IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
CONCLUSÕES DE RECURSO
Sumário

Quando existe uma falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e uma falta de posição expressa sobre o resultado pretendido, as conclusões são deficientes impondo-se a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

Instituto Politécnico de (…), veio, por apenso aos autos de execução, em que é exequente (…), deduzir embargos de executado, nos termos do disposto no artigo 728.º do C.P.C, onde coloca em causa a penhora efectuada nos termos do disposto no artigo 773.º do C.P.C. (que consiste na notificação ao alegado credor, com as formalidades de uma citação pessoal, da penhora do crédito. Dela decorrendo que, efectuada a notificação para tal efeito, cumpre-lhe declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução, sendo que, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, resulta que se o alegado credor nada disser, entende-se que ele reconhece a existência da obrigação nos termos da indicação do crédito à penhora e nos termos do disposto no artigo 777.º, n.º 3, do C.P.C., não sendo cumprida a obrigação, pode o exequente ou o adquirente exigir, nos próprios autos da execução, a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efetuada e a falta de declaração ou o título de aquisição do crédito), concluindo que inexiste titulo executivo e /ou inexiste citação, pelo que deve a execução no que diz respeito ao ora embargante, ser declarada extinta.
Sem prejuízo, alega ainda que, não existe qualquer crédito da executada original relativamente à ora embargante, uma vez que a Associação (…) do Instituto Politécnico de (…) não detém ou deteve crédito sobre o embargante, porquanto, nunca esteve em circunstâncias de poder exigir do Instituto a realização de determinada prestação pecuniária.
Apresentou o embargado contestação, concluindo pela validade das notificações e pela validade do titulo executivo, concluindo pela improcedência das excepções pertinentes invocadas pelo embargante.
Mais se pronuncia no sentido da existência e exigibilidade do crédito penhorado.
Procedeu-se a realização da audiência prévia, no âmbito da qual, foi determinado o objecto do litígio, estabelecido o tema de prova e julgadas improcedentes as excepções de falta de citação e inexistência ou inexigibilidade do titulo executivo.
Foi então proferida decisão que julgou procedentes os presentes embargos de executado, declarando a inexistência de qualquer crédito da Associação (…) de (…) relativamente ao Instituto Politécnico de (…), à data de 03/06/2019, determinando-se, em consequência a extinção da execução relativamente ao embargante.
Inconformado com a sentença, o exequente interpôs recurso contra a mesma, com as seguintes conclusões:
«A - A falta de prova idónea por parte do Embargante é escandalosamente óbvia.
B – Cabia ao Embargante provar o que não provou, conforme detalhado nas motivações.
C – As testemunhas foram totalmente parciais atendendo às funções exercidas, não podendo ser valorizadas, por si só, sem outras provas.
D – A prova documental, orçamento da Associação de estudantes, apresentada pelo Exequente refuta a afirmação do Administrador, pelo que deve ser mais valorizada do que a testemunhal.
E – Acresce que o Administrador deveria ter sido ouvido como parte, apenas se valorizando por confissão e as restantes afirmações teriam que ser corroboradas por outros meios de prova, mas não foram, ao não o ser, a prova não é válida, devendo ser considerada a sentença nula.
F – O depoimento de parte é por natureza um depoimento interessado.
G - Ademais, resulta da jurisprudência no que respeita às declarações de parte têm as mesmas de ser “…credenciadas por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que ainda indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta” [vide neste sentido Acórdão do TRG de 18/01/2018, in www.dgsi.pt.]
H - Ora, “…A credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspectiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, bem podendo suceder que as respectivas declarações, em concreto, possam merecer muita, pouca ou, mesmo, nenhuma credibilidade.
I – Considerar procedentes os embargos com tão pouca prova e com pouca isenção é na perspetiva do Exequente uma grande injustiça, que favorece os incumpridores em vez de atender às legitimas expectativas do credor.
J – O Embargante não apresentou qualquer prova idónea dos factos que alegou quer testemunhal quer documental, pelo que não se pode considerar afastada a presunção legal do título executivo.
K – Consideramos que foi incorretamente aceite o estatuto de testemunha do administrador da Executada, 679.º do CPC, o qual deveria ter sido ouvido como parte pelo que a prova produzida não pode ser válida, na fundamentação da decisão.
L – Consideramos assim que não foi corretamente aplicado o artigo 679.º do CPC, e 733.º, n.º 1.
M. Conforme exposto nas motivações e conclusões deste recurso não foi produzida prova suficiente que afaste a presunção do título executivo.
Termos em que e nos melhores de direito que Vossas Excelências suprirão deve a sentença ser revogada e alterada a decisão no sentido da improcedência dos Embargos, por carecer de falta de prova e enquadramento legal, mantendo-se o Embargante como Executado no processo.
Assim se fazendo JUSTIÇA!!».
Não há contra-alegações.
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Foram considerados provados na 1.ª instância os seguintes factos:
1. Por notificação efectuada em 03-06-2019 a ora embargante foi notificada nos termos do disposto no artigo 733.º, n.º 1, do C.P.C., nos autos de execução a que estes autos constituem embargos de executado com o seguinte teor: “Fica(m) pela presente formalmente notificado(s) que, nos termos do 773.º do Código do Processo Civil (CPC), se considera penhorado o crédito que o executado Associação (…) do Instituto Politécnico de (…) detém em consequência subvenções/patrocínios, ficando este ordem do signatário, até ao montante de € 59.706,00”.
2. À data referida em 1. a executada Associação (…) não possuía nenhum crédito sobre o Instituto Politécnico de (…), vencido e não pagou, ou vincendo.
3. Em 29-3-2019, o embargante tinha atribuído subsídio à Associação de (…) do Instituto Politécnico de (…), por deliberação do seu Conselho de Gestão em reunião dessa data, no montante de € 10.000,00.
4. O qual foi pago à referida Associação em Abril de 2019.
5. O IPP deixou, após 2019, de fazer pagamentos directamente à Associação Académica devido à existência de acções executivas quanto à mesma, e devido à inexistência de confiança relativamente aos procedimentos desta.
E não provados:
1. À data de 29/03/2020 estavam já determinados o pagamento de € 10.000,00 nos anos de 2020, 2021 e 2022.
2- Tal pagamento era/foi assumido de forma regular e sucessiva.


