detêm o controlo da sociedade, que se utilizam da personalidade jurídica para transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores ou terceiros. (Ac. RC 03.11.2015, relator Alexandre Reis, in www.dgsi.pt)
No caso dos autos temos que a requerente invoca a existência do seu crédito sobre a 3ª requerida, já dado (parte) à execução, que ainda corre termos.
Mais pede a requerente o arrolamento (que será antes arresto) de bens da 3ª requerida (a devedora), e dos 1º e 2º requeridos (não devedores) fundando a sua pretensão no instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Invoca ainda o requisito de receio de perda da garantia patrimonial, alegando que o 1º requerido, sendo sócio e gerente das 2ª e 3ª requeridas, já alineou o único bem (veículo que identifica) na posse da 3ª requerida (a devedora) e do qual tinha reserva de propriedade, para a esfera da 2ª requerida, nada tendo sido pago à requerente ainda e podendo aquele 1º requerido subtrair o património da esfera patrimonial das sociedades 2ª e 3ª requeridas, dissipando-o e deixando a requerente desprovida de qualquer garantia patrimonial do crédito invocado. Alega também que a 3ª requerida não apresenta quaisquer contas desde o ano de 2019, o que indicia não desenvolver, efectivamente, qualquer actividade comercial, desde, pelo menos, 2018, e que a 2ª requerida que surgiu em Julho de 2022 (já na pendência da execução) tem um objecto social que corresponde, quase integralmente, ao objecto da 3.ª requerida, e para a qual o 1.º requerido transferiu, pelo menos, o referido veículo.
Na decisão apelada entendeu-se que: “No caso em apreço, é indiscutível que o primeiro requerido e a segunda requerida não são confessadamente devedores da requerente.
Com efeito, do teor dos documentos juntos aos autos, não há qualquer indício de que estes requeridos devem qualquer valor à requerente e que o seu atual património possa responder pelas dívidas da terceira requerida.
Note-se que a douta sentença condenatória que sustenta o alegado crédito reclamado pela requerente nada diz relativamente aos dois primeiros demandados.
Falece, assim, desde logo, o primeiro dos pressupostos processuais supra evidenciados e que viabilizaria o arresto de qualquer bem do primeiro requerido e/ou da segunda requerida.
Por outro lado, mesmo prosseguindo com os presentes autos com vista ao arresto de qualquer bem da terceira requerida, não podemos deixar de constatar que é a própria requerente que afirma que esta não é possuidora de qualquer bem, pelo que, concluímos agora nós, quanto a esta terceira requerida não estão alegados quaisquer factos que permitam ajuizar da verificação de todos os pressupostos processuais para se decretar o arresto de qualquer bem desta terceira requerida.
Dito isto, mesmo dando como indiciariamente assente toda a factualidade alegada pela requerente, não estão verificados todos pressupostos legais para o deferimento da providência de arresto relativamente à devedora, terceira demandada.”.
Entendemos não ser assim, desde logo porque não foi sequer ponderada a questão da desconsideração da personalidade jurídica.
Com efeito, a requerente invoca a existência do seu crédito sobre a 3ª requerida, já dado (parte) à execução, que ainda corre termos.
Mais invoca o requisito de receio de perda da garantia patrimonial, alegando que o 1º requerido, sendo sócio e gerente das 2ª e 3ª requeridas, já alineou o único bem (veículo que identifica) na posse da 3ª requerida (a devedora) e do qual tinha reserva de propriedade para a esfera da 2ª requerida (veículo que, tendo reserva de propriedade, não poderia ser arrestado, antes sim a expectativa de aquisição), nada tendo sido pago à requerente ainda e podendo aquele 1º requerido subtrair o património da esfera patrimonial das sociedades 2ª e 3ª requeridas, dissipando-o e deixando a requerente desprovida de qualquer garantia patrimonial do crédito invocado. Alega também que a 3ª requerida não apresenta quaisquer contas desde o ano de 2019, o que indicia não desenvolver, efectivamente, qualquer actividade comercial, desde, pelo menos, 2018, e que a 2ª requerida que surgiu em Julho de 2022 (já na pendência da execução) tem um objecto social que corresponde, quase integralmente, ao objecto da 3.ª requerida, e para a qual o 1.º requerido transferiu, pelo menos, o referido veículo.
Ora, face à alegação da requerente/apelante, temos que se pode verificar efectivamente uma situação de desconsideração da personalidade jurídica colectiva, em que existe a mistura do património do indivíduo (1º requerido) e das sociedades (2ª e 3ª requeridas) e em que o acto de constituição da sociedade 2ª requerida pelo 1º requerido foi praticado exclusiva ou predominantemente para “blindar” os bens que constituem a garantia patrimonial dos credores da 3ª requerida, situação em que o resultado da desconsideração da personalidade jurídica se traduz em considerar que um dado bem (nomeadamente o veículo automóvel ou antes, a sua expectativa de aquisição), apesar de formalmente pertencer a uma dada sociedade, deve ser tratado como pertencente a outrem.
Nesta medida, ao invés de indeferir liminarmente o requerido arrolamento, deveria o Tribunal a quo ter feito prosseguir o presente processo como sendo de arresto e produzido a prova indicada pela requerente.
Procede, assim, a apelação.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
I. Sendo os bens que a requerente de arrolamento pretende arrolar propriedade dos requeridos, como a própria afirma, pese embora tal não consubstancie uma condição de legitimidade, o facto é que constitui uma condição de fundo, um requisito de procedência do pedido, que se não verifica, o que leva à manifesta improcedência do mesmo.
II. Nada impede que seja equacionada em sede de procedimento cautelar de arresto a figura da desconsideração da personalidade jurídica, sempre que se verifiquem os pressupostos da sua aplicação.
*
V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os juízes desta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, e em consequência revogar a decisão apelada, determinando o prosseguimento dos autos, nos termos acima afirmados.
Custas do recurso pela parte vencida a final.
*
Guimarães, 11 de Maio de 2023

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Anizabel Sousa Pereira
Jorge dos Santos
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)