PERSI
INTERPELAÇÃO
COMUNICAÇÃO
Sumário

I - As comunicações relativas ao PERSI não podem ser interpretadas como interpelação em ordem ao vencimento antecipado da dívida, já que, no PERSI, estamos perante um regime de benefícios de um conjunto de direitos e de garantias para facilitar a obtenção de um acordo com as instituições de crédito na regularização de situações de incumprimento, evitando o recurso aos tribunais, nada permitindo concluir pelo vencimento antecipado da dívida.
II- Como a execução sumária prossegue sem citação, não é possível considerar que a citação serve de interpelação.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Por apenso aos autos de execução sumária para pagamento de quantia certa que (…) Activity Company intentou contra, além do mais, AA, veio o executado deduzir oposição à execução por embargos, alegando que:
- impugna que esteja em dívida o valor de capital de € 311,60 no âmbito do contrato de refinanciamento, mais impugnando a taxa de juros e sobretaxa, bem como as despesas que lhe são imputadas, tudo num total de € 722,81 que entende não ser devido;
- acresce que a exequente não o interpelou nem juntou qualquer documento comprovativo do valor da dívida, nomeadamente o extracto conta do empréstimo conforme cláusula 24.ª do contrato;
- quanto ao contrato de mútuo com hipoteca, o executado não recebeu as alegadas comunicações de integração e extinção em PERSI, sendo que a comunicação de extinção nem sequer se mostra endereçada, ocorrendo assim a excepção dilatória inominada que obsta à execução e devendo o executado ser absolvido da instância;
- mesmo que assim não se entenda, a alegada dívida não é exigível porquanto a exequente não procedeu à interpelação do executado para pagar as prestações vencidas sob pena de vencimento antecipado das restantes, interpelação essa que não pode ser substituída pela citação já que no requerimento executivo a exequente apenas indica o alegado valor global de dívida;
- acresce que a exequente também não comunicou ao executado o vencimento antecipado da dívida nos termos da cláusula 14.ª do contrato e art. 781.º do Cód. Civil;
- mais impugna o valor peticionado a título de capital, juros e despesas, não tendo a exequente junto qualquer suporte documental comprovativo do valor da dívida e da data do incumprimento, nomeadamente documento de débito conforme previsto na cláusula 15.ª.
Conclui pela extinção da execução, devendo a exequente ser sancionada nos termos do artigo 858.º do CPC.
Regularmente notificada, a exequente contestou, alegando que:
- quando o executado entrou em incumprimento, a exequente remeteu comunicação de integração e extinção do PERSI, cartas essas que foram remetidas para a morada contratual, pelo que se deve considerar cumprida a obrigação de integração em PERSI e de interpelação do executado;
- o executado limita-se a afirmar que desconhece o montante peticionado quanto ao contrato de refinanciamento, mas não nega o incumprimento, sendo que lhe bastava consultar os extratos de movimentos ou contactar a exequente para esclarecer as dúvidas quanto aos valores em dívida; - no que diz respeito ao contrato de mútuo com hipoteca, dado que o executado foi notificado da data em que entrou em incumprimento e das prestações vencidas e não pagas, através da comunicação de PERSI, deve considerar-se realizada a interpelação para cumprimento; - acresce que no requerimento executivo também se inclui o conteúdo necessário da interpelação;- os valores peticionados a título de juros e despesas constam previstos no contrato, sendo devidos; - o executado não nega a celebração dos contratos nem o incumprimento. Apenas impugna os valores mas não tem razão pois a divida tem por base a conta de um cartão de crédito pelo que aquando da comunicação do incumprimento poderia ter consultado o extracto de movimentos para confirmação do mesmo.
Conclui pela improcedência dos embargos.
Foi proferida sentença que julgou os embargos totalmente procedentes e, em consequência, determinou a extinção da execução quanto ao embargante.
Inconformada com tal decisão, veio a exequente interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
« A. O tribunal a quo proferiu sentença decidindo pela procedência dos embargos e absolvição do embargante da instância executiva.
B. Quanto à remessa da carta de extinção de PERSI para a morada do executado é claro que, não obstante, da mesma não constar o endereço isso não significa, por si só, que não tenha sido remetida.
C. A credora originária é uma instituição bancária, de enorme relevo e prestígio a nível nacional, sendo que se pauta por uma atuação exímia dentro dos parâmetros legalmente impostos no desenvolvimento da sua atividade.
