MEDIDA DE COAÇÃO
NECESSIDADES CAUTELARES
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
Sumário

I. A aplicação de qualquer medida de coação na fase inicial do inquérito visa dar resposta às necessidades processuais de natureza cautelar, que resultam da existência de qualquer um dos requisitos enunciados nas três alíneas do artigo 204.º CPP. E, pressupõe a observância, em concreto, dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (artigos 192.º e 193.º CPP), só devendo recorrer-se à prisão preventiva, sempre subsidiária das demais como extrema ratio, isto é, quando as restantes medidas de coação se revelarem inadequadas ou insuficientes.
II. O exercício descontrolado da violência por banda do arguido, evidenciadora de uma personalidade violenta, reclamando medida de coação detentiva, não implica, necessariamente, só por isso, a prisão preventiva, como se fora uma antecipação da pena.
III. Existindo as condições físicas e objetivas previstas na Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro – o que importa averiguar -, a contenção necessária deverá exercer-se de modo adequado através da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, em conformidade com o previsto nos artigos 193.º e 201.º CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de processo comum colectivo supra numerado que corre termos no Tribunal da Comarca de Beja - Juízo Local Criminal de Beja - a Mmª Juíza, por despacho de 13-01-2023 e após primeiro interrogatório de arguido detido, decidiu sujeitar o arguido

AA, filho de (…) - nascido em (…) e residente na (…) Cuba, a medida de prisão preventiva.


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Inconformado com aquela decisão dela interpôs o arguido o presente recurso, com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho dos autos n. 19/23.3GCBJA, do Juízo Local Criminal de Beja, Tribunal Judicial da Comarca de Beja, que após primeiro interrogatório judicial, determinou que o arguido devesse aguardar os ulteriores termos processuais em prisão preventiva, por existirem nos Autos fortes indícios de o arguido ter cometido um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelos artigos 145, n. 1, alínea c), e n. 2, 144., alínea a), por referência ao artigo 132, n.2, alínea l), do Código Penal; um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 145, n. 1, alínea a), e n. 2, 144, alínea a), por referência ao artigo 132, n. 2, alínea l), do código penal; um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292, n.1, e 69, n. l, alínea a) ambos do Código Penal e um crime de injurias agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181, n. 1, 184, 188, n.1, alínea a), com referência ao artigo 132, n.2, alínea l), todos do Código Penal.
2. O despacho recorrido ao aplicar a prisão preventiva à recorrente não obedeceu à excecionalidade da mesma violando, por erro e má interpretação, os artigos 191, nº 1, 193, 202, n° e 204º do Código de Processo Penal bem como os princípios constitucionais da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e da presunção de inocência previstos nos artigos 28°, nº 2 e 32°, nº 1 e 2, na medida em que considera inadequada e insuficiente uma medida não detentiva da liberdade.
3. A fundamentação da desadequação e da insuficiência de outras medidas de coação não obedece a critérios lógico dedutivos nem de razoabilidade nem tem suporte nos elementos de prova coligidos.
4. Nada de concreto resulta da factualidade indiciada que permita concluir pela verificação de perturbação do inquérito ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não há perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, porque ela se encontra protegida nos autos em "segredo de justiça" sendo certo que tais perigos terão que se verificar em concreto, não podendo basear-se em considerações genéricas ou apenas na natureza do crime imputado.
5. O arguido, no primeiro interrogatório, colaborou com a justiça e esclareceu o tribunal na descoberta da verdade, não tendo, este tribunal, valorado convenientemente, o seu depoimento.
6. O arguido, e aqui Recorrente, admitiu que entrou em discussão com o Sr. CC agente de autoridade, uma vez que aquele o obrigava a admitir que era ele que conduzia o veículo e não a sua mulher, obrigando-o a realizar do teste quantitativo de álcool, no aparelho de ar expirado.
7. Acabando ambos por se envolverem fisicamente, em ato continuo o Recorrente foi imobilizado pelos braços pelo agente DD, sendo imediatamente agredido pelo agente CC, e em ato irrefletido e em legitima defesa mordeu a ponta do nariz do agente CC.
8. Os factos que deram origem a tal envolvimento, não foram sequer considerados pelo douto Tribunal, e ao invés, o que deixa transparecer do douto despacho recorrido, é que o arguido do nada resolveu morder o nariz ao agente.
9. Tudo porque da versão constante do douto despacho ora em crise, o arguido domina a arte de muay thai.
10. Tal entendimento, salve o devido respeito, corresponde a um erro grosseiro de avaliação, aliás, o facto de o arguido ter praticado muay thai amador, serviu para no douto despacho fazer dele uma pessoa perigosa, e por sua vez justificar a aplicação da medida de coação mais gravosa.
11. Ainda assim, não considerou o fato de o arguido ter informado que praticou tal arte num período de cinco anos e que já não pratica há dez anos, desde 2013.
12. Chegando-se mesmo a afirmar no ponto 19 dos fatos indiciariamente provados que o arguido praticou durante 5 anos e que domina a arte marcial.
13. Concluímos com toda a certeza que a prática desportiva de artes marciais, não faz dos seus praticantes potenciais criminosos, sob pena de interpretação discriminatória relativamente a outros atletas.
14. O arguido não é uma pessoa violenta, ao contrário do que se pretende demonstrar, não tem nada averbado no seu registo criminal,
15. O arguido encontra-se familiar, social e profissionalmente inserido.
16. É motorista de pesados por conta de outrem, vive com a sua companheira, as suas duas filhas menores e a enteada.
17. Sendo ele o único sustento da família.
18. Foi a primeira vez que o arguido se viu perante uma situação destas, não tendo aquele por hábito ver se envolvido em desacatos, discussões, violência,...
19. Pois caso assim fosse, o seu registo criminal espelharia essa situação, nem tão o Recorrente beneficiou de qualquer suspensão provisória de processo.
20. A aplicação da medida mais gravosa de coação, prisão preventiva, vem deixar o arguido numa situação muito frágil, sendo este o único sustento do seu agregado familiar, e não tendo mais nenhum rendimento, não trabalhando não aufere qualquer vencimento.
21. Além do mais, o arguido não representa perigo, nem em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da sua personalidade, uma vez que não se pode avaliar uma pessoa pela prática de um ato isolado, ocorrido num determinado contexto.
22. Por tudo o que ficou exposto, e que correspondem a fatos provados, de onde é que resulta "que o carater do arguido não é conforme às regras basilares do direito... e a sua personalidade é impulsiva, violente e perigosa."?
23. Mais ainda, por tudo o que ficou exposto, e de toda a prova recolhida, de onde é que resulta "...ficou privado de importante órgão e desfigurado de forma grave e permanente."?
24. Tal conclusão prematura consta dos fatos indiciariamente provados no seu n.9, sem que tenha por base qualquer meio de prova que a sustente.
25. Em termos de prova indiciária não pode haver juízo de inferência, sem que estejam demonstrados os fatos que servem de suporte necessário a essa inferência.
26. Quanto ao juízo de inferência é imperioso que seja razoável, que não seja arbitrário, absurdo e infundado, o que não se verificou no caso concreto.
27. 0 Despacho recorrido justifica a aplicação da medida de coação de prisão preventiva com o perigo de perturbação do decurso do inquérito e, nomeadamente, perigo para a conservação ou veracidade da prova, e perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de continuação da atividade criminosa e perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas, nos termos das alíneas b) e c) do art. 204 do CPP.
28. Para que se verifiquem os perigos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 204., do CPP, exige-se uma verificação concreta dos referidos perigos que, no caso, podem ser prevenidos, designadamente, através de apresentações periódicas às autoridades policiais, nomeadamente PSP, nos termos do art. 198. CPP.
29. A aplicação da referida medida seria adequada e suficiente para satisfazer as exigências cautelares que se fazem sentir, no entanto, tal possibilidade nem sequer foi equacionada pelo douto tribunal.
30. Na verdade, nada de concreto resulta da factualidade indiciada que permita concluir pela verificação de perturbação do inquérito ou de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não há perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, porque ela se encontra protegida nos autos em "segredo de justiça".
31. Sendo certo que tais perigos terão que se verificar em concreto, isto é, deverão decorrer da factualidade indiciariamente apurada, não podendo basear-se em considerações genéricas ou apenas na natureza do crime imputado.
32. O despacho recorrido ao aplicar a prisão preventiva ao arguido não obedeceu à excecionalidade da mesma violando, por erro e má interpretação, os artigos 1919, n9 1, 1939, 2029, n9 1, e 2049 do Código de Processo Penal bem como os princípios constitucionais da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e da presunção de inocência previstos nos artigos 28°, n9 2 e 32°, n9 1 e 2.
33. Pelo que deve a medida de prisão preventiva imposta ao arguido ser imediatamente revogada e substituída por outra, de carácter menos gravoso, que satisfaça as exigências de necessidade, adequação e de proporcionalidade a que se reporta o artigo 193. do CPP, designadamente, através de apresentações periódicas às autoridades policiais, nos termos dos arts. 198. e 200. do CPP.
34. Caso assim não se entenda, o que desde já não se admite, deverá a medida de coação prisão preventiva ser substituída e o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, ou, quaisquer outras medidas de coação que se revelem necessárias, adequadas e proporcionais ao caso concreto.
Termos em que, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, pelo que deve a medida de prisão preventiva imposta ao arguido ser imediatamente revogada e substituída por outra, de carácter menos gravoso, que satisfaça as exigências de necessidade, adequação e de proporcionalidade a que se reporta o artigo 193. do CPP, designadamente, através de apresentações periódicas às autoridades policiais, nomeadamente PSP, nos termos dos arts. 198. e 200., do CPP. Caso assim não se entenda, o que desde já não se admite, deverá a medida de coação prisão preventiva ser substituída e o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, ou, quaisquer outras medidas de coação que se revelem necessárias, adequadas e proporcionais ao caso concreto.

