RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
RENDIMENTO LÍQUIDO
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Sumário

I - Os valores achados pelo tribunal recorrido, na fixação de indemnização com base em equidade, apenas devem ser afastados em recurso se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade.
II - Para efeitos de apuramento do rendimento do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais futuros, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do sinistro.
III - É de abater na indemnização pela perda patrimonial que resulta do não recebimento do rendimento auferido pelo falecido sinistrado a pensão de sobrevivência auferida pelo cônjuge sobrevivo, uma vez que se trata de uma prestação que a Segurança Social paga (por catorze meses) aos cidadãos que perderam um familiar direto de quem dependiam para se sustentarem.

Texto Integral

Proc. n.º 3115/21.8T8PRT.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTORA: AA, viúva, com residência na Rua ..., ..., Hab. ..., ..., ... Santa Maria da Feira.
RÉS: 1. A..., UNIPESSOAL LDA, com sede social no ..., ...;
2. B... SA DE SEGUROS Y REASEGUROS, S.A., com sede social em Calle ..., ..., Madrid, Espanha;
3. C... COMPANIA DE SEGUROS Y REASEGUROS, S.A., com sede social em ..., ..., ..., Madrid, Espanha.

Por via da presente ação declarativa, pretende a A. obter a condenação das Rés a pagarem-lhe a quantia de € 1.490.000,00, à qual acrescem juros desde a data do sinistro até integral pagamento, sendo a responsabilidade solidária da 2.ª e 3.ª Rés até ao limite da cobertura contratada no âmbito do contrato de seguro celebrado com a 1.ª Ré.
Alega para o efeito acidente de aviação, ocorrido a 15.12. 2018, na sequência do qual faleceu o seu marido, médico ao serviço do INEM, que realizava transporte por helicóptero. A aeronave pertencia à primeira A. e era pilotada dois funcionários seus, tendo aquela empresa transferido a responsabilidade civil para as 2.ª e 3.ª Rés. A queda do aparelho ficou a dever-se ao embate numa torre de radiodifusão, o que ocorreu por força das condições climatéricas adversas em que a equipa de pilotagem decidiu efetuar o transporte.
O valor do pedido comporta os seguintes segmentos:
- perda do direito à vida: € 75.000,00;
- danos não patrimoniais da A. por perda do marido: € 35.000,00;
- perda de ganho do marido, fonte de sustento da A.: € 1.350.000,00.

A Rés contestaram, invocando a prescrição do direito da A. e impugnando parcialmente a versão da ocorrência bem como os danos invocados.

Realizado julgamento, foi proferida sentença, datada de 21.10.2022, a qual julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condenou as Rés B... SA de Seguros y Reaseguros e C... Compañía de Seguros e Reaseguros, solidariamente, a pagar à A. AA a quantia de € 125.000,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% a contar da data da sentença e até integral pagamento;
B) Condenou as Rés B... SA de Seguros y Reaseguros e C... Compañía de Seguros e Reaseguros, solidariamente, a pagar à A. AA a quantia de € 486.810,33, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento, absolvendo-as do demais peticionado.
C) Absolveu a Ré A..., Unipessoal, Lda. do pedido contra si formulado.
Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 15 de Dezembro de 2018, um helicóptero ..., com matrícula ..., após ter efetuado um transporte urgente inter-hospitalar ao serviço do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), descolou às 18h35 do heliporto ... (...), com destino à sua base operacional localizada no heliporto 1... (...), tendo prevista uma paragem técnica para reabastecimento no heliporto 2... (...).
2. A bordo, seguiam dois tripulantes do operador (um piloto comandante e um co-piloto) e dois passageiros (médico e enfermeira) pertencentes à emergência médica do contratante, Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).
3. O piloto comandante e um co-piloto eram funcionários da 1.ª Ré, com a qual tinham contrato de trabalho.
4. Nesse dia, ao regressar à base, em ..., com paragem prevista em ..., o helicóptero, despenhou-se na Serra ..., em Valongo.
