ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
ARGUIDO
IRREGULARIDADE
PODERES DO JUIZ
CELERIDADE PROCESSUAL
Sumário

I – O princípio da economia processual, concebido como a proibição da prática de atos inúteis / supérfluos / desnecessários / estéreis impõe a todos que evitem / abstenham / atalhem a prática de passos que não surtindo o menor efeito na substância / mérito do processo, apenas encerram o puro efeito de o complicar / emaranhar / protelar.
II – Com acolhimento no artigo 130º do CPCivil, não tem normação direta equivalente no CPPenal tendo, no entanto, aqui aplicação por força do plasmado no seu artigo 4º, sendo que no ordenamento processual penal vigente, há claros afloramentos ao referido brocardo em diversas normas, mormente nos artigos 311º, nº 2, alínea a), ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e 420º, nº 1, alínea a), que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.
III - Tendo-se procedido à notificação da acusação ao arguido residente no estrangeiro onde os serviços postais não podem garantir as formalidades legais consignadas na lei portuguesa, podem suscitar-se dúvidas sobre se foi praticado um ato processual respeitando as exigências expressas nos normativos combinados dos artigos 113º, nº 1, alíneas b) e c) e 283º, nº 6 do CPPenal.
IV – Conquanto, havendo diversos sinais nos autos de que o arguido foi na verdade notificado da acusação contra si deduzida e que nada suscitou quanto a tal, parece ser de concluir que aceitou como boa a notificação havida.
V- Acresce que este quadro não configura nulidade insanável nem nulidade dependente de arguição nos termos do plasmado, respetivamente, nos artigos 119º e 120º do CPPenal, podendo constituir antes uma irregularidade com previsão no nº 2 do artigo 123º do CPPenal pois, estando em causa uma situação passível de afetar / diminuir o espaço de garantia de direitos fundamentais, como seja o reagir atempada e prontamente a uma acusação e, nessa medida, esta ter que chegar devidamente ao seu destinatário, emerge situação em que o julgador pode e deve intervir oficiosamente por não ter havido arguição tempestiva.
VI – Assim, podendo o juiz ordenar ex officio a reparação / correção de qualquer irregularidade, não tem o mesmo o poder de determinar que o Mº Pº a repare , sendo que de todo o regime consignado no artigo 123º do CPPenal, tendo o tribunal, oficiosamente, entendido e detetado uma eventual irregularidade, não está o mesmo impedido, antes o reclamam os princípios da economia e celeridade processuais, de a reparar / corrigir, sem necessidade de dar sem efeito a distribuição e de ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público.
VII – Estando os autos na esfera de apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem para o seu suprimento, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência.
VIII -Diga-se, ainda, que considerando o princípio da economia processual e ponderando a máxima da celeridade, estando o processo no domínio do juiz nada ressaltando da lei que o proíba de o fazer, crê-se que recomendam a cautela / ponderação / razoabilidade, que se tivesse determinado a imediata reparação do vício, evitando-se delongas com devoluções, baixas de distribuição, recursos e, consequentemente a prática de atos inúteis sem qualquer vantagem / peso / interesse na realização da justiça material

Texto Integral


Acordam em Conferência na Secção Criminal (2.ª Subsecção)

I – Relatório


1. O processo de inquérito com o nº 286/18.4IDSTB, que correu termos na Comarca ..., no Ministério Público – Departamento de Investigação e Ação Penal – Secção de ..., culminou com acusação deduzida, entre outros, contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos artigos 6º e 105º, nº 1, da Lei nº 15/2001, de 5 de junho.

2. Efetuada a notificação da acusação deduzida e, não tendo sido requerida a instrução foram os autos remetidos ao Tribunal, para os efeitos do estatuído no artigo 311º do CPPenal.
Recebidos os autos, veio a ser proferido despacho que, considerando ter havido irregularidade na notificação da acusação ao arguido AA, determinou a remessa daqueles aos Serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

