DECRETO-LEI Nº. 54/75 DE 12/2
MUTUANTE
RESERVA DE PROPRIEDADE
Sumário


I - Face à natureza e finalidade que a reserva de propriedade assume no nosso ordenamento jurídico, ela só poderá ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação, já que a sua característica essencial é a de suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos.
II - Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade, não podendo lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

M... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., intentou contra E... – CONSTRUÇÃO, ELECTRICIDADE E RENOVÁVEIS, UNIPESSOAL, LDA., providência cautelar para apreensão de veículo e respetivos documentos, ao abrigo do disposto no artº 15º do DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro.

Invoca que celebrou com a requerida um contrato de crédito, que teve por objeto o financiamento para aquisição de viatura automóvel, veículo vendido por entidade terceira que não nenhuma das partes nestes autos, tendo sido constituída a seu favor, como garantia do bom cumprimento do referido contrato, reserva de propriedade sobre o mencionado veículo. Afirma ainda que, por força da reserva de propriedade, mantém-se na sua esfera jurídica a propriedade da viatura, só se transmitindo a mesma para o requerido com o cumprimento do contrato.
Mais informa que por força do contrato a requerida assumiu a obrigação de pagar um determinado número de prestações mensais, que não pagou.

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O procedimento cautelar foi liminarmente indeferido por se ter entendido que o procedimento cautelar descrito nos artsº. 15.º e segs. do DL nº 54/75, de 12/02 está exclusivamente reservado ao alienante da viatura que sobre ela detém reserva de propriedade e não ao mutuante da quantia necessária à respetiva aquisição, não dispondo como tal a requerente de legitimidade ativa para propor o procedimento (art. 26.º, nº 3, do C.P.C.).
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Inconformada com a decisão veio a requerente dela interpor recurso, terminando com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso de apelação vem interposto da decisão do Tribunal a quo, proferida no dia 14.03.2023 (doravante “Decisão Recorrida”), a qual indeferiu liminarmente o requerimento inicial de procedimento cautelar da ora Recorrente, nos termos do artigo 577.º, alínea e) do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), por considerar que a Recorrente não tem legitimidade para propor o referido procedimento cautelar.
2. Salvo o devido respeito, na Decisão Recorrida o Tribunal a quo fez uma incorreta análise e interpretação dos termos da relação jurídica estabelecida e, bem assim, das normas jurídicas que são efetivamente aplicáveis ao caso em apreço.
3. Com efeito, o Tribunal Recorrido excluiu, desde logo, a possibilidade de, in casu, se aplicar o procedimento cautelar previsto nos artigos 15.º e seguintes do DL 54/75, de 12 de fevereiro, com fundamento de a Recorrente não poder reservar legalmente para si o direito de propriedade sobre o veículo e por entender estar-lhe vedado requerer a resolução do contrato de compra e venda, por não ser sujeito dessa relação controvertida, concluindo, assim, pelo falta de legitimidade da Recorrente para requerer o referido procedimento cautelar.
4. Ora, entende a Recorrente que o Tribunal Recorrido errou, desde logo, nesta apreciação, porquanto, segundo uma interpretação “atualista” do regime em questão, a qual já amplamente assente na Jurisprudência e na Doutrina, estamos perante um negócio jurídico de alienação trilateral financiada.
5. Nesta senda, diga-se que o legislador, ao consagrar as regras de interpretação das normas jurídicas no artigo 9.º do Código Civil, aderiu ao atualismo, considerando que o intérprete deverá ter em conta a evolução socioeconómica verificada entre o momento da elaboração da norma e o momento da sua aplicação, transpondo para o condicionalismo atual o juízo de valor feito pelo legislador na norma a interpretar e ajustando o significado da norma à evolução entretanto sofrida.
6. O legislador, ao instituir o mecanismo da reserva de propriedade, nos termos do artigo 409.º do Código Civil, pretendeu permitir ao vendedor, que assume o risco de o devedor não pagar o preço de aquisição de forma integral, a recuperação imediata do veículo, bem como a resolução do contrato de compra e venda.
7. Atualmente, e no caso sub judice, quem suporta aquele risco é o financiador da aquisição (a ora Recorrente), ao invés da fornecedora do bem, na medida em que esta recebe de imediato esse montante da entidade financeira (a Recorrente).