5. O acidente causou a morte das quatro pessoas (dos dois pilotos, da enfermeira e do médico).
6. O médico falecido que seguia do referido voo de helicóptero era o Dr. BB.
7. BB era casado com a Autora.
8. O sinistrado não tinha descendentes à data da sua morte.
9. O helicóptero sinistrado era da titularidade da 1ª Ré.
10. Os pilotos que pilotavam o helicóptero eram trabalhadores da 1ª Ré, estando aqueles ao serviço desta, agindo sob ordens e/ou instruções desta e sob sua fiscalização, executando o transporte a pedido da 1ª Ré, no âmbito das funções que lhes foram confiadas por esta ao comandante e co-piloto, sendo a responsabilidade de condução do voo era da 1ª Ré.
11. A responsabilidade civil por danos causados pela aeronave, a passageiros, etc, foi transferida para as 2ª e 3ª Rés, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., garantindo a responsabilidade civil perante terceiros, para passageiros, bagagem, carga e responsabilidade jurídica com o Limite Único Combinado (danos corporais e materiais) de €60.000.000,00 por qualquer ocorrência, com duração de um ano seguintes e com as garantias relativas a actos de Guerra, Terrorismo e dos Perigos a estas respeitantes de acordo com a cláusula AVN 52E
12. No dia 15 de Dezembro de 2018, o Dr. BB encontrava-se de serviço para o INEM, prestando serviços de assistência médica de urgência de transporte hospitalar, por meio aéreo.
13. O serviço de INEM contratou a 1ª Ré para prestar o serviço de transporte por meio aéreo.
14. Tratava-se de voo comercial usado para realizar operações de transporte aéreo comercial no contexto de serviços de emergência médica (HEMS).
15. Para esse dia, a 1ª Ré disponibilizou o uso do helicóptero ..., operado pela A... e de matrícula ..., da sua titularidade, que se encontrava no heliporto 1..., e uma equipa de tripulantes, composta por um comandante piloto (CC) e co-piloto (DD), que se encontrava de escala.
16. No dia 15 de Dezembro de 2018, às 15h42, foram chamados para uma missão de transporte de doente e para esta missão, a pedido da 1ª Ré, a equipa de pilotos preparou o helicóptero e executou a missão de transporte.
17. O referido helicóptero ... descolou do heliporto 1... (...) para o heliporto da Unidade Hospitalar ... (...), com o objetivo de efetuar um serviço de transporte aéreo de emergência médica inter-hospitalar.
18. A aeronave aterrou no heliporto da Unidade Hospitalar ... (...) às 15h55, 28º tendo o médico e a enfermeira preparado o paciente para o transporte urgente solicitado, com destino a uma unidade hospitalar na cidade do Porto.
19. Realizados os procedimentos médicos e técnicos de preparação do voo, o helicóptero descolou às 16h05 para o heliporto ... (...), onde era aguardado por uma ambulância do INEM para finalizar o transporte até ao hospital de destino. 20. Após concluída com sucesso a missão de transporte urgente inter-hospitalar, e não havendo outra missão de transporte de emergência médica pendente ou solicitada pelos serviços do INEM neste dia, o comandante da aeronave, ao avaliar a meteorologia local, decidiu aguardar por melhores condições climatéricas.
21. De regresso ao heliporto, o piloto comandante contatou a torre de controle do Porto e o heliporto 1..., declarando a intenção de iniciar o voo dentro de alguns minutos, depois das condições meteorológicas melhorarem e referiu que iriam para ... após uma paragem para reabastecimento no heliporto 2... (...) e que caso não conseguisse ali aterrar iriam aterrar no aeroporto ....
22. Em resposta, a Torre de Controle mandou prosseguir, mantendo 1.500 pés, 36º respondendo afirmativamente o comandante, conforme transcrição das comunicações entre a Torre de Controle e helicóptero, doc. 28 que se junta e aqui se dá como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
23. Alguns minutos depois, a aeronave descolou do heliporto ..., às 18h35 UTC, com destino à sua base operacional localizada no heliporto 1... (...), com paragem técnica prevista para reabastecimento no heliporto 2... (...).
24. A bordo, seguiam os dois tripulantes de voo do operador, o piloto comandante e o co-piloto (acima identificados), e os dois passageiros da emergência médica do contratante, um médico (Dr. BB) e uma enfermeira, estes dois últimos sem funções técnicas no voo.
