HERANÇA
LEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CABEÇA DE CASAL
Sumário

1 – A lei admite desvios à regra geral da determinação da legitimidade, permite a possibilidade da exequibilidade da sentença contra terceiros, recepciona também as hipóteses de coligação nos termos expressos, como resulta dos artigos 54.º a 56.º do Código de Processo Civil, e assume também as situações alteração subjectiva por via de habilitação, entre outros casos particulares.
2 – Em sede de aplicação da disciplina vertida no n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, ao estatuir que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos eles, mesmo no âmbito do processo executivo, em caso de absolvição por preterição de litisconsórcio necessário, a situação pode ser sanada pela intervenção dos demais herdeiros, pois o incidente de intervenção não produz qualquer alteração à formação ou ao conteúdo do título executivo, o qual pode continuar a ser discutido na sua materialidade, limitando-se a regularizar processualmente os interesses indivisíveis subjacentes ao procedimento.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 1619/21.1T8ENT-C.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Execução do Entroncamento – J3
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente execução proposta por (…), cabeça de casal da herança indivisa de (…), contra “(…), Sociedade de Exploração Agrícola, Lda.”, esta sociedade interpôs recurso da decisão que determinou a intervenção de terceiros.
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A acção executiva tinha como objecto o pagamento de rendas alegadamente em dívida.
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Entre outra matéria, no âmbito da oposição à execução foi deduzida a excepção de ilegitimidade activa para os termos da causa.
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Em 04/03/2022, foi proferido despacho saneador tabelar relativamente à questão em causa.
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Por acórdão datado de 15/12/2022, o Tribunal da Relação de Évora revogou o referido despacho e os subsequentes atinentes ao não conhecimento da ilegitimidade activa da exequente, que deveria ser substituído por outro que conhecesse da excepção legitimidade activa para a execução.
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Prosseguiram os termos da acção e, em 31/03/2023, o Juízo de Execução do Entroncamento, na parte que agora releva, pronunciou-se sobre a questão da legitimidade activa, decidindo: «Consequentemente, a cabeça de casal, desacompanhada dos demais herdeiros, não tem legitimidade para a presente acção.
Mas a excepção de ilegitimidade da cabeça de casal por preterição de litisconsórcio necessário é sanável por via do incidente de intervenção de terceiros, conforme decorre do artigo 316.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, impondo-se mesmo ao juiz o dever de providenciar pela sanação dessa excepção, convidando as partes a deduzir o incidente adequado à intervenção dos herdeiros em falta (cfr. artigo 6.º, n.º 2, do Código de Processo Civil) neste sentido, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Fevereiro de 2015, Processo n.º 1530/12.7TBPBL.C1, in dgsi).
Pelo que:
- se julga procedente a ilegitimidade activa da cabeça-de casal;
- se convida a exequente a vir requerer nos autos principais, no prazo de dez dias, a intervenção principal provocada dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), sob pena de, em caso de silêncio, absolvição da executada, ora embargante, da instância executiva».
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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e as suas alegações contenham as seguintes conclusões:
«1. Em 17-09-2021 a Embargante, ora Recorrente, deduziu Oposição à Execução, defendendo-se por excepção, aí invocando a excepção dilatória de Ilegitimidade Activa da Embargada, por ter a mesma, na qualidade de cabeça de casal, proposto acção executiva para cobrança de (alegadas) rendas, desacompanhada dos restantes herdeiros.
2. Uma vez que, quer no Despacho Saneador, quer, depois em sede de Audiência Prévia, o Tribunal a quo não se pronunciou acerca da excepção de ilegitimidade deduzida, a ora Recorrente apresentou o competente recurso daquele Despacho.
3. Sobre o Recurso apresentado em 25-03-2022, e complementado pelo Requerimento de 02-05-2022, recaiu o Acórdão datado de 15-12-2022, através do qual entendeu este Colendo Tribunal, revogar o despacho datado de 04-03-2022 e os subsequentes atinentes ao não conhecimento da ilegitimidade ativa da Exequente e ordenando a sua substituição por outro que conhecesse da exceção da sua legitimidade ativa para a execução.