8. Veja-se que, na realidade contratual vertida nos presentes, temos a celebração de um contrato de mútuo, através do qual a Recorrente financiou a Recorrida na aquisição do veículo automóvel da marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-VO-.., e com o número de Chassis ..., pelo preço total de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros), o qual foi pago diretamente pela Recorrente à fornecedora do veículo, sendo que, por sua vez, a Recorrida assumiu a obrigação de reembolsar a Recorrente do valor total, com o pagamento em prestações.
9. Ora, uma vez que, atualmente, as aquisições financiadas assentam numa relação jurídica trilateral – entre vendedor, comprador e financiador –, correndo o risco por conta da entidade financeira, a reserva de propriedade apenas nutre relevo se estipulada a favor desta última.
10. E, apesar de a letra do artigo 409.º do Código Civil prever que a cláusula de reserva de propriedade apenas poder ser estipulada pelo alienante, nada obsta a que este transfira a titularidade da mesma para a esfera do financiador, através do mecanismo da sub- rogação, de acordo com o disposto nos artigos 589.º e 591.º do CC.
11. Sendo que, por remissão do artigo 591.º do Código Civil, é também aplicável à sub- rogação o disposto no artigo 582.º do mesmo diploma legal, designadamente no que se refere à transmissão das garantias e outros acessórios do direito transmitido.
12. Que foi o que efetivamente aconteceu no caso dos presentes autos, em que a fornecedora sub-rogou na Recorrente o seu direito de crédito sobre a Recorrida, decorrente da alienação do veículo, com a consequente transmissão da própria cláusula da reserva de propriedade, constituída como garantia do cumprimento dos contratos de alienação (compra e venda) e de financiamento (contrato de mútuo).
13. Aliás, no caso vertido nestes autos, no próprio Contrato de Financiamento, celebrado entre a Recorrente e a Recorrida, mais concretamente na cláusula 9.º n.º 2 das Condições Gerais do Contrato, ficou estipulado expressamente que “Nos termos convencionados nas Condições Particulares, o mutuário declara conhecer e aceitar a sub-rogação pelo fornecedor a favor da mutuante do crédito que para aquele emerge do contrato de compra e venda que celebrou com o mutuário, sub-rogação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 589.º do Código Civil, reconhecendo o mutuário expressamente que essa sub-rogação, por força do disposto no artigo 582.º, aplicável por remissão do artigo 594.º, ambos do Código Civil, implica a transmissão pelo fornecedor a favor do mutuante da reserva de propriedade acordada entre o mutuário e o fornecedor.”.
14. Ou seja, essa transmissão foi devidamente reconhecida pela devedora, nos termos do disposto na referida cláusula 9.º das Condições Gerais do Contrato, conforme foi alegado pela Recorrente no artigo 11.º do seu Requerimento Inicial.
15. Assim, dúvidas não podem subsistir de que a titularidade da reserva de propriedade foi validamente transferida para a esfera jurídica da Recorrente, através da sub-rogação desta nos direitos da alienante!
16. Ademais, e ainda assim não se entendesse – o que não se concede, mas apenas por mera hipótese de raciocínio se expõe – uma vez que foi a Recorrente quem pagou o preço de aquisição do veículo, sempre se diria que é a legítima proprietária do mesmo, motivo pelo qual sempre reservou validamente a propriedade para si.
17. Assim, sendo a Recorrente legítima titular do registo de reserva de propriedade sobre o veículo e tendo a Recorrida incumprido definitivamente o Contrato garantido, impõe-se concluir que a Recorrente tem legitimidade para requerer em juízo a apreensão imediata do veículo, ao abrigo do disposto nos artigos 15.º e seguintes do DL n.º 54/75, de 12 de fevereiro.
18. Em face de todo o exposto, e sem quebra do devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao proferir a Decisão Recorrida, pois conclui-se que não havia motivos para o indeferimento liminar da providência requerida.
19. Devendo, assim, a ser a revogada a Decisão Recorrida e substituída por outra que admita e decrete a providência cautelar de apreensão de veículo, nos termos dos artigos 15º e 16º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de fevereiro.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão a apreciar consiste em saber se pode o financiador, que não é o vendedor, fazendo-se valer do registo da reserva a seu favor, lançar mão da providência especificada de apreensão de veículo face ao inadimplemento do devedor quanto ao contrato de mutuo.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

A questão posta em recurso consiste em saber se pode o financiador, não vendedor, fazendo-se valer do registo da reserva a seu favor, lançar mão da providência especificada de apreensão de veículo face ao inadimplemento do devedor.
A resposta à questão dependerá da orientação que venha a ser seguida quanto à validade da reserva a favor do terceiro financiador.