3. Inconformado com este despacho, veio o Digno Mº Pº recorrer, defendendo o que se extrai das respetivas conclusões: (transcrição)
1 - Nos presentes autos foi deduzida acusação além do mais contra o arguido AA dos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105, n.º 1, do Código Penal.
2 - Adiantando-nos desde já à parte final do presente recurso, não se nos afigura que assista salvo o devido respeito por opinião contrária, qualquer margem de razão, em relação a qualquer um dos pontos sobre que incidiu o d. despacho judicial de que ora se recorre.
2 - Não se afigura que procedeu o Tribunal “a quo”, apreciando de forma correta, de acordo com as normas legais aplicáveis, e de acordo com as regras da experiência comum, toda a prova constante dos autos, afigurando-se-nos por isso justa a d. decisão que venha a determinar o recebimento da acusação do Ministério Público, pois o ora Recorrente, salvo o devido respeito por opinião contrária não vislumbra nulidades, exceções e/ou questões prévias de que importe conhecer, não se afigurando que se trate de irregularidade, prevista no art.º 123, n.º 1, do C. P. Penal.
3 - Neste sentido cita-se o sumário relativo ao referido d. Acórdão do TRG, constante na internet, proferido no Proc. n.º 540/14.4 GCBRG.G1, datado de 06-02-2017, “ II) Se estiver em causa a falta de notificação do M.º P.º ao arguido e mesmo que se entenda que o juiz deve reparar oficiosamente essa irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao M.º P.º essa reparação. É que não cabe na esfera de competência do juiz julgador censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito.”
4 - Resulta do referido Acórdão do TRG que se tendo entendido estar-se perante o vício constante do art.º 123, n.º 1, do C. P. Penal e não no previsto no n.º 2, do art.º 123, do C. P. Penal, “não podia o tribunal dele conhecer oficiosamente, apenas podendo ser o vício arguido pelos interessados no prazo aí previsto.”
5 - Mais consta no mencionado d. Acórdão do TRG, que “V. Mas mesmo que, em última instância, se admitisse que o tribunal de julgamento pudesse conhecer oficiosamente de tal irregularidade, ainda assim, o tribunal não pode devolver os autos ao Ministério Público para efeitos de ser corrigida uma eventual irregularidade de notificação da acusação, sob pena de violação do art.º 311º do CPP e dos princípios do acusatório e da autonomia e independência do Ministério Público, previstos nos arts. 32º, nº 5 e 219, respetivamente, da CRP.
6 - VI. Neste último caso a eventual irregularidade sempre deveria ser corrigida pela secretaria do tribunal e não através da devolução dos autos ao Ministério Público para esse efeito. VII. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto nos arts. 113º, nº 1, 123, nº 1 e 311º, nº 1, todos do CPP.”
7 - No mencionado d. Acórdão do TRG menciona-se que “Mas ainda que fosse entendimento do Juiz que era de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenado a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal contém implícita uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido – decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.” E no referido d. Acórdão do TRG consta “ … - Assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal “, UCE, 2ª edição actualizada, ps. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende que “pelos motivos já exposto, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação”.
8 - O arguido AA fez chegar aos autos carta/documento pelo mesmo exarado, constante a fls. 1080, no qual exarou a Referencia n.º ...56 correspondente esta à sua notificação da acusação conforme fls. 1054, donde resulta que o mesmo foi constituído arguido e notificado da acusação proferida nos presentes autos, a fls. 1041 a 1045.
9 - Mais consta do print dos CTT, a fls. 1079, que a notificação com a referida ...56 foi “Entregue a: AA”, pois têm ambos a mesmo registo e código de barras dos CTT, ou seja ....
10 - Constata-se assim documentalmente comprovado nos autos a constituição de AA como arguido, bem como que foi inquestionavelmente notificado da acusação proferida nos presentes autos.
11- Mais se confirma conforme “documento” dos Correios que o mesmo exarou na sua morada, cfr. fls. 1081, correspondente à sua morada para a qual foi enviada a mencionada notificação, conforme fls. 1054.
12 - Atento o exposto constata-se que nos autos se verificou a interrupção da prescrição, com a constituição de AA como arguido e com a notificação da acusação a este, art.º 121, n.º 1, al.(s) a) e b), do Código Penal.
13 - Assim, verificou-se igualmente a suspensão da prescrição do procedimento criminal quanto ao arguido AA, nos termos do art.º 120, n.º 1, al. b), do Código Penal, onde dispõe “O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação …”.
14 - Assim, somos de parecer que deverá o d. despacho judicial recorrido ser substituído por d. despacho judicial que determine a autuação como processo comum com intervenção de Tribunal Singular, recebendo-se a acusação deduzida pelo Ministério Público, e se determine a realização de audiência de julgamento.
15 - Deste modo, considera-se que valorando as provas e as normas legais em apreço corretamente, conjugando-as e analisando-as à luz das regras da experiência, e assim observadas estas premissas, outro resultado não se afigura poder ser obtido que não seja a justeza do recebimento da acusação deduzida contra o arguido, atento nomeadamente o supra descrito.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, concedendo provimento ao recurso e, em consequência revogando o d. despacho judicial recorrido e determinando o recebimento da acusação deduzida contra o arguido AA, V. Excelências, agora, como sempre, farão a já costumada, JUSTIÇA.

4. Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do CPPenal, emitiu parecer pronunciando-se (…) entendemos que a existir seria mera irregularidade na notificação da acusação e que por isso não é de conhecimento oficioso, pelo que deverá o recurso ser julgado procedente, ordenando-se, em consequência, que o tribunal a quo proferira despacho de recebimento ou rejeição da acusação[1].

Nada foi dito quanto ao Parecer.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Thema Decidendum

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que ainda possam ser objeto de pronunciamento, o âmbito do recurso é dado, nos termos do artigo 412º, nº 1 do citado complexo legal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Digno Mº Pº, importa apreciar e decidir a seguinte questão: verificação da efetiva existência de algum vício, mormente a irregularidade tratada no artigo 123º do CPPenal, passível de sanação, oficiosa, pelo Tribunal.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido pronunciou-se da seguinte forma: (transcrição)

Vieram os presentes autos à distribuição, na sequência da dedução de acusação pública, pela prática de um crime de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, contra, além do mais, AA (cf. fls. 1041 a 1045).
Calcorreados os autos, apuramos que AA não foi, em sede de inquérito, constituído arguido, nem prestou TIR, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 57.º do Código de Processo Penal.
A notificação da acusação pública foi expedida para a morada 63, ... ... – ... (cf. fls. 1054).
Nos autos consta o print do site da internet da página oficial dos CTT, cuja pesquisa do objeto a que respeita a aludida missiva tem como resultado que foi entregue (cf. fls. 1079).
Não foi devolvido o aviso de receção.
Ora, como dissemos, o arguido não prestou TIR.
Ainda que tivesse prestado e o tivesse prestado na aludida morada, a notificação da acusação pública para a mesma não poderia ser efetuada por via postal, simples ou registada, nos termos do disposto nos artigos 113.º, n.º 1, al. b) e c), 282.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, desde logo porque os serviços postais estrangeiros não garantem as formalidades legais previstas na lei portuguesa.
Aliás, no caso vertente, constatamos que não existe qualquer demonstração inequívoca e idónea nos autos de que a carta expedida foi, efetivamente, entregue, não tendo sido solicitado, por exemplo, aos serviços postais tal confirmação.
Porém, ainda que o tivesse sido, como vimos, o arguido não prestou TIR e a morada que conhecemos é em território estrangeiro.
Assim, a tentativa de notificação do arguido da acusação deduzida foi efetuada por via postal registada com aviso de receção para morada em território estrangeiro, não tendo sido devolvido o aviso de receção – ou a própria missiva – pelos serviços postais do respetivo país devolvido.
O Ministério Público determinou a emissão de DEI para a morada de AA, comunicada pelo próprio a fls. 347, como o fito, designadamente, de ser o mesmo constituído arguido e prestar TIR nos autos (cf. fls. 687 a 706).
Na sequência de pedidos de informação junto do processo n.º 3182/18...., foi apurada a morada acima referida (cf. fls. 943), ou seja, 63, ... ... – ....
Nesse seguimento, o Ministério Público determinou que fosse comunicada a nova morada apurada «em complemento da que consta da DEI, e também para cumprimento urgente desta» (cf. fls. 952), o que entendemos ter sido a renovação daquele instrumento, agora considerando a mais recentemente conhecida morada a AA.
Aguardando-se o cumprimento da referida DEI, o Ministério Público deduziu acusação pública, além do mais, contra AA e, posteriormente, ordenou que fosse devolvida a mesma, no estado em que se encontrasse, sem cumprimento.
O Ministério Público não se pronunciou acerca de qualquer óbice à regular e formal constituição de AA como arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, ou à tomada de TIR ao mesmo. Nem, salvo o devido respeito por opinião diversa, se perspetivam quaisquer impedimentos, na medida em que foi apurada uma morada – 63, ... ..., ... – que o Ministério Público, a dado passo, parece ter ignorado, na medida em que determinou a devolução da DEI sem cumprimento e já após ter deduzido acusação, cogitando-se que tal se tenha ficado a dever à morosidade do respetivo cumprimento.