25. O voo em causa era, agora, um simples voo de regresso e não um voo de emergência médica.
26. Após descolagem, a aeronave seguiu um rumo praticamente direto ao heliporto 2....
27. As 18h38, o comandante informa o ATC (controlo de tráfego aéreo) de que pretende manter 1500FT de altitude até ....
28. O helicóptero estava equipado e devidamente certificado para efetuar voos diurnos e noturnos em condições VFR/IFR (voo por visão / voo por instrumentos).
29. Os sistemas de navegação da aeronave disponibilizavam aos pilotos a informação necessária para a operação, entre eles, o sistema de recolha e tratamento de dados de ar, sistema de altitude e direção, sistema de direção determinação de posição, sistemas de gestão de voo / diretor de voo, sistema de mapa dinâmico, sistema de aviso de tráfego, sistema de radar meteorológico.
30. O peso máximo do helicóptero admissível era superior a 2850kg.
31. O voo foi realizado em modo VFR, ou seja, voo por visão.
32. O helicóptero voou a uma velocidade de cruzeiro em torno dos 130kt (240km/h), e em altitudes a variar entre os 1400ft (427m) e os 1500ft (457m).
33. Pelas 18h40 UTC, a aeronave colidiu com uma torre de radiodifusão, a 2,2 metros do topo desta, localizada na Serra ..., Valongo (... ...).
34. A torre tem a sua base à cota do solo a uma altura de 1217ft (371m) e tem 216 (66m) de altura, sendo constituída por uma estrutura treliçada em tubos de aço, dotada de feixes de espias em cordão misto aço/fibra, espaçados igualmente em vários níveis ao longo da sua extensão para garantir a estabilidade estrutural.
35. A torre existente que era do conhecimento da equipa de pilotagem, por ali terem passado já dezenas de vezes em anteriores missões.
36. Após a colisão das pás do rotor principal com o topo do mastro da torre e com as espias superiores, a aeronave iniciou uma desintegração continuada de carenagens e painéis, assim como a separação de uma das pás do rotor principal, devido ao desbalanceamento do mesmo.
37. De acordo com a informação meteorológica disponível para a região, as condições atmosféricas eram caracterizadas por tetos baixos, estimados entre os 300 e os 500ft, com uma visibilidade horizontal diminuta e com chuva forte.
38. O vento estava do quadrante Sul (190˚) com intensidade a rondar os 20kt (37km/h).
39. No momento e no local do acidente, a visibilidade era inferior a 1000m e tetos inferiores a 300ft (90m) no local do evento, com base das nuvens muito próxima da superfície, 60º com uma primeira camada espessa de nuvens, entre os 300ft (91m) e os 400ft (122m), e uma segunda camada de nuvens, entre os 1200ft (366m) e os 1500ft (457m), e, sobre a Serra ... com chuva, nuvens muito próximas do solo, conforme doc. 29 que se junta para os devidos efeitos legais.
40. Não houve fogo no pré ou pós colisão.
41. A violência do impacto associada à posição invertida da aeronave no momento do choque com o solo, não deixaram espaço útil de sobrevivência para os ocupantes.
42. Adicionalmente, as forças de desaceleração excederam largamente as tolerâncias humanas, sendo o acidente classificado como de impacto sem probabilidade de sobrevivência.
43. Pela falta de informação de localização aproximada da aeronave, as operações de busca e salvamento foram conduzidas numa área abrangente, com uma orografia bastante sinuosa e com uma visibilidade reduzida devido, não só ao período noturno, mas sobretudo pelas condições meteorológicas na região.
44. Somente no dia seguinte, pela madrugada do dia 16 de Dezembro de 2018, foram encontrados os ocupantes, já falecidos, conforme doc. 4 e 5 que se juntam e aqui se dão como integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
45. O piloto CC encontrava-se de serviço de modo ininterrupto desde o dia 11 de Dezembro ao serviço da Ré, conforme doc. 30 que se junta e aqui se da como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
46. Pela execução do voo acima descrito, a 1ª Ré recebeu uma contrapartida monetária.
47. Competia à 1ª Ré, por intermédio da sua equipa de pilotos, definir e decidir sobre as condições de operacionalidade do helicóptero, em todas as suas vertentes bem como decidir se havia condições para o helicóptero voar e prosseguir, a direcção do voo, o cumprimento das regras e segurança do voo.