4. Assim, em 31-01-2023, foi proferido novo Despacho Saneador, ora Recorrido, através do qual, pese embora tenha o Tribunal a quo julgado procedente a excepção de ilegitimidade activa da cabeça-de casal, convidou a Exequente para “requerer nos autos principais a intervenção principal provocada dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…)”.
5. Entende, porém, a Recorrente que tal convite e consequente dedução de intervenção provocada não podem ter lugar nos presentes autos, não só porque, tratando-se os presentes autos, de uma execução, entende a Recorrente que não há lugar a dedução de incidente de intervenção provocada, como ainda uma questão de impossibilidade material e, por fim, pela falta de interesse em agir do lado activo.
6. Pese embora, o Tribunal a quo tenha julgado procedente a ilegitimidade activa da cabeça de casal (Exequente, ora Recorrida), a verdade é que, salvo melhor entendimento, não extraiu daí as devidas consequências legais, e que, necessariamente impunham que a Executada, ora Recorrente, fosse, de imediato, absolvida da instância e, consequentemente, fosse extinta a execução.
7. Com efeito, o Tribunal a quo, amparando-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Fevereiro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 1530/12.7TBPBL.C1, optou por convidar a Exequente a sanar a excepção de ilegitimidade através do incidente de intervenção de terceiros.
8. É certo que, naquele aresto, se decidiu revogar o Despacho através do qual a parte havia sido absolvida, e admitiu-se liminarmente o incidente de intervenção principal, porém, naquele caso estava em causa uma Acção Declarativa e não uma Acção Executiva, como nos presentes autos.
9. Como é consabido, é amplamente discutida na Jurisprudência a possibilidade de aplicação do Incidente de Intervenção Principal Provocada nas Acções Executivas, sendo que o entendimento maioritário se prende com a não admissão daquele em processo executivo.
10. Assim, no presente caso, e contrariamente àquilo que ficou consignado no Despacho recorrido, o único desfecho possível seria a absolvição da Executada, ora Recorrente, e consequente extinção da instância executiva – neste sentido, veja-se o que nos ensina o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-10-1998, proferido no âmbito do processo n.º 98642, disponível em www.dgsi.pt, devidamente transcrito para o corpo do Recurso.
11. Por outro lado, refira-se que a dedução, por parte da Exequente, do incidente de intervenção principal provocada dos herdeiros estará sempre votada ao insucesso, uma vez que o Representante da Executada, ora Recorrente, é também herdeiro da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de … (seu pai).
12. Pelo que, existindo no presente caso um necessário litisconsórcio ativo entre todos os herdeiros e abrangendo nessa qualidade de herdeiros, o Gerente da Executada, (…), nunca os restantes herdeiros poderiam fazer valer contra aquele (seu co-herdeiro) os direitos correspondentes ao património daquela herança, designadamente proceder à cobrança da sua dívida ativa contra este herdeiro, pois que sempre ocorreria preterição de litisconsórcio necessário e, consequentemente, ilegitimidade ativa dos restantes herdeiros desacompanhados do gerente da Executada (seu co-herdeiro).
13. Ademais, a coincidência na mesma pessoa da posição de Exequente e Executada (ainda que se tratando de Representante da mesma) na mesma acção, mesmo em situações de legitimidade plural como é a mesma, corresponde a uma impossibilidade lógica, ofendendo o princípio da dualidade das partes.
14. Com efeito, a intervenção do Gerente da Executada para se associar aos restantes herdeiros do lado ativo, iria gerar uma impossibilidade lógica decorrente da coincidência da sua posição enquanto Exequente, por um lado, com a sua posição enquanto Executada (novamente, e ainda que, como representante daquela), por outro lado, tudo na mesma ação executiva, originando uma impossibilidade de concretização e de efectivação processual – neste sentido, e em termos de lugar paralelo, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, e ainda o Acórdão, proferido pelo mesmo Tribunal, datado de 09-03-2010, proferido no âmbito do processo n.º 121/08.1TBANS.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
15. Daí que, tal chamamento não poderá vir a ter acolhimento, dadas as suas consequências e, por conseguinte, por corresponder a uma impossibilidade de efetiva tutela judiciária, pelo que sempre deverá o Despacho Recorrido ser revogado e substituído por outro que decrete a absolvição da instância executiva da Executada.
