COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
PRESUNÇAO DE LABORALIDADE
BOMBEIRO
MOBBING
ASSÉDIO LABORAL
Sumário


I – Tendo sido invocada uma situação de incompetência material entre ordens jurisdicionais distintas, concretamente, entre os juízes dos tribunais judiciais e os juízes da jurisdição administrativa, estamos perante uma situação de incompetência absoluta que pode ser suscitada ou conhecida oficiosamente enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
II – A competência material afere-se em face do modo como a relação material controvertida é apresentada pelo Autor.
III – De acordo com os Estatutos da Ré, o Comandante dos Bombeiros não constitui um órgão social e o seu exercício, enquanto integrado no quadro de comando, encontra-se vedado aos membros dos órgãos sociais, pelo que as limitações de remuneração previstas para os órgãos sociais da Ré não se aplicam ao referido Comandante.
IV – A circunstância de, enquanto trabalhador da Ré, o Autor ter sido nomeado para um cargo de chefia, cargo esse de natureza temporária, não obsta à manutenção de todos os vínculos decorrentes da relação laboral existente entre as partes, razão pela qual o contrato de trabalho havido entre ambos não cessou nem foi suspenso.
V – O assédio moral caracteriza-se pela ocorrência de (i) comportamentos hostis, humilhantes ou vexatórios; (ii) reiteração de tais comportamentos; e (iii) consequências na saúde física e psíquica do trabalhador e sobre o seu emprego.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Proc. n.º 1245/21.5T8TMR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
AA (Autor) intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de ...” (Ré), solicitando que a ação seja julgada procedente por provada, devendo:
1- Reconhecer-se que o Autor tem direito a auferir mensalmente o subsídio de chefia, por fazer parte da sua retribuição;
2- Ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de €11.500,00 referente às retribuições do subsídio de chefia de janeiro de 2020 a junho de 2021;
3- Ser a Ré condenada a pagar ao Autor as quantias suprarreferidas, acrescidas dos juros à taxa legal, desde os respetivos vencimentos e até integral pagamento;
4- Ser revogada a sanção disciplinar aplicada ao Autor de perda de 5 dias de férias, condenando-se a Ré a reconhecer ao Autor o gozo dos 5 dias durante o ano de 2021, acrescido do pagamento de €30,00 do subsídio de alimentação referente aos 5 dias e €250,00 a titulo de indemnização, tudo acrescido dos juros à taxa legal, desde o vencimento e até integral pagamento;
5- Condenar-se a Ré a pagar a retribuição do subsídio de chefia nos meses subsequentes a junho de 2021 e nas férias e subsídios de férias vencidos posteriormente a 01-01-2021, acrescidas dos juros à taxa legal, desde os vencimentos e até integral pagamento;
6- Condenar-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de €50,00 que pagou a todos os trabalhadores no natal de 2020, acrescida dos juros à taxa legal, desde o vencimento e até integral pagamento;
7- Condenar-se a Ré a pagar ao Autor, a título de danos não patrimoniais, a quantia total de €6.000,00, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
8- Tudo com as legais consequências.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, em 01-10-2014, efetuou contrato de trabalho com a Ré, na qualidade de bombeiro, tendo exercido o cargo de Comandante em Substituição ou Segundo Comandante entre 01-11-2016 e 25-01-2019, recebendo, nesse cargo, o prémio de €150,00 mensais.
Mais alegou que a partir de dezembro de 2018 passou a exercer as funções de Comandante da Ré, funções que exercia até à interposição da presente ação, recebendo, a esse título, a partir de janeiro de 2019, o prémio de chefia, no montante mensal de €500,00, conforme acordo formalizado por escrito, entre as partes, em 29-01-2019.
Alegou igualmente que a sua remuneração é, assim, de €900,00 mensal, acrescida de €500,00 a título de prémio de chefia, porém, a Ré, após a tomada de posse da nova Direção, em 05-01-2020, cortou tal prémio ao Autor, desde janeiro de 2020, inclusive, tendo enviado ao Autor um documento intitulado “carta de resolução do acordo laboral celebrado a 29 de Janeiro de 2019”, no qual alegou a nulidade desse acordo, por apenas ter sido subscrito por um membro da Direção e por as funções de Comando desempenhadas na Ré terem cariz voluntário, não se tratando, por isso, de cargo remunerado.
Invocou, de igual modo, que, tratando-se de uma retribuição habitual e normal na Ré, para a concessão de tal prémio pago ao Comandante não é obrigatória a sua redução a forma escrita, reclamado o Autor, por isso, tal pagamento à Ré.
Alegou também que os demais funcionários continuam a receber prémios e subsídios pelas funções que exercem, tendo visto os seus salários serem aumentados, sendo o Autor o único trabalhador da Ré que viu o seu salário diminuir, uma vez que a presente Direção vem fazendo uma perseguição cerrada ao Autor, desde que tomou posse, instaurando-lhe processos disciplinares infundados e ameaçando-o com processos disciplinares, pretendendo violar os seus direitos enquanto trabalhador-estudante.
Invocou ainda que no natal de 2020 todos os trabalhadores da Ré, e mesmos os que não são pagos pela Ré, receberam um presente de natal no valor de €50,00, sendo o Autor o único a não receber tal presente, sentindo-se, por isso, discriminado e humilhado em relação aos outros trabalhadores, devendo a Ré ser condenada a pagar-lhe essa quantia.
Invocou também que no processo disciplinar, que culminou com a sanção disciplinar de perda de 5 dias de férias, é nulo porque na decisão final, proferida em 17-02-2021, ficaram a constar factos que não constavam da nota de culpa, a que acresce a circunstância de tais factos não corresponderem à verdade e de a Ré não ter efetuado qualquer das diligências requeridas pelo Autor na sua resposta à nota de culpa, nem ter justificado por escrito porque assim atuou.
Mais alegou que sempre realizou o seu trabalho com pontualidade e assiduidade, nunca tendo faltado ao serviço, nem tendo praticado qualquer infração disciplinar, pelo que a sanção disciplinar de perda de 5 dias de férias deve ser revogada, condenando-se a Ré a conferir-lhe o gozo desses dias.
Invocou também que a sanção disciplinar aplicada é claramente abusiva, por ser desproporcional, visto que aquilo que lhe é imputado é a falta de 3 horas numa tarde e um dia completo, e não a falta de 5 dias, sendo que o facto de o Autor ser trabalhador-estudante e, enquanto Comandante da Ré, ter sido convidado a participar num ato público, são aspetos que deveriam orgulhar a Ré e não levar a aplicar ao Autor uma sanção disciplinar, pelo que deve ser indemnizado nos termos do art. 331.º, n.º 3, do Código do Trabalho, em montante não inferior a €250,00.
Por fim, alegou que por ter sido vítima de discriminação e assédio por parte da Direção da Ré, o que o levou a sentir-se humilhado e vexado, em relação aos outros colaboradores, trabalhadores e perante a sociedade civil de ..., e a sentir-se deprimido, sendo afetado na sua honra, imagem, nome e dignidade, deverá a Ré ser condenada a pagar ao Autor a quantia de €3.000,00 a título de danos morais por assédio, e a quantia de €3.000,00 a título de danos não patrimoniais, pela prática de ato discriminatório contra o Autor.
Realizada a audiência de partes, não foi possível resolver por acordo o litígio.
A Ré apresentou contestação, por exceção e por impugnação, solicitando, a final, que:
a) a exceção deduzida seja julgada procedente, por provada, sendo a Ré absolvida da instância relativamente aos pedidos feitos na petição inicial quanto aos pontos 1, 2, 3 e 5;
b) seja declarada a nulidade do “acordo laboral”; e
c) seja a ação julgada improcedente, por não provada, sendo a Ré absolvida do pedido.