2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que as questões a decidir são as seguintes:
1ª Questão – Saber se foi cumprido o ónus de impugnação da matéria de facto;
2ª Questão - Saber se há título executivo.


3 - Apreciando o recurso.

1ª Questão – Saber se foi cumprido o ónus de impugnação da matéria de facto.

O recorrente põe em causa o sentido da valoração da prova, alegando que da prova produzida não se pode considerar provada a inexistência do crédito.
Porém, não cumpre o ónus de impugnação da matéria de facto.
Vejamos porquê:
Dispõe o artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
“Quando seja impugnada a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”;
Mais dispondo o n.º 2 do mesmo normativo, sob a alínea a):
“Quando os meios probatórios invocados com fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder á transcrição dos excertos que considere relevantes”.
O recorrente é, assim, obrigado a individualizar os factos que estão mal julgados, a especificar os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, a indicar o sentido da decisão a proferir e, inclusivamente, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, a precisar as passagens do depoimento que tal hão-de permitir.
A jurisprudência do STJ tem entendido que, “é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…); e [em referência ao artigo 640.º, 2] um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida” – neste sentido, Ac. de 20/10/2015, p. 233/09.4TBVNG.G1.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt. Mais recentes: Acórdãos de 21/3/2019, processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, Rel. Rosa Tching, e de 17/12/2019, processo n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt.
Cremos que, as referidas exigências legais devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo sem qualquer mais valia funcional- neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 640.º, pág. 169 e Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 640.º, pág. 142.
Cremos também que esta impugnação não pode deixar de ser relacionada com o ónus de formulação de conclusões, cominado, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso.
Sem embargo de não ser líquida a amplitude e concretização do ónus do recorrente regulado no artigo 640.º do CPC, como comprova a jurisprudência dos Tribunais superiores, a supra-enunciada cremos que a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se quando (i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (artigos 635.º, 2 e 4, 639.º, 1, 641.º, 2, b), CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorrectamente julgados (artigo 640.º, 1, a)), sendo de admitir que as restantes exigências das alíneas b) e c) do artigo 640.º, 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações – vide Abrantes Geraldes, Recursos… cit., sub art. 640.º, págs. 165-166, 168 e ss.
Ora, como se colhe da transcrição supra efectuada, as conclusões do recorrente são completamente omissas acerca dos factos que no seu entender foram incorrectamente julgados e qual a decisão que sobre os mesmos deveria, afinal, ter sido dada, para além de não fazer alusão aos meios probatórios a atender para a alteração de cada facto em causa, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, fazendo apenas pontualmente uma alusão genérica a certos meios de prova sem conexão com os factos concretos.
Porque é, como já dissemos, através das conclusões que se delimita o objecto do recurso , sufragamos o entendimento de que devem, pelo menos, nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação ainda que se admita que os demais requisitos, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, possam constar apenas no corpo das alegações, ónus que aqui também não foi cumprido.
Verifica-se assim um incumprimento do ónus estabelecido desde logo pelo n.º 1, alínea a) do preceito (e de todos os demais) o qual não tem tal natureza secundária, tanto mais que é pela sua definição que se actua efectivamente o contraditório e que se delimita a pretensão que o Recorrente pretende ver apreciada pelo tribunal de recurso, ou seja, é através da sua inserção que se define o objecto do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
Note-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem uma posição segura quanto ao local onde estes requisitos devem ser cumpridos (nas conclusões das alegações) e quanto à consequência do seu incumprimento (a imediata rejeição do recurso, sem qualquer convite ao aperfeiçoamento). A este propósito, a título de exemplo vejam-se os seguintes Acórdãos – STJ de 30-03-2022, Processo: 330/14.4TTCLD.C1.S1, Relator: Pedro Branquinho Dias e - STJ de 09-06-2021, Processo: 10300/18.8T8SNT.L1.S1, Relator: Ricardo Costa.
Como se pode ler, por exemplo, no Ac. STJ de 27.9.2018 (in www.dgsi.pt):
“…quando se verifica uma falta de conclusões sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quando existe uma falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados e quando se verifica também uma falta de especificação dos concretos meios probatórios e uma falta de posição expressa sobre o resultado pretendido, uma análise crítica da prova, as conclusões são deficientes impondo-se a rejeição do recurso (quanto á pretendida impugnação da decisão sobre a matéria de facto).”
Ora, face a tal omissão nas conclusões, nada mais resta do que rejeitar o respectivo recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, o que se decide, ficando prejudicada a 2ª questão supra referida por dela estar dependente, improcedendo o recurso na sua totalidade.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e manter a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Évora, 20.04.2023
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita