INSTRUÇÃO
ADMISSIBILIDADE
REQUISITOS
Sumário

I. A inadmissibilidade legal da instrução é conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência – e de que deriva a inutilidade da instrução.
Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução: i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal]; ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente; iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal; iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação; v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP); vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).
II. Os elementos objetivos do crime, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. E que os elementos subjetivos do crime traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
III. Na acusação por crime doloso há de constar, necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e consciente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).
E estes aspetos são objeto de prova, para a sua demonstração.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo de inquérito n.º 485/22.4GARMR, que correu termos pela Secção de ... do Departamento de Investigação e Ação Penal da Procuradoria da República de ..., em 31 de novembro de 2022 foi proferido despacho onde se concluiu pelo arquivamento dos autos, por inexistência de indícios suficientes da prática de crime, relativamente a factos constantes da denúncia apresentada por AA contra BB e CC, suscetíveis de integrar a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punível pelo artigo 191.º do Código Penal.

AA, entretanto constituída Assistente nos autos, requereu a abertura da instrução.

E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução Criminal ... [Juiz ...] da Comarca ... –, por decisão judicial datada de 1 de fevereiro de 2023, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução.

Inconformada com esta decisão, a Assistente dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«a) Entende a assistente que o requerimento para abertura da instrução por si formulado, independentemente dos estilos, cumpre todos os requisitos legais, quer formais quer substantivos;
b) Estabelece a lei, no art.º 287.º, n.º 2 do C.P.P., que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que disso for o caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável no requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 283.º;
c) Pelo que ainda que o tribunal a quo, tenha entendido que o RAI não se encontra devidamente elaborado, em termos semelhantes ao de uma acusação;
d) O que é certo é que a lei também, não o exige – art.º 287.º n.º 2 do CPP
e) E o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, conforme giza o n.º 3 do art.º 287.º do C.P.P.;
f) Não ocorrendo no caso concreto nenhuma dessas situações;
g) Nem tão pouco se pode concordar com a imputação das deficiências do requerimento para abertura de instrução, maxime a não enumeração de factos concretos e objetivos que se considere terem sido praticados pelo arguido, nem a omissão completa quanto ao elemento subjetivo.
h) É que os artigos 10º, 11º e 12º do Requerimento para abertura de instrução, que aqui se transcrevem, dizem o seguinte:
“Já que essas testemunhas, uma por viver no mesmo local, e a outra na mesma rua, no número de policia ...71, assistiram por diversas vezes aos denunciados entrarem, a permanecerem e a saírem de dentro do logradouro do prédio da ofendida, cujas fotos se juntam para melhor entendimento do local em causa (Doc.s 1 a 4);
E a estacionarem os seus veículos no logradouro do prédio da assistente junto a um muro (que também aí construíram abusivamente sobre o mesmo) e a aí os manterem durante a noite e aos fins-semana;
Vislumbrando por isso, no inquérito, após a inquirição dessas testemunhas, indícios suficientes de que os denunciados cometeram o crime de introdução em lugar vedado ao publico, p e p pelo art.º 191 do C.P., de que a ofendida os vem acusar, e que seja proferido a final despacho de acusação;”
i) Pelo que jamais se pode concordar com a fundamentação do despacho recorrido e no qual rejeitou assim o requerimento formulado pela Assistente;
j) Os elementos objetivos e subjetivos do tipo incriminador constam claramente do requerimento de abertura de instrução, pelo que fenece de sentido o que decidiu o Meritíssimo Juiz de Instrução;
k) Tendo sido como tal indicado e ainda constando dos autos de inquérito, onde se localiza o prédio da assistente,
l) E de que o mesmo se trata da sua habitação, quando se encontra em Portugal, já que a assistente é emigrante em ...;
m) Constando ainda da participação pela assistente efetuada junto das autoridades policiais onde e quando ocorreu essa introdução por parte dos denunciados no seu prédio, diga-se logradouro /quintal;
n) E ainda sido feita referência quer no RAI, quer na participação da existência do muro que veda o prédio;
o) E ainda claramente á quanto à ausência de consentimento por parte da assistente para entrada e permanência dos denunciados no seu prédio!
p) Aliás caso assim não fosse, e tivesse existido anuência por parte da assistente, em os denunciados entrarem e permanecerem no logradouro do seu prédio, certamente que não teria denunciado a presente a situação às autoridades policiais;
q) Sendo que quantos aos elementos subjetivos, que na decisão de que se recorre, é referido, não terem sido alegados pela assistente, nomeadamente de que
“. Os denunciados sabiam que não tinham direito de aceder ao espaço em causa por não terem autorização para o efeito de quem de direito;
.Que aí entraram e permaneceram de forma livre, voluntária e consciente;
.Que sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei, e ainda assim não se abstiveram de agir contra o direito
r) Todos esse elementos constam dos factos imputados pela assistente aos denunciados na queixa-crime por esta apresentada;
s) De modo que a decisão proferida e ora recorrida violando as disposições dos arts. 69.º, n.º2, alínea a); 287.º, n.º2, n.º3; 286.º, ambos do C.P.P., e bem assim o disposto no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas., doutamente suprirão, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que admita a abertura da instrução, ordene a realização dos atos instrutórios requeridos, bem como o obrigatório debate instrutório por forma aferir da pronúncia ou não dos arguidos, pois só assim se fará a realiza Justiça e se faz cumprir a Lei

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
« 1.ª
O RAI não contém, integralmente, todos os elementos objetivos do tipo legal de crime que a assistente pretende imputar aos eventuais agentes da infração.

2.ª
Quanto aos elementos subjetivos do mesmo tipo legal, eles são manifestamente inexistentes.
3.ª
Estas lacunas cerceiam o direito de defesa dos agentes de eventual crime porque não permitem o pleno exercício do contraditório em processo penal, violando assim, o princípio do acusatório inerente ao disposto no artigo 32.º, n.º 5 da CRP.
4.ª
Acaso o recurso obtivesse provimento, violaria a jurisprudência fixada no AUJ 2015, n.º 1/2015 de 18 de Janeiro, publicado no DR, I Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015.
5.ª
O despacho sob recurso não violou qualquer norma legal e, por isso, deverá ser mantido nos seus precisos termos.
6.ª
Por outro lado, salvo o devido respeito por contraria opinião, o recurso deverá ser considerado manifestamente improcedente,
7.ª
Por isso, deve ser liminarmente rejeitado, tal como postula o artigo 420.º n.º 1, alínea a) do CPP.

Mas V. Excelências,
Senhores Juízes Desembargadores farão,
Como sempre:
JUSTIÇA!!!»

Não foi feito uso da faculdade consagrada no n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu o parecer que se transcreve:
«Nada obstando ao conhecimento do recurso, emite-se parecer no sentido da sua improcedência, sufragando na íntegra a resposta do Magistrado do Ministério Público na primeira instância.
Como bem refere, a questão sub judice está tratada, quer na doutrina, quer na jurisprudência portuguesa de modo exaustivo e unânime.
No caso, o RAI não contém, integralmente, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que a assistente pretende imputar aos eventuais agentes da infração, lacunas que cerceiam o direito de defesa dos agentes de eventual crime porque não permitem o pleno exercício do contraditório em processo penal, violando, assim, o princípio do acusatório inerente ao disposto no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P., e acaso o recurso obtivesse provimento, violaria a jurisprudência fixada no AUJ n.º 1/2015 de 18 de Janeiro, publicado no DR, I Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015.
Na verdade, o requerimento de abertura de instrução enferma do vício de nulidade.
Uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido (porque o requerimento que a sustenta é nulo) não pode ser admitida (nem, tão pouco, os atos processuais desta fase e subsequente debate instrutório), até porque seria inútil, sendo certo que não é lícito praticar no processo atos inúteis (art.º 130.º do C.P.C. “ex vi” do art.º 4.º do C.P.P.).
Dispõe o art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P. que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do art.º 283.º.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter, “sob pena de nulidade” (n.º 3) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve (…) al. b; a indicação das disposições legais aplicáveis (…) al. d)”.
Em suma, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve ter a estrutura de uma acusação e deve ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade.
Nesta conformidade, a nível de estruturação, deve relatar os factos objetivos e subjetivos que configuram um determinado tipo-de- ilícito.
O que decorre, naturalmente, dos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, os quais impõem que se delimite o thema probandum e a fixação do objeto do processo em ordem a que o arguido possa organizar cabalmente a sua defesa.
Vale o exposto por dizer que a falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constitui uma nulidade (art. 283º, n.º 3), o que é inteiramente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve fixar o objeto do processo (arts.º 303.º e 309.º do C.P.P.).
É o que ocorre no caso em apreço.
E não cabe proferir despacho no sentido de a assistente aperfeiçoar o seu requerimento de abertura de instrução, porquanto, como decidiu o STJ no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12.05 (in, D.R., Iª Série – A, de 4.11.2005), “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética de factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Conclui-se, pois, como no douto Acórdão do STJ de 22.10.2020, prolatado no processo 2938/18.0T9PTM (dgsi.pt), que deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, e por inutilidade, nos termos prevenidos no artigo 287.º n.º 3, do CPP, e 130.º, do CPC, o requerimento do assistente para abertura da instrução que deixe de arrolar a totalidade dos factos consubstanciadores do crime pelo qual pretende ver o arguido pronunciado, e sem que evidencie, a respeito, fundamento probatório bastante, sob pena de, em infração das regras de economia e utilidade processuais, se fazer iniciar uma instrução que, à partida, inarredavelmente, só se pode ter por inconsequente.
Neste sentido cfr. ainda Acórdãos da Relação de Guimarães, de 11.1.2021, proc. n.º 32/19.5T9BRG.G1 e de 6.2.2017, proc. n.º 263/15.7GAVVD.G1 e da Relação de Lisboa, de 25.10.2016, proc. n.º 1634/14.1T9SNT.L1-5, todos in dgsi.pt.
No que toca à questão da nulidade do RAI quando o RAI não contém uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários à integração dos pressupostos legais do crime, por falta de objeto, o que implica a inexequibilidade da instrução e, por via disso, a sua rejeição – cfr., entre vários outros, o Ac. TRP de 29.4.2020, proc.º 1016/14.5T3AVR.P1.
Com já decidiu o Tribunal Constitucional:
“Não é inconstitucional o art.º 287.º, n.º 2, conjugado com o art.º 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, interpretados no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas”. - Acórdão n.º 358/2004.
“Não é inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do art.º 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do art.º 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).” - Acórdão n.º 636/2011.
“Não é inconstitucional a norma resultante do art.º 287.º, n.º 2, do CPP, com referência ao art.º 283.º, n.º 3, b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução.” - Acórdão n.º 175/2013.

Pelo exposto, somos de parecer que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pela assistente.»