Em síntese, alegou que o Autor foi admitido, em 01-10-2014, ao serviço da Ré, para sob as suas ordens e direção, exercer as funções de bombeiro, inexistindo, na estrutura do quadro de pessoal da Ré o quadro de Comando remunerado, visto que as funções de Comando foram sempre desempenhadas na Ré como cargo não remunerado, que não corresponde a uma categoria profissional, tem carácter temporário e não está sujeito a qualquer horário, não tendo a Ré sequer poder disciplinar sobre o Comandante, pois no exercício do seu cargo não está sob as ordens e direção da Ré.
Mais alegou que, em face do carácter de voluntariado e temporário das funções de Comandante, é ilegal o acordo celebrado entre o Autor e a anterior Direção da Ré, facto que ambos bem sabiam, razão pela qual o “acordo laboral” celebrado não corresponde a um real contrato de trabalho ou sua adenda, porque falta o requisito da subordinação, tratando-se as funções de Comandante uma atividade exercida pelo Autor de forma paralela ao cumprimento do seu contrato, não reunindo, por isso, os requisitos do art. 11.º do Código do Trabalho, nem sendo de presumir a sua existência nos termos do art. 12.º do mesmo Diploma Legal.
Invocou ainda a incompetência do tribunal de trabalho de Tomar, considerando competente o tribunal comum, devendo, em conformidade, ser a Ré absolvida da instância.
Alegou igualmente que o referido acordo é nulo à luz dos Estatutos da Ré, mais concretamente, em face do disposto no art. 31.º, n.º 1, o qual prevê que a Ré se obriga com a assinatura de dois membros efetivos da Direção, encontrando-se o acordo apenas assinado pelo Presidente da Direção, sendo tais Estatutos do conhecimento do Autor, pelo que a revogação desse acordo é legítima.
Impugnou, por fim, qualquer ato de discriminação ou de assédio para com o Autor, bem como a ilegalidade do processo disciplinar, afirmando que este respeitou o princípio do contraditório e a sanção aplicada mostra-se adequada ao comportamento que se provou o trabalhador ter tido, não havendo, por isso, lugar a qualquer tipo de indemnização.
Proferido despacho saneador, foi dispensada a realização da audiência preliminar, foi fixado o valor da ação em €17.830,00, foi julgada improcedente a exceção de incompetência material invocada pela Ré, foi identificado o objeto do litígio, foram dados como assentes os factos provados por confissão e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida a respetiva sentença, em 10-05-2022, com a seguinte decisão:
4.1. Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e decido:
a) Reconhecer que o A. tinha o direito a auferir mensalmente o subsídio de chefia, por fazer parte da sua retribuição, enquanto exerceu as funções de comandante;
b) Condenar a R. a pagar ao A. a quantia de € 12.916,67, correspondente ao período de Janeiro de 2020 a 12/11/2021 em que exerceu as sobreditas funções de comandante, acrescida dos juros à taxa legal, desde o vencimento e até integral pagamento;
c) Revogar a sanção disciplinar aplicada ao A. de perda de 5 dias de férias, condenando a R. a reconhecer ao A. o gozo desses dias; e,
d) Absolver a ré de tudo o mais que foi peticionado pelo autor.
4.2. Condeno o A. e a R. a pagarem as custas da acção na proporção de metade.
4.3. Notifique.
Não se conformando com a sentença, veio a Ré “Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de ...” interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
(…)
O Autor AA veio interpor recurso subordinado, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
O Autor apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
(…)
Também a Ré apresentou contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:
(…)
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso da Ré como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, bem como o recurso subordinado do Autor, tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, no qual a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência de ambos os recursos.
Não foram apresentadas respostas ao parecer.
Neste tribunal, ambos os recursos foram admitidos nos seus precisos termos, e, após a ida aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
(Recurso da Ré)
1) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2) Incompetência do tribunal a quo em razão da matéria;
3) Impugnação da matéria de facto;
4) Inexistência de contrato de trabalho;
5) Nulidade do acordo laboral;
6) Licitude da sanção disciplinar aplicada ao Autor;
(Recurso subordinado do Autor)
7) Nulidade da sentença por contradição entre a matéria dada como provada e a fundamentação e decisão;
8) Direito ao pagamento do presente de Natal;
9) Existência de assédio e respetiva indemnização; e
10) Existência de discriminação e respetiva indemnização.
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
a) O A. é bombeiro desde 16-08-1982;
b) O A. efetuou contrato de trabalho com a ré AHBV… em 1-10-2014;
c) Tendo exercido o cargo de Comandante em Substituição ou Segundo Comandante de 1-11-2016 até 25-01-2019;
d) Como Segundo Comandante recebia um Prémio de 150€ mensais;
e) Em dezembro de 2018 passou a exercer as funções de Comandante da AHBV…;
f) Com data de 29 de Janeiro de 2019, o autor e um representante da ré assinaram o escrito denominado “acordo laboral” junto como documento n.º 4, da petição, em que esta declarou que pagaria àquele um denominado “prémio de chefia” no valor mensal de € 500, pago 13 meses (SIC) por ano, considerando que exerce ao serviço da ré as funções inerentes à categoria profissional de comandante;
g) O autor recebeu tal importância durante um ano;
h) Com data de 29 de Janeiro de 2020, a ré remeteu ao autor o escrito junto como documento n.º 5, da petição, declarando resolver de imediato o antecedente “acordo laboral”;
i) No Natal de 2020 todos os trabalhadores da Associação receberam um “presente de natal” de € 50;
j) A ré nada entregou ao autor € 50 no Natal de 2020;
k) Datado de 20-12-2020 a R. notificou o A. de um processo disciplinar, enviando-lhe Nota de Culpa, conforme documento n.º 7 , da petição;
l) Com a data de 17-02-2021, a R. enviou ao A. a decisão junta como documento n.º 9, da petição, impondo-lhe a sanção disciplinar;
m) No dia 12-11-2021, o autor cessou, por renúncia, as funções de comandante ao serviço da ré.
*
n) O autor sente-se deprimido por causa da conduta da ré;
o) O A. realizou o seu trabalho com pontualidade e assiduidade;
p) O A. não sofreu anteriormente qualquer sanção disciplinar;
q) O autor recebeu os louvores e a formação que constam do documento n.º 6 da Petição;
r) De acordo com os respectivos Estatutos, para obrigar a Associação é necessário a assinatura de dois membros efectivos da Direcção, uma das quais terá que ser a do Presidente ou, na sua falta ou impedimento, a do Vice-Presidente;
s) O autor conhecia os Estatutos da ré;
(É acrescentado o facto provado s1, conforme fundamentação infra)
E deu como não provados os seguintes factos:
t) Os Comandantes anteriores ao A. sempre receberam o denominado “prémio de chefia”;
u) Com o conhecimento e concordância das anteriores direções;
v) O A. sente-se discriminado e humilhado em relação aos outros trabalhadores;
w) Nunca faltou ao serviço;
x) O Presidente da ré disse ao A. que tem que o despedir, nem que tenha que pagar uma indemnização;
y) O autor não está sujeito a qualquer horário no cumprimento das suas funções;
z) A ré nem sequer tem poder disciplinar sobre o autor. (É eliminado, conforme fundamentação infra)
(É acrescentado o facto não provado aa), conforme fundamentação infra)
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se[2] (i) a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia ou por contradição entre a matéria dada como provada e a fundamentação e decisão; (ii) o tribunal a quo é incompetente em razão da matéria; (iii) houve erro na apreciação da matéria de facto; (iv) inexiste contrato de trabalho entre Autor e Ré; (v) o acordo laboral é nulo; (vi) é lícita a sanção disciplinar aplicada ao Autor; (vii) o Autor tem direito ao pagamento do presente de Natal; (viii) existe uma situação de assédio laboral, sendo devida uma indemnização por danos não patrimoniais ao Autor; e (ix) existe uma situação de discriminação, sendo devida uma indemnização por danos não patrimoniais ao Autor