48. Na eventualidade de inoperacionalidade, por questões técnicas ou meteorológicas ou outras, o INEM poderia ter desenvolvido outros mecanismos necessários para que a equipa de profissionais regressa ao seu posto, particularmente, se fosse previsível que as referidas circunstâncias perdurarem por período alargado de tempo, conforme doc. 31 que se junta e aqui se dá como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
49. A decisão de voo do heliporto ... foi tomada sem ter havida toda a informação sobre as condições meteorológicas, tanto dos heliportos que servem de base de operação como os heliportos de suporte.
50. Recorrendo os pilotos a procedimentos não padronizados e não aprovados para a recolha de informação pertinente das condições meteorológicas do heliporto de destino, entre eles, recorrendo a realização de chamadas telefónicas da tripulação para pessoal não qualificado ou com informação limitada no heliporto do destino.
51. Os pilotos não tinham informação completa e fidedigna das condições de voo no início, no decurso e na aterragem.
52. No momento do embate, o helicóptero seguia abaixo de altitude de segurança recomendada por normativo legal e a uma altitude abaixo da indicada da Torre de controlo, em desrespeito às instruções do controlo de tráfego aéreo, e em desrespeito às assumidas e às indicadas no momento da descolagem.
53. As condições climatéricas eram muita adversas, com visibilidade inferior a 1000m, seguindo a uma velocidade elevada, não tendo sido efectuada qualquer manobra evasiva.
54. Apesar de tratar-se de helicóptero de emergência, aquando do sinistro, o mesmo não se encontrava mais em missão, nem urgência.
55. O Dr. BB acidentado não teve morte imediata.
56. O Dr. BB, antes da sua morte e perante o risco de queda iminente, apercebeu-se da chegada e inevitabilidade da sua morte.
57. Na sequência do exposto em 33. e 36., a aeronave descreveu uma trajectória balística em rotação sobre o seu eixo longitudinal pela esquerda, e imobilizou-se no terreno 384m (1260ft) após o impacto inicial com a torre.
58. O acidentado sofreu dezenas de escoriações, de fraturas no crânio, pescoço, tórax, abdómen, coluna e membros nos termos do relatório de autópsia médico-legal que consta de fls. 42 a 48 dos autos, sendo que a morte de BB foi devida às lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas e abdomino-pélvicas aí descritas.
59. À data do acidente, o falecido tinha 47 anos de idade, com uma média de esperança de vida até aos 77 anos.
60. Era casado com a Autora desde de 2006, vivendo, antes, em união de facto desde o ano de 2002.
61. O Dr. BB vivia em perfeita união, harmonia e paz com Autora, sendo notório e reconhecido publicamente que se amavam e respeitavam profundamente e mutuamente.
62. Havia entre eles uma cumplicidade única, fruto de uma relação amorosa e conjugal que perduravam a vários anos.
63. O falecido era médico de profissão.
64. O falecido era uma pessoa muito dinâmica e trabalhadora, sendo frequente prestar trabalho aos sábados e domingos.
65. Era uma pessoa alegre, saudável, cheia de vida e de vontade de viver, com plena capacidade de trabalho, não padecia de qualquer doença ou de qualquer problema físico e tinha uma vida pessoal, laboral e social preenchida, compensadora e feliz.
66. O casal emigrou para Portugal no ano de 2006, acompanhando a Autora o seu marido para Portugal por motivos profissionais deste, deixando as suas respetivas terras de origem (ambos nascidos na Galiza), amigos e familiares.
67. A notícia da morte do marido, transmitida a esta, provocou-lhe um estado de estupefação, impotência, pânico, desorientação e angústia, sofrendo, na ocasião, sentimentos de perda irreparável e uma profunda tristeza e desgosto, que ainda hoje se mantêm.
68. A Autora continua perturbada, triste, sentindo-se sozinha, incapaz de preencher o vazio deixado pelo marido.
69. Desde que perdeu o seu companheiro de uma vida que está constantemente irritada, tomando antidepressivos.
70. O falecido era médico, desde o ano 2003, inscrito na Ordem dos Medico de Portugal, Secção Regional do Norte, com a especialidade de Medicina Interna, portador da cédula profissional nº ....
71. À data do acidente, o Dr. BB trabalhava para o Centro Hospitalar ..., EPE e à data, tinha por funções de chefe de equipa do serviço de urgência.
72. No ano de 2018, no exercício daquela atividade auferiu, em média, o montante mensal de 7.115,17€, ilíquido, corresponde à média mensal auferida no ano de 2018 no Centro Hospitalar ..., EPE, que ascendeu ao valor anual de 85.382,06€, ilíquido, sendo que o valor do rendimento global do aludido ano de 2018 foi de € 88.460,09.
73. No ano de 2017, no exercício daquela atividade, auferiu ao serviço do Centro Hospitalar ..., EPE, o valor anual de 77.165,25€, ilíquido, sendo que o valor do rendimento global do aludido ano de 2018 foi de € 79.421,71.
74. Em paralelo, o Dr. BB prestava serviço para o INEM.
75. À data do sinistro, a Autora tinha 42 anos e não trabalhava, sendo doméstica.
76. Aliás, nunca trabalhou desde que passaram a viver juntos, suspendendo inclusive o seu doutoramento quando passou a viver em Portugal, dedicando-se em exclusive à família, sendo que essa opção de vida e dinâmica de vida foi tomada pelo casal.
77. Os rendimentos pelo Dr. BB destinavam-se ao casal, sem distinção, sendo destes rendimentos que o casal pagava todas as suas despesas e necessidades, entres elas despesas de habitação, alimentação, roupa, saúde, eletricidade, condomínio, seguros, despesas de lazer em viagens frequentes, restaurantes, combustível, etc.
78. O casal tinha contas bancárias conjuntas, fazendo uso, sem qualquer controlo, e para os fins que bem entendesse, sendo o contributo remuneratório auferido pelo marido indispensável para vida do casal.
79. Com o falecimento do marido, a Autora deixou de ter qualquer rendimento mensal para fazer face às suas necessidades.
80. Seria, assim, expetável que conseguisse continuar a prestar aqueles serviços de medico até perfazer 77 anos, isto é, pelo menos mais 30 anos, tanto no sector público até idade de reforma, como no privado.
81. A Autora deu entrada da acção judicial em 2 de Fevereiro de 2021.
82. Do sinistro dos autos foi aberto um processo de inquérito criminal, cujos autos correrem termos sob o nº 527/18.8PAVLGG no DIAP de Valongo, sendo que a Autora foi notificada em 17 de Abril de 2020 de que foi proferido despacho de arquivamento por não haver indícios de ilícito criminal.
83. A A. recebe da Segurança Social uma pensão sobrevivência no valor de € 871,49/mês desde 01-01-2019 (requerimento da A. de 09-02-2022).

Factos não provados:
A. O piloto CC estava ao serviço nos termos referidos em 45. Sem repouso e descanso compensatório adequado fora do local de trabalho.
B. Na sequência do acidente que vitimou o Dr. BB, qualificado como acidente de trabalho, foi seguramente, por imposição legal, aberto processo judicial do foro laboral sob forma especial de indemnização por acidente de trabalho.
C. Que correu terá corrido termos pelo Tribunal de Comarca de Viseu, Juízo de Trabalho de Viseu, no âmbito do qual terão sido atribuídas à aqui Autora pensões de sobrevivência atribuídas em função dos rendimentos do falecido.

Desta sentença recorre a A., visando a revogação da sentença quanto a danos patrimoniais futuros, que pretende sejam fixados em € 1.313.637,33.
Para tanto argumentou, em conclusão:
1 - O presente recurso cinge-se à questão do valor de danos patrimoniais futuros fixados pelo Tribunal a quo;
2 - Confrontada a matéria de facto provada e assente, o cálculo do quantum indemnizatório, fixado pela perda do contributo remuneratório, enquanto dano patrimonial, tem, necessariamente, por base, critérios de equidade que assenta numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida, que, de todo, não pode colidir com critérios jurisprudenciais atualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
3 - Tendo por base os critérios de ponderação e de equidade determinados pelo Tribunal a quo, aceitando-se, em parte, tais critérios orientadores; não se aceita, contudo, os valores introduzidos na fórmula traduzida pelo Tribunal a quo.
4 - Após várias considerações sobre como determinar esta indemnização e feito o seu enquadramento, o Tribunal a quo apurou o valor indemnizatório através da seguinte formula:
- (53.697,98€ (rendimento líquido anual) / 12 (meses) /2 (agregado) - 871,49€ (pensão de sobrevivência mensal ilíquida) * 12 (meses) * 30 (anos)) * 1% (desconto) = 486.810,33€.
5 – Só que, o quantum indemnizatório:
- deveria ter sido fixado como base no valor anual ilíquido;
- não deveria ser ido objeto de dedução do valor de pensão de sobrevivência; e
- em via subsidiária, a ser fixado o quantum indemnizatório com base no valor anual líquido, este não corresponde ao montante de 53.697,98€, mas sim a 65.441,82€
Senão vejamos,
6 - No âmbito do regime de acidente de trabalho, a lei manda fixar a indemnização por morte (pensão por morte) ou de incapacidade pela remuneração ilíquida do trabalhador.
7 - Não se vislumbrando razão e fundamento para interpretação contrária, no âmbito do regime de responsabilidade civil extracontratual, tal critério deveria ser igual; ou seja, ser fixada a indemnização por danos futuros pela remuneração ilíquida auferida pelo lesado.
8 - Tanto mais que, a relação de impostos que o lesado tem com o Estado em nada está relacionado com o lesante; não podendo este beneficiar de tal relação.
9 - Daí que, o valor orientador para efeito de determinação do quantum indemnizatório deverá ser a remuneração ilíquida e não líquida.
Prosseguindo,
10 - Não deverá ser objeto, para efeito de determinação do quantum indemnizatório, o valor da pensão de sobrevivência que a Apelante aufere.
11 - Tal pensão de sobrevivência é paga pela Segurança Social por via dos descontos feitos no passado pelo marido sinistrado, com origem em rendimentos auferidos no passado.
12 - Tal pensão de sobrevivência tem pressupostos próprios que em nada se relacionam com a responsabilidade civil extracontratual de que se trata nos presentes autos.
13 - Não cabe ao lesante beneficiar desta situação, nem o Tribunal invocar a dedução desta parcela auferida para efeitos de cálculo de indemnização.
14 - Não se trata de duplo ressarcimento, mas sim de direitos distintos e conciliáveis.
15 - Aceitando a fórmula definida e arbitrada pelo Tribunal a quo, deveria ter sido fixado como valor de indemnização por perda de rendimentos futuros, o seguinte:
- (88.460,09€ (rendimento anual ilíquido) / 12 (meses) /2 (agregado) * 12 (meses) * 30 (anos)) * 1% (desconto) = 1.313.637,33€
16 - E, subsidiariamente, na hipótese de ter que ser descontada a parcela que a Autora recebe de pensão de viuvez,
- (88.460,09€ (rendimento anual ilíquido) / 12 (meses) /2 (agregado) - 871,49€ (pensão de sobrevivência mensal ilíquida) * 12 (meses) * 30 (anos)) * 1% (desconto) = 1.017.883,30€.
Também, em via subsidiária,
17 - Na hipótese do Tribunal ad quem considerar que o quantum indemnizatório deverá ser baseado no rendimento líquido, este não corresponde ao valor de 53.697,98€.
18 - O Tribunal a quo limitou-se a fixar que, no ano de 2018, o rendimento líquido foi de 53.697,98€, não logrando explicar, fundamentar como determinou tal valor.
19 - Da matéria assente e provada, não ficou julgado tal facto de valor anual líquido.
20 - Recorrendo-se a conceitos assentes na fiscalidade, entende-se como valor líquido aquilo que se recebe purgado do valor pago de imposto de IRS.
21 - Nos autos, a Autora logrou juntar a certidão de IRS de 2018.
22 - Da leitura de tal certidão, exara-se que, no ano de 2018, o rendimento anual líquido foi de 65.441,82€ e não de 53.697,98€ (88.460,09€ (rendimento global) - 23.018,27€ (coleta líquida – imposto de IRS a pagar).
Quer isto dizer,
23 - Aceitando a fórmula definida pelo Tribunal a quo, deveria ter sido fixado como valor de indemnização por perda de rendimentos futuros, o seguinte:
- (65.441,82€ (rendimento anual líquido) / 12 (meses) /2 (agregado) * 12 (meses) * 30 (anos)) * 1% (desconto) = 971.811,03€.
24 - E, na hipótese de ter que ser descontada a parcela que a Autora recebe de pensão de viuvez, - (65.441,82€ (rendimento anual líquido)) / 12 (meses) /2 (agregado) - 871,49€ (pensão de sobrevivência mensal ilíquida) * 12 (meses) * 30 (anos)) * 1% (desconto) = 661.211,99€
25 - Assim, impõe-se a alteração do decidido na Douta Sentença, fixando-se o quantum indemnizatório pela perda de danos futuros, tendo em conta todas aquelas circunstâncias e considerando, a par do valor aquisitivo do dinheiro na atualidade, utilizando a equidade e o senso comum, e entendemos ser o valor a fixar 1.313.637,33€, o mais ajustado como indemnização.
26 - O montante é elevado porque o falecido auferia um rendimento elevado.
27 - A Autora era dependente deste rendimento elevado, nivelando o seu modo de vida com que o marido auferia.
Do exposto,
28 - O Tribunal a quo fixou erroneamente a indemnização por danos patrimoniais futuros.
29 - Aceita-se o critério justo e equitativo determinado pelo Tribunal a quo traduzido na fórmula matemática, não se aceita, contudo, os pressupostos de valor, nomeadamente de ser apurado sobre o valor anual líquido em vez de ilíquido, de haver dedução do valor da pensão de sobrevivência paga por terceiro, bem tão pouco, como foi determinado o valor anual líquido.
30 - Resulta claro que a sentença recorrida apreciou mal as questões de facto e de direito que se lhe depararam.
31 - A Douta Sentença violou, neste particular, designadamente, o art. 483.º, 562.°, o n.º 2 do art. 566.° e o n.º 3 do art. 496.°, todos do Código Civil.

Contra-alegaram as 2.ª e 3.ª Rés, opondo-se à procedência do recurso, assim concluindo:
1) O Cálculo de indemnização a arbitrar à Autora para compensação de danos patrimoniais futuros deve basear-se no rendimento liquido do sinistrado, não no rendimento bruto ou ilíquido.
2) No cálculo da indemnização referida na anterior conclusão deve ser deduzido valor da pensão de sobrevivência atribuída à Apelante pois dada a natureza desta, a ser incluída a referida pensão haverá duplicação de indemnização e um indevido enriquecimento da Apelante.
3) Bem andou o tribunal a quo no cálculo da indemnização ao considerar o rendimento líquido do sinistrado no montante anual de €53.697,98.

Objeto do recurso:
- Do cálculo dos danos futuros. Dos rendimentos líquidos. Do desconto da pensão de sobrevivência.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Os factos que interessam à decisão sobre o objeto do recurso são os elencados em primeira instância e acima transcritos.

Fundamentação de direito
A responsabilidade das seguradoras Rés (a primeira Ré foi já absolvida por sentença transitada em julgado) resulta da aplicação das regras da responsabilidade civil extracontratual previstas nos arts. 486.º ess. CC, normas indisputadas no recurso.
Está apenas em causa a fixação de um dos segmentos da indemnização: o cálculo dos danos futuros pela perda de proventos auferidos pelo falecido.
O sinistrado faleceu com 47 anos de idade, sendo de aceitar que tivesse uma expetativa de vida até aos 77 anos de idade, como vem entendendo a jurisprudência dos tribunais superiores, pelo que teria, pelo menos, 30 anos pela sua frente, pois era uma pessoa saudável.
Não está demonstrado que o falecido contribuísse para o agregado familiar, composto por si e pela A., esta doméstica, com metade do seu rendimento, mas pode aceitar-se que assim fosse.
Também não resulta provado, em concreto, o valor do rendimento salarial mensal líquido ou bruto do falecido, mas sabe-se que trabalhava para duas entidades: uma, com contrato de trabalho sem termo (o Centro Hospitalar ... – doc. 8 junto com a pi – empresa pública com o NIF ...); outra, o Instituto Nacional de Emergência Médica (NIF ...), este a título de prestador de serviços (como resulta das diversas faturas recibos juntos com a pi).