D. A sua atuação não passa por fabricar ou inventar documentos, com o escopo de prejudicar clientes.
E. Certamente, pode ter-se tratado de um lapso que não foi possível à embargada esclarecer em sede de audiência de julgamento, a fim de ser descoberta a verdade material.
F. A carta de integração em PERSI continha a morada completa e contratualizada.
G. O que postula que o facto de na carta de extinção em PERSI não conter a morada, se pode prender somente com erros informáticos.
H. Contudo, deve voltar a reiterar-se que isso não conduz à asserção segundo a qual a mesma não tenha sido remetida.
I. Ambas as cartas remetidas à mutuária plasmavam a morada correta.
J. Pelo que, a Embargada, contrariamente ao que considerou o Tribunal a quo, para além de ter cumprido as obrigações legais previstas no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, integrou e extinguiu o executado no PERSI.
K. No que toca à questão da falta de interpelação/vencimento antecipado refuta-se, totalmente, as conclusões formuladas pelo Tribunal a quo.
L. Nesta perspetiva, é essencial equiparar as funções das cartas de interpelação e resolução e as cartas de integração e extinção em PERSI.
M. Neste prisma, do mesmo modo que uma carta de interpelação leva a que seja concedida uma possibilidade ao executado de ultrapassar a situação de incumprimento, também a carta de integração em PERSI tem esse intuito.
N. Por outro lado, tanto as cartas de resolução, como as cartas de extinção do PERSI são remetidas com o intuito de comunicar o fim das negociações, visto que o credor percebe que o devedor não vai liquidar a sua dívida.
O. É certo que o PERSI é uma obrigação imposta pelo Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de outubro.
P. Mas não é por isso que as cartas de PERSI deixam de ter as funções de permitir ao devedor que regularize os valores em dívida e finalizar essa tentativa de negociação, iguais às das cartas de interpelação e resolução.
Q. Esta semelhança de funções desempenhadas pelas cartas fica demonstra que houve interpelação do executado para cumprir.
R. Ainda se dirá que a interpelação do executado pode considerar-se realizada com a citação para a execução, afastando a regra do artigo 782.º do CC e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º do CC.
S. É, assim, manifesto que, tendo sido interpelado o executado, não só pelo envio das cartas de PERSI, mas também com a citação para a execução, a dívida é exigível na sua totalidade.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença ora recorrida, só assim se fazendo JUSTIÇA.»
Não há contra alegações.
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos dados como provados na 1.ª instância são os seguintes:
1. Em 08.10.2021, a exequente intentou contra, além do mais, o ora embargante a execução com processo sumário de que estes autos são apenso, com vista ao pagamento de quantia certa (€ 140.804,52) assim discriminada:
Da operação n.º ...85:
- Capital: € 91.451,87 (noventa e um mil quatrocentos e cinquenta e um euros e oitenta e sete cêntimos);
- Juros calculados desde 02-05-2017 até 27-08-2021, à taxa de 12,246%: € 48.417,35 (quarenta e oito mil quatrocentos e dezassete euros e trinta e cinco cêntimos);
- Despesas: € 212,49 (duzentos e doze euros e quarenta e nove euros).
Da operação n.º ...84:
- Capital: € 311,60 (trezentos e onze euros e sessenta cêntimos);
- Juros calculados desde 18-05-2017 até 27-08-2021, à taxa de 27,400%: € 367,71 (trezentos e sessenta e sete euros e setenta e um cêntimos);
- Despesas: € 43,50 (quarenta e três euros e cinquenta cêntimos).
2. Foram dados à execução os seguintes contratos:
i) contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado em 02.08.2007 (posteriormente alterado em 22.08.2012 e em 13.12.2013), e respectivo documento complementar, nos termos do qual o Banco (CGD – primitivo credor) concedeu ao embargante (e à sua mulher) um empréstimo no montante de € 110.000,00 (destinado à aquisição do imóvel hipotecado para habitação secundária), de que aquele logo se confessou devedor, obrigando-se ao seu reembolso em prestações de capital e juros no prazo de 24 anos - operação ...85;
ii) contrato de refinanciamento sob a forma de mútuo outorgado em 18.07.2013, no âmbito do Decreto-lei n.º 227/2012 e com a finalidade de consolidação de cartões/liquidação integral dos saldos devedores da conta cartão de crédito ..., com o n.º ...25, nos termos do qual o Banco concedeu ao embargante (e à sua mulher) um empréstimo no montante de € 3.824,62, de que aquele logo se confessou devedor, obrigando-se ao seu reembolso em prestações de capital e juros no prazo de 48 meses - operação ...84.