A questão da admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade estipulada a favor do financiador, em contratos coligados de crédito ao consumo, tem sido muito debatida quer na doutrina quer na jurisprudência, sem que se tenha logrado atingir um consenso.
Uma parte da jurisprudência e da doutrina tem entendido que a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador é nula por impossibilidade legal do objeto da estipulação (art. 280.º do CC) ou por violação de normas imperativas (arts 408.º, 409.º e 294.º do CC).
O argumento da impossibilidade do objeto assenta em que é juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem, justificando-se que no contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular.[i]
A violação de normas imperativas foi a orientação adotada no acórdão do STJ, de 12-07-2011, ao considerar que a disposição constante do art. 409.º, n.º 1, do CC, apenas permite ao alienante reservar para si a propriedade da coisa e já não ao (eventual) financiador do negócio, o qual, ao conceder ao comprador os meios económicos para realizar o negócio, não intervém no contrato de alienação, pelo que a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é contrária a uma norma de natureza imperativa, e, por isso, nula por força do art. 294.º do CC, não produzindo, em consequência, o efeito da transferência da propriedade do bem da vendedora para o financiador.[ii]
Na doutrina esta tese tem sido defendida por Gravato Morais, que considera que só nos contratos de alienação é lícita a estipulação de reserva de propriedade, enfatizando que “a finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto – que não produziu nem forneceu — apenas em razão do fraccionamento das prestações».[iii]
Outra parte da jurisprudência e da doutrina defende que é admissível a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante nos contratos em que existe uma ligação funcional entre o contrato de mútuo, cujo objeto é o preço a pagar pelo mutuário ao vendedor do veículo, e o contrato de compra e venda do veículo[iv].
A tese que defende a validade da cláusula, faz apelo a uma interpretação atualista da norma do art. 409.º do CC, e entendendo que a expressão “qualquer outro evento” permite abarcar a satisfação do crédito de terceiro que não o reservatário originário, bem como invocando a interligação dos contratos e o princípio da liberdade contratual.
Na jurisprudência do STJ, o acórdão de 30.09.2014, relatado por Maria Clara Sottomayor, faz depender a validade da cláusula de transmissão da reserva de propriedade do vendedor para o financiador da construção dogmática que for feita a propósito da natureza jurídica da reserva de propriedade. Conclui tratar-se de uma figura atípica, de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais, a qual, apesar da designação de “propriedade”, não confere ao titular o poder de uso, fruição ou disposição de um verdadeiro proprietário, visando antes assegurar ao vendedor o pagamento do preço. O direito em causa não é, assim, um verdadeiro direito de propriedade com o conteúdo do art. 1305.º e sujeito às regras rígidas dos direitos reais, mas um direito que se define pelo seu conteúdo e função – a garantia de um crédito.
Fazendo menção a ordens jurídicas congéneres da nossa, em que tem sido aceite a cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, diz-se no aludido aresto que a utilização da reserva de propriedade a favor do financiador resulta da evolução socioeconómica e representa a resposta do sistema a novas necessidades do comércio jurídico, devido à insuficiência do modelo tradicional de garantias do crédito, sobretudo das garantias reais.
Na doutrina, a tese da validade é defendida por Isabel Menéres Campos[v] e Nuno Pinto Oliveira[vi], que, em síntese, propugnam com base numa interpretação atualista e de acordo com o princípio da equiparação, se adote a mesma solução prevista na lei para a compra e venda com reserva de propriedade celebrada entre dois sujeitos, comprador e vendedor, para aquela outra da compra e venda financiada por uma terceira entidade, em que existem três sujeitos da relação contratual: comprador, vendedor e financiador.
Reconhecendo valia e autoridade à tese da validade, sufragamos, no entanto, por a nosso ver mais meritória e conforme com a letra e espirito da lei, a orientação que considera inválida a cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro financiador.
Explicaremos de seguida os fundamentos.
O art. 409.º, nº1, do Código Civil dispõe que: "Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento".
No âmbito do tráfego jurídico-comercial, o fim visado pelas partes com a estipulação da cláusula de reserva de propriedade é o de garantir a satisfação do crédito do vendedor ao preço, sendo o direito de propriedade utilizado com função de garantia.