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A Digna Procuradora-Adjunta junto do tribunal recorrido apresentou resposta defendendo o decidido, concluindo:

1. Os autos indiciam fortemente a prática pelo arguido AA de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.°, n.° 1, alínea a), e n.° 2, 144.°, alínea a), por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea 1), do Código Penal; um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.°, n.° 1, alínea c), e n.° 2, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea 1), do Código Penal; um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.°, n.° 1, e 69.°, n.° 1, alínea a), ambos do Código Penal e um crime de injúria agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.°, n.° 1, 184.°, 188.°, n.° 1, alínea a), com referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea 1), todos do Código Penal.
2. Da decisão recorrida constam devidamente elencados todos os elementos de prova que fundamentaram a decisão e, ao contrário daquilo que o recorrente alega, nesta fase processual exige-se, tão-só, que a decisão sobre a medida de coacção efectue um juízo de indiciação sobre os factos relativos à imputação dos crimes e um juízo de indiciação sobre os factos relativos aos “perigos” previstos no art. 204° do Código de Processo Penal.
3. O arguido vem, agora, socorrer-se de uma tese de legítima defesa, quando espontaneamente confessou em sede de primeiro interrogatório judicial que não foi agredido por parte dos guardas que se encontravam consigo no Posto Territorial de Beja, tendo, por isso, actuado sem qualquer tipo de provocação ou justificação.
4. Sem prejuízo dos demais factos praticados, chama-se à colação que o arguido mordeu e arrancou parte considerável do nariz do militar da GNR CC, e fê-lo, não de forma inadvertida, mas apenas porque queria magoá-lo. 
5. Bastará atentar para os fotogramas e elementos clínicos constantes dos autos para se perceber a gravidade das lesões provocadas no Guarda CC, cuja extensão, configuração, zona atingida e acentuada visibilidade, consubstancia, nos termos e para os efeitos da alínea a) do artigo 144.° do CP, desfiguração grave e permanente.
6. Entendemos, por isso, que os factos são bem reveladores da personalidade e perigosidade do arguido, principalmente quando ataca de forma bárbara agentes da autoridade no exercício de funções sem qualquer tipo de provocação ou justificação.
7. Verificam-se os pressupostos de aplicação da medida de coacção prisão preventiva ao arguido, em concreto, perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública e continuação da actividade criminosa, em razão da natureza e das circunstâncias dos crimes e da personalidade do arguido, a que se referem o artigo 204.° do CPP.
8. Os crimes imputados ao arguido são muito graves e geram forte alarme social, causando perturbações no tecido social e abalando a tranquilidade pública, dada a violência imprimida nos actos cometidos contra agentes da autoridade no exercício de funções, sendo natural que a comunidade e cidadãos se sentissem receosos se alguém tão violento e imprevisível pudesse movimentar-se livremente.
9. As circunstâncias apuradas indiciam também o perigo de que o arguido, quer em razão da sua personalidade, quer em razão da natureza dos crimes praticados, continuar com a prática de atos da mesma índole ou mais graves, acreditando-se ser elevado o risco de letalidade associado à sua liberdade.
10. A medida de coacção de permanência na habitação, ainda que com recurso à vigilância electrónica, é inadequada à tutela das concretas necessidades cautelares que no caso se fazem sentir, sendo a prisão preventiva, a única medida adequada a tal finalidade, designadamente a debelar a intensidade dos perigos que se verificam. 
11. Termos em que se conclui pela manutenção da decisão recorrida, devendo assim o presente recurso ser julgado improcedente e consequentemente ser mantida a medida de coacção prisão preventiva a AA.
Pelo exposto, é o nosso entendimento que não assiste razão ao recorrente devendo, ser-lhe negado provimento.