1 – Nulidade da sentença
a) Omissão de pronúncia
Considera a Ré que o tribunal a quo não decidiu a questão da incompetência em razão da matéria, por si invocada em sede de contestação, no qual argumentou que o tribunal competente seria o tribunal administrativo, pelo que existe nulidade por omissão de pronúncia.
Dispõe o art. 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Dispõe ainda o art. 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que:
2 - O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Os artigos citados do Código de Processo Civil aplicam-se ao processo laboral nos termos do art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho.
Resulta, assim, das citadas disposições legais que a nulidade por omissão de pronúncia ocorre quando o juiz não se pronuncia sobre todas as questões que lhe tenham sido submetidas pelas partes, excluindo aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução já dada a outras, ou não se pronuncie sobre questões que a lei lhe imponha o conhecimento.
Porém, não se deve confundir questão com consideração, argumento ou razão, sendo que o tribunal apenas se encontra vinculado às questões invocadas pelas partes (tendo de proferir decisão relativamente a todas, com exceção daquelas que tenham ficado prejudicadas por decisões anteriormente tomadas e não podendo decidir de outras a não ser que sejam de conhecimento oficioso), já não aos fundamentos/argumentações invocados.
Conforme bem referiu Alberto dos Reis[3]:
São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.

E, a ser assim, a sentença não padece de nulidade quando não aborda todos os fundamentos invocados pela parte para justificar determinada opção jurídica, desde que aprecie a questão jurídica invocada, apresentando a sua própria fundamentação.
Cita-se, pela relevância na matéria, o acórdão do STJ, proferido em 15-12-2011:[4]
IV - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.°, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
V - Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

Por outro lado, não se pode confundir omissão de pronúncia, que se terá de entender como ausência de apreciação, com deficiente ou obscura fundamentação.
Cita-se a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 22-01-2015:[5]
(…) a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal deixa de apreciar questões que tinha de conhecer, mas já não quando, no entender do recorrente, as razões da decisão resultam pouco explicitadas ou não se conhecem de argumentos invocados.

Transcreve-se ainda o que consta da obra O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[6]:
4. Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso.

Apreciemos.
No art. 18.º da contestação da Ré foi invocada a incompetência do tribunal a quo em razão da matéria, sendo competente para apreciar a questão invocada pelo Autor o tribunal comum, ou seja, o tribunal civil. Inexiste em tal contestação qualquer invocação da competência do tribunal administrativo em vez do tribunal de trabalho.
Relativamente à questão invocada pela Ré, ou seja, a incompetência material do tribunal a quo, sendo competente o tribunal civil, foi decidido no despacho saneador o seguinte:
Excepção de incompetência em razão da matéria.
1. A ré pugna pela incompetência do tribunal do trabalho para conhecer dos pedidos formulados pelo autor sob os n.ºs 1, 2, 3 e 5 da petição, visto que a mesma está atribuída aos tribunais comuns, pois as funções de comandante do autor nada terão a ver com a relação laboral que existe entre as partes.
2. O autor não respondeu.
3. Cumpre conhecer, tendo presente que a competência do tribunal é aferida em função do objecto do processo, nomeadamente dos pedidos e da causa de pedir. E é ao autor que cabe introduzir a causa, formulando o pedido e o respectivo fundamento.
Uma vez que todos os pedidos apresentados pelo autor assentam e dependem da invocação da relação de trabalho ou, eventualmente, numa relação conexa com tal relação, entende-se que é ao juízo do trabalho que está atribuída a competência para deles conhecer – art.º 126.º, alínea b) e n), da L.O.T.J..
Questão diversa é a de saber se a relação existente entre o autor e a ré é de trabalho ou outra, mas isso releva do mérito da causa (legitimidade material) e não dos pressupostos processuais (legitimidade adjectiva).
4. Pelo exposto, julgo improcedente a excepção de incompetência material.

Ora, em face da citada decisão, inexiste qualquer omissão de pronúncia por parte do tribunal a quo relativamente à questão colocada pela Ré quanto à incompetência em razão da matéria desse tribunal, sendo alegadamente competente o tribunal civil.
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a pretensão da Ré.

b) Contradição entre a matéria dada como provada e a fundamentação e decisão
Considera o Autor existir uma contradição entre as alíneas i) e j) do ponto 2.2.1 dado como provado e a fundamentação e decisão constantes da sentença recorrida.
Dispõe o art. 615.º do Código de Processo Civil que:
1 - É nula a sentença quando:
(…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

Assim, para que se mostre verificado o vício da contradição entre os fundamentos e a decisão nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, como resulta pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, é necessário que os fundamentos apontem num sentido e a decisão seja tomada em sentido oposto ou, pelo menos, diferente.
Conforme resulta dos ensinamentos de Lebre de Freitas em A Acção Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013:[7]
(…) se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade.

De igual modo, como bem sustentaram Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil,[8] esta nulidade reporta-se “à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não às hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão. (…) Nestes casos (…), há um vício real de raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
Cita-se ainda a este propósito o acórdão do STJ, proferido em 30-05-2013:[9]
I- A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – art.º 668º, nº 1, al. d) do CPC.
II- Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56).
III- A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do art.º 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente»

Apreciemos, então, a situação concreta.
O Autor não veio alegar existir contradição entre a fundamentação (isto é, os argumentos constantes da sentença que apontam para que a decisão seja proferida em determinado sentido) e a decisão, mas sim que os factos dados como provados no ponto 2.2.1, als. i) e j) implicavam uma outra fundamentação e decisão. Ora, como se referiu supra, tal situação, a existir, não configura qualquer nulidade da sentença, por inexistir contradição entre a fundamentação e a decisão; poderá, porém, configurar um erro de julgamento, a apreciar em sede de apreciação do mérito da sentença.
Nesta conformidade, improcede a nulidade da sentença por contradição, invocada pelo Autor.

2 – Incompetência do tribunal a quo em razão da matéria
Considera a Ré que o tribunal a quo é incompetente em razão da matéria, sendo competente o tribunal administrativo, por não estar em causa qualquer relação de trabalho.
Dispõe o art. 64.º do Código de Processo Civil que:
São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Estatui o art. 65.º do Código de Processo Civil que:
As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.

Determina o art. 96.º do Código de Processo Civil que:
Determinam a incompetência absoluta do tribunal:
a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional;
b) A preterição de tribunal arbitral.

Estipula o art. 97.º do Código de Processo Civil que:
1 - A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
2 - A violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.

Consagra igualmente o art. 7.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário[10] que:
1 - Os juízes dos tribunais judiciais constituem a magistratura judicial, formam um corpo único e regem-se pelo respetivo estatuto, aplicável a todos os magistrados judiciais, qualquer que seja a situação em que se encontrem.