A disposição do art. 409.º parece indicar que o vendedor permanece proprietário pleno da coisa até ao cumprimento das obrigações por parte do adquirente, trata-se, no entanto, de uma propriedade limitada à função de garantia ou de uma figura sui generis de natureza mista, com elementos obrigacionais e reais. É inequívoco que «a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra». Em face desta sua finalidade, a figura tem sido designada como «uma propriedade com função de garantia», a qual não atribui ao titular os direitos de um proprietário pleno, mas uma posição jurídica que lhe permite realizar, à custa do valor da coisa, o respetivo crédito[vii].
Com efeito, a reserva de propriedade impede os credores do comprador de executarem o bem e permite ao vendedor, em caso de não cumprimento pelo comprador, resolver o contrato e exigir a restituição da coisa.
As situações figuradas têm o vendedor simultaneamente como financiador da aquisição. Nestes casos, não se tem colocado a questão da validade da cláusula da reserva de propriedade, na medida em que se atém no âmbito de um contrato de alienação.
O problema surge quando o financiador é um terceiro.
E aqui, não somos sensíveis ao argumento da “interpretação atualista” do art. 409º do CC, no sentido de que se deve atribuir à norma um sentido exigido pelas necessidades atuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, estendendo a previsão da norma que se refere a contratos de alienação à compra e venda financiada por um terceiro.
Cremos que não basta que tenha ocorrido uma alteração no campo das relações socioeconómicas para que o sentido a dar à norma possa sofrer uma evolução. É necessário perceber o sentido dessa alteração.
E essa alteração em nada mais consiste que no exponencial crescimento da concessão de crédito ao consumo, levando as empresas financeiras a desenvolverem expedientes mais simples, céleres e eficazes, incompatíveis com a morosidade das diligências e os custos próprios de uma negociação cautelosa, na forma exigida pelo regime dos contratos de crédito a consumidores (art. 10.º do DL n.º 133/2009, de 02 de Junho) como o dever de avaliar a solvabilidade da contraparte [viii].
Todavia, introduzindo estas novas ferramentas uma maior agilização e informalismo no processo negocial, acaba na verdade por contrariar o equilíbrio existente na lei positiva entre os diversos interesses em jogo, predisposto e desejado pelo legislador[ix], dando lugar a uma relação negocial assimétrica e impositiva de interesses, conseguindo ainda obter uma garantia mais forte do que as que já se encontram consagradas na lei.
Aceitando que as transformações sociais, produtivas e principalmente económicas alteraram uma certa conceção contratual individualista deve essa transformação determinar-se por se manter paritária. Assim se compreende que não podendo, nem querendo, enjeitar novos instrumentos de facilitação negocial as mais recentes orientações de política legislativa sejam fortemente protetoras do consumidor.
À luz dos valores que informam a ordem jurídica, não tem substrato jusfundamentante a concessão de uma tutela alargada a uma das partes da relação contratual com a extensão de uma nova e mais forte garantia da sua posição.
Assim, como refere Paulo Ramos de Faria[x], não tendo ocorrido qualquer alteração das orientações valorativas do ordenamento jurídico que o habilite, a subsunção da cláusula da reserva de propriedade constituída a favor do financiador à norma prevista no art. 409.º  não poderá ser o resultado de uma interpretação orientada pela atualização do seu alcance, mas sim da sua aplicação analógica, o que é de rejeitar.
Concluímos na esteira de Gravato Morais que a “finalidade do legislador, ainda que interpretada actualisticamente, não terá sido a de permitir a quem não aliena um bem, mas tão-só o financia, a constituição a seu favor de uma reserva de domínio sobre um objecto que não produziu nem forneceu - apenas em razão do fraccionamento das prestações[xi].
Por isso, e conforme foi decidido no acórdão da Relação do Porto de 26/01/2009 (processo 1952/09.0YXLSB.L1-2, relator Ezagy Martins, disponível em www.dgsi.pt), a ora requerente, enquanto entidade financiadora de crédito para aquisição da referida viatura, vendida por um terceiro ao consumidor, não podia reservar para si o direito de propriedade desse veículo, por tal direito não existir na sua esfera jurídica.
Quanto a saber se as partes, em nome do principio da autonomia privada, que se manifesta, neste contexto, como liberdade contratual (art. 405.º do CC), podem convencionar uma cláusula «atípica» de reserva de propriedade, como se observa no acórdão da Relação de Lisboa de 18.02.2014[xii], importa considerar que, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1306.º do CC, não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei. É o chamado princípio do numerus clausus ou da tipicidade dos direitos reais que, obviamente, exclui a liberdade contratual nesse domínio, incluindo também os próprios direitos reais de garantia, como decorre, além do mais, do art.º 604.º, n.º 2, do CC. Acrescenta-se no aludido aresto que nos termos da parte final do n.º 1 do citado art.º 1306.º, toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional, aí se concluindo que a admitir-se a estipulação da reserva de propriedade a favor de terceiro, mais não se estaria senão a permitir, por essa via, a transferência do direito de propriedade do beneficiário da reserva para terceiro.
