ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
Sumário

I. Mantendo o legislador a parte variável da remuneração do Administrador Judicial como incentivo à diligência e prémio pelos resultados obtidos com a gestão e venda do património do insolvente, o n.º 7 do art.º 23.º do EAJ deve ser interpretado no sentido de que um dos factores a considerar no cálculo é a percentagem de créditos satisfeitos para efeitos de apuramento do montante sobre o qual irá depois incidir a percentagem de 5% relativa à majoração.
II. O cálculo da majoração implica assim duas operações sucessivas: a primeira, tendo em vista apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, obtém-se dividindo o valor da liquidação disponível para distribuição, calculado nos termos prescritos no n.º 6, pelo montante dos créditos reconhecidos; de seguida, a percentagem obtida, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é aplicada ao mesmo valor da liquidação, sendo sobre o resultado desta segunda operação que vai incidir a percentagem de 5%.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 110/15.0T8STR-J.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém - Juiz 1


I. Relatório
No apenso de liquidação do processo em que foi declarada a insolvência de (...), por requerimento de 21 de Junho de 2022 (Ref.º) 8806256) veio a Sr.ª AJ nomeada apresentar proposta de cálculo de remuneração varável, tendo apurado o valor de € 12.775,36, com IVA incluído.

Em 3/11/2022 [Ref.ª 91129556] foi proferido despacho, ora recorrido, a fixar a remuneração variável do Sr. AI no montante de € 6.483,09, sobre o qual acresce Iva, no total de € 7.974,20.

Inconformada, apelou a Sr.ª AI e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª Não concorda a recorrente com a decisão recorrida datada de 04.01.2023, por derrogadora das exigências legais e inadequada aplicação das normas ali citadas;
2.ª Dispõe o art.º 23.º, n.ºs 4, alínea b), 6 e, especialmente, 7 da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro por último alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro (Estatuto do Administrador Judicial) / EAJ, ou seja, na sua versão consolidada à data da atribuição da remuneração variável à aqui recorrente no presente processo que “7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.“;
3.ª Ao passo em que a Administradora da Insolvência / recorrente entende que a norma em causa estabelece que a majoração de 5% incide sobre o montante dos créditos satisfeitos, o Tribunal envereda pelo entendimento de que tal majoração se aplica ao valor percentual resultante da prévia aplicação da percentagem da satisfação dos créditos reclamados;
4.ª Nesta exegese, o Tribunal aplica ao valor disponível para satisfação de créditos / € 100.385,29 o valor percentual de 20,22965% emergente da percentagem de créditos reclamados versus o montante dos créditos satisfeitos e aplica o valor percentual de 5% ditado pela majoração prevista no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ ao valor da primeira operação resultante;
5.ª Estas operações sucessivas constituem uma tergiversão do normativo em dissensão, já que, se tal fosse a intenção do legislador, a semântica do n.º 7 do art.º 23.º do EAJ teria de inserir a expressão “… em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos …” no local onde a norma prevê a aplicação da percentagem de 5% ao montante dos “… créditos satisfeitos, …”;
6.ª A redação do art.º 23.º, no seu n.º 7 menciona o “… grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos …” mas apenas enquanto baliza processual para a introdução do conceito de “… créditos satisfeitos, …”;
7.ª Dispõe o art.º 9.º do CCivil que “2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” e 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”;
8.ª A correspondência verbal da norma contida no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ não pode deixar de ser ponderada – cfr. n.º 2 do art.º 9.º do CCivil – e não pode igualmente deixar de ser considerado que o legislador aplicou a solução mais acertada, expondo adequadamente o seu pensamento – cfr. n.º 3 do art.º 9.º do CCivil;
9.ª Na conjugação dois parâmetros contidos no n.º 3 do art.º 9.º do CCivil é manifesto que o legislador que alterou, com a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o EAJ, transpôs com seriedade e honestidade intelectual a DIRETIVA (UE) 2019/1023 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 20 de junho de 2019, Diretiva que, nos seus pontos explanatórios (85) a (87), determina a criação de um corpo profissional e eficiente / Administradores Judiciais no ordenamento jurídico português que permita que a respetiva “… formação e esses conhecimentos especializados deverão permitir tomar de modo eficiente decisões com efeitos económicos e sociais potencialmente significativos ...”;