.... Para garantia do pontual pagamento e liquidação do contrato de mútuo indicado em i), os mutuários, incluindo o embargante, constituíram hipoteca a favor do Banco sobre o prédio urbano sito em ... no ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...05 e inscrito na matriz sob o artigo ... - Ap. ...3 de 2007/07/23, posteriormente transmitida a favor da ora exequente pela Ap. ...77 de 2020/10/08.
4. No contrato de mútuo indicado em i), foi convencionado, além do mais, que: Cláusula 14.ª – 1 – A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contratantes de qualquer obrigação decorrente deste contrato (...); Cláusula 16.ª – 1 – As comunicações escrita dirigidas pela Caixa à parte devedora serão sempre enviadas para a morada constante do presente contrato (....) 3 – A parte devedora deverá informar imediatamente a CGD de qualquer alteração da referida morada.
5. No âmbito da alteração efectuada em 13.12.2013, o prazo global do empréstimo indicado em i) passou a 360 meses contados a partir dessa data.
6. No contrato de mútuo indicado em ii), foi convencionado, além do mais, que: Cláusula 19.ª – 1 – As comunicações e os avisos escritos dirigidos pela CGD aos demais contratantes serão sempre enviados para o endereço constante do presente contrato, devendo o contratante informar imediatamente a CGD de qualquer alteração do referido endereço (...); Cláusula 20.ª – A CGD poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de incumprimento do contrato pelos CLIENTES se, cumulativamente:
a) Os CLIENTES faltarem ao pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito;
b)A falta se mantiver decorridos 15 dias após a notificação a efectuar pela CGD aos CLIENTES para procederem ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas dos respectivos juros moratórios e outra indemnização que seja devida, com a expressa advertência da perda do benefício do prazo.
7. O executado deixou de pagar as prestações do contrato indicado em i), em 02.05.2017.
8. O executado deixou de pagar as prestações do contrato indicado em ii), em 18.05.2017.
9. Por carta datada de 03.07.2017, endereçada por via postal simples para a morada do embargante constante do contrato, o Banco comunicou-lhe a integração daqueles créditos em PERSI, solicitando o contacto e o envio de documentação para avaliação de soluções de regularização.
10. Na referida carta, é discriminado o valor que à data se encontrava em dívida, nos seguintes termos:
a) “Crédito Habitação - CAR+DIFERIMENTO-AQ HAB SEC” Operação ...85: prestações vencidas em 02.05.2017 e em 02.06.2017, no montante total de € 688,74 acrescido de € 2,89 de juros de mora;
b)”Crédito Pessoal - CP REESTR CART CREDIT ...” Operação ...84: prestações vencidas em 18.05.2017 e em 18.06.2017, no montante total de € 241,88 acrescido de € 3,54 de juros de mora.
11. No requerimento executivo, a exequente alegou que:
A - Contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca ...85
(...) 8 - Os executados não pagaram a prestação vencida em 02-05-2017, nem as que se venceram posteriormente, razão por que se mostra exigível a totalidade do empréstimo, nos termos do art.º 781.º do Código Civil.
B - Contrato de mútuo ...84 (...) 20 - Os executados não pagaram a prestação vencida em 18-05-2017, nem as que se venceram posteriormente, razão por que se mostra exigível a totalidade do empréstimo, nos termos do art.º 781.º do Código Civil.


2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1ª Questão - Saber se houve interpelação para cumprir.
2ª Questão - Saber se foi correctamente comunicada ao executado a extinção de PERSI.


3 - Análise do recurso.

1ª Questão- Saber se houve interpelação para cumprir.

Prevê o artigo 781º do CC o vencimento antecipado da totalidade da quantia mutuada ao estatuir que: “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.
Desta forma, quando está em dívida mais do que prestação, o devedor fica sujeito ao regime do artigo 781.º, do C. C., ou seja, o não pagamento daquelas prestações leva a que se considerem exigíveis as (futuras) restantes.