16. Por outro lado, ficou já amplamente demonstrada nos presentes autos – cfr. Declarações juntas como Documento 3 aos Embargos apresentados pela Recorrente – a oposição adjectiva e material de vários herdeiros na proposição da presente acção executiva que a Exequente, à revelia de todos aqueles, instaurou.
17. Com efeito, é entendimento de grande parte dos herdeiros que nada é devido a título de pagamento de rendas na medida em que as mesmas foram integralmente liquidadas ao longo dos anos pela Executada, ora Recorrente.
18. Ora, o dissenso, neste caso consiste no efeito jurídico-processual decorrente da posição assumida pelos herdeiros intervenientes de que não pretendem e não concordam com a cobrança da dívida alegada pela Exequente.
19. O certo é que, ainda que se demandem todos os herdeiros, considerando que, grande parte deles se opõem à cobrança da alegada dívida, continuar-se-á a verificar a ilegitimidade activa, em face em face da oposição dos co-herdeiros em prosseguir na ação.
20. A essência do caráter necessário (a imposição legal) do litisconsórcio refere-se, enquanto desvalor processual, à ausência do processo como parte de sujeito cuja intervenção na relação controvertida é exigida pela lei ou pelo negócio como sucede no presente caso.
21. Em face do que, perante a construção da lide evidenciada no Requerimento Executivo, a legitimação da Exequente pressupõe um interesse direto da Herança, em demandar, que não se confunde com o seu próprio interesse, na qualidade de herdeira.
22.Este interesse da Herança é de todo ausente no presente caso, dado que grande parte dos co-herdeiros, “Exequentes” necessários, não pretendem cobrar qualquer dívida à Executada, na medida que entendem que os valores que são peticionados na execução não são devidos.
23. Assim, havendo dissonância entre os herdeiros enquanto demandantes na ação executiva quanto ao interesse na cobrança de uma alegada dívida, falta um dos pressupostos para demandar.
24. O que serve por dizer que, a falta de acordo de parte dos co-herdeiros na proposição da acção equivale ao desinteresse na cobrança da alegada dívida, o que conduz, necessariamente à falta de interesse em agir (na perspetiva da parte activa/herança representada pelos herdeiros) – neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10-03-2022, proferido no âmbito do processo n.º 1052/19.5T8PVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt.
25. Ora, a falta de interesse em agir, por configurar pressuposto processual, tem, necessariamente, como consequência a absolvição da instância executiva.
26. Pelo que, a ação nunca poderia prosseguir.
27. Nestes termos, requer-se a V. Exas. se dignem revogar o Despacho ora Recorrido, na parte em que convida a Exequente a requerer nos autos principais a intervenção provocada dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), substituindo-o por outro que determine a absolvição da Executada, ora Recorrente, da instância executiva – tudo cfr. artigos 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a V. Exas. se dignem revogar o despacho datado de 31-01-2023, na parte em que convida a Exequente a requerer nos autos principais a intervenção provocada dos herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…), substituindo-o por outro que determine a absolvição da Embargante, ora Recorrente, da instância executiva, conforme artigos 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil».
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A parte contrária contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso o thema decidendum está circunscrito à apreciação da possibilidade de determinar o prosseguimento da causa com a intervenção de terceiros.
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III – Dos factos com interesse para a justa resolução do recurso:
Os factos com interesse para a justa resolução do recurso constam do relatório inicial.
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IV – Fundamentação:
A matéria relacionada com a preterição do litisconsórcio não foi impugnada e assim a mesma mostra-se transitada em julgado.
A recorrente defende o entendimento que o incidente de intervenção principal provocada dos herdeiros estará sempre votado «ao insucesso, uma vez que o Representante da Executada, ora Recorrente, é também herdeiro da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de (…)».