10.ª Esta exigência preambular encontra reflexo no art.º 27.º da mesma Diretiva transposta para o direito português, onde, no seu n.º 4 se determina que “Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.”;
11.ª Tal pretende significar – e tal se pretende ver expresso no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ por força da adequada transposição / expressão do legislador – que a redação da norma em contenda prevê uma digna e justa reparação remuneratória do Administrador Judicial / Administradora da Insolvência, ora recorrente, mormente, no sentido de que a majoração de 5% prevista no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ incide sobre o montante dos créditos satisfeitos e não sobre o montante emergente da percentualização dos créditos satisfeitos em função dos créditos reclamados;
12.ª No caso concreto da recorrente, a majoração percentual de 5% devida à Administradora da Insolvência incide sobre o valor de € 100.385,39 (cem mil trezentos e oitenta e cinco mil euros e trinta e nove cêntimos), no valor devido, a título de remuneração variável estabelecida no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ, de € 5.019,27 (cinco mil dezanove euros e vinte e sete cêntimos);
13.ª A decisão recorrida viola o disposto no art.º 23.º, n.ºs 4, alínea b), 6 e 7 da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro por último alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro (Estatuto do Administrador Judicial) / EAJ e, ainda, no art.º 9.º, n.ºs 2 e 3 do CCivil;
14.ª Pugnando-se por que a mesma seja objecto de revogação e substituída por outra que, da lavra dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, declare que a Administradora da Insolvência/recorrente tem direito à majoração percentual de 5% incidente sobre o valor de € 100 385,39 (cem mil trezentos e oitenta e cinco mil euros e trinta e nove cêntimos) / créditos satisfeitos, no valor devido, a título de remuneração variável estabelecida no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ, de € 5.019,27 (cinco mil dezanove euros e vinte e sete cêntimos).
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O D. Magistrado do MP apresentou doutas contra alegações, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se a melhor interpretação do n.º 7 do art.º 23.º do EAJ vincula a considerar, na fixação da componente variável da remuneração do Sr. AJ, a percentagem dos créditos satisfeitos, tal como se considerou na decisão recorrida.
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II. Fundamentação
De facto
Pese embora não tenham sido elencados na decisão recorrida os factos pertinentes, mostra-se adquirida nos autos com relevância para a decisão a proferir a seguinte factualidade, que se tem por assente:
1. Declarada a insolvência do devedor (…), foi nomeada administradora judicial a aqui apelante (…).
2. Nos termos das contas apresentadas pela Sr. AI, foi apurado como produto da liquidação a quantia de € 116.020,00 sendo o saldo da liquidação, após dedução das despesas e custas, € 109.584,86.
3. Foram admitidos e reconhecidos créditos no montante de € 496.228,96.
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De Direito
Do cálculo da remuneração variável devida ao AJ
Não se mostrando controvertido nos autos que os critérios de cálculo da remuneração variável do Sr. AJ aplicáveis ao caso são os constantes da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, discorda a recorrente da interpretação feita na decisão recorrida da norma do n.º 7 do art.º 23.º do EAJ, que, em seu dizer, contraria aquela que resultaria da aplicação dos critérios interpretativos plasmados no art.º 9.º do Código Civil.
Vejamos se é de reconhecer razão à apelante.
Não se questiona nos autos que, conforme expressa o n.º 1 do art.º 60.º do CIRE, o Sr. AI, nomeado que foi pelo juiz, tem direito à remuneração prevista no seu estatuto (para além do reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis, parcela que não se encontra em discussão).
Na decisão recorrida, depois de se ter apurado como resultado da liquidação o valor de € 109.584,8, não impugnado, foi aplicada a percentagem de 5% prevista na al. b) do n.º 4 do art.º 23.º do EAJ. Ao valor assim obtido foi adicionada a majoração de 5%, percentagem que se fez incidir sobre o resultado de uma prévia operação, que teve em conta a percentagem dos créditos satisfeitos atendendo ao universo daqueles que foram admitidos e reconhecidos. A recorrente impugna a fórmula de cálculo utilizada, argumentando que as descritas sucessivas operações “constituem uma tergiversão do normativo em dissensão, já que, se tal fosse a intenção do legislador, a semântica do n.º 7 do art.º 23.º do EAJ teria de inserir a expressão “… em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos …” no local onde a norma prevê a aplicação da percentagem de 5% ao montante dos “… créditos satisfeitos, …”, não respeitando ainda o espírito e finalidades da Directiva transposta.