Cremos que, se pode considerar pacífico na jurisprudência e na doutrina (com a voz discordante de Galvão Teles) que a prerrogativa concedida pelo artigo 781º do Cód. Civ. não opera automaticamente, correspondendo antes a uma faculdade concedida ao credor, como referem Almeida Costa – in Direito das Obrigações, 9ª ed., págs. 951, por razões de equilíbrio de prestações impõe-se esta interpretação, que cabe na letra do preceito, de que se exprime no mesmo a mera exigibilidade, e não o vencimento automático – cfr. Ac. STJ de 25.10.18 (http://www.dgsi.pt, Proc. nº 13426/07.0TBVNG-B.P1.S1), onde se cita numerosa doutrina e jurisprudência.
Perante a falta de pagamento de uma prestação, o credor pode seguir um de três caminhos (Ac. STJ de 12.7.18, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 10180/15.5T8CBRT-A.C1.S1):
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao termo do contrato (o que traduz o contratado);
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao momento em que provoca o vencimento antecipado das restantes prestações, reclamando, também, a totalidade da dívida de capital que, nessa altura, ainda subsista;
- resolver o contrato, reclamando uma indemnização pelo não cumprimento.
Cabe ao credor escolher uma das opções, impondo-se que, caso pretenda seguir a segunda ou a terceira opção que o comunique ao devedor.
Logo, havendo uma exigibilidade imediata dessas prestações, não há um vencimento automático que determine que o prazo das prestações ainda não vencidas passe a ser o da prestação faltosa.
O exercício do direito traduz-se, in casu, na reclamação de cumprimento antecipado feita pelo credor ao devedor, isto é, na interpelação. E só nessa altura é possível ter-se por vencida a obrigação.
O credor que tem o direito de exigir a prestação em falta e as subsequentes ainda não vencidas, não está dispensado de interpelar o devedor para que este cumpra com o pagamento imediato da totalidade da dívida.
Entendeu a sentença recorrida que, a obrigação exequenda não é exigível, uma vez que, não foi comunicado ao executado devedor, a resolução do contrato de mútuo e o consequente vencimento das prestações vincendas nos termos do artigo 781º do CC., ou seja, a sentença julgou os embargos procedentes por entender que, o Banco não exerceu o seu direito de vencimento antecipado nos termos do art. 781º do CC, não valendo como tal a comunicação de integração no PERSI nem a citação para a execução (já que no requerimento executivo só é indicado o valor global da dívida (capital e juros) e não o valor das concretas prestações vencidas à data da instauração da execução).
Contra tal entendimento, defende a recorrente, em primeiro lugar que, se deve equiparar à interpelação e resolução o envio das cartas de integração e extinção em PERSI, por ambas conduzirem à concessão de uma possibilidade ao executado de ultrapassar a situação de incumprimento e terem o intuito de comunicar o fim das negociações, assim concluindo o recorrente que houve interpelação do executado para cumprir.
Não cremos que assim seja.
Trata-se de comunicações substancialmente diferentes, respeitantes a regimes diferentes.
As comunicações relativas ao PERSI não podem ser interpretadas como interpelação em ordem ao vencimento antecipado da dívida, já que, no PERSI, estamos perante um regime de benefícios de um conjunto de direitos e de garantias para facilitar a obtenção de um acordo com as instituições de crédito na regularização de situações de incumprimento, evitando o recurso aos tribunais, nada permitindo concluir pelo vencimento antecipado da dívida.
Por outro lado, defende o recorrente que, a interpelação do executado pode considerar-se realizada com a citação para a execução, fazendo funcionar o regime do artigo 781.º do CC, ou seja, defende que a interpelação terá, no mínimo, ocorrido com a citação.
E, com efeito, quando a inexigibilidade derive da falta de interpelação, a dívida considera-se vencida desde a citação – art. 610º, nº 2, b), do CPC ex vi art. 551º, nº 1, do mesmo código.
A citação equivale, portanto, em regra, à interpelação.
Mas vejamos o caso dos autos:
Estando em causa contratos de mútuo bancário, ao exigir a totalidade do capital em dívida e dos juros vencidos e não apenas prestações em dívida (estas sim diretamente resultantes das obrigações assumidas no contrato), o título, ou causa de pedir da ação executiva, compreende não só o contrato, mas também os documentos comprovativos da perda do benefício do prazo, ou de se ter operado a resolução do contrato, através da interpelação, que pode ser feita extrajudicialmente ou pode ter lugar no próprio processo executivo, através da citação do executado para pagar no prazo legal.