Ressalvo o respeito por entendimento diverso, que é muito, não podemos concordar com tal posição, uma vez que não foi lançado mão da competente carta rogatória para notificação do arguido, residente em ..., o que, em nosso entender, consubstancia uma irregularidade de conhecimento oficioso.
Dispõe o artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, por remissão para o nº 3 do artigo 277.º, a obrigatoriedade de o Ministério Publico notificar a acusação ao arguido e ao seu Defensor/Mandatário, sendo que, nos termos do n.º 6 daquele artigo 283.º, tais comunicações são efetuadas mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido e o assistente tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que são notificados mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º.
Pelo que já expusemos, in casu, não se afigura admissível proceder às notificações em apreço por via postal, pelo que resta recorrer à notificação por contacto pessoal, rectius, por carta rogatória.
A omissão de tal formalidade legal constitui a irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, irregularidade essa do conhecimento oficioso, uma vez que tal irregularidade coarta os direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados, diminuindo as suas garantias.
Ora, no que diz respeito ao ato de notificação da acusação ao arguido, o mesmo não tem apenas como único objetivo facultar ao mesmo a possibilidade de requerer a abertura da fase facultativa da instrução, visando, igualmente, dar-lhe a conhecer que o Ministério Público considerou existirem indícios suficientes de que praticou um crime e que, por essa razão, será julgado.
De acordo com o n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, é permitida a continuação do processo quando os procedimentos de notificação os tenham revelado ineficazes.
A lei não refere que o processo prossegue quando os procedimentos se revelem morosos, mas sim ineficazes (v. Acórdão do TRL, e 25-03-2018, Proc. 123/16.4PGOER.L1-3). Daqui se conclui que existe a obrigação legal de tudo fazer para notificar o arguido mesmo que daí decorra alguma demora. A situação prevista no artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, é uma situação excecional, que só se aplica quando se mostrarem esgotadas as possibilidades de notificação da acusação ao arguido, mas que não pode conduzir a uma situação de substituição de competência, de quem tem o dever legal de proceder a tal notificação: «a obrigação de notificação da acusação é naturalmente do Ministério Público e não do tribunal» (v. Acórdão do TRL, e 25-03-2018, Proc. 123/16.4PGOER.L1-3). Lê-se ainda no mesmo Acórdão que «a referida norma do nº 5 do artº 283º do CPP não se destina a ser uma norma geral que permita transferir para a fase de julgamento as dificuldades de notificação do arguido, sem que antes se tenha concluído que os procedimentos de notificação se revelaram ineficazes».
Ora foi tentada apenas a notificação do arguido por carta registada com aviso de receção, mas não se tentou um expediente mais próprio para notificação de arguidos no estrangeiro, a carta rogatória.
Destarte, não se pode dizer que os procedimentos conducentes à notificação se revelaram ineficazes – o que, na verdade, também não foi invocado –, uma vez que não se tentou a notificação por essa via, o que se impunha.
De forma proficiente, escreve-se ainda no Acórdão do TRE, de 25-05-2021, Proc. 167/20.1GCLGS-A.E1, «a questão da legalidade da notificação da acusação ao arguido exorbita claramente da “esfera acusatória” do Ministério Público, podendo afirmar-se que se situa numa fase substancialmente posterior à mesma (muito embora formalmente ainda dentro da fase de inquérito), deixando absolutamente intocada a pretérita atividade investigatória de tal entidade e o culminar desta, ou seja, a dedução da acusação e o respetivo conteúdo».
Pelo exposto julgo verificada irregularidade de falta de notificação da acusação ao arguido AA, nos termos dos artigos 283.º, n.º 5, e 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, considerando-se que não foram realizados os procedimentos de notificação, o que impede o recebimento da acusação para julgamento.
Notifique e devolva aos autos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes, dando-se baixa da distribuição efetuada.