Observou-se o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.
Na resposta que apresentou, a Assistente manteve a posição anteriormente assumida nos autos.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, apenas, a questão da admissibilidade da fase processual de instrução.
û
Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece, ainda, os seguintes elementos:
(i) O requerimento para a abertura da instrução, tem o seguinte teor [transcrição]:
«(…)
1. A questão a apreciar é a de saber se do inquérito em epígrafe resultam indícios suficientes da prática, por parte dos denunciados do crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. nos termos do art.º 191.º do C.P.
2. No douto despacho de arquivamento, é referido que não foi indicada qualquer testemunha além da própria ofendida;
3. E que tentou proceder-se à inquirição da ofendida, mas tal não foi possível, em virtude desta não se encontrar em território nacional, o que de facto é verdade, tendo em conta que a ofendida é imigrante e vive em ...;
4. Contudo aquando a apresentação da queixa crime, a ofendida informou os Srs. Agentes da GNR desse facto, e de que poderia ainda assim vir prestar declarações no mês de fevereiro, data em que se deslocaria a Portugal, já que no dia 9 de dezembro iria ser submetida a uma cirurgia a um membro inferior, e por isso estaria impedida de viajar antes dessa data;
5. Tendo ainda indicado o seu contacto telefónico em ....
6. Além disso, a ofendida indicou também aos Srs. Agentes da GNR, duas testemunhas dos factos por si alegados, nomeadamente:
a) DD, residente em Rua ..., ..., ... ...;
b) EE, residente em Rua ..., ..., ... ...;
7. As quais não foram nunca interpeladas para prestarem depoimento, pelos agentes da GNR;
8. Pelo que esse meio de prova não foi considerado no inquérito;
9. O que tivesse acontecido levaria certamente a que fosse proferido despacho de acusação, e não de arquivamento;
10. Já que essas testemunhas, uma por viver no mesmo local e outra na mesma rua, no número de polícia ...71, assistiram por diversas vezes aos denunciados a entrarem, a permanecerem e a saírem de dentro do logradouro do prédio da ofendida, cujas fotos se juntam para melhor entendimento do local em causa (Docs. ... a ...);
11. E a estacionarem os seus veículos no logradouro do prédio da assistente junto a um muro (que também aí construíram abusivamente sobre o mesmo) e a aí os manterem durante a noite e aos fins-de-semana;
12. Vislumbrando por isso, no inquérito, após a inquirição dessas testemunhas, indícios suficientes de que os denunciados cometeram o crime de introdução em lugar vedado ao público, p e p pelo art.º 191.º do C.P., de que a ofendida os vem acusar, e que seja proferido a final despacho de acusação;
13. deste modo que a ofendida, ora assistente, pretende provar:
a) Que os denunciados sem o seu consentimento ou autorização entram, a pé e de carro, estacionando os seus veículos e aí permanecem no logradouro do seu prédio, nomeadamente no seu pátio, anexo à sua habitação, junto a um muro que também construíram ilegalmente, e abusivamente no logradouro da casa de habitação da ofendida e da ora assistente;

Pelo que a ofendida, ora assistente, requer a V. Exa. Que nos termos do n.º 1 do artigo 290.º co C.P.P e segs. Sejam levados a efeito os seguintes atos de instrução:
b) Inquirição das testemunhas:
b.1. DD, residente em Rua ..., ..., ... ...;
b.2. EE, residente em Rua ..., ..., ... ...;
c) Declarações da assistente, nos termos do art.º 145.º do CPP, a toda a matéria ora alegada;

Propõe-se a assistente provar tudo o ora alegado, e após as diligências de prova ora requeridas e levadas a cabo, com o devido respeito, deve V. Exa proferir despacho de pronúncia dos denunciados pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art.º 191.º do C.P., de que vêm acusados, assim se fazendo a costumada justiça