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Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer, arguindo:

Sem prejuízo de melhor opinião, temos como notoriamente demonstrado o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, mas temos dúvidas sobre a concreta verificação do perigo de perturbação do inquérito, e não vemos que o mesmo possa resultar da fundamentação da decisão recorrida.
Não nos parece que a prisão preventiva seja apta a impedir que o arguido contacte as testemunhas suas familiares que terão assistido aos factos, ou sequer que possa ser aplicada medida de coação para obstar à prerrogativa prevista no artigo 134.º do Código de Processo Penal, caso seja aplicável, nem se vislumbram factos concretos de onde resulte que o arguido disponha de algum efetivo poder de influenciar os depoimentos dos militares da GNR, ou que estes sejam vulneráveis nessa matéria.
Entendemos que a gravidade dos factos praticados reclama a aplicação de medida de coação detentiva, mas admitimos que, caso seja viável a aplicação da medida de coação de obrigação e permanência na habitação, sujeita a vigilância eletrónica, esta possa ser aplicada ao arguido, porquanto a mesma responde adequada, cautelar e proporcionalmente às exigências do caso concreto.


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Foi observado o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.

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B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, as seguintes circunstâncias de carácter processual, o teor do interrogatório judicial e do despacho recorrido, como segue:

B.1.A – Dos autos:

- O arguido foi presente e judicialmente interrogado a 13-01-2023;

- Na sequência foi sujeito – nesse acto – à medida de coacção de prisão preventiva depois de lhe ter sido imputada a prática de:

- um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, 144.º, alínea a), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal; e punido com pena de prisão de 3 a 12 anos;
- um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal punido com pena de prisão até 4 anos;
- Um (01) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal punido com pena de prisão até 1 ano;
- um (01) crime de injúria agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, n.º 1, 184.º, 188.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, punido com pena de prisão até 4 meses e 15 dias;
- O arguido apresentou recurso onde peticiona a substituição da medida de coacção antes aplicada pela de obrigação de permanência na habitação;


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B.1.B – Teor parcial (transcrito) do despacho lavrado em interrogatório judicial de arguido detido:

«I. Factos indiciariamente provados
1. No dia 13.01.2022, pelas 03h20min, o arguido AA conduzia o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula XX-XX-XX, na Estrada Municipal 528-2, em de Beja.
2. Neste circunstancialismo de tempo e lugar ao arguido foi-lhe dada ordem de paragem por DD e CC, ambos militares da GNR devidamente fardados, uniformizados e no exercício das suas funções.
3. Após fazer o teste qualitativo de despistagem do álcool o arguido AA acusou uma TAS positiva, pelo que foi transportado para as instalações do Posto da GNR de Beja, na Rua Marquês de Pombal, em Beja, para efetuar o teste quantitativo no aparelho de ar expirado.
4. Aí chegados, pelas 03h49min, o arguido AA foi testado no aparelho de ar expirado, tendo acusado uma Taxa de Álcool no Sangue de, pelo menos, 1,653g/L.
5. Nesta altura e sem que nada o fizesse prever o arguido AA dirigindo-se para o Militar da GNR CC, proferiu as seguintes expressões: “…eu não estava a conduzir, és um filho da puta, não tenho medo de ti nem de nenhum cabrão…”.
6. Em seguida o arguido AA pontapeou mesas e cadeiras, perante esta situação os Militar da GNR CC e DD tentaram imobilizar o arguido.
7. O arguido AA utilizando da sua força muscular, desferiu empurrões nos militares da GNR CC e DD projetando-os para o solo, ficando o arguido por cima do militar da GNR CC.
8. O arguido AA sem que nada o fizesse prever desferiu uma dentada no nariz do militar da GNR CC, arrancando-lhe parte daquele órgão.
9. Com as condutas do arguido AA o militar da GNR DD sofreu dores nas partes do corpo atingidas, e o militar da GNR CC além das dores nas partes do corpo atingidas, ficou privado de importante órgão e desfigurado de forma grave e permanente.
10. O arguido AA agiu com o propósito concretizado de desferir empurrões nos militares da GNR, bem sabendo que dessa forma lhes molestava o corpo e a saúde, provocando-lhes dores e sofrimento, o que quis e conseguiu, bem sabendo que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções como agentes da autoridade.
11. O arguido AA agiu com o propósito concretizado de desferir uma dentada no nariz de CC militar da GNR, bem sabendo que dessa forma lhe molestava o corpo e a saúde, provocando-lhes dores e sofrimento, e lhe arrancaria parte do nariz, o que quis e conseguiu, bem sabendo que o mesmo se encontrava no exercício das suas funções como agente da autoridade.
12. Ao proferir as referidas expressões o arguido AA sabia que eram aptas a atingir a honra e consideração pessoal e profissional do visado, e ciente dessas características não deixou de as proferir, no local e nos moldes referidos, o que quis e conseguiu, bem sabendo que o meio por si utilizado era idóneo à produção daquele resultado e que o fazia contra um agente de autoridade no exercício das suas funções e por causa delas.
13. O arguido antes de iniciar o exercício da condução havia ingerido bebidas alcoólicas.
14. O arguido conhecia as características da viatura e do local onde conduzia.
15. O arguido agiu ciente de que se encontrava a conduzir um veículo, após ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para apresentar uma TAS superior a 1,2 g/l, conformando-se com tal resultado ao não abster-se de conduzir.
16. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas ações, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, não se coibindo de agir como agiu.
Mais, resultou indiciado que:
17. O arguido exerce a profissão de motorista de pesados.
18. Vive com a companheira e os filhos.
19. Praticou muay thai durante cerca de 5 anos, dominando a técnica desta arte marcial.
20. O arguido não tem antecedentes criminais