2.2. Da questão a decidir

Como se retira do manancial processual trazido a ponderação, discute-se a bondade da decisão proferida em 1ª instância em duas vertentes que, salvo mais avisada opinião, se interligam – notificação da acusação deduzida ao arguido, por um lado, modo da sua notificação e sua regularidade, por outro.
Importa em imediato passo reter que um dos princípios basilares da tramitação processual, é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de atos inúteis / supérfluos / desnecessários / estéreis, o qual impõe a todos que evitem / abstenham / atalhem a prática de passos que não surtindo o menor efeito na substância / mérito do processo, apenas encerram o puro efeito de o complicar / emaranhar / protelar.
Esta máxima, com claro acolhimento no artigo 130º do CPCivil, não tendo normação direta equivalente no CPPenal, tem aqui aplicação por força do plasmado no seu artigo 4º, em virtude de o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.
Diga-se, ainda, que percorrendo o ordenamento processual penal vigente, há claros afloramentos ao referido brocardo em diversas normas, mormente nos artigos 311º, nº 2, alínea a), ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e 420º, nº 1, alínea a), que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.
Na verdade, quer num caso, quer no outro, é evidente que, sendo manifestas a improcedência da acusação ou do recurso, fazer seguir o processo, abrindo e prosseguindo com a respetiva fase, sabendo-se de antemão que seria inevitável a absolvição do arguido ou a improcedência do recurso, conduziria, necessariamente, à prática de atos inúteis.
Avançando, e como acima se expendeu, o thema decidendum funda-se na discordância do Digno Mº Pº, quanto à decisão do tribunal ad quo que julgando estar verificada uma irregularidade decorrente da falta de notificação da acusação ao arguido AA, determinou a remessa dos autos àquele a fim de a reparar.
O primeiro vetor a analisar em que se funda o recurso interposto pelo Digno Mº Pº, prende-se com a circunstância de o tribunal ad quo ter entendido que a notificação ao arguido AA, da acusação contra si deduzida, não ter sido feita por carta rogatória mas antes por via postal com aviso de receção, sendo que aquele reside no ..., o que configura uma irregularidade.
Sendo claro, pensa-se, que o Digno Mº Pº, nada aborda que diretamente verse sobre a suscitada questão da forma de notificação usada, igualmente emerge cristalino, crê-se, que todo o posicionamento recursivo assumido se funda no entendimento de que face aos elementos existentes nos autos se deve considerar documentalmente comprovado nos autos a constituição de AA como arguido, bem como que foi inquestionavelmente notificado da acusação proferida nos presentes autos.
In casu, tendo-se procedido à notificação da acusação ao arguido AA, por via postal, sendo que se trata de pessoa residente no estrangeiro onde os serviços postais não podem garantir as formalidades legais consignadas na lei portuguesa, podem suscitar-se dúvidas sobre se foi praticado um ato processual respeitando as exigências expressas nos normativos combinados dos artigos 113º, nº 1, alíneas b) e c) e 283º, nº 6 do CPPenal.
E, nessa senda, a existir mácula, impõe-se que se qualifique juridicamente este quadro, para num segundo momento, uma vez que foi detetado, determinar os seus efeitos.
Olhando o CPPenal, nomeadamente no que concerne a todo o composto normativo que trata e regula a matéria de nulidades, crê-se que todo o sucedido, não tem acolhimento nos dispositivos que encerram os artigos 119º - nulidades insanáveis – e 120º - nulidades dependentes de arguição.
Na realidade, parece óbvio que da simples leitura do artigo 119º logo se extrai que a notificação da acusação a um arguido residente no estrangeiro por via de carta registada com aviso de receção não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, sendo que percorrendo todo o CPPenal, não se vislumbra um qualquer inciso que o comine com o vício da nulidade insanável.
De outra banda, ao que se pensa, um retrato como o que aqui se esquadrinha, também não tem acolhimento no leque das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que alude o art.º 120º do CPPenal.
E, neste desiderato, resta olhar ao quadro das irregularidades, cabendo assim, num primeiro e imediato momento sopesar se, na verdade se está, como entendeu o tribunal recorrido, perante uma irregularidade com previsão no nº 2 do artigo 123º do CPPenal, ou antes na presença da acantonada no seu nº 1, a qual imporia que tivesse de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso, e não o tendo sido, estaria irremediavelmente sanada[2].
Diga-se que neste ponto, o tribunal recorrido não é muito claro pois se num primeiro momento afirma (a) omissão de tal formalidade legal constitui a irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em passo imediato vem referir estar-se perante irregularidade essa do conhecimento oficioso, uma vez que tal irregularidade coarta os direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados, diminuindo as suas garantias, ou seja, situar o ocorrido na previsão do nº 2 do dito inciso legal.