Por fim, estabelece o art. 8.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário que:
1 - Os juízes da jurisdição administrativa e fiscal formam um corpo único e regem-se pelo disposto na Constituição, pelo respetivo estatuto e demais legislação aplicável e, subsidiariamente, pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais, com as necessárias adaptações.

Constata-se, assim, que tendo sido invocada uma incompetência material entre ordens jurisdicionais distintas, concretamente, entre os juízes dos tribunais judiciais e os juízes da jurisdição administrativa, estamos perante uma situação de incompetência absoluta que pode ser suscitada ou conhecida oficiosamente enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.
Deste modo, por inexistir tal sentença com trânsito em julgado, procederemos à sua apreciação.
Como a competência material afere-se em face do modo como a relação material controvertida é apresentada pelo Autor,[11] importa atentar aos factos como eles se mostram invocados na petição inicial.
Ora, basta atentar na petição inicial constante dos autos para facilmente se concluir que a relação aí elencada entre Autor e Ré é uma relação de trabalho, visto ser assim que o Autor a descreve.
Nesta conformidade, improcede a invocada incompetência material, não sendo competente o tribunal administrativo, mantendo-se, por isso, a competência no tribunal de trabalho.

3 – Impugnação fáctica
(…)
Em conclusão, proceder-se-á às seguintes alterações fácticas:
a) É eliminado o facto não provado z);
b) É acrescentado ao elenco dos factos não provados, o facto aa), com a seguinte redação:
aa) Não existe nos quadros de pessoal da ré o cargo de Comandante.

c) É acrescentado ao elenco dos factos provados, o facto s1), com a seguinte redação:
s1) No dia 5 de novembro de 2020, o Autor marcou presença, na qualidade de Comandante dos Bombeiros de ..., numa formação, no Instituto Politécnico de Tomar, com o tema “A Terra Treme”.


4 – Inexistência de contrato de trabalho
Segundo a Ré, as funções de Comandante da Ré foram sempre desempenhadas com cariz de voluntariado, tratando-se de um cargo não remunerado, com carácter temporário, não sujeito a horário e sem se encontrar na alçada do poder disciplinar desta, não constituindo, assim, uma carreira remunerada, tendo a sentença recorrida violado o disposto nos arts. 3.º, n.º 2 e 94.º dos Estatutos[25] e o Regulamento Interno do Corpo dos Bombeiros.[26]
Concluiu, por isso, que o referido acordo laboral não corresponde a um real contrato de trabalho ou adenda ao existente em vigor, inexistindo os requisitos de um contrato de trabalho à luz do art. 11.º do Código do Trabalho, não sendo possível presumir a sua existência ao abrigo do art. 12.º do mesmo Diploma Legal.
Apreciemos.
Consta do facto provado f) que:
f) Com data de 29 de Janeiro de 2019, o autor e um representante da ré assinaram o escrito denominado “acordo laboral” junto como documento n.º 4, da petição, em que esta declarou que pagaria àquele um denominado “prémio de chefia” no valor mensal de € 500, pago 13 meses (SIC) por ano, considerando que exerce ao serviço da ré as funções inerentes à categoria profissional de comandante;

Por sua vez, consta do art. 3.º, n.º 2, dos Estatutos da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de ..., que:
2 - Os presentes Estatutos obedecem ao cumprimento da Lei 32/2007, de 13 de Agosto, que institui o Regime Jurídico das Associações Humanitárias de Bombeiros.

Determina também o art. 94.º desses Estatutos que:
As actividades da Associação terão por base o regime de voluntariado social. Será de admitir, todavia, a contratação de pessoal remunerado quando não se mostre possível obviar â situação através do recrutamento de associados laborais ou da reconversão ou especialização dos elementos existentes.

Dispõe ainda o art. 11.º do Código do Trabalho que:
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.

Estipula, por fim, o art. 12.º do Código do Trabalho que:
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
2 - Constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
3 - Em caso de reincidência, é aplicada a sanção acessória de privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, por período até dois anos.
4 - Pelo pagamento da coima, são solidariamente responsáveis o empregador, as sociedades que com este se encontrem em relações de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, bem como o gerente, administrador ou director, nas condições a que se referem o artigo 334.º e o n.º 2 do artigo 335.º.

Dos citados artigos resulta, desde logo, que é admissível a contratação de trabalhadores por parte da Ré sempre que a situação de voluntariado se mostre incapaz de dar resposta às atividades da associação.
Por sua vez, da análise integral dos respetivos Estatutos, verifica-se que apenas se mostra vedada, e mesmo assim com exceções,[27] a remuneração dos membros eleitos para os órgãos sociais (art. 30.º, n.º 1, dos Estatutos), aos quais, aliás, se mostra igualmente vedado o exercício de quaisquer funções no quadro de comando e no quadro ativo do respetivo corpo de bombeiros (art. 24.º, n.º 2, dos Estatutos). Ora, não só o Comandante dos Bombeiros não constitui um órgão social (art. 21.º dos Estatutos), como o seu exercício, enquanto integrado no quadro de comando, se mostra vedado aos membros dos órgãos sociais. De igual modo, os trabalhadores assalariados da Associação não podem fazer parte dos órgãos sociais (art. 24.º, n.º 8, dos Estatutos).
E, a ser assim, a remuneração do cargo de Comandante não se mostra vedada pelos referidos Estatutos.
Importa agora verificar qual é o tipo de relação contratual que a Ré tem com o Autor.
Ora, conforme resulta do facto provado b), o Autor efetuou contrato de trabalho com a Ré em 01-10-2014,[28] resultando este facto de acordo entre as partes,[29] mantendo-se esse vínculo laboral mesmo após a sua nomeação para Comandante, razão pela qual, aliás, a Ré lhe instaurou um processo disciplinar, cuja sanção aplicada é igualmente objeto deste recurso. A fundamentação apresentada pela Ré de que o vínculo laboral se mantém relativamente ao Autor enquanto bombeiro da Ré, mas já não enquanto Comandante dos Bombeiros não merece qualquer acolhimento. Efetivamente se enquanto bombeiro a Ré entende, como entendeu, que o Autor se encontra sujeito a horário, apesar de não estar sujeito a qualquer horário enquanto Comandante dos Bombeiros, parece pretender defender que durante o horário de trabalho que, nos termos do referido contrato de trabalho, era de quarenta horas semanais, em regime de turnos,[30] o Autor seria apenas bombeiro da Ré, encontrando-se, por isso, sujeito ao cumprimento escrupuloso de um horário pré-determinado, porém, como Comandante não teria qualquer horário, pelo que, assim sendo, o Autor apenas poderia atuar enquanto Comandante após terminar o seu horário de bombeiro, o que não faz qualquer sentido. Na realidade, o Autor, a partir do momento em que foi nomeado Comandante dos Bombeiros pela Ré, passou a ser sempre e em todos os momentos em que manteve tal nomeação o Comandante dos Bombeiros da Ré, sendo, no caso, trabalhador da Ré, a quem, esta pagava uma remuneração fixa mensal, encontrando-se igualmente sujeito à autoridade e poder disciplinar da Ré. A circunstância de, enquanto trabalhador da Ré, ter sido nomeado para um cargo de chefia, cargo esse de natureza temporária, não obsta à manutenção de todos os vínculos decorrentes da relação laboral existente entre as partes, razão pela qual o contrato de trabalho havido entre ambos não cessou nem foi suspenso. É verdade que o Autor poderia ter exercido o cargo de Comandante continuando a receber apenas a remuneração acordada no contrato de trabalho celebrado em 01-10-2014, porém, não foi isso o que foi acordado entre as partes, conforme acordo celebrado entre o Autor e a Ré em 29-01-2019,[31] o qual, muito provavelmente terá sido fundamental para a aceitação por parte do Autor de tal cargo, pelo que apenas se pode concluir, como concluiu a 1.ª instância, que o acordo celebrado em 29-01-2019, consubstancia um aditamento ao contrato de trabalho.
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a pretensão da Ré.

5 – Nulidade do acordo laboral
Considera a Ré que o acordo a que é feita menção no facto provado f) é nulo, por violação do art. 31.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré,[32] bem como por violar o Regulamento Interno do Corpo de Bombeiros.[33]
Estatui o art. 31.º desses Estatutos que:
1 - Para obrigar a Associação são necessárias e bastantes assinaturas de dois membros efectivos da Direcção, uma das quais será a do Presidente ou, na sua falta ou impedimento, a do Vice-Presidente.
2 - Nas operações financeiras são obrigatórias as assinaturas conjuntas do Presidente da Direcção ou, na sua falta ou impedimento, a do Vice-Presidente, e a do Tesoureiro ou, na sua falta ou Impedimento, a de um dos Secretários.
3 - Os actos de mero expediente poderão ser assinados por qualquer membro da Direcção ou por delegação, ou pelos funcionários administrativos.

Vejamos.
Para se verificar se no acordo celebrado em 29-01-2019 estávamos perante um ato que obrigava a Ré ou perante um ato de mero expediente, importa analisar estes conceitos.
Ora, do confronto entre os n.ºs 1 e 3 do art. 31.º dos Estatutos da Ré, desde logo, resulta que os atos que obrigam a Ré não são atos de mero expediente. Assim, todos os atos que impliquem uma despesa considerável para Ré não podem ser atos de mero expediente.
Cita-se, a este propósito, o acórdão do TRG, proferido em 16-12-2021:[34]
Trata-se de atos de gestão corrente, atos do dia a dia, como refere Ricardo Candeias, in ROA, Ano 60, (janeiro, 2000), vol. I, p. 261. trata-se de atos que podendo ter embora efeitos externos, as respetivas “consequências económicas são de menos importância para a sociedade. São atos essencialmente executivos, no sentido de concretizarem o que já foi previamente estabelecido” – autor e obra referida, pág. 263. A razão de ser destas estipulações tem a ver com a necessária fluidez que a sociedade deve ter no seu dia a dia, que ficaria fortemente limitada com a exigência da intervenção do conjunto dos gerentes para tal tipo de atos. São atos com “pequeno relevo económico para a sociedade e/ou rotineiros praticáveis com reduzida margem de liberdade ou discricionariedade administrativo-representativa” – Coutinho de Abreu, “Diálogos com a jurisprudência, IV – Vinculação das sociedades”, in Direito das Sociedades em Revista, Almedina, outubro 2014, Ano 6, vol. 12, p. 103, dando como exemplos, “a emissão de faturas/recibos ou de notas de remessa, o depósito de dinheiro da sociedade em bancos, pagamento de salários, distribuição de tarefas pelos trabalhadores”.

Deste modo, há que concluir que o aditamento ao contrato de trabalho celebrado em 29-01-2019, tal como o contrato de trabalho firmado em 01-10-2014, não são atos de meros expediente porque obrigam a Ré, a partir daquele momento, a um encargo financeiro acrescido, com particular impacto financeiro na Ré, não só pelo montante mensal a pagar, como também e sobretudo pelo grau de regularidade mensal daquele encargo, pelo que na sua subscrição devem constar as assinaturas de dois membros efetivos da Direção, uma das quais será a do Presidente ou, na sua falta ou impedimento, a do Vice-Presidente. É verdade que o cargo de Comandante, anteriormente à nomeação do Autor, já existia, contabilizando eventualmente a Ré já o encargo que consta do aditamento de 29-01-2029, porém, não só tal não se mostra provado, como é normal que em cada momento sejam efetuados acordos diferentes, devendo tais acordos, por passarem a obrigar a Ré a um encargo significativo e regular, dar cumprimento ao disposto no n.º 1 do art. 31.º dos Estatutos da Ré.
Constando do acordo de 29-01-2019, em representação da Ré, apenas a assinatura do Presidente da Direção, tal acordo foi celebrado numa situação de abuso de representação, uma vez que estamos efetivamente perante um representante da Ré que, porém, naquele ato concreto, atuou para além dos poderes que se lhe mostram atribuídos, pelo que a sua validade e eficácia em relação à Ré rege-se nos termos dos arts. 269.º e 268.º do Código Civil, com as especificidades dos arts. 122.º e 123.º do Código do Trabalho, por estar em causa um acordo laboral.
Dispõe o art. 269.º do Código Civil que:
O disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.

Estipula, por sua vez, o art. 268.º do Código Civil que:
1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.

No caso em apreço, resulta dos factos provados que o Autor conhecia os Estatutos,[35] pelo que conhecia o art. 31.º dos mesmos. Porém, verifica-se que, de igual modo, o contrato de trabalho celebrado em 01-10-2014 entre Autor e Ré se mostra subscrito pela Ré apenas com a assinatura do Presidente da Direção.[36] Ora, o estabelecimento de uma relação inicial de carácter laboral representa um ato de maior formalidade do que os aditamentos que posteriormente venham a ser formalizados, pelo que tendo-se bastado para a concretização do contrato de trabalho entre o Autor e a Ré a mera assinatura do Presidente da Direção desta, remontando tal contrato a outubro de 2014 sem que sobre ele tivesse sido invocada qualquer irregularidade, designadamente por falta de representação da Ré, não é exigível ao Autor que tenha consciência de que para a prática de um aditamento ao seu contrato de trabalho seja obrigatória a assinatura de dois membros efetivos da Direção, sendo uma delas da do seu Presidente. Importa também referir que não consta de tais Estatutos a descrição dos atos que obrigam a Ré e dos atos de mero expediente, resultando tal enquadramento de um ato de interpretação jurídica, ato esse que, em face da atuação anterior da Ré, não era efetivamente exigível ao Autor efetuar. Acresce que apenas se provou que o Autor tinha conhecimento dos Estatutos da Ré, já não que tinha conhecimento de que para aquele concreto ato eram necessárias duas assinaturas de membros efetivos da Direção, sendo uma delas obrigatoriamente do seu Presidente (ou, na sua falta ou impedimento, do Vice-Presidente).
Ora, o que o art. 269.º do Código Civil determina é que o ato praticado em abuso de representação será ineficaz em relação ao representado, no caso em relação à Ré, se a outra parte, ou seja, o Autor, conhecia esse abuso de representação ou devia conhecê-lo.
Assim, em face do supramencionado, é de concluir que, por o Autor não conhecer, nem lhe ser exigível conhecer, a situação de abuso de representação por parte do Presidente da Direção da Ré, é eficaz e oponível à Ré o acordo laboral outorgado em 29-01-2019.
Cita-se, a este propósito, o acórdão deste Tribunal, proferido em 09-11-2004:[37]
1. Um presidente do conselho de administração de empresa, que tem competência para representar a mesma e providenciar pela correcta execução das deliberações do conselho de administração, que em nome da empresa, celebra um contrato de trabalho sem a necessária deliberação do conselho de administração, prevista nos estatutos, pratica um acto de abuso de representação.
2. Conjugando o disposto nos art. 268º e 269º do C.C., temos de concluir que esse contrato é eficaz e oponível à R.. uma vez que não se provou que a outra parte conhecia, ou dada a sua qualidade, devia conhecer o abuso.

Diga-se, por fim, que mesmo que se entendesse de outro modo, sempre estaríamos perante uma manifesta situação de abuso de direito por parte da Ré,[38] a qual, ao atuar reiteradamente em situação de falta de representação na celebração de contratos laborais e respetivos aditamentos, criando na outra parte a convicção de que atuava devidamente representada, apenas invoca o abuso de representação nos contratos laborais ou aditamentos de forma seletiva e de acordo com os seus interesses momentâneos, defraudando, deste modo, o princípio da confiança que deve pautar as relações contratuais.
Pelo exposto, ainda que com fundamentação diversa da sentença recorrida, que considerou a atuação do Presidente da Direção, ao subscrever o referido aditamento ao contrato de trabalho, um ato de mero expediente, também nesta parte improcede a pretensão da Ré.

6 – Licitude da sanção disciplinar aplicada ao Autor
Considera a Ré que a sanção aplicada ao Autor no procedimento disciplinar que lhe interpôs é lícita, visto o Autor se ter ausentado do local de trabalho no dia 03-11-2020, a partir das 14h00, e no dia 05-11-2020, sendo tal sanção adequada e proporcional à gravidade da situação.
Dispõe o art. 328.º do Código do Trabalho que:
1 - No exercício do poder disciplinar, o empregador pode aplicar as seguintes sanções:
a) Repreensão;
b) Repreensão registada;
c) Sanção pecuniária;
d) Perda de dias de férias;
e) Suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade;
f) Despedimento sem indemnização ou compensação.
2 - O instrumento de regulamentação colectiva de trabalho pode prever outras sanções disciplinares, desde que não prejudiquem os direitos e garantias do trabalhador.
3 - A aplicação das sanções deve respeitar os seguintes limites:
a) As sanções pecuniárias aplicadas a trabalhador por infracções praticadas no mesmo dia não podem exceder um terço da retribuição diária e, em cada ano civil, a retribuição correspondente a 30 dias;
b) A perda de dias de férias não pode pôr em causa o gozo de 20 dias úteis;
c) A suspensão do trabalho não pode exceder 30 dias por cada infracção e, em cada ano civil, o total de 90 dias.
4 - Sempre que o justifiquem as especiais condições de trabalho, os limites estabelecidos nas alíneas a) e c) do número anterior podem ser elevados até ao dobro por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
5 - A sanção pode ser agravada pela sua divulgação no âmbito da empresa.
6 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 3 ou 4.

Por sua vez estatui o art. 330.º do Código do Trabalho que:
1 – A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção.
2 - A aplicação da sanção deve ter lugar nos três meses subsequentes à decisão, sob pena de caducidade.
3 - O empregador deve entregar ao serviço responsável pela gestão financeira do orçamento da segurança social o montante de sanção pecuniária aplicada.
4 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 2 ou 3.

Decidida a questão da existência de um contrato de trabalho entre Autor e Ré, é inquestionável que esta possui poder disciplinar sobre aquele.
No caso em apreço, e quanto à alegada falta ao trabalho pelo Autor, no dia 03-11-2020, a partir das 14h00, tal circunstância não resultou da materialidade dada como provada, pelo que nada há a decidir sobre tal situação, a não ser que esse facto não pode ser imputado ao Autor e, consequentemente, pelo mesmo não lhe pode ser aplicada qualquer sanção disciplinar.
Relativamente ao dia 05-11-2020, resultou da prova realizada que, no dia 5 de novembro de 2020, o Autor marcou presença, na qualidade de Comandante dos Bombeiros de ..., numa formação, no Instituto Politécnico de Tomar, com o tema “A Terra Treme” (facto provado s1). Ora, tal facto, por si só, não permite concluir que o Autor faltou nesse dia ao trabalho injustificadamente. Desde logo, porque dos factos provados não resulta qual seja o horário de trabalho do Autor, competindo à Ré a prova de tal facto, visto que para imputar ao Autor uma falta injustificada ao trabalho tem de se provar qual o horário que competia ao Autor cumprir e não cumpriu. Acresce que tendo, no dia 5 de novembro de 2020, o Autor marcado presença, na qualidade de Comandante dos Bombeiros de ..., numa formação, no Instituto Politécnico de Tomar, com o tema “A Terra Treme”, não resulta igualmente dos factos provados que neste tipo de situações era obrigatório o Autor pedir previamente autorização à Direção ou, pelo menos, comunicar-lhe previamente essa deslocação enquanto Comandante dos Bombeiros da Ré (existindo diferenças entre estes dois tipos de obrigatoriedade, pois pedir autorização não significa o mesmo que comunicar), sendo que qualquer uma dessas obrigatoriedades também não resulta quer dos Estatutos da Ré quer do seu Regulamento Interno.
Pelo exposto, não se tendo provado a prática das infrações disciplinares imputadas ao Autor pela Ré, não pode àquele ser aplicada qualquer sanção disciplinar, pelo que é de manter a sentença recorrida, improcedendo a pretensão da Ré.

7 – Direito ao pagamento do presente de Natal
Considera o Autor que, em face dos factos provados i) e j), deveria ter sido pago ao Autor o presente de Natal de €50,00.
Resulta dos factos provados i) e j) que:
i) No Natal de 2020 todos os trabalhadores da Associação receberam um “presente de natal” de € 50;
j) A ré nada entregou ao autor € 50 no Natal de 2020;

Ora, nada mais resultou provado quanto a esta situação, desde logo, que critérios presidiam à entrega pela Ré aos seus trabalhadores deste denominado “presente de Natal” (concretamente se a sua entrega era determinada por específicos critérios previamente estabelecidos pela Ré ou se se tratava de uma mera liberalidade da Ré), como também não resultou provado se este tipo de presente era entregue pela Ré aos seus trabalhadores todos os natais ou apenas no Natal de 2020, designadamente se o Autor tinha anteriormente recebido tal presente ou não. Atente-se que para que uma prestação variável possa integrar o conceito de retribuição tem de possuir carácter regular e periódico, nos termos do art. 258.º, n.º 2, do Código do Trabalho, carácter que não resulta da prova produzida relativamente ao denominado “presente de Natal”.
Assim sendo, em face da escassa matéria factual apurada, não é possível integrar esse denominado “presente de Natal” no conceito de retribuição constante do art. 258.º do Código do Trabalho.
Pelo exposto, nesta parte improcede a pretensão do Autor.

8 – Existência de assédio e respetiva indemnização
Entende o Autor que foi vítima de assédio, em face da instauração pela atual Direção da Ré de vários processos disciplinares, de ter efetuado várias participações a nível interno, por não lhe ter atribuído o presente de Natal e por lhe ter retirado o subsídio de chefia, devendo a Ré ser condenada a pagar-lhe uma indemnização no montante de €3.000,00.
Estipula o art. 29.º do Código do Trabalho que:
1 - É proibida a prática de assédio.
2 - Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
3 - Constitui assédio sexual o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito referido no número anterior.
4 - A prática de assédio confere à vítima o direito de indemnização, aplicando-se o disposto no artigo anterior.
5 - A prática de assédio constitui contraordenação muito grave, sem prejuízo da eventual responsabilidade penal prevista nos termos da lei.
6 - O denunciante e as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente, a menos que atuem com dolo, com base em declarações ou factos constantes dos autos de processo, judicial ou contraordenacional, desencadeado por assédio até decisão final, transitada em julgado, sem prejuízo do exercício do direito ao contraditório.