Aqui chegados, verificamos que o cerne da questão pode não respeitar apenas à exigibilidade da obrigação, mas à própria suficiência do título.
O título executivo é complexo, quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles, só por si, não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente naufragar a do outro.
Assim sendo, no caso da execução com forma sumária, a ausência de interpelação extrajudicial, prévia à instauração da execução, tem como consequência a extinção da ação, constituindo assim fundamento de oposição à execução e caso de procedência da mesma.
Ora, no caso dos autos, sabemos que não houve interpelação extrajudicial (não valendo para tal as comunicações relativas ao PERSI).
Importa assim perguntar se a citação da executada para a execução deve valer como interpelação para pagamento da obrigação exequenda, de acordo com o nº 1 do artigo 805.º do Cód. Civ. (Artigo 805.º - (Momento da constituição em mora) 1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir), como a recorrente defende, considerando que estamos perante uma execução sumária, que que não se inicia pela citação do executado.
Entendemos que neste caso a citação não pode valer como interpelação, já que não corresponde a um contraditório imediato, considerando que a execução prossegue mesmo antes da citação.
A execução não deve prosseguir para a fase eventualmente mais agressiva para o executado (penhora dos seus bens) sem que o crédito exequendo seja exigível.
Nesta caso, quando o exequente decide instaurar a execução e pretende uma penhora prévia à citação do devedor, deve primeiro interpelá-lo extrajudicialmente e só depois pedir a penhora antes da citação para evitar que se realizem diligências executivas sem contraditório em que o título não reúne a totalidade das características exigida por lei (esta questão não se colocaria, cremos, no caso de execução ordinária, onde nos parece a citação vale como interpelação).
Como refere Lopes do Rego, “Requisitos da Obrigação Exequenda”, publicado na Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano IV, n.º 7, 2003, Almedina, a págs. 70-71 citado no Ac. da R. Coimbra de 12/12/2017, www.dgsi.pt): «É evidente que, …, por força do estipulado no artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil, que confere plena relevância à interpelação judicial – a qual, como é óbvio, se poderá naturalmente consubstanciar na citação para o processo executivo.»
Mas o mesmo Autor afasta tal possibilidade no caso da execução sumária:
«Importa, porém, realçar um aspecto relevante, decorrente da nova estrutura do processo executivo, no que respeita ao diferimento possível do contraditório do executado, nos casos previstos, nomeadamente, nos artigos 812º-A, nº 1, alíneas c) e d) e 812º-B: não sendo obviamente legítimo lançar mão de diligências tipicamente executivas (realização da penhora) sem que o crédito exequendo esteja vencido, é evidente que – nos casos em que ocorre diferimento do contraditório do executado para momento posterior à efetivação da penhora – terá o credor de proceder à interpelação extrajudicial do devedor, antes de iniciada a instância executiva.»
Também em anotação ao artigo 802º do CPC, Lebre de Freitas e Armindo Mendes, Código de Processo Civil Anotado, 3.º volume, página 243, referem que «para que possa ter lugar a sua realização coativa(…), a prestação constante do título executivo deve mostrar-se certam exigível e líquida. A verificação destes três requisitos condiciona a admissibilidade da ação executiva: (…). Por isso se diz que a certeza, a exigibilidade e a liquidez da obrigação exequenda constituem pressupostos específicos da ação executiva, ainda que as diligências que a elas deem lugar se realizem já após a propositura da ação.».
No mesmo sentido, voto de vencido Pedro Martins no ac. do TRL de 10/03/2022 – proc. 3541/19.2T8ALM, que seguimos de perto e aqui reproduzimos:
«O art 550/2-c do CPC só permite a execução sumária de título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, pelo que não é possível requerer uma execução sumária sem que do título conste a prova do acto que provocou o vencimento da obrigação, ou seja, sem prova da interpelação.
E como a execução sumária prossegue sem citação, não é possível considerar que a citação serve de interpelação. E como é a interpelação que provoca o vencimento da dívida, a dívida não está nem fica vencida.
Ora, deixar seguir a execução sumária, sem prova da interpelação (que no caso nem sequer foi invocada), é o mesmo que deixar seguir uma execução sumária relativamente a uma obrigação não vencida, o que a lei não permite.