Salvo mais apurada opinião, entende-se que a existir alguma mancha processual ela cabe, efetivamente, neste último patamar – irregularidade de conhecimento oficioso.
Com efeito, estando em causa uma situação passível de afetar / diminuir o espaço de garantia de direitos fundamentais, como seja o reagir atempada e prontamente a uma acusação e, nessa medida, esta ter que chegar devidamente ao seu destinatário, crê-se que se trata de situação em que o julgador deve intervir oficiosamente por não ter havido arguição tempestiva[3].
Alinhe-se, então, a ponderação considerando o entendimento de que se perfila a previsão do artigo 123º, nº 2 do complexo normativo em referência, ou seja, que se mostra desenhado, o vício da irregularidade[4] tal como foi entendido pelo tribunal recorrido.
Face a tal, e tendo o tribunal recorrido conhecido oficiosamente tal mácula, cumprirá apurar qual a consequência a retirar.
Desde logo, parecendo questionável o procedimento tido pelo tribunal recorrido quanto à forma / modo de ação pois, ao que se pensa, o juiz na fase de julgamento não pode conhecer irregularidades cometidas pelo Ministério Público no inquérito (…) outro entendimento prejudicaria, respectivamente, o poder constitucional do MP de direcção do inquérito e, (…), em certas circunstâncias, poria em causa a estrutura acusatória do processo e a separação funcional e orgânica que lhe está implícita[5], entende-se como claro que podendo o juiz ordenar ex officio a reparação / correção de qualquer irregularidade, não tem o mesmo o poder de determinar que o Mº Pº a repare[6].
Por seu turno, retira-se de todo o regime consignado no artigo 123º do CPPenal , ao que se entende, que tendo tribunal, oficiosamente, detetado alguma irregularidade, não está o mesmo impedido, antes o reclamam os princípios da economia e celeridade processuais[7], de a reparar / corrigir, sem necessidade de dar sem efeito a distribuição e de ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes[8].
Com efeito, constatada uma irregularidade que afete o valor do ato, como parece ser entendimento do tribunal recorrido, poderá ser a mesma corrigida / ultrapassada oficiosamente pela autoridade judiciária competente para aquele ato, enquanto mantiver o domínio dessa fase processual, pelo que, estando os autos já em fase de julgamento e não na fase de inquérito no momento da deteção, parece que caberia ao tribunal agir e não proceder como fez, ou seja, devolver os autos ao Mº Pº[9].
Ou seja, uma vez que os autos estão na esfera de apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem para o seu suprimento, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência.
Por seu turno, apelando ao já afirmado princípio da economia processual e ponderando a máxima da celeridade, estando o processo no domínio do juiz, nada ressaltando da lei que o proíba de o fazer, crê-se que recomendam a cautela / ponderação / razoabilidade, que se tivesse determinado a imediata reparação do vício, evitando-se delongas com devoluções, baixas de distribuição, recursos e, consequentemente a prática de atos inúteis sem qualquer vantagem / peso / interesse na realização da justiça material[10].
Todavia, cotejando todos os dados coligidos e presentes em intento recursivo – segundo segmento de apreciação -, tal como o propugnado pelo Digno Mº Pº, parece demonstrar-se com clareza que o arguido em causa foi na verdade notificado da acusação contra si deduzida, o que aliás, acaba por ser reconhecido pelo tribunal de 1ª instância quando afirma A notificação da acusação pública foi expedida para a morada 63, ... ... – ... (cf. fls. 1054) (…) consta o print do site da internet da página oficial dos CTT, cuja pesquisa do objeto a que respeita a aludida missiva tem como resultado que foi entregue (cf. fls. 1079) Não foi devolvido o aviso de receção.
Na verdade, desponta de fls. 9 um requerimento que usando a menção à referência ...56 e ao processo aqui em causa, coincidindo assim com o ofício de notificação da acusação remetido, se dirige ao Procurador informando que a pessoa em causa se encontra fora do país pois foi obrigado a imigrar (…) com bastantes dificuldades (…) peço para pagar a prestações.
Acresce que de fls. 16 resulta que tal requerimento chegou ao processo em sobrescrito enviado por AA, sendo que em fácil observação de ambos – requerimento e sobrescrito -, a caligrafia aposta nos mesmos é coincidente.
Releva ainda, neste conspecto, o documento constante de fls. 17 relativo à carta registada remetida ao arguido, onde consta a indicação ..., Entregue a: AA.
Ora, ante estes dados, parece claro que o arguido foi na verdade notificado da acusação contra si deduzida e, perante a fórmula utilizada não a questionou, antes veio solicitar a possibilidade de pagar em prestações o valor devido.
Este retrato, pensa-se, conduz à ideia que a ter havido irregularidade, apesar de o tribunal recorrido a ter conhecido oficiosamente, ela se mostra sanada. O arguido aceitou como boa a notificação havida.
Nesta senda, crê-se que o procedimento a ser seguido, tal como o defendido pelo Digno Mº Pº, seria tão-só o recebimento da acusação, caso nenhum outro vício opere.
Ante o expendido, é-se de parecer que o recurso merece provimento.

III - Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – 2ª Subsecção - desta Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo Digno Mº Pº e consequentemente, decidem:
a) Revogar o despacho recorrido;
b) Determinar que sequentemente, o mesmo se substitua por outro que receba a acusação propalada, caso nenhum vício de conhecimento oficioso opere e que o impeça.
Sem Custas.

Évora, 25 de maio de 2023
(o presente acórdão, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94º, n.º 2, do CPPenal)

(Carlos de Campos Lobo - Relator)
(Ana Bacelar – 1ª Adjunta)
(Renato Barroso – 2º Adjunto)


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[1] Cfr. fls. 80.
[2] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06/02/2017, proferido no Processo nº 540/14.4GCBRG.G1, citado no articulado recursório, disponível em www.dgsi.pt.
Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14/04/2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294.
[3] Neste sentido, GASPAR, António Henriques, SANTOS CABRAL, José António Henriques dois Santos, COSTA, Eduardo Maia, OLIVEIRA MENDES, António Jorge de, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Código de Processo Penal, Comentado, 2016, 2ª edição revista. Almedina, p. 371.
[4] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 31/01/2007, proferido no Processo nº 417372, onde se pode ler A falta de notificação da acusação ao arguido constitui mera irregularidade, a ser tratada nos termos do nº 1 do artº 123º do CPP98 (…) Trata-se por isso de uma mera irregularidade e esta, segundo o art.º 123.º, n.º 1 só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tivessem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele a que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, disponível em www.dgsi.pt.
[5] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2009, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p.312.
[6] Neste sentido GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I – artigos 1º a 123º, 2022, 2ª Edição, Almedina, p. 1343.
[7] Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05/12/2016, proferido no Processo nº 823/12.8PBGMR.G1, citado no articulado recursório, onde consta (…) conforme resulta do n.º 2, do artigo 123.º, do CPP <<pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado (…) Extrai-se deste normativo que o tribunal a quo pode oficiosamente ordenar a reparação de uma irregularidade, no momento em que dela tomou conhecimento, ou seja, pode por sua iniciativa ordenar aquela reparação mas através dos seus próprios serviços, da secção judicial (…) pese embora a notificação que o tribunal a quo entendeu estar em falta devesse ter sido efetuada com a acusação e, por isso, na fase de inquérito, tendo os autos sido distribuídos para julgamento e, desde logo, por razões de celeridade e de economia processual, tal notificação deve ser feita pela respetiva secção judicial. disponível em www.dgsi.pt
[8] Neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/2013, proferido no Processo nº 304/11.7PTPDL.L1-9, onde se pode ler I- A omissão da notificação do despacho de arquivamento/acusação ao mandatário do denunciante configura uma irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), com reflexos no exercício de direitos do denunciante, afectando dessa forma a validade de todos os actos processuais posteriores. II- Tal irregularidade é de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 123.º do CPP, dado que não se mostra sanada.III- Deverá, porém, a Sr.ª Juíza do tribunal a quo ordenar a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição, decisão essa que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz, de 08/09/2020, proferido no Processo nº 3276/18.3T9SXL.L1-5, de onde se retira O Juiz do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada (…) (e)contrando-se os autos sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem de suprimento da irregularidade detectada, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência, não podendo ser executada pelos serviços do MºPº, os quais são autónomos em razão do princípio constitucional da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
[9] Neste sentido, SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal – II, 2008, $º Edição Revista e actualizada, Editorial Verbo, pp. 103-104.
[10] Neste sentido o Acórdão deste Tribunal de 18/04/2023, proferido no Processo nº 535/22.4GESLV-A.E1, disponível em www.dgsi.pt.