Pois bem, de algum modo antecipando a decisão, cremos – sem negar as muitas dificuldades interpretativas colocadas pela lei nova – que a melhor interpretação é a perfilhada na sentença recorrida.
Dispõe-se no controverso e controvertido n.º 7 do art.º 23.º do Estatuto, na versão agora em vigor, que “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”.
Conforme é sabido, até à entrada em vigor da identificada Lei 9/2022, a remuneração dos senhores AJ vinha sendo calculada de acordo com a Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro, face à ausência de publicação daquela a que se aludia no EAJ, na versão aprovado pela Lei 22/2013 (o diploma previa igualmente a publicação de Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça e na alteração introduzida pelo DL 52/2019, de 17 de Abril, eliminou-se apenas a alusão a tabelas, subsistindo a referência a Portaria) – e apesar dela – no reconhecimento de que a fórmula de cálculo ali expressa se adequava ainda aos critérios previstos nesse novo estatuto.
A Lei 9/2022, diploma que veio “estabelecer medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019”, introduziu no próprio estatuto, quer o valor da remuneração fixa, quer a fórmula de cálculo da remuneração variável, esta assente na aplicação de percentagens fixas de 5%.
Antes de mais, e conforme tivemos já oportunidade de referir, parece pertinente observar que, ao invés do defendido pelo apelante, a Diretiva transposta (incidindo sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 sobre reestruturação e insolvência), assinalando em vários considerandos as funções do administrador e realçando sem dúvida a sua relevância no contexto dos processos ali contemplados, não contém quaisquer disposições -nem tal se afigurava necessário- relativas à remuneração que lhes é devida. Aliás, as funções do administrador no âmbito dos processos de liquidação não são visadas em termos que justificassem uma alteração relevante do respectivo estatuto, o que encontrou tradução no limitado número de alterações que o diploma que transpôs a Directiva introduziu na Lei 22/2013, limitadas ao cálculo da remuneração, tendo o legislador aproveitado o ensejo para colmatar lacuna que há anos se verificava. Tudo isto para afirmar que a Diretiva transposta não fornece, a nosso ver, qualquer argumento no sentido da interpretação defendida pelo recorrente.
Por outro lado, para lá de agora pretendida -mas mal conseguida- simplificação da fórmula de cálculo da remuneração variável agora introduzida, não se vê que tenha ocorrido alteração relevante nos diversos factores a considerar para efeitos da sua fixação, que continuam a ser essencialmente os mesmos a que se atendia na lei antes em vigor.
O art.º 20.º do anterior EAJ (aprovado pela Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho), previa que a remuneração variável a auferir pelo administrador fosse apurada “em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor é [era] o fixado na tabela constante da portaria prevista no número anterior” (vide n.º 2). E prevendo-se igualmente uma majoração, ela variava, consoante estabelecia o n.º 4 do preceito, “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1”. A portaria aqui referida era a Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro, a qual anunciava aprovar “o montante fixo de remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz, bem como as tabelas relativas ao montante variável de tal remuneração, em função dos resultados obtidos”(é nosso o destaque). E com essa orientação estabelecia no seu art.º 2.º e tabelas anexas as taxas de cálculo e factores de majoração, verificando-se que quanto maior era o valor da liquidação, menores as taxas aplicáveis – taxas regressivas, portanto –, ao passo que o factor de majoração aumentava em função da maior percentagem de satisfação dos créditos, assim conexionando de forma eficaz a remuneração do Sr. AJ aos resultados obtidos. Da análise das tabelas em causa mais resulta que a partir de um produto que atingisse os € 7.500.000,00, por força da aplicação de uma taxa base de apenas 0,1%, o legislador limitou – a nosso ver, bem – o aumento da remuneração base do administrador, sendo que o factor de majoração incidia sobre os valores assim obtidos, num sistema que garantia desde logo uma relação de proporcionalidade entre o resultado da liquidação e a remuneração do Sr. AI e um nexo efectivo entre esta e os resultados obtidos, medidos pela satisfação dos credores, afinal o fim último do processo de liquidação.