Por isso, nestas situações, Lebre de Freitas, A acção executiva, 7ª edição, 2017, Gestlegal, págs. 175-176, nota 3, põe a solução em alternativa: ou o credor faz a interpelação antes da execução e a execução segue os termos do processo sumário, ou ele move logo a execução – caso em que a citação valerá como interpelação – e esta tem de seguir os termos do processo ordinário (o que, dito de outra forma, quer dizer que o credor no primeiro caso requererá uma execução sumária e no segundo caso uma execução ordinária).
O exequente requereu logo a execução como sumária, sem alegar nem demonstrar o vencimento da obrigação. Logo, a execução tinha de ser rejeitada mal o juiz se apercebesse disso (artigos 734º, 726º/2-a-b-c e 577º/-b, todos do CPC), porque não a podia aproveitar como execução ordinária – art. 193º/2 do CPC – porque a execução sumária se iniciou com a penhora dos bens do devedor, em prejuízo das garantias do devedor. Ou seja, a convolação aproveitaria actos praticados em prejuízo das garantias do devedor.
Deixar seguir uma execução sumária nestes termos, sem outras consequências para além da questão dos juros, é dizer, contra lei expressa (art. 550º/2-d, do CPC), que afinal os credores podem requerer execução sumária de título extrajudicial de obrigação pecuniária não vencida.
O executado levantou, nos embargos, a questão da falta da sua interpelação pelo exequente, necessária ao vencimento total da dívida.
Para além disso, o tribunal podia rejeitar oficiosamente a execução, até ao primeiro acto de transmissão de bens, com base na falta de título suficiente para a execução que foi requerida ou com base no erro na forma de processo, com requerimento inaproveitável (art. 193/1, 196, 550/2-c, 726/2-a-b e 734 do CPC), e esta questão também podia ser levantada no recurso da decisão dos embargos (artigos 573/2, parte final, e 578, ambos do CPC, por aplicação analógica), desde que aquele momento ainda não tivesse chegado, como não chegou (visto que ainda não se procedeu à venda dos bens).
Sendo assim, a oposição à oposição devia ter sido julgada procedente (artigos 726/2-a-b-c, 729/-a-c e 731, ambos do CPC), com a consequente extinção da execução (art. 732/4 do CPC).
Segui parcialmente a posição do ac. do TRE de 24/09/2020, proc. 1377/18.7T8STB-A.E1, e do ac. do TRG de 14/03/2019, proc. 6496/16.1T8GMR-A.G1, referidos nas alegações de recurso, e o primeiro também no acórdão a que este voto fica anexo, tendo o segundo sido confirmado pelo ac. do STJ de 11/07/2019, 6496/16.1T8GMR-A.G1.S1; no mesmo sentido, para um caso paralelo, veja-se ainda o ac. do TRE de 05/12/2019, proc. 734/18.3T8MMN-A.E1, confirmado pelo ac. do STJ de 05/05/2020, proc. 734/18.3T8MMN-A.E1.S1)».
Da mesma forma, neste sentido, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, obra citada, pág. 282: «A execução baseada em título extrajudicial de obrigação pecuniária, garantida por hipoteca, só segue a forma sumária se estiver vencida à data do requerimento inicial (artigo 550.º, n.º 2-c), do Cód. Proc. Civ.); se o vencimento ainda não tiver ocorrido, a execução terá de assumir a forma ordinária.»
Assim, a obrigação exequenda, ainda que exigível, não estava vencida na altura em que a execução foi instaurada e por isso não podia ter seguido a forma sumária.
Em suma, sendo a interpelação é neste caso constitutiva do direito da exequente para exigir a totalidade da dívida e não apenas as prestações em falta e não tendo corrido in casu a interpelação extrajudicial do devedor antes da propositura da execução (a qual não foi sequer alegada no requerimento executivo, nem posteriormente), para os efeitos do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não estão verificados os requisitos de exigibilidade da quantia exequenda nos termos pretendidos pela Exequente/Recorrente.
Sem tal interpelação o título executivo é insuficiente.
(De resto, o requerimento executivo não menciona que resolveu o contrato, nem qual a data do incumprimento, quais os valores não cumpridos, limitando-se a apresentar os valores globais do capital e dos juros).
Pelo exposto, fica prejudicado o conhecimento da 2ª questão supra enunciada, levantada no recurso.
Em suma, improcede o recurso, mantendo-se a decisão.

Sumário: (…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Évora, 20.04.23
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita