AUTO DE NOTÍCIA
AGENTE AUTUANTE
TESTEMUNHA
CÔNJUGE
IMPEDIMENTO
NULIDADE
Sumário

I. Integrando-se auto de notícia num processo penal, o qual fora levantado por agente policial que nele indicou como testemunha o seu cônjuge, passa o mesmo a ser regido pelas normas do CPP, nomeadamente no que tange ao regime de impedimentos, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.
II. O referido impedimento do agente autuante, agindo como órgão de polícia criminal, advém da regra prevista no artigo 39.º, n.º 3 do CPP, aplicável por força do n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 243/2015, de 19 de outubro, no qual se dispõe que «não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes [na circunstância «agentes»] que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».
III. Inexistindo nos autos declaração de impedimento pelo próprio, pode aquele ser suscitado pelo arguido (artigo 41.º, n.º 2 CPP), como foi.
IV. Constatando-se que o ato processual praticado – o lavrar do auto de notícia e o sequente depoimento testemunhal – não podem ser repetidos utilmente; e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afetando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – este é inválido.
V. Estando esta invalidade sujeita ao princípio da legalidade, constante do artigo 118.º, n.º 1 do CPP, a nulidade insanável cominada (artigo 41.º, § 3.º e corpo do artigo 119.º do CPP) impede a repetição do ato nulo.

Texto Integral

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório

Nos autos de Processo Sumário supra numerados que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, J 2 - o Digno Magistrado do Ministério Público acusou

AA, solteiro, pedreiro, nascido a 15/04/1984, filho de (…), residente (…), Vila Real de Santo António,

imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de Violação de Proibições, p. e p. pelo art.º 353.º do Código Penal.


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A final, por sentença de 07-12-2022, decidiu o tribunal recorrido julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público totalmente procedente, por provada, pelo que :

a) Condenou o arguido AA, pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artº. 353º do CP, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, á taxa diária de 8 (oito) Euros, o que perfaz o montante global de 1.200,00 € (mil e duzentos euros);
b) Condenou o mesmo arguido em 2 UC’s de taxa de justiça, bem como nos encargos do processo.

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Inconformado o arguido interpôs recurso da sentença, com as seguintes conclusões:

1ª – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 7/12/2022 que condenou o recorrente pela prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições p. e p. pelo artº 353º do CP, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 8 Euros, no total de 1.200€ e na taxa de justiça de 2UC e demais encargos do processo;
2ª- Foi dado como provado que no dia 17/10/2022, pelas 13h 30m, o arguido conduzia o veículo de matrícula XX-XX-XX na Avenida Fernando Salgueiro Maia, já fora dos limites territoriais da cidade de Vila Real de Santo António e foi sujeito a acção de fiscalização efectuada por agentes da PSP;
3ª- Sucede que em 24/10/2022 (Referência 10589544) foi suscitada a nulidade dos actos praticados pelos dois elementos policiais da PSP, BB e CC, no dia 17/10/2022 pelas 13h 30m, no que respeita a acção de fiscalização que efectuaram ao recorrente e a elaboração do Auto de Notícia de fls. 4 e 5 destes autos;
4ª- Resulta do próprio Auto de Notícia de fls 4 e 5, que foi elaborado na qualidade de Autuante por BB, elemento da PSP, com a matrícula nº 153180, que encontrava-se acompanhada pelo elemento da PSP CC, com a matrícula nº 1143005, na qualidade de testemunha da ocorrência e da intercepção do recorrente e que ambos procederam a uma fiscalização ao condutor do veículo, o ora recorrente;
5ª- Na douta sentença recorrida foi considerado como provado que o local dos factos já estava fora dos limites territoriais da cidade de Vila Real de Santo António (vide nº 1 dos factos provados
6ª- E reconheceu-se que: "Por força da entrada em vigor da Portaria 340-A/2007, de 30/03, designadamente o seu Anexo 1, a GNR passou a ter competência territorial para o policiamento das freguesias de Monte Gordo. E, assim, seja a investigação criminal, seja a manutenção da ordem e tranquilidade públicas, são, actualmente, da competência da GNR nas referidas freguesias. Logo, concluindo, nestas matérias haverá que observar as regras de competência territorial de intervenção legalmente estabelecidas" ;
7ª- Com base nesta fundamentação e na referida disposição legal, o Tribunal "A Quo" devia ter concluído em sentido contrário de que a acção de fiscalização levada a cabo por tais elementos da PSP constitui um acto de manutenção da ordem e tranquilidade pública da competência da GNR na freguesia de Monte Gordo e, portanto, estava fora da sua alçada de competência territorial e, em consequência, ter declarado a nulidade da acção de fiscalização e do Auto de Notícia;
8ª- Ao decidir como foi plasmado na douta sentença, com os devidos respeitos, o Tribunal fez uma interpretação menos correcta da supra mencionada Portaria;
9ª- Foi também invocado (nºs 21º a 28º do requerimento supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido), que os dois mencionados elementos da PSP estavam impedidos de praticar os actos que realizaram em relação ao recorrente;
10ª- Porquanto é do conhecimento público e oficioso do Tribunal “ A Quo” os referidos policiais BB e CC são casados e actuaram em conjunto na realização na intercepção e na fiscalização do recorrente e na elaboração do Auto de Notícia de fls. 4 e 5, em que intervêm respectivamente na qualidade de autuante e de testemunha da ocorrência;
11ª- Segundo estabelece o artº 8º, nº 2 do DL 243/2015, de 19/10, do Estatuto da Polícia de Segurança Pública, o regime de impedimentos previsto no Código de Processo Penal é também aplicável, com as devidas adaptações, aos Polícias;
12ª- Transpondo para o presente caso o disposto no nº 3 do artº 39º do CPP, os referidos Polícias BB e CC não podiam exercer funções, a qualquer título, no mesmo caso e, portanto, não podiam ter actuado juntos no mesmo veículo da PSP e ter realizado conjuntamente a acção de intercepção e de fiscalização do recorrente e elaborado o Auto de Notícia;
13ª- Ressalvados os devidos respeitos, o Tribunal fez uma incorrecta interpretação e aplicação de tais normativos e ao concluir que os impedimentos referidos pelo recorrente têm carácter intra-processual e que se dirigem a processos internos da PSP;
14ª - O Estatuto da Polícia de Segurança Pública manda aplicar o regime dos impedimentos consagrado no Código de Processo Penal aos Polícias e não criou um regime próprio e específico de impedimentos;
15ª- E sendo os impedimentos previstos no Código de Processo Penal aplicáveis aos Polícias têm de sê-lo em relação aos actos e funções por eles prestadas e praticadas enquanto Polícias;
16ª- A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei nº 35/2014, de 20/6, prevê no artº 24º, nº 4, alínea a) idêntica proibição para funcionários públicos que sejam cônjuges ou que vivam em união de facto;
17ª- Mesmo que fosse entendido que tais impedimentos só têm aplicação no âmbito de um processo, não podemos deixar de referir que o Auto de Notícia em cuja elaboração participaram os referidos elementos policiais representa o primeiro elemento processual que dá início a um processo crime e, por isso, estaria abrangido pelos impedimentos do artº 39º, nº 3 do CPP;
18ª- Assim, transpondo e fazendo as adaptações necessários do disposto no artº 41º, nº 3 do CPP, os actos praticados por Polícias impedidos são nulos e neste sentido devia ter sido proferida a douta sentença;
19ª- O recorrente invocou ainda que o referido Auto de Notícia, pelas declarações da Autuante nele inseridas e por constar como testemunha da ocorrência e da intercepção o seu cônjuge e pela forma conjunta como procederam à sua fiscalização, consubstancia um meio proibido de prova face ao disposto nos artigos 125º e 126º, nº 1 e nº 3 do CPP, por eventualmente atentar contra os direitos de defesa e contra a liberdade de determinação e a reserva da vida privada do arguido;
20ª- O Tribunal recorrido não apreciou nem decidiu este fundamento, de meio proibido de prova, embora tenha sido reconhecido na douta sentença que: “É meridianamente claro que o depoimento de dois agentes da PSP, casados entre si, intervenientes na mesma situação, oferecidos como testemunhas em processo penal, deve ser encarado com cautela, uma vez que será forte a tendência para a convergência de depoimentos”;
21ª- O Tribunal entendeu aplicar a taxa diária de 8€ em função das apuradas condições familiares e económicas do arguido e considerou por justo, adequado e proporcional esta taxa, sem indicar mais fundamentações, mas salvo melhor opinião, a taxa diária aplicada ao arguido revela-se elevada atentas as circunstâncias concretas do caso;
22ª- Nestes termos e nos que vierem a ser doutamente supridos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e serem declarados nulos os actos praticados pelos elementos policiais em causa e ser revogada a douta sentença recorrida com as demais consequências legais, como é de sã Justiça.

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A Exmª Procuradora apresentou resposta com as seguintes conclusões:

1.ª – O arguido AA recorre da douta sentença que o condenou, entre o mais, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (= € 1.200,00) pela autoria material de um crime de Violação de Proibições, p.e p. pelo art.º 353.ºdo Código Penal;
2.ª – A motivação do recurso reitera os fundamentos do requerimento apresentado pelo arguido em sede de Contestação, no dia 24-10-2022, com a referência Citius n.º 10589544, no qual invoca a nulidade do acto de fiscalização praticado pelos Agentes da Polícia de Segurança Pública autuante e testemunha que o fiscalizaram, relativamente à qual o Ministério Público tomou posição no dia 04-11-2022, na Promoção com a referência Citius n.º 126052745, e que o douto Tribunal «a quo» relegou o respectivo conhecimento e decisão para o momento da prolação da sentença, a qual é condenatória dos factos pelos quais o arguido foi acusado e julgado, e que agora o arguido veio colocar em crise com os mesmos fundamentos do identificado requerimento anterior – cfr. conclusões n.º 3, n.º 7.º e n.º 9 do recurso;
3.ª - Invoca ainda o Recorrente - na identificada Contestação cujo teor agora renova como fundamentos do presente recurso -, que no Auto de Notícia estão inseridas declarações que, considerando que os Agentes fiscalizadores autuante e testemunha são casados entre si, «consubstancia um meio proibido de prova face ao disposto nos artigos 125.º e 126.º, n.º 1 e n.º 3 do CPP, por eventualmente atentar contra os direitos de defesa e contra a liberdade de determinação e a reserva da vida privada do arguido»;
4.ª-O Recorrente termina pedindo ao douto Tribunal «ad quem» que conceda provimento ao recurso e sejam declarados nulos os actos praticados pelos elementos policiais em causa e seja revogada a douta sentença recorrida com as demais consequências legais; e, subsidiariamente, que revogue a sentença do douto Tribunal «a quo» na parte relativa à fixação do quantitativo diário da pena de multa em 08,00 (oito) Euros, por tal taxa diária se revelar elevada «atentas as circunstâncias concretas do caso»;
5.ª - Na douta sentença do Tribunal recorrido consta, para o que aqui releva, que (por trancrição):
«(…) A questão da competência territorial (área geográfica de intervenção) de cada uma das forças de segurança (…).
Quem, pois, procede à detenção em flagrante delito? Qualquer entidade policial (cfr. artº. 255º, nº.1, al. a), do CPP). Independentemente de estar a actuar na área geográfica correspondente à competência legalmente atribuída. Aliás, se qualquer pessoa pode proceder à detenção em flagrante delito (cfr. artº. 255º, nº.1, al.b), do CPP), por maioria de razão qualquer entidade policial pode proceder à detenção em flagrante delito ainda que esteja a actuar fora da referida área geográfica. Seria um absurdo que uma qualquer pessoa pudesse efectuar uma tal detenção e uma entidade policial, apenas porque encontrando-se fora da sua área geográfica de intervenção, não o pudesse – implicando, pois, que ainda tivesse que solicitar a presença da entidade territorialmente competente para que a detenção pudesse ser efectuada!
Portanto, obviamente, que os agentes da PSP que procederam à detenção, porque em flagrante delito, agiram legalmente, pelo que, nessa medida, nenhuma nulidade processual se vislumbra.
Resta, “en passant”, abordar a aventada questão dos impedimentos e, porquanto, a sua verificação poderia, no dizer, do arguido, constituir questão consubstanciadora de nulidade. Os impedimentos referidos pelo arguido, com apelo ao diploma legal enunciado na sua contestação, têm carácter intra-processual; isto é, são impedimentos que se dirigem a processos internos da PSP e que não têm extrapolação para o processo penal pela simples razão de que o CPP tem regras próprias. Nos processos internos da PSP há impedimentos dirigidos às testemunhas; no processo penal os impedimentos dirigem-se ao juiz (cfr. artºs. 39º e ss.) e visam assegurar a transparência e boa administração da Justiça, por um lado, e dirigem-se às testemunhas nos casos enunciados no artº. 133º do CPP. Não há, no CPP, qualquer obstáculo a que, no mesmo processo, possam depor testemunhas casadas entre si. Coisa diferente é a apreciação de tais depoimentos e o funcionamento do principio da livre convicção do julgador, levando em conta que as testemunhas são casadas entre si. É meridianamente claro que o depoimento de dois agentes da PSP, casados entre si, intervenientes na mesma situação, oferecidos como testemunhas em processo penal, deve ser encarado com cautela, uma vez que será forte a tendência para a convergência de depoimentos. Mas, no caso concreto, verifica-se que apesar de terem sido dois agentes os intervenientes na detenção do arguido, o certo é que apenas um deles foi oferecido como testemunha em processo penal. E, assim sendo, para além de não se vislumbrar qualquer “impedimento” (como supra se disse), também não há qualquer cautela especial na apreciação de depoimento de testemunha uma vez que apenas um dos intervenientes na detenção do arguido ter sido arrolado como testemunha. Logo, concluindo, também por aqui não se lobriga qualquer nulidade (…)»;
6.ª - A nulidade em causa, invocada na contestação e renovada no presente recurso, assenta em duas ordens de factos:
1.ª - A fiscalização do arguido foi realizada por Agentes da Polícia de Segurança Pública num troço da E.N. 125, denominado Avenida Fernando Salgueiro Maia, cuja competência territorial já pertencia à Guarda Nacional Republicana de Vila Real de Santo António;
2 .ª - Os Agentes da Polícia de Segurança Pública em causa são casados um com o outro;
7.ª-Salvo melhor entendimento de V. Exas.,os órgãos de polícia criminal são forças policiais que estão sempre de serviço e devem actuar no âmbito das suas competências profissionais sempre que presenciem a prática de crimes.
No caso decidido na douta sentença em crise, tratou-se de um crime de violação de proibições, p. e. p. pelo art.º 353.º do Código Penal – relativamente ao qual, aliás, o arguido confessou na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 25-10-2022.
No que respeita à força policial «Polícia de Segurança Pública» aqui visada, a obrigação profissional que se enunciou resulta do disposto no art.º 10.º, n.º 3 do DL 243/2015, de 19.10 que define o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública que prescreve que: «Os polícias, ainda que se encontrem fora do período normal de trabalho e da área de responsabilidade da subunidade ou serviço onde exerçam funções, devem, até à intervenção da autoridade de polícia criminal competente, tomar as providências necessárias e urgentes, dentro da sua esfera de competência, para evitar a prática ou para descobrir e deter os autores de qualquer crime de cuja preparação ou execução tenham conhecimento».
Assim, e sempre ressalvando o melhor entendimento de V. Exas., afigura-se que os Agentes da Polícia de Segurança Pública autuante e testemunha neste processo actuaram no estrito âmbito das respectivas competências profissionais;
8.ª - Por outro lado, e no que se refere ao regime de impedimentos invocado na aludida contestação que foi transposta para o presente recurso (cfr. conclusão n.º 9 do recurso) com fundamento na relação matrimonial dos senhores Agentes da Polícia de Segurança Pública autuante e testemunha, afigura-se que o regime jurídico invocado pelo Recorrente é inaplicável ao caso concreto, por o respectivo âmbito de aplicação ser limitado. A saber, o impedimento invocado só está previsto para as situações em que existe um processo que careça de ser tramitado. E, por via desse impedimento legal, não podem tramitar um mesmo processo, pessoas que sejam cônjuges entre si.
Ora, no caso, as referidos Agentes da Polícia de Segurança Pública actuaram como testemunhas de um crime quando ainda não existia processo algum e, não o tramitaram, pela simples razão de que não existia nenhum – pelo que, é forçoso concluir que não exerceram funções no mesmo processo.
E, mesmo depois da sua actuação fiscalizadora, os referidos agentes não exerceram «funções» no processo que veio a ser instaurado: apenas são testemunhas no processo que – posteriormente à sua actuação - veio a ser instaurado.
A interpretação que o Recorrente apresenta conduziria necessariamente a que, qualquer casal, no exercício de funções públicas, nunca poderia ser testemunha dos mesmos factos que viessem a dar origem a um só processo!
Em resumo, o impedimento invocado pelo arguido ocorre apenas quando exista um processo que deva ser tramitado e não abrange a fase anterior a este – que, aliás, pode nunca existir;
9.ª - Invoca, também, o Recorrente que no Auto de Notícia estão inseridas declarações que, por os Agentes fiscalizadores autuante e testemunha serem casados entre si, conduzem a que o Auto de Notícia «consubstancie um meio proibido de prova face ao disposto nos artigos 125.º e 126.º, n.º 1 e n.º 3 do CPP, por eventualmente atentar contra os direitos de defesa e contra a liberdade de determinação e a reserva da vida privada do arguido».
Acontece, porém, que o Recorrente não concretiza quais são as declarações insertas no Auto de Notícia que entende violadoras dos seus direitos de defesa, liberdade de determinação e da reserva da vida privada e que tornariam o Auto de Notícia num meio proibido de prova.
Calcorreado o teor do Auto de Notícia, não se detectam declarações violadoras daqueles direitos do arguido.
Pelo que, e sempre com o devido respeito pelo melhor entendimento de V. Exas., entende-se que o Auto de Notícia elaborado pelo órgão de polícia criminal e que deu origem ao presente processo sumário não constitui um meio proibido de prova;
10.ª – Por último, afigura-se que não assiste razão ao Recorrente no apontado erro de julgamento traduzido na errada fixação do quantitativo diário da pena de multa em € 8,00 por dia, o qual apenas ultrapassa em 3 Euros o mínimo legal fixado por dia e fica muito longe do máximo legalmente previsto de 500,00 Euros, uma vez que foi ponderado com base nas declarações do arguido relativamente às suas condições socio económicas e foi dado como provado que ele exerce a profissão de pedreiro, pela qual aufere 800,00 Euros mensais, não tem filhos e vive em casa dos pais;
11.ª - Deste modo, entendemos que a douta sentença do Tribunal «a quo» não violou os preceitos legais invocados pelo Recorrente nem padece de vício que afecte a sua legalidade, pelo que deve ser confirmada nos seus precisos termos.

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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer concluindo: «Analisando a motivação do recurso interposto, a decisão recorrida e a resposta do Ministério Público na primeira instância, com os termos da qual se concorda, manifestamos com esta a nossa concordância, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida».

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

Apresentada resposta. O arguido reiterou a sua posição.


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B.1 - Fundamentação:

B.1-a) - Factos provados:

1 - No dia 17 de Outubro de 2022, pelas 13h30, o arguido conduzia o veículo de matricula XX-XX-XX na Avenida Fernando Salgueiro Maia, já fora dos limites territoriais da cidade de Vila Real de Santo António, no sentido Oeste / Este.

2 - Fê-lo, apesar de, por sentença datada de 06 de Julho de 2022, transitada em julgado e proferida no Processo Sumário n.º 259/22.2PAVRS, Juiz 1, deste Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, ter sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses e de haver entregue a sua carta no dia 30 de Setembro de 2022, para cumprimento de tal pena.

3 - Ao conduzir o mencionado veículo, o arguido tinha ainda consciência de que não acatava a ordem de proibição de conduzir imposta por sentença criminal a título definitivo.

4 - Agiu sempre de forma deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por Lei.


Mais se provou que:

5 - Nas circunstâncias de modo, tempo e lugar referidas em 1), o arguido foi sujeito a acção de fiscalização efectuada por agentes da PSP.

6 - Tais agentes circulavam em veículo policial caracterizado e na via identificada em 1), no sentido Este / Oeste.

7 - Ao avistarem o arguido a conduzir o referido veículo, os preditos agentes inverteram o sentido de marcha, perto do “Mc Donalds” que imprimiam ao veículo no qual se faziam transportar e foram atrás daquele.

8 - O arguido imobilizou o veículo que conduzia, correspondendo à ordem de paragem dos mencionados agentes da PSP, junto ao estabelecimento comercial “Pneus Magalhães”, sito cerca de 200 metros mais à frente do referido “Mc Donalds”, considerando o sentido Oeste / Este.

9 - Na sequência da acção de fiscalização, o arguido foi detido, constituído arguido e submetido a julgamento em processo sumário.

10- O arguido é solteiro, não tem filhos e vive com os seus pais, em casa destes.

11- Tem o 9º ano de escolaridade.

12- Exerce a profissão de pedreiro, por conta de outrem, e aufere mensalmente o montante de 800 Euros.

13- O arguido já foi condenado, por sentença transitada em julgado a 09/07/2018, pela prática, em 27/05/2018, de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artºs. 292º e 69º do CP, na pena principal de 80 dias de multa e na pena acessória de 5 meses de proibição de condução de veículos motorizados.

14- O arguido já foi condenado, por sentença datada de 06 de Julho de 2022, já transitada em julgado, pela prática de crime de desobediência, p. e p. pelo artº. 348º do CP, na pena principal de 60 dias de multa e na pena acessória de 5 meses de proibição de condução de veículos motorizados (sentença proferida no Processo Sumário n.º 259/22.2PAVRS, Juiz 1, deste Tribunal).


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B.1-b) – Factos não provados: Não existem.

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B.1-a) – Motivação de facto:

«A apreciação critica do Tribunal incidiu sobre as declarações do arguido, o depoimento da testemunha arrolada pela Acusação e teor dos documentos juntos aos autos, designadamente o Auto de Notícia, de fls. 4 e 5, o Print da Acta de Julgamento no Proc.º Sumário n.º 259/22.2PAVRS deste Juízo de Competência Genérica de Vila Real de Santo António, de fls. 20-21 e o Print do Termo de Entrega da carta de condução pelo arguido no processo identificado supra, de fls. 18-19.
O arguido, em sede de declarações, confirmou os factos vertidos no libelo acusatório. Disse, assim, que não conduzia há cerca de 2 semanas, por estar a cumprir uma pena acessória de proibição de conduzir, e que naquele dia e hora conduziu de sua casa até ao estabelecimento “Pneus Magalhães” apenas porquanto havia combinado mudar pneus ao seu veículo naquele mesmo dia. Da sua residência até ao referido estabelecimento haverá que percorrer cerca de 300 metros. As suas declarações foram pontuadas por uma `ténue” acusação de perseguição policial, quase como se os policias intervenientes na acção de fiscalização estivessem estado de atalaia à espera que o arguido prevaricasse.
Estas declarações foram quase confessórias. Porém, dado o teor da contestação, entendeu-se por bem produzir prova testemunhal, designadamente a agente da PSP BB.
Esta testemunha descreveu as condições de modo, tempo e lugar em que teve lugar acção de fiscalização e subsequente detenção do arguido. Assim, disse, ela e o seu colega, fazendo-se transportar em carro policial caracterizado, deslocavam-se para o “Mc Donalds” para irem buscar almoço quando se cruzaram com o arguido que conduzia veículo automóvel. Como sabiam, por força de exercício de funções, que o arguido cumpria uma pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, inverteram o sentido de marcha do aludido veículo e foram imediatamente no encalço daquele. O arguido submeteu-se a acção de fiscalização, efectuada junto ao estabelecimento comercial “Pneus Magalhães” e, constatada a infracção criminal, foi-lhe dada voz de detenção.
O depoimento desta testemunha foi isento, imparcial, ponderado, credível e, por isso mesmo, logrando o convencimento do Tribunal relativamente aos factos afirmados. Diga-se, aliás, que em bom rigor este depoimento foi quase idêntico às declarações do arguido.
Assim, no cotejo das declarações do arguido e do depoimento da testemunha, foram dados como provados os factos supra sob os nºs. 1) a 9). Os factos supra sob os nºs. 10) a 12) assentaram nas declarações do arguido, que o Tribunal entendeu credibilizar, e os restantes no teor do CRC junto aos autos e, ainda, print de acta de julgamento».

B.2 – Cumpre conhecer

As questões que são objecto do recurso interposto reduzem-se a três, por esta ordem, por razões sistemáticas:

- A nulidade resultante de impedimento;

- A jurisdição da PSP;

- Subsidiariamente, a medida da pena.


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Relativamente à primeira questão suscitada o Artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que aprovou o Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, integrado na Secção II do Capítulo II, relativa às «Garantias de imparcialidade», dispõe claramente que:

1 - Os polícias estão sujeitos ao regime geral de incompatibilidades, impedimentos, acumulações de funções públicas e privadas e proibições específicas aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.

2 - O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 - A declaração de impedimento e o seu requerimento, bem como o requerimento de recusa e o pedido de escusa, são dirigidos ao diretor nacional.

Ora, tratando-se de um auto de notícia lavrado em funções cristalinamente processuais penais, é inócuo o regime contido na Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), designadamente o seu art. 24º, nsº 1, 2 e 4 («Proibições específicas»), na medida em que não nos encontramos face a simples obrigações laborais resultantes de prestação de «serviços no âmbito do estudo, preparação ou financiamento de projetos, candidaturas ou requerimentos que devam ser submetidos à sua apreciação ou decisão ou à de órgãos ou serviços colocados sob sua direta influência», com cariz contratual ou administrativo no sentido restrito.

Tratando-se de notícia de um crime é indubitavelmente aplicável o nº 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº 243/2015, de 19 de Outubro, que estatui que “O regime de impedimentos, recusas e escusas previsto no Código de Processo Penal é aplicável, com as devidas adaptações, aos polícias enquanto órgão de polícia criminal, (…)”.

Como nenhum dos agentes envolvidos no auto de notícia suscitou o seu impedimento para o acto, passada se mostra a possibilidade de ter sido deduzido o impedimento, tornou-se inaplicável o disposto no nº 3, que naturalmente supõe a existência de uma declaração de impedimento.

Inexistente esta declaração de impedimento, a expressão contida no nº 2 do preceito, «sem prejuízo do disposto no número seguinte», deixa de ser aplicável por inexistência de objecto, isto é, nada há a conhecer pelo Director Nacional da PSP.

Integrando-se a existência do auto de notícia num processo penal passa o mesmo – e o impedimento invocado - a ser regido pelo CPP, quer por aplicação subsidiária do regime de impedimento dos juízes, quer por aplicação do regime de invalidades processuais nele previstos.

O artigo 39º, nº 3 do CPP, relativo ao regime de impedimentos, recusas e escusas, é cristalino quando estatui que «Não podem exercer funções, a qualquer título, no mesmo processo juízes que sejam entre si cônjuges, parentes ou afins até ao 3.º grau ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges».

Demonstrado nos autos que o agente autuante e a testemunha indicada no mesmo auto são cônjuges, demonstrada está a existência de impedimento.

Inexistindo declaração de impedimento – o que pode ser suscitado pelo arguido (nº 2 do preceito) -passa a reger a situação o disposto no artigo 41.º do CPP que, no seu número 3 determina que «Os actos praticados por juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo».

Constatando-se que o acto – o lavrar de auto de notícia e o sequente depoimento – não podem ser repetidos utilmente e considerando que a violação da norma que obriga a declarar o impedimento constitui uma violação das garantias de imparcialidade – assim afectando gravemente a justiça da decisão por violação das garantias de imparcialidade – é inválido, resta saber do regime da mesma.

Sujeita a invalidade ao princípio da legalidade constante do artigo 118º, nº 1 do CPP, verificamos que a mesma está prevista na lei – as supras citadas – e cominada como nulidade, concretamente insanável dada a previsão do corpo artigo 119º do CPP e a ser “oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais” e face à impossibilidade de repetição do acto nulo.

Esta inteligível conclusão arrasta a inutilidade de conhecimento das outras duas questões objecto do recurso e implica a necessidade de absolvição do arguido, já que não há actos processuais aproveitáveis.

Por aquilo que se acaba de expor é o recurso procedente


*

C – Dispositivo

Em face do exposto acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, declarando nulo o auto de notícia e sequente sentença, absolvendo o arguido do crime imputado.

Notifique.

Sem tributação.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 25-05-2023.
(processado e revisto pelo relator).


João Gomes de Sousa
Carlos Campos Lobo
Ana Bacelar