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Factos indiciariamente não provados Inexistem.
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II. Os factos resultam fortemente indiciados da conjugação dos seguintes elementos: - Auto de inquirição da testemunha CC, militar da GNR; - Auto de inquirição da testemunha DD;
- Auto de notícia de fls. 3 e ss.;
- Relatório fotográfico de fls. 5 a 7;
- Relatórios clínicos de fls. 19, 22 e de fls. 36 e ss.;
Do respectivo teor resulta, nomeadamente, que o agente CC foi “amputado do terço distal do nariz desde a columela ao dorso”, na sequência da agressão descrita nos autos;
- Talão de alcoolímetro de fls. 20;
- Declarações do arguido acerca dos factos e das suas condições pessoais, familiares e profissionais, prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial;
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O arguido prestou declarações acerca dos factos que lhe são imputados, tendo admitido a agressão perpetrada contra o ofendido CC e negando toda a demais factualidade.
A este respeito, esclareceu o Tribunal que mordeu o agente da autoridade, na zona do nariz porque caiu em cima dele, na sequência de uma altercação ocorrida no posto policial, para onde foi levado para ser submetido ao teste de alcoolemia, na sequência de um procedimento de fiscalização. Tal situação ocorreu na presença de militares e de familiares do arguido, nomeadamente da sua companheira e progenitora.
Referiu expressamente não ter sido agredido pelo agente CC, que a sua conduta não resultou de qualquer acto de defesa contra qualquer acto perpetrado contra si e que mordeu o agente da autoridade porque foi “a primeira coisa que apanhou”, como poderia ter sido “um olho ou uma orelha”.
Admitiu, outrossim, a sua intenção era magoar o agente da autoridade.
Depois, referiu ainda que foi praticante de artes marciais, nomeadamente da modalidade de muay thai, dominando a técnica e sabendo perfeitamente como defender-se de um ataque, sem magoar o “potencial” agressor.
A versão do arguido, quando aos factos que admitiu ter praticado, veio dar sustentação probatória aos indícios já constantes dos autos, reforçando-a. Por outro lado, acentua e faz notar a sua personalidade, avessa ao Direito, e o seu carácter violento, impulsivo e perigoso.
Quanto aos demais, factos as declarações do arguido não colocaram em causa o juízo probatório indiciário já constante dos autos.
Efectivamente, os indícios apurados mostram-se cabalmente sustentados pelo teor das declarações prestadas pelas testemunhas, pelos elementos clínicos juntos aos autos e, bem assim, nas declarações dos arguidos.
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Os factos indiciados são abstratamente enquadráveis na prática de:
- um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, 144.º, alínea a), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal; e punido com pena de prisão de 3 a 12 anos;
- um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal punido com pena de prisão até 4 anos;
- Um (01) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal punido com pena de prisão até 1 ano;
- um (01) crime de injúria agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º, n.º 1, 184.º, 188.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, punido com pena de prisão até 4 meses e 15 dias;
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A aplicação de medidas de coacção em processo penal está sujeita a apertados condicionalismos. Tratando-se de limitar a liberdade das pessoas, sempre haverá que respeitar o princípio da proporcionalidade, nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, vertido igualmente no artigo 193.º do Código de Processo Penal.
As medidas de coacção assumem carácter instrumental, destinando-se a acautelar os perigos previstos no artigo no artigo 204.º do Código de Processo Penal
Mesmo quando se verifique um destes perigos, em concreto, a aplicação das medidas depende: (i) da prévia constituição como arguido – artigo 192.º, n.º 1 do C.P.P.; (ii) e de um juízo positivo de necessidade e adequação às exigências cautelares que o caso requerer e de proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas – artigo 193.º, n.º 1 do Código de Processo Penal
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O Ministério Público requereu a aplicação de prisão preventiva, por ser a única adequada, no seu entender, a acautelar perigos previstos no artigo 204.º a). e c) do C.P.P., designadamente o perigo de perigo de fuga e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade pública.
Por seu lado, a defesa manifestou-se no sentido de ainda ser admissível no caso concreto a obrigação de permanência na habitação, por ainda acautelar os perigos que se fazem sentir nos autos.
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Os crimes indiciados permitem aplicação da medida proposta (artigo 202.º, n.º 1, alíneas a) e d) do Código de Processo Penal, restando apreciar da sua necessidade.
À luz dos factos indiciados, verifica-se, com indiscutível clareza, que está presente o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas.
Com efeito, dos factos que se encontram fortemente indiciados resulta que o carácter do arguido não é conforme às regras basilares do Direito (não se denotando que tenha percebido o desvalor da sua conduta) e a sua personalidade é impulsiva, violenta e perigosa.
Relembre-se que o arguido, ex-praticante de muay thai e conhecedor desta arte marcial, admitiu não ter sido agredido antes de ter mutilado o agente CC com os dentes (amputando-lhe o nariz), não se inibindo de o fazer num posto policial, na presença de vários agentes da autoridade. Ademais, referiu que era sua intenção magoá-lo e que a agressão perpetrada foi porque foi a primeira coisa que “lhe apareceu”.
Por outro lado, os factos indiciados causam forte alarme social na comunidade e sentimentos de impunidade e desacreditação, em particular na Comarca de Beja, tanto mais porque praticados contra agentes da autoridade, no exercício das suas funções.
Ao quadro descrito, há que acrescentar que existe perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
O arguido referiu estar acompanhado de familiares à data da prática dos factos e não se coibiu de agredir um militar da GNR, num posto da GNR, de forma atroz, inopinada e desproporcional.
As testemunhas a inquirir serão militares da GNR que presenciaram os factos e familiares do arguido, pelo que resulta claro que este poderá encetar diligências junto destas, a fim de constrangê-las a alterar os seus depoimentos ou não os prestarem (o que é evidente em face do estado dos autos), de todo, de acordo com o critério de normalidade
Contudo, entende o Tribunal, ao contrário do aventado pelo Ministério Público que não existe perigo de fuga por parte do arguido, considerando que resultou indiciado que tem uma estrutura familiar e exerce uma profissão com carácter de regularidade, da qual extrai rendimentos.
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Para acautelar tais riscos, não se mostra adequado o TIR, por não ter intensidade suficiente para conter o impulso criminoso.
Também não se afigura adequada, em concreto, a caução carcerária.
A obrigação de apresentações periódicas não acautela as exigências cautelares que se fazem sentir no caso, uma vez que o arguido, em liberdade disporia da possibilidade de reincidir na prática dos delitos indiciados, tanto mais que os factos foram praticados na área de residência do agente.
Idêntico raciocínio se empreende relativamente às medidas de coação previstas nos artigos 199.º e 200.º do Código de Processo Penal, claramente insuficientes para debelar os perigos no caso concreto, em face da personalidade do agente e da gravidade dos factos que lhe são imputados.
Entende-se que face à elevada ilicitude dos factos (atendendo à natureza destes), à sua gravidade (nomeadamente das consequências para o ofendido CC), aos perigos referidos e à sua intensidade, qualquer medida não detentiva da liberdade se revela insuficiente para satisfazer as exigências cautelares.
A obrigação de permanência na habitação, prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância não se afigura adequada e necessária a debelar as descritas exigências cautelares que se fazem sentir “in casu” (artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa), uma vez que se desconhece (oficialmente) se a residência do arguido têm as condições necessárias à aplicação de tal medida, o arguido permanecia em contacto diário com testemunhas presenciais dos factos e, por outro lado, não se afigura que tal medida impeça o arguido não perturbar a aquisição, veracidade e conservação da prova nos autos ou mesmo de continuar a actividade criminosa, tendo em conta a sua personalidade espelhada na natureza dos factos indiciados, conforme se disse supra.
Acresce que, pelos descritos motivos, conclui-se que a pena previsivelmente aplicável nestes autos será detentiva.
Deste modo, a medida de prisão preventiva afigura-se como a única adequada, necessária e proporcional aos factos praticados pelo arguido e às exigências cautelares que se fazem sentir no caso concreto, restando concluir pela sua aplicação ao arguido.
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Em face do exposto, determino, nos termos dos artigos 191.º, 192.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas a). e d). e 204.º, al. b) e c) do Código de Processo Penal, que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito:
- A termo de identidade e residência, já prestado nos autos;
- À medida de coacção de prisão preventiva.»
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B.2 – Cumpre conhecer.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação.