Relativamente a este argumento recursivo o mesmo não tem qualquer viabilidade para alterar o previamente decidido por duas ordens de razão. Não estamos no domínio do mérito, mas antes no âmbito dos pressupostos processuais, funcionando aqui esta motivação como defesa antecipada quanto à eventual procedência do pedido. E, adicionalmente, existe uma clara distinção entre os interesses pessoais de sócio e a possibilidade de condenação de uma pessoa colectiva, não existe qualquer fenómeno de desconsideração do ente social que viabilize semelhante entendimento.
Não há assim coincidência na mesma pessoa da posição de Autor (o chamado herdeiro) e de Ré (pessoa colectiva demandada), inexistindo, por isso, qualquer ofensa ao princípio da dualidade das partes[1]. E, neste enquadramento, a questão deve ser assim recentrada no âmbito dos pressupostos processuais e na possibilidade de sanação do vício da ilegitimidade activa para os termos da causa.
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Apesar de se tratar de uma questão não abrangida pelo conteúdo decisório, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso, será feita a avaliação do pressuposto do interesse processual.
O interesse em agir pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela[2].
Ou, como afirma Manuel de Andrade, deve o direito do demandante de estar carecido de tutela judicial, deve esse interesse utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo – fluir do alegado[3].
Para Artur Anselmo de Castro o interesse em agir surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação[4].
Antunes Varela sustenta que o interesse em agir consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção[5] e exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção[6], ficando afastada a satisfação de um mero capricho ou de um puro interesse subjectivo[7].
Esta ideia é igualmente reforçada no ensino de Remédio Marques que pugna que o pressuposto processual se reporta a uma situação objectiva de carência de tutela judiciária por parte do autor[8]. Esta posição também é evidenciada no comentário de Lebre de Freitas[9].
Como decorre do acima exposto, parte da doutrina integra na figura do interesse em agir a questão da idoneidade do meio processual. Ou seja, o que está em jogo é a utilidade do pedido formulado em juízo e a pretensão tem de ser aferida relativamente a um objecto concreto.
No caso dos autos, ante o alegado no requerimento executivo e o regime acima exposto, torna-se evidente que ocorre uma situação de carência objectiva, justificada ou razoável de necessidade de propor a acção e a parte contrária tem claro interesse em pretender que o efeito jurídico pretendido não obtenha provimento.
Deste modo, não existe motivo para declarar que estamos perante um cenário de falta de interesse em agir, sendo que, mais uma vez, não se verifica qualquer possibilidade de amparo na jurisprudência referida no ponto 24 das conclusões.
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A Meritíssima Juíza de Direito aplicou ao caso a jurisprudência que entende que, ao abrigo do princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, em caso de absolvição por preterição de litisconsórcio necessário, a situação pode ser sanada pela intervenção dos demais herdeiros[10].
A modificação subjectiva da instância pode ocorrer nos casos de chamamento do terceiro que falta para assegurar a legitimidade de alguma das partes[11] e, bem assim, nas hipóteses de substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio e dos incidentes da intervenção de terceiros[12].
O incidente de intervenção de terceiros, como excepção ao princípio da estabilidade da instância, é um instrumento processual através do qual se visa chamar um terceiro interessado com o objecto da acção, e consequentemente alargar o âmbito da eficácia subjectiva, assumindo as formas de espontânea ou provocada, e segundo a natureza da conexão existe um interesse litisconsórcio entre as partes associadas ou um interesse coliga tório[13].
O escopo finalístico deste incidente de intervenção principal, nomeadamente em casos de litisconsórcio, é o de associar novas partes às primitivas[14] e estamos no quadro de uma intervenção principal.
Na intervenção principal, como decorre da letra do artigo 312.º[15] do Código de Processo Civil, o terceiro é chamado a ocupar na lide a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio, podendo apresentar articulados próprios até ao termo da fase dos articulados[16]. O valor da sentença quanto ao chamado é regulado no artigo 320.º[17] do Código de Processo Civil.