(ii) A decisão recorrida tem o seguinte teor [transcrição]:
«(…)
II - Da (in)admissibilidade legal da instrução:
Vem a ora assistente, requerer a abertura da instrução.
No entanto, como se verá, o seu requerimento não contém todos os elementos de facto necessários para ser apto à abertura desta fase processual.
Resulta do teor do artigo 287º, n.º 2, do CPP que o requerimento de abertura da instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve conter as menções previstas no artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo código.
Por outras palavras, deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Conforme tem vindo a ser unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência, esta exigência corresponde à materialização de um imperativo constitucional, sendo uma decorrência da estrutura acusatória do processo prevista no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
Isto porque o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter os seus elementos essenciais acima discriminados, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª ed., III, 138-147.
De resto, como se extrai do artigo 309.º, n.º 1, “a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução.”.
Daqui se extrai a relevância desta peça processual no âmbito da fase, equiparada portanto à acusação do MºPº.
É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objetivo e subjetivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido.
Vem-se entendendo assim que a falta de enunciação de factos suficientes para integrar o tipo objetivo e subjetivo de crime no RAI do assistente configura uma causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por “inadmissibilidade legal” desta fase, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do CPP.
No caso do RAI em causa a assistente pretende a submissão dos denunciados a julgamento pela prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.º, do Código Penal.
Tal norma define o crime em causa como a conduta de “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou atividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.”.
Nota-se da leitura do RAI que este, ao nível objetivo:
- não efetua qualquer narrativa de factos, enquanto eventos históricos situados no espaço e no tempo, ou seja alega-se de uma forma genérica que os denunciados entraram a pé e de carro no logradouro do “prédio da ofendida”, não se dizendo onde fica esse prédio e quando é que essas intrusões ocorreram (nem mesmo por referência a um certo lapso temporal);
- Não se refere se esse prédio era ou não de habitação (para apurar se esse logradouro era “anexo a habitação”);
- Nada se afirma quanto a saber se e como esse espaço era vedado;
- Nada se afirma quanto à ausência de consentimento da ofendida para a entrada/permanência no local (que é um elemento negativo do tipo).
Ao nível subjetivo, estamos perante um crime doloso, nos termos do artigo 13.º, do Código Penal, pois não está legalmente prevista a sua comissão por negligência.
É, pois, necessário para a tipicidade/punibilidade da conduta que esta seja dolosa, exigindo-se o dolo genérico, nos seus elementos cognitivo e volitivo, relativamente a todos os elementos do tipo objetivo.
Aderindo pois aqui à formulação adotada no AUJ 1/2015, diremos que tal como a acusação, o RAI do assistente deve conter os “…elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.”.
Assim sendo, deveria o RAI alegar que:
a) Os denunciados sabiam que não tinham direito de aceder ao espaço em causa por não terem autorização para o efeito de quem de direito;
b) Que aí entraram e permaneceram de forma livre, voluntária e consciente;
c) Que sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei, e ainda assim não se abstiveram de agir contra o direito.
De facto, o RAI da assistente é completamente omisso quanto aos factos integradores do elemento subjetivo do tipo legal de crime.
Notamos que nada na lei exige que o elemento subjetivo do tipo de crime seja alegado recorrendo às expressões tabelares vulgarmente utilizadas, mas deve ser alegado, por ser elemento essencial do tipo de crime.
A lei não faz qualquer distinção entre os factos objetivos e subjetivos do tipo de crime, quando exige a sua narração nestas peças processuais, nem faz qualquer distinção entre o RAI e a acusação, antes mandando aplicar ao RAI do assistente a norma do artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), aplicável à acusação.
Não existem assim, na formulação de um libelo acusatório, “factos implícitos”, nem é exigível ao arguido que “leia nas entrelinhas” da acusação para detetar aquilo que nela é omisso.
Entendemos pois que a falta de alegação expressa do elemento subjetivo do tipo legal de crime no RAI do assistente, implica a rejeição dessa peça processual e a não realização da fase da instrução que se tornaria vazia de conteúdo pois só por via de um despacho ferido de nulidade se poderia pronunciar o arguido.
*
Termos em que, com os fundamentos expostos, rejeito liminarmente o RAI do assistente, por inadmissibilidade legal da instrução.
Notifique e devolva ao MºPº
û
Conhecendo.
O processo penal estabelece um conjunto de regras e de procedimentos que visam a aplicação do direito penal, sendo este considerado como o complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstrata, os factos ou comportamentos humanos suscetíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem.
O processo penal comporta diversas fases – a do inquérito, a da instrução e a do julgamento.
Interessa-nos a fase da instrução, a fase intermédia entre o inquérito e o julgamento.
Que tem carácter facultativo e compete a um Juiz de Instrução, visando a comprovação judicial da decisão [do Ministério Público] de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286.º, n.º 1 e n.º 2, e 288.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o assistente tem a possibilidade de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semipública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Nos termos do n.º 2 do preceito legal acabado de mencionar, o requerimento de abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º
Este artigo 283.º reporta-se à acusação formulada pelo Ministério Público.
E do seu n.º 3 consta, na parte que importa, que
«A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
(...)»