O recorrente suscita, em resumo, uma questão, a substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela sujeição a obrigação de apresentação periódica à entidade policial da área de residência e, subsidiariamente, pela medida de obrigação de permanência na habitação, para tanto invocando razões de inserção social (conclusões 13ª a 18ª), um acto irreflectido da sua parte e inexistência dos perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação de inquérito e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas

Desde logo haverá que afirmar que o tribunal recorrido não foi omisso na assunção de uma posição contra a medida de obrigação de permanência na habitação. Foi explícito e claro: não é medida adequada. Questão está em saber se existem fundamentos para tal conclusão.

Depois haverá que ponderar os vários argumentos adiantados pelo recorrente ao longo das suas conclusões que não podem ser atendidos nesta fase processual, meramente indiciária e não probatória (no sentido de juízo final quanto à prova).

Vão neste sentido a alegação de legítima defesa (conclusões 6ª a 8ª) para a qual não há indícios, as sequelas no nariz do militar da GNR (conclusões 9ª a 13ª e 23ª a 26ª), as quais ainda necessitam de realização de perícia médica - naturalmente ainda inexistente pois que no início do inquérito – a alegação de inserção social (conclusões 15ª a 19ª) pois que pouco relevante por não estarmos em sede de aplicação da pena e, por si, argumento incapaz de afastar os perigos a que a lei – neste momento – manda atender.

Pelo que – pois esse é o objecto do recurso e dos pedidos formulados pelo recorrente – haverá que passar à apreciação dos riscos cautelares que sustentaram a decisão do tribunal recorrido.

E aqui concordamos com a posição expressa pela Exmª PGA pois que não obstante o acto de extrema violência praticado, não estamos em fase de apreciação final da conduta do arguido e de aplicação de sanção, sim de uma fase processual em que se impõe apenas saber se o recorrente deve aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida cautelar mais gravosa.

A continuação da actividade criminosa surge como problemática e indeterminada dada a diferente natureza dos actos praticados e gravidade diversa dos crimes imputados. Naturalmente que não se refere ao consumo excessivo de álcool ingerido pré-condução, sim pela prática do crime mais grave, as ofensas corporais.

Quanto a este a argumentação do tribunal recorrido olvida que o acto praticado (morder o nariz) nada tem a ver com o conhecimento de técnicas de artes marciais, sim com o cariz da personalidade do arguido e o exercício descontrolado da violência, o que pode ser combatido por medida que não a prisão preventiva, pois que esta não é a antecipação da pena.

Quanto ao perigo de perturbação do inquérito não se vê como ela se possa concretizar nuns autos que se limitam a ter como testemunhas da ocorrência os familiares do arguido (cônjuge e mãe do arguido, que nunca serão impedidos de com ele falar, mesmo em prisão preventiva) e dois militares da GNR, que nunca serão influenciados por aquele.

Quanto à perturbação da ordem e tranquilidade públicas reconhecemos e temos presente o risco ínsito no comportamento do arguido no que respeita à violência sempre latente na cultura alentejana (“Alentejo Prometido”, de Henrique Raposo, pags. 55 a 68, Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016) e aos recentes e muito generalizados casos de violência contra agentes policiais, mas tal circunstância pode ser combatida por medida diversa da prisão preventiva.

Não, claramente (porquanto insuficiente e a actuação do arguido revela alguma agressividade perante forças de segurança), pela obrigação de apresentações num posto policial, mesmo que de força de segurança diversa, sim pela obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica, haja condições físicas para tal.

Ou seja, concorda-se com a opinião da Exmª PGA e a decisão do tribunal recorrido deve ser revertida e, por isso, que o recurso deva proceder no sentido de o tribunal recorrido providenciar, de imediato, pela substituição da medida de coacção imposta.

Para tanto e independentemente do trânsito desta decisão comunique de imediato o sentido desta decisão ao tribunal recorrido para que providencie, urgentemente, pelo apurar de condições para aplicação da medida de obrigação permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica, aguardando o arguido na situação em que se encontra para apurar da exequibilidade da medida.

A natureza da alteração da medida imposta – e porque dependente da verificação da existência de condições físicas para a sua aplicação – tal impõe.


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C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto, decisão condicionada pela verificação da sua exequibilidade.

Comunique de imediato ao tribunal recorrido, independentemente do trânsito em julgado da decisão.

Sem tributação.

Notifique.

(Processado e revisto pelo relator)
Évora, 25-05-2023.
(processado e revisto pelo relator).

João Gomes de Sousa
Carlos Campos Lobo
Ana Bacelar