De acordo com o n.º 1 do artigo 551.º[18] do Código de Processo Civil, a lei determina a aplicação subsidiária ao processo de execução com as necessárias adaptações, das disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva.
O título executivo cumpre, no processo executivo, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.
Por norma, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor, como ressalta da letra do artigo 53.º[19] do Código de Processo Civil.
No entanto, a própria lei admite desvios à regra geral da determinação da legitimidade, permite a possibilidade da exequibilidade da sentença contra terceiros, recepciona também as hipóteses de coligação nos termos expressos, como resulta dos artigos 54.º[20] [21] a 56.º[22] do Código de Processo Civil, e assume também as situações de alteração subjectiva por via de habilitação, entre outros casos particulares.
A problemática da admissibilidade dos incidentes de terceiros na acção executiva tem sido objecto de indagação jurisprudencial[23] e doutrinária [24] [25] [26] não restando dúvidas que nos casos de litisconsórcio voluntário pode ser admitida a dedução pelo incidente de intervenção principal provocada, em determinado condicionalismo.
Lebre de Freitas assinala a possibilidade condicionada de recurso a este mecanismo processual, ao afirmar que «a sua admissibilidade só é defensável quanto a pessoas com legitimidade para a acção executiva, pois de outro modo o incidente de intervenção iria servir à formação dum título executivo a favor ou contra terceiro, o que não se compadece nem com o fim nem com os limites da acção executiva»[27] [28].
A admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro no âmbito da acção executiva e a respectiva oposição tem que ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessas circunstâncias, estão ou não verificados os respectivos pressupostos legais e se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante e ainda se a intervenção implica ou não com a estrutura e a finalidade da acção executiva[29] [30] [31] [32].
Ao estatuir que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos eles, o n.º 1 do artigo 2091.º[33] do Código Civil opta por considerar a herança como uma realidade jurídica de comunhão de pluralidade de interesses indivisíveis.
O chamado litisconsórcio necessário caracteriza-se pela pluralidade de partes e pela natureza da relação jurídica material invocada como fundamento da acção, da qual resulta ser necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão declare o direito de modo definitivo e se produza o seu efeito útil normal.
Efectivamente, a unidade da decisão jurisdicional impõe a intervenção de todos os co-interessados na acção, tanto no lado activo, como na dimensão passiva, pois, apenas dessa forma a decisão judicial pode obter o seu efeito útil e definitivo.
Na verdade, como bem acentua um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que se pronuncia no mesmo quadro identitário, a indispensabilidade de ser respeitado o litisconsórcio (necessário) activo entre todos os herdeiros no exercício de um direito da herança levaria, no extremo, a que os herdeiros se encontrassem impedidos de fazer valer os direitos correspondentes ao património hereditário sem a anuência de todos, ainda que tais direitos fossem violados por um qualquer co-herdeiro[34].
É indiscutível que a falta de intervenção de algum desses herdeiros constitui fundamento de oposição à execução por embargos e determina a extinção da instância na acção executiva, nos casos em que a mesma não seja sanada.
O processo é uma organização normativa de actos (existência), com o sentido e alcance global da constituição do caminho tendente à solução de diferendos e à pacificação social e individual (essência)[35]. E, por isso, os fundamentos para a declaração da falta manifesta de certos pressupostos processuais ou nulidade de todo o processo implicam que se esteja perante um quadro de absoluta insupribilidade.
No actual enquadramento sistemático do código revisto, a insupribilidade «é hoje residual, respeitando tão só àquelas excepções que, pela sua natureza ou por via do seu regime, não consentem suprimento, oficioso ou mediante convite às partes»[36], ao abrigo do dever de gestão estatuído no n.º 2 do artigo 6.º[37] do Código de Processo Civil.
E, assim fora desse quadro ali excepcionado (incompetência do Tribunal e erro na forma do processo), por via dos poderes vinculados de determinação oficiosa do suprimento de excepções dilatórias, fica aberto o caminho para a regularização da objectiva da lide, sem necessidade de proposição de uma nova acção com o mesmo objecto e identidade ampliada da parte activa, valorizando-se assim os princípios da economia processual, da adequação formal, do máximo aproveitamento das pretensões apresentadas em juízo, aliados ao poder de direcção do processo, em detrimento de um veredicto formado em questões estritamente formais.