Conforme decorre do artigo citado, o assédio pode ser de carácter discriminatório (baseado em qualquer fator discriminatório distinto do fator sexo), de carácter não discriminatório e sexual.
No caso em apreço, não tendo resultado provado qualquer fator de discriminação, apenas poderia estar em causa o assédio de carácter não discriminatório.
Refere Maria do Rosário Palma Ramalho em Tratado de Direito do Trabalho, Parte II,[39] quanto a este tipo de assédio, que o mesmo ocorre:
[…] quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas, pelo ser carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar aquele trabalhador da empresa (mobbing).

Conforme jurisprudência sedimentada, nem todo o comportamento ilícito da entidade empregadora para com determinado trabalhador constitui assédio, sendo necessário, na esteira do acórdão do STJ, proferido em 09-05-2018:[40]
II- Não é toda e qualquer violação dos deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objectivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por verificado.
III- Mesmo que se possa retirar do artigo 29º do Código do Trabalho que o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos pela norma – respeito pela integridade psíquica e moral do trabalhador.

Por sua vez, como este Tribunal[41] tem vindo a considerar:
1. O assédio moral caracteriza-se pela ocorrência de:
a) comportamentos hostis, humilhantes ou vexatórios;
b) reiteração de tais comportamentos; e,
c) consequências na saúde física e psíquica do trabalhador e sobre o seu emprego.

Ora, no caso em apreço, em face da matéria de facto apurada, resulta que no Natal de 2020 todos os trabalhadores da Ré receberam um presente de Natal de €50,00, menos o Autor; a Ré notificou o Autor, em 20-12-2020, de um processo disciplinar que lhe instaurou, impondo-lhe em 17-02-2021 a respetiva sanção disciplinar; em 29-01-2020, a Ré resolveu o acordo que lhe atribuía um prémio de chefia no valor mensal de €500,00, pago 13 meses ao ano; e, em face da conduta da Ré, o Autor sente-se deprimido.
Na realidade, perante esta factualidade, não resulta, desde logo, que os comportamentos discriminados tenham tido, por parte da Ré, a intenção de hostilizar, humilhar ou vexar o Autor.
Quanto ao presente de Natal, para além de não ter resultado qualquer obrigatoriedade por parte da Ré de proceder a tal entrega ao Autor, importa mencionar que entre o Autor e os demais trabalhadores da Ré existia uma diferença significativa, o que, desde logo, impede a caracterização deste comportamento como discriminatório, visto que apenas o Autor tinha um cargo de Comando.
Quanto ao processo disciplinar instaurado, verificou-se a ilicitude do mesmo, visto a Ré não ter procedido em sede judicial à prova dos comportamentos que imputou ao Autor, porém, não resultou que a Ré não acreditasse na versão dos factos que apresentou e/ou que tivesse agido com o objetivo de vexar, humilhar ou hostilizar o Autor.
Quanto à resolução do acordo laboral que anteriormente fora celebrado entre o Autor e a Ré, é verdade que a invocação da nulidade do acordo por falta de assinaturas denota uma situação de abuso de direito, conforme anteriormente explicitámos, porém, não resulta da prova realizada que a Ré tivesse igualmente remunerado os anteriores Comandantes dos Bombeiros nomeados ou que remunerasse os Comandantes dos Bombeiros que se seguiram ao Autor, ou seja, não resulta dos autos que a Ré, representada pela Direção à data da resolução do referido acordo, não tivesse efetivamente a convicção de que o cargo de Comandante dos Bombeiros não deveria ser remunerado.
E, a ser assim, não é possível concluir que a atuação da Ré, ainda que ilícita, tivesse como intenção vexar, humilhar ou hostilizar o Autor.
É verdade que o art. 29.º do Código do Trabalho pode prescindir do elemento intencional, no entanto, para que se possa imputar à entidade empregadora uma situação de assédio moral exige-se não só que os comportamentos objetivamente hostis, humilhantes ou vexatórios (sendo que dos comportamentos da Ré dados como provados apenas se revela objetivamente vexatório o processo disciplinar instaurado ao Autor) sejam reiterados, como que tais comportamentos infrinjam de forma intensa e inequívoca a integridade psíquica e moral do trabalhador.
Na presente situação não se verifica, porém, nem a reiteração de tal tipo de comportamentos, nem que o Autor tenha sido intensa e inequivocamente afetado na sua integridade psíquica e moral. É verdade que consta dos factos provados que o Autor se sente deprimido por causa da conduta da Ré, no entanto, sentir-se deprimido é diverso de estar deprimido, não constando dos autos que o Autor efetivamente padeça da doença de depressão, pelo que o significado de “se sentir deprimido” deve equivaler a “sentir-se triste”. Afigura-se-nos, porém, que tal sentimento, sem mais elementos concretos apurados, não atinge a intensidade e gravidade pretendida pela referida norma jurídica.
Inexistindo uma situação de assédio moral, inexiste igualmente o direito à indemnização por assédio moral.
Nesta conformidade, mantendo a sentença recorrida nesta questão, improcede a pretensão do Autor.

9 – Existência de discriminação e respetiva indemnização
Considera o Autor que foi vítima de discriminação por não ter recebido o presente de Natal como todos os outros trabalhadores da Ré receberam, devendo a Ré ser condenada a pagar-lhe uma indemnização no montante de €3.000,00.
Determina o art. 23.º do Código do Trabalho que:
1 - Para efeitos do presente Código, considera-se:
a) Discriminação directa, sempre que, em razão de um factor de discriminação, uma pessoa seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou venha a ser dado a outra pessoa em situação comparável;
b) Discriminação indirecta, sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutro seja susceptível de colocar uma pessoa, por motivo de um factor de discriminação, numa posição de desvantagem comparativamente com outras, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios para o alcançar sejam adequados e necessários;
c) Trabalho igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são iguais ou objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade;
d) Trabalho de valor igual, aquele em que as funções desempenhadas ao serviço do mesmo empregador são equivalentes, atendendo nomeadamente à qualificação ou experiência exigida, às responsabilidades atribuídas, ao esforço físico e psíquico e às condições em que o trabalho é efectuado.
2 - Constitui discriminação a mera ordem ou instrução que tenha por finalidade prejudicar alguém em razão de um factor de discriminação.

Estatui o art. 24.º do Código do Trabalho que:
1 - O trabalhador ou candidato a emprego tem direito a igualdade de oportunidades e de tratamento no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção ou carreira profissionais e às condições de trabalho, não podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão, nomeadamente, de ascendência, idade, sexo, orientação sexual, identidade de género, estado civil, situação familiar, situação económica, instrução, origem ou condição social, património genético, capacidade de trabalho reduzida, deficiência, doença crónica, nacionalidade, origem étnica ou raça, território de origem, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical, devendo o Estado promover a igualdade de acesso a tais direitos.
2 - O direito referido no número anterior respeita, designadamente:
a) A critérios de selecção e a condições de contratação, em qualquer sector de actividade e a todos os níveis hierárquicos;
b) A acesso a todos os tipos de orientação, formação e reconversão profissionais de qualquer nível, incluindo a aquisição de experiência prática;
c) A retribuição e outras prestações patrimoniais, promoção a todos os níveis hierárquicos e critérios para selecção de trabalhadores a despedir;
d) A filiação ou participação em estruturas de representação colectiva, ou em qualquer outra organização cujos membros exercem uma determinada profissão, incluindo os benefícios por elas atribuídos.
3 - O disposto nos números anteriores também se aplica no caso de tomada de decisões baseadas em algoritmos ou outros sistemas de inteligência artificial e não prejudica a aplicação:
a) De disposições legais relativas ao exercício de uma actividade profissional por estrangeiro ou apátrida;
b) De disposições relativas à especial protecção de património genético, gravidez, parentalidade, adopção e outras situações respeitantes à conciliação da actividade profissional com a vida familiar.
4 - O empregador deve afixar na empresa, em local apropriado, a informação relativa aos direitos e deveres do trabalhador em matéria de igualdade e não discriminação.
5 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no n.º 1 e constitui contra-ordenação leve a violação do disposto no n.º 4.