Contra esta posição não procede a invocação do pretérito art. 6.º, nº 3, al. f), do D.L. nº 359/91, de 21 de Setembro, relativo aos contratos de aquisição a crédito, que previa a possibilidade de constar do texto do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade. É que tal diploma foi expressamente revogado pelo DL n.º 133/2009, sem previsão de qualquer norma idêntica, sendo que, de todo o modo, disposição idêntica sempre se reportaria apenas a situações em que o vendedor, como proprietário do bem, mantém essa qualidade, por efeito da reserva, ao mesmo tempo que financia a aquisição.
Cremos que a inexistência, neste último diploma, de uma norma análoga ao anterior artigo 6.º, n.º 3, alínea f) não pode ser interpretada senão no sentido de que o legislador não quis permitir que a propriedade do bem adquirido pelo consumidor pudesse ser reservada pelo financiador.
E como explica José Menezes Sanhudo[xiii], tal deve-se a duas razões fundamentais.      A primeira é, obviamente, o facto de não ter introduzido no referido diploma uma norma que autorizasse tal operação. A segunda é o facto de a diretiva que deu origem ao Decreto-Lei n.º 133/2009 ser de harmonização máxima, ao contrário da diretiva que originou o diploma hoje revogado, que era de harmonização mínima. Com efeito, a Diretiva 2008/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008 refere: «[a] harmonização plena é necessária para garantir que todos os consumidores da Comunidade beneficiem de um nível elevado e equivalente de defesa dos seus interesses e para instituir um verdadeiro mercado interno. Por conseguinte, os Estados-Membros não deverão ser autorizados a manter nem a introduzir outras disposições para além das estabelecidas na presente diretiva» (considerandum 9).    Conclui o autor que daqui se infere inequivocamente que também o legislador comunitário não teve qualquer intenção de permitir que o financiador reservasse para si a propriedade do bem em contratos de crédito ao consumo, não existindo, na diretiva, qualquer referência a este tipo de operações.
De outra banda e somando aos argumentos expendidos, uma cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do financiador, com a função, a estrutura e os efeitos que lhe são assacados, configuraria na verdade um pacto comissório, que enquanto convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir, é figura proibida pela lei (art. 694.º do CC).

Como refere Paulo Ramos de Faria[xiv]mais do que sinalizar que o acordo visado pelas partes não é uma crp, mas sim a estipulação de uma garantia real dissimulada (arts. 240/2 e 241/1), assente em pressupostos e sujeita a condições proibidos por lei, importa aqui ter presente que a proibição do pacto comissório se estende a todas as demais convenções com função de garantia. Significa isto, explica, que esta crp não deve ser tratada como sendo um acordo simulado - sendo nulo em razão da desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada - devendo antes ser imediatamente confrontada com as normas que dispõem sobre os limites da liberdade negocial, em razão do seu conteúdo - sendo, então, o acordo reconhecido como nulo, “porque celebrado em directa violação da proibição legal do pacto comissório”.
Esclarece-se que na identificação do pacto não releva a estrutura da ferramenta negocial utilizada, mas sim o resultado económico que se pretende evitar, rematando em consequência que a convenção de reserva de propriedade a favor do terceiro financiador é proibida por força da sua subsunção ao disposto no art. 694.º do CC.
Por fim há a salientar que todas as questões aqui suscitadas foram pormenorizadamente tratadas  no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ), n.º 10/2008, de 09/10/2008[xv], ainda que respeitante à penhora de veículo automóvel onerado com o registo de reserva de propriedade a favor do exequente.         
Nesse AUJ foi considerado que, face à natureza que a referida cláusula assume no nosso ordenamento jurídico, ela só poderia ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação, já que a sua característica essencial é a de suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos.   
Nesse seguimento, também no já citado acórdão da Relação de Lisboa de 18-02-2014[xvi], se sufragou o entendimento de que a reserva de propriedade com eficácia real, tal como está configurada no artigo 409.º do CC, constitui um mecanismo de garantia do proprietário-alienante colimada à resolução do contrato fundada seja em incumprimento por parte do adquirente, seja na verificação de qualquer outro evento que as partes tenham previsto, nomeadamente como fundamento da resolução, mas sempre no âmbito do contrato alienação em causa.