De regresso ao artigo 287.º do Código de Processo Penal, importa, ainda, o disposto no seu n.º 3, de onde resulta que o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos, tão só, a hipótese de inadmissibilidade legal da instrução.
Trata-se de conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência[[2]] – e de que deriva a inutilidade da instrução.
Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:
i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];
ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,
iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;
iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP);
vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

E aqui chegados, interessa-nos agora a situação de o requerimento para a abertura da instrução não respeitar o disposto no n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal – por não configurar uma verdadeira acusação.

Antecipamos, desde já, que a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
Constitui decisão que revela respeito pela lei vigente na questão que tratou e que se encontra devidamente fundamentada.

Correndo embora o risco da inutilidade – por repetição do que já consta da decisão recorrida –, acentuamos que através da instrução, e em regra, o assistente pretenderá levar a julgamento o arguido, por factos que o Ministério Público não considerou.
É, por isso mesmo, essencial e ademais exigido pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que o requerimento para a abertura da fase processual da instrução contenha uma descrição clara dos factos capazes de acarretar responsabilidade criminal – ou seja, uma descrição competente da factualidade resultante do comportamento de alguém que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que deu origem ao processo.
À semelhança do que é exigido para a acusação, pública ou particular.
Porque, tal como acontece com a acusação, o requerimento para a abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da atividade desta fase processual.
É, aliás, essa a perspetiva que se destaca no artigo 303.º do Código de Processo Penal, ao regular as situações da alteração dos factos descritos nesse requerimento, sendo que uma alteração substancial desses factos não pode ser tomada em consideração para o efeito de pronúncia no processo, sob pena de nulidade – cfr. artigo 309.º do mesmo diploma legal.
E tendo presente que a fase processual da instrução tem natureza judicial – e não de atividade investigatória -, destinando-se à comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação, a deficiência de conteúdo do requerimento destinado à sua realização, para além de a inviabilizar, implica a nulidade desse mesmo requerimento – cfr. artigos 283.º, n.º 3, e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Diz a Recorrente que o requerimento para a abertura da instrução que apresentou satisfaz todos os requisitos impostos por lei.
Mas não, não satisfaz!
A simples leitura desse requerimento mostra-nos uma peça de análise do que consta do processo e que permitiu, a quem a subscreveu, censurar as razões do Ministério Público para não deduzir acusação e invocar as razões que impunham essa acusação.
Todavia, essa análise não é uma acusação, nem dela resultam, de forma individualizada, os atos concretos praticados por cada um dos Arguidos de onde lhes pudesse resultar a imputação da prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punível pelo artigo 191.º do Código Penal.
Acresce que o requerimento para a abertura da instrução é absolutamente omisso relativamente aos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de crime que se pretende imputar aos Arguidos.

Tenha-se presente que os elementos objetivos do crime, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. E que os elementos subjetivos do crime traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Na acusação de crime doloso – como é o de introdução em lugar vedado ao público – há-de constar, necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e consciente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).
E estes aspetos são objeto de prova, para a sua demonstração.

Restará lembrar ser jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio [publicado no Diário da República - I Série A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005] que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Por fim, impõe-se deixar expresso que por não terem sido cumpridas as exigências impostas por lei, bem andou o Senhor Juiz ao rejeitar o requerimento para a abertura da instrução apresentado pela Assistente AA
Decisão que se deixa, agora, confirmada.
Improcedendo o recurso.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo da Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
û
Évora, 2023 maio 25
Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz
Renato Amorim Damas Barroso
Maria de Fátima Cardoso Bernardes


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[1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] ] Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005.