Dispõe o art. 25.º do Código do Trabalho que:
1 - O empregador não pode praticar qualquer discriminação, directa ou indirecta, em razão nomeadamente dos factores referidos no n.º 1 do artigo anterior.
2 - Não constitui discriminação o comportamento baseado em factor de discriminação que constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da actividade profissional, em virtude da natureza da actividade em causa ou do contexto da sua execução, devendo o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.
3 - São nomeadamente permitidas diferenças de tratamento baseadas na idade que sejam necessárias e apropriadas à realização de um objectivo legítimo, designadamente de política de emprego, mercado de trabalho ou formação profissional.
4 - As disposições legais ou de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho que justifiquem os comportamentos referidos no número anterior devem ser avaliadas periodicamente e revistas se deixarem de se justificar.
5 - Cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se considera discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação.
6 - O disposto no número anterior é aplicável em caso de invocação de qualquer prática discriminatória no acesso ao trabalho, à formação profissional ou nas condições de trabalho, nomeadamente por motivo de gozo de direitos na parentalidade, de outros direitos previstos no âmbito da conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal e dos direitos previstos para o trabalhador cuidador.
7 - São ainda consideradas práticas discriminatórias, nos termos do número anterior, nomeadamente, discriminações remuneratórias relacionadas com a atribuição de prémios de assiduidade e produtividade, bem como afetações desfavoráveis em termos de avaliação e progressão na carreira.
8 - É inválido o acto de retaliação que prejudique o trabalhador em consequência de rejeição ou submissão a acto discriminatório.
9 - Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 ou 8.

O princípio da igualdade, previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se deva “tratar de forma idêntica aquilo que é igual e de forma diferente aquilo que é diferente”[42], sendo que, ao se invocar a violação de tal princípio, quando não se faça menção a qualquer dos fatores de discriminação previstos no art. 24.º, n.º 1, do Código do Trabalho, como é o caso dos autos, compete a quem invoca alegar e provar tal violação, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Ora, no caso em apreço, apesar de o Autor ter alegado, e provado, que todos os outros trabalhadores da Ré receberam o presente de Natal, nenhum dos outros trabalhadores possuía exatamente as mesmas funções que o Autor, visto que apenas este exercia, à data, o cargo de Comandante. E, a ser assim, não é possível concluir que a situação laboral dos restantes trabalhadores da Ré era idêntica à situação laboral do Autor, inexistindo, assim, qualquer situação discriminatória por parte da Ré ao não atribuir ao Autor, na qualidade de Comandante dos Bombeiros, e apenas a ele, o referido presente de Natal.
Posto isto, apenas nos resta concluir pela improcedência da pretensão do Autor.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso principal e o recurso subordinado totalmente improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que parcialmente com fundamentação diversa.
Custas a cargo da Ré quanto ao recurso por si interposto e custas a cargo do Autor quanto ao recurso por si interposto (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 11 de maio de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Proceder-se-á à análise das questões de acordo com a sua precedência lógica e não em primeiro lugar o recurso principal e apenas posteriormente o recurso subordinado.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
[4] No âmbito do processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] No âmbito do Proc. 24/09.2TBMDA.C2.S2, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Almedina, 2018, pág. 737.
[7] 3.ª ed., p. 333.
[8] 2.ª ed., pp. 689-690.
[9] No âmbito do processo n.º 660/1999.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[10] Lei n.º 62/2013, de 26-08, com respetivas atualizações.
[11] Veja-se, entre muitos, os acórdãos, do STJ proferido em 22-10-2015 no âmbito do processo n.º 678/11.0TBABT.E1.S1; do TRP proferido em 26-04-2018 no âmbito do processo n.º 150/17.7T8PVZ-A.P1; do TRC proferido em 28-06-2017 no âmbito do processo n.º 259/16.1T8PBL.C2; do TRG proferido em 19-06-2019 no âmbito do processo n.º 3122/18.8T8VCT.G1; do TRL proferido em 27-09-2022 no âmbito do processo n.º 267/21.0T8LSB.L1-7; e do TRE proferido em 23-09-2021 no âmbito do processo n.º 561/21.0T8BJA-F.E1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[12] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[13] No âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[14] No âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[15] No âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[16] Prova e Formação da Convicção do Juiz, Coletânea de Jurisprudência, Almedina, 2016, p. 55.
[17] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pp. 406-408.
[18] Acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018, no âmbito do processo n.º 13/16.0GTCTB.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do STJ, proferido em 29-04-2015, no âmbito do processo n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[20] O já citado acórdão do TRC, proferido em 20-06-2018.
[21] “r) De acordo com os respectivos Estatutos, para obrigar a Associação é necessário a assinatura de dois membros efectivos da Direcção, uma das quais terá que ser a do Presidente ou, na sua falta ou impedimento, a do Vice-Presidente”.
[22] “s) O autor conhecia os Estatutos da ré”.
[23] Estando aqui a referir-se ao Autor.
[24] Estes factos constam da petição inicial como tendo sido imputados ao Autor na nota de culpa do processo disciplinar que lhe foi instaurado.
[25] Documento 2 junto com a contestação.
[26] Documento 3 junto com a contestação.
[27] Visto que quando o volume do movimento financeiro ou a complexidade da administração exijam a presença prolongada de um ou mais titulares do órgão da administração podem estes ser remunerados, sendo tal remuneração determinada pela Assembleia-Geral – art. 30.º, n.º 2, dos Estatutos.
[28] De esclarecer que este facto, apesar de também ele ser conclusivo, manteve-se por não integrar o thema decidendum.
[29] Consta do art. 3 da contestação que “A Ré admitiu o Autor a trabalhar ao seu serviço e sob as suas ordens e direcção em 1/10/2014”.
[30] Art. 4.º, n.º 1, do Contrato de Trabalho, junto como documento 1 com a contestação.
[31] Sendo que, como já se mencionou, tal acordo não se mostra vedado pelos Estatutos da Ré.
[32] Documento 2 junto com a contestação.
[33] Documento 3 junto com a contestação.
[34] No âmbito do processo n.º 1154/20.5T8BCL-A.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[35] Facto provado s).
[36] À data era um Presidente diferente do Presidente que subscreveu o aditamento ao contrato de trabalho.
[37] No âmbito do processo n.º 1679/04.2, consultável em www.dgsi.pt.
[38] Nos termos do art. 334.º do Código Civil.
[39] 6.ª Edição, 2016, Almedina, Coimbra, p. 189.
[40] No âmbito do processo n.º 532/11.5TTSTRE.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[41] Acórdão do TRE proferido em 09-02-2023, no âmbito do processo n.º 239/21.5T8BJA.E1, consultável em www.dgsi.pt.
[42] O acórdão do TRE, proferido em 14-03-2019, no âmbito do processo n.º 159/16.5T8BJA.E1, consultável em www.dgsi.pt.