Em suma, em sede de aplicação da disciplina vertida no n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil, ao estatuir que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos eles, mesmo no âmbito do processo executivo, em caso de absolvição por preterição de litisconsórcio necessário, a situação pode ser sanada pela intervenção dos demais herdeiros, pois o incidente de intervenção não produz qualquer alteração à formação ou ao conteúdo do título executivo, o qual pode continuar a ser discutido na sua materialidade, limitando-se a regularizar processualmente os interesses indivisíveis subjacentes ao procedimento.
Deste modo, desaparecem assim, por actividade ulterior correctiva, os fundamentos que determinariam a absolvição da instância, não sendo, como tal, aplicável a disciplina pressuposta pela sociedade embargante[38].
A finalizar e em jeito de síntese, utilizando a argumentação presente no referenciado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, subscrito pela actual Juíza Conselheira Graça Amaral, encontra-se sanada a ilegitimidade inicial do Autor e a continuação da lide não só não consubstancia qualquer violação do princípio do dispositivo, mas garante a efectivação do mesmo sob a perspectiva da liberdade de disposição do objecto do litígio por parte de cada um dos titulares de interesses protegidos, salvaguardando a unidade substancial da relação jurídica subjacente.
Deste modo, também nesta parte falece a argumentação recursiva da sociedade embargante, mantendo-se assim na sua plenitude a decisão recorrida.
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V – Sumário: (…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente nos termos e ao abrigo do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 20/04/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Isabel Maria Peixoto Imaginário

Maria Domingas Simões



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[1] Falta assim coincidência com a situação factualizada no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/03/2010, cuja leitura pode ser feita no site www.dgsi.pt.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 97.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 79.
[4] Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 253.
[5] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra editora, Coimbra, 1985, pág. 179.
[6] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra editora, Coimbra, 1985, pág. 181.
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra editora, Coimbra, 1985, pág. 181.
[8] J. P. Remédio Marques, Ação Declarativa à luz do Código Revisto (pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pág. 249.
[9] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 583 afirmam que «da função do processo civil, destinado a tutelar interesses protegidos pelo direito material, mediante a composição de conflitos de interesses dela carecidos, retira-se que os tribunais não devem ser sobrecarregados com ações inúteis, pelo que é exigível um interesse sério para o recurso a juízo, sendo nesta medida o interesse processual um pressuposto e constituindo a sua falta uma exceção dilatória inominada».
[10] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/02/2015, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[11] Artigo 261.º (Modificação subjetiva pela intervenção de novas partes):
1 - Até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir nos termos dos artigos 316.º e seguintes.
2 - Quando a decisão prevista no número anterior tiver posto termo ao processo, o chamamento pode ter lugar nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado; admitido o chamamento, a instância extinta considera-se renovada, recaindo sobre o autor ou reconvinte o encargo do pagamento das custas em que tiver sido condenado.
[12] Artigo 262.º (Outras modificações subjetivas):
A instância pode modificar-se, quanto às pessoas:
a) Em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por ato entre vivos, na relação substantiva em litígio;
b) Em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/03/2018, publicitado em www.dgsi.pt.
[14] Salvador da Costa, Os Incidente Da Instância, págs. 90 e 113.
[15] Artigo 312.º (Posição do interveniente):
O interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa.
[16] Artigo 314.º (Intervenção mediante articulado próprio):
A intervenção mediante articulado só é admissível até ao termo da fase dos articulados, formulando o interveniente a sua própria petição, se a intervenção for ativa, ou contestando a pretensão do autor, se a intervenção for passiva.
[17] Artigo 320.º (Valor da sentença quanto ao chamado):
A sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado.
[18] Artigo 551.º (Disposições reguladoras):
1 - São subsidiariamente aplicáveis ao processo de execução, com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a natureza da ação executiva.
2 - À execução para entrega de coisa certa e para prestação de facto são aplicáveis, na parte em que o puderem ser, as disposições relativas à execução para pagamento de quantia certa.
3 - À execução sumária aplicam-se subsidiariamente as disposições do processo ordinário.
4 - Às execuções especiais aplicam-se subsidiariamente as disposições do processo ordinário.
5 - O processo de execução corre em tribunal quando seja requerida ou decorra da lei a prática de ato da competência da secretaria ou do juiz e até à prática do mesmo.
[19] Artigo 53.º (Legitimidade do exequente e do executado):
1 - A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
2 - Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título.
[20] Artigo 54.º (Desvios à regra geral da determinação da legitimidade):
1 - Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão.
2 - A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.
3 - Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo.
4 - Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, pode este ser desde logo demandado juntamente com o devedor.
[21] Artigo 55.º (Exequibilidade da sentença contra terceiros):
A execução fundada em sentença condenatória pode ser promovida não só contra o devedor, mas ainda contra as pessoas em relação às quais a sentença tenha força de caso julgado.
[22] Artigo 56.º (Coligação):
1 - Quando não se verifiquem as circunstâncias impeditivas previstas no n.º 1 do artigo 709.º, é permitido:
a) A vários credores coligados demandar o mesmo devedor ou vários devedores litisconsortes;
b) A um ou vários credores litisconsortes, ou a vários credores coligados, demandar vários devedores coligados desde que obrigados no mesmo título;
c) A um ou vários credores litisconsortes, ou a vários credores coligados, demandar vários devedores coligados, titulares de quinhões no mesmo património autónomo ou de direitos relativos ao mesmo bem indiviso sobre os quais se faça incidir a penhora.
2 - Não obsta à cumulação a circunstância de ser ilíquida alguma das quantias, desde que a liquidação dependa unicamente de operações aritméticas.
3 - É aplicável à coligação o disposto nos nºs 2 a 5 do artigo 709.º para a cumulação de execuções.
[23] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/01/2014 (proc. n.º 1626/11) e 28/01/2015 (proc. n.º 482/12) e do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/06/2013 (proc. n.º 320/10) e 17/06/2014 (proc. n.º 741/09), cuja leitura pode ser feita em www.dgsi.pt
[24] Rodrigues Bastos, Notas cit., vol. IV, pág. 8.
[25] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, págs.153 e seguintes.
[26] Lebre de Freitas, A Ação Executiva À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra, 2014, págs. 160 e seguintes.
[27] A Acção Executiva – depois da reforma, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2004.
[28] Argumentação depois renovada na obra A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª edição, Gestlegal, Coimbra, 2017, págs. 147-150.
[29] A título meramente exemplificativo, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17/11/2016, disponível em www.dgsi.pt, por nós subscrito, perfilhou-se o entendimento que, por razões relacionadas com as regras da boa fé, era possível chamar à causa a seguradora responsável pelo pagamento do prémio de seguro num caso em que a entidade bancária tinha omitido essa intervenção inicial.
[30] Esta posição teve seguimento no acórdão deste colectivo do Tribunal da Relação de Évora de 14/02/2019, proferido no processo registado sob o n.º 1819/21.1T8ENT-C.E1, não publicado.
[31] Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2015, consultável em www.dgsi.pt.
[32] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/ 06/2021, incorporado na base de dados da DGSI.
[33] Artigo 2091.º (Exercício de outros direitos)
1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.
2. O disposto no número anterior não prejudica os direitos que tenham sido atribuídos pelo testador ao testamenteiro nos termos dos artigos 2327.º e 2328.º, sendo o testamenteiro cabeça-de-casal.
[34] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/04/2015, consultável em www.dgsi.pt.
[35] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/1994 [acórdão do Pleno para uniformização de jurisprudência], in www.dgsi.pt
[36] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 623.
[37] Artigo 6.º (Dever de gestão processual):
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
[38] Aliás, não existe um quadro de identidade com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/10/1998, consultável em www.dgsi.pt, o qual se reporta a dívidas da herança, à preterição de litisconsórcio passivo e não aborda a questão da sanação dos pressupostos processuais.