Quanto à questão da sub-rogação do financiador nos direitos do vendedor, também ela, a nosso vender, não é de admitir.
Nos termos do art. 591.º, n.º 1, do CC, «o devedor que cumpre a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor», estabelecendo o n.º 2 a necessidade de «declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor».
Independentemente do concreto programa contratual do mútuo, entrega do capital ao mutuário ou diretamente ao vendedor, o financiador ao disponibilizar o capital mutuado não satisfaz um propósito seu de cumprir o contrato de compra e venda, estando, sim, a cumprir uma ordem de pagamento do mutuário.
Tendo presente a natureza da reserva de propriedade e a sua ligação ao contrato de alienação, isso conduz à inadmissibilidade do instituto da sub-rogação, na medida em que a sub-rogação nos direitos do credor/vendedor implicaria que estes existissem e o pagamento integral do preço a isso obsta[xvii].
No geral, os vários institutos que se apresentam como tentativa de validação da cláusula de reserva de propriedade a favor do terceiro financiador aparecem sempre desvirtuados da sua essência e finalidade, envergando vestes claramente inapropriadas à sua natureza, seja com a invocação da sua flexibilização, atualidade ou extensão, ficcionando-se uma realidade jurídico normativa que distorce o sentido e o espirito que presidiu à sua criação.
Por isso mesmo, a aplicação do regime estatuído no DL nº 54/75 a outras realidades contratuais que não o contrato de alienação – designadamente, ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda – subverteria o sistema instituído, o qual está construído, em termos racionais e teleológicos, para abarcar uma situação particular: a do alienante ser o titular da reserva de propriedade.
Pelas razões expostas, e como se concluiu no acórdão da Relação de Lisboa de 19.11.2019[xviii], em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade.
Termos em que improcede a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Face à natureza e finalidade que a reserva de propriedade assume no nosso ordenamento jurídico, ela só poderá ser convencionada no âmbito de um contrato de alienação, já que a sua característica essencial é a de suspender os efeitos translativos inerentes a tais contratos. 
II - Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, o financiador não pode prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade, não podendo lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo, ao abrigo do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 11 de Maio de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Anizabel Sousa Pereira




[i] Acórdão da Relação de Coimbra de 08/03/2016, Relatora Sílvia Pires, processo nº934/15.8T8LMG.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[ii] Acórdão do STJ de 12/07/2011, Relator Garcia Calejo, processo nº 403/07.0TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[iii] In Cadernos de Direito Privado, n.º 6, 2004, Anotação ao Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.02.2002, pag. 52.
[iv] Acórdão da Relação de Lisboa de 06/05/2010, Relatora Carla Mendes, processo nº 4849/05.0TVLSB.L1-8, acessível em www.dgsi.pt.
[v] In A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, pags. 372 e 373.
[vi] Contrato de compra e venda. Noções Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, pags. 56 e 57.
[vii] Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 21/03/2019, Relator Madeira Pinto, processo nº 2368/16.8T8VNG.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[viii] Neste sentido, Paulo Ramos de Faria, in “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, JULGAR - N.º 16 – 2012, Coimbra Editora, pag. 32.
[ix] Paulo Ramos de Faria ob. cit. pag. 33.
[x] Ob. cit. pag. 33.
[xi] In Cadernos de Direito Privado n.º 6, pag. 53.
[xii] Proferido no processo nº 3331/11.0TVLSB.L1-7, Relator Manuel Tomé Soares Gomes, acessível em www.dgsi.pt.
[xiii] In Cláusulas de reserva de propriedade a favor do financiador em contratos de crédito ao consumo, Julgar online, fevereiro de 2020, pags. 15 e 16.
[xiv] In “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, JULGAR - N.º 16 – 2012, Coimbra Editora, pags 37 e 38.
[xv] Publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 222, de 14/11/2008
[xvi] Proferido no processo nº 3331/11.0TVLSB.L1-7, Relator Manuel Tomé Soares Gomes, acessível em www.dgsi.pt.
[xvii] Neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 28.02.2013, Relatora Ana de Azeredo Coelho, proferido no processo nº 84/13.1TJLSB.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
[xviii] Proferido no processo nº 3914/19.5T8LSB.L1-7 em foi Relatora Maria Amélia Ribeiro, acessível em www.dgsi.pt.