Mas se a lei actualmente em vigor, designadamente o n.º 7 do preceito que agora nos ocupa, tem, é uma evidência, uma redacção pouco clara, ainda assim não pode, conforme pretende a apelante, ignorar-se o segmento em que, na linha da solução até aqui vigente, apela ao critério do grau de satisfação dos credores, como não podia deixar de ser, porque é esse o objectivo último da liquidação.
Deste modo, e tendo em atenção que o n.º 7 do art.º 23.º relaciona a majoração com o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, elemento literal que apoia a interpretação feita na decisão recorrida, também o elemento histórico a favorece, por nada indicar que o legislador tenha querido descontinuar a solução antes vigente.
A este propósito, conforme justamente se acentua no acórdão do TRC de 25 de Outubro de 2022 (processo 318/12.0TBCNT-V.C1, igualmente disponível em www.dgsi.pt), no qual se faz cuidada análise dos antecedentes legislativos, na sua literalidade, o citado n.º 7 “(…) tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante dos créditos satisfeitos. Ao dizer que “o valor alcançado … é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitido” relaciona a majoração com o grau de satisfação dos créditos reclamados. Ao afirmar que o “valor alcançado é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos” associa a majoração com o montante dos créditos satisfeitos”, sendo que a interpretação proposta é aquela que, dando expressão a cada um dos segmentos que se analisam, confere sentido útil a toda a redacção do preceito (cf. neste preciso sentido, acórdão do TRC de 11/10/2022, no processo 3947/08.2 TJCBR-AY.C1, e deste mesmo TRE de 29/9/2022, processo 260/14.0TBTVR.E1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
A questão havia sido já abordada no acórdão do TRC de 28 de Setembro de 2022, ao que cremos inédito mas de que se faz extensa citação no aresto do mesmo TRC proferido no processo 3947/08.2 acima identificado, e que, pela sua clareza, se afigura pertinente citar. A propósito, nele se refere que “Mandam as regras de interpretação da lei – estabelecidas no art.º 9.º do CC – que, apesar de não poder ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, ali se determinando ainda que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sendo certo – conforme referimos – que uma interpretação estritamente literal não é viável, importa tentar apurar e reconstituir o pensamento legislativo.
Ora, dizendo-se ali expressamente que a remuneração em questão é calculada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, parece que a intenção do legislador terá sido a de considerar que a remuneração em questão tomasse em conta essa variável. Tal pretensão/intenção está, aliás, em perfeita sintonia com aquilo que já constava da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 112/IX – que veio a dar origem ao anterior Estatuto do Administrador da Insolvência (aprovado pela Lei n.º 32/2004) – e que também se colhe na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 107/XII – que veio a dar origem ao actual Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013) – de onde resulta que a remuneração em questão visa também incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível e premiá-los pelo resultado efectivamente obtido e que se presume resultar, pelo menos em parte, do seu empenho e do seu esforço. Nessa perspectiva, surge como natural que o grau de satisfação de créditos surja como variável relevante na fixação da indemnização.
Veja-se que, na sua redacção inicial, o actual Estatuto já previa (no seu n.º 5) a remuneração em causa a calcular “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” (o mesmo acontecia, aliás, com o anterior Estatuto que previa e regulava essa remuneração nos mesmos termos – cfr. respectivo art.º 20.º, n.º 4) e, à data, essa remuneração era fixada por aplicação de factores constantes de uma portaria (a Portaria n.º 51/2005, de 20/01) e que estavam estabelecidos com referência e em função da “percentagem de créditos admitida que foi satisfeita” (quanto maior fosse essa percentagem – ou seja, o grau de satisfação dos créditos admitidos – maior seria o factor aplicável com vista à fixação da remuneração).
Ora, apesar de – por força da alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 – o Estatuto ter passado a conter as regras de cálculo da remuneração (deixando, portanto, de o fazer com referência a qualquer portaria), a redacção da primeira parte do n.º 7 do art.º 23.º (anteriormente n.º 5) manteve-se inalterada, continuando a fazer referência ao facto de a remuneração ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Parece claro, portanto, que o legislador não teve o propósito de alterar o que anteriormente constava da lei – ou seja, que a remuneração em questão era calculada em função do grau de satisfação dos créditos ou percentagem de créditos admitidos que foi satisfeita – sucedendo apenas que a expressão escolhida para estabelecer o valor dessa remuneração não foi feliz, na medida em que parece apontar para uma remuneração que não leva em conta o grau de satisfação dos créditos.
Se o legislador tivesse pretendido alterar o regime até aí vigente (que, como se referiu, atendia expressamente à percentagem de créditos admitidos que havia sido satisfeita ou grau de satisfação), certamente que o teria deixado claro e, ao invés de reproduzir o que já constava da lei, não deixaria de eliminar a referência que ali era feita ao facto de a remuneração ser majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, dizendo apenas – como seria mais lógico – que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 seria majorado em 5 /% do montante dos créditos satisfeitos.
Não foi essa a opção do legislador. E não foi – pensamos nós – porque não foi sua intenção que aquela remuneração fosse calculada com referência exclusiva ao valor dos créditos satisfeitos sem considerar a percentagem que esses créditos representavam no valor global dos créditos que haviam sido admitidos, ou seja, o grau de satisfação destes créditos. A intenção do legislador – quando alterou a redacção da norma com a Lei n.º 9/2022 – terá sido apenas a de afastar a remissão que, anteriormente, era feita para uma portaria, passando a regular directamente essa matéria; e, tendo mantido o critério base que estava estabelecido (o grau de satisfação dos créditos), a sua intenção terá sido a de estabelecer a remuneração em 5% da percentagem de créditos satisfeitos em relação aos que haviam sido reclamados e admitidos, ainda que isso não tenha ficado expresso com clareza no texto legal.
A norma em questão deve, portanto – na nossa perspectiva – ser lida e interpretada com o sentido que lhe foi atribuído pela decisão recorrida, ou seja: a remuneração corresponderá a 5% do montante dos créditos satisfeitos, quando estes créditos (satisfeitos) correspondam à totalidade dos créditos admitidos, configurando-se, portanto, um grau de satisfação destes créditos de 100%; quando os créditos satisfeitos não correspondam à totalidade dos créditos admitidos, aqueles 5% terão que ser calculados com referência ao grau de satisfação dos créditos, ou seja, à percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos.
Se o valor da remuneração correspondesse sempre a 5% dos créditos satisfeitos (como sustenta o Apelante), tal significaria que a remuneração seria idêntica quer esses créditos correspondessem à globalidade dos créditos admitidos, quer correspondessem a uma parte ínfima deles; o grau de satisfação dos créditos seria, portanto, totalmente desconsiderado ao contrário do que expressamente se dispõe na norma em causa e contrariando aquele que – pelas razões apontadas – pensamos ter sido o pensamento do legislador”.
Secundando-se o entendimento explanado no aresto que vem de se citar, somos a concluir[1] que, mantendo o legislador a parte variável da remuneração como incentivo à diligência do Sr. Administrador Judicial e prémio pelos resultados obtidos com a gestão e venda do património do insolvente, parece evidente que não pode ser ignorado o segmento normativo que apela -agora como antes- ao grau de satisfação dos credores como medida do êxito da sua actuação. Na verdade, mal se compreenderia, atenta a finalidade precípua da liquidação, que uma fatia de quase 10% do resultado com ela obtido fosse afectada ao pagamento da remuneração do Sr. AI, com total indiferença pela eventual diminuta percentagem de satisfação dos créditos reconhecidos -como de resto se verificou no caso vertente-, em que uma larga maioria dos credores não obteve qualquer reparação. Trata-se de interpretação da lei que, em nosso entender, deve ser recusada, quer atendendo à sua literalidade, quer aos elementos histórico e teleológico, improcedendo todos e cada um dos argumentos recursivos.
Decorre do exposto que o cálculo da remuneração variável devida à Sr.ª AI ora recorrente foi correctamente calculado na decisão recorrida, que por isso se mantém.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recuso, confirmando a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 20 de Abril de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
José Manuel Barata

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[1] À semelhança do que defendemos mais desenvolvidamente no acórdão deste mesmo TRE de 15/12/2022, proferido no processo 1157/17.7T8OLG.E1, relatado pela ora relatora e acessível em www.dgsi.pt., solução depois reiterada no acórdão proferido no processo 2/11.1TBALR-G.E1.