Ao serviço do primeiro, o falecido médico recebia catorze retribuições, como pode ver-se do recibo de vencimento de novembro de 2018, onde está contemplado o subsídio de Natal (doc. 19 junto com a pi).
O mesmo não sucede, claro está, com o trabalho desenvolvido como prestador de serviços.
Em todo o caso, o tribunal a quo considerou como base de raciocínio o rendimento total recebido no ano de 2018, dividindo-o por doze, o que já contempla a situação da prestação de serviços e serve, igualmente, o recebido do Centro Hospitalar porquanto o subsídio de férias e de natal recebidos em 2018 são considerados na média do vencimento mensal.
O que importa apurar é se o montante de partida a ter em conta é a totalidade do rendimento, com integração do imposto pago ao Estado (IRS) e contribuições para a Segurança Social, ou o valor líquido efetivamente recebido, descontando aquelas prestações tributárias e contributivas.
Como salientou o tribunal recorrido, está em causa a aplicação de critério prudencial orientado por um raciocínio de equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3 CC).
Assim, considera-se, como no ac. STJ, de 30.3.2023, Proc. 15945/18.3T8PRT.P1.S1 que, “sendo certo que na determinação de indemnizações por perda da capacidade de ganho, dano biológico, na sua vertente patrimonial e não patrimonial há que fazer apelo a juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum, esse juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um critério matemático, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido. Salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, muito em particular, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adoção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade. Realizando-se a fixação dos danos na presente ação através da aplicação de critérios de equidade e não através de fórmulas matemáticas que, podendo ser tomadas em consideração como indicadores de alguma uniformidade nunca são decisivas e muito menos determinantes, enuncia-se desde já que a questão a solver é a de saber se a indemnização fixada realiza essa equidade com os elementos de prova obtidos. Não se trata só de saber se os rendimentos provados são brutos ou líquidos, fiscalmente declarados ou não, mas sim se esses elementos permitem que segundo a equidade a indemnização seja fixada e se a que foi cumpre estes imperativos”.
Tendo presente esta especificidade – a prudência ou equidade – parece indiscutível ser de atender aos rendimentos líquidos do sinistrado.
Veja-se o ac. STJ, de 21.3.2019, Proc. 1069/09.8TVLSB.L2.S2, onde se alude às fórmulas possíveis de cálculo deste dano para o caso de acidentes de viação:
- a fórmula da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio de 2008, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 26 de Junho de 2009, sendo certo que «os critérios seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26-05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extra-judicial e, se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem ao critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações fixado pelo Código Civil» (Ac. STJ, de 4.6.2015, Proc. 1166/10.7TBVCD.P1.S1);
- a fórmula constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2007 proferido no processo n.º 07A383 (citado, designadamente, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2016 — processo n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1 —, de 25 de Maio de 2017 — processo n.º 868/10.2TBALR.E1.S1 —, de 14 de Junho de 2018 — processo n.º 8543/10.1TBCSC.L1.S1 — e de 25 de Outubro de 2018 — processo n.º 2416/16.1T8BRG.G1.S1.)
Naquele acórdão do STJ, de 21.3.2019, refere-se o acórdão do TC n.º 565/2018, de 7 de Novembro de 2018, no qual, conjugando os argumentos em favor da inconstitucionalidade orgânica deduzidos no acórdão n.º 273/2015 e os argumentos no sentido da inconstitucionalidade material deduzidos na declaração de voto junta ao acórdão n.º 273/2015, o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do princípio da igualdade consignado no seu artigo 13.º, n.º 1, a norma do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo o qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período”.
Questionou-se se a doutrina acolhida nos três acórdãos do Tribunal Constitucional — n.º 383/2012, n.º 273/2015 e n.º 565/2018 — determinará que deva abandonar-se a referência ao rendimento líquido do lesado, em favor da referência ao rendimento bruto, para efeitos de cálculo da indemnização dos danos patrimoniais futuros, para se concluir que «O texto deve analisar-se em dois segmentos autónomos ou, em todo o caso, autonomizáveis. Em primeiro lugar, diz que, “[p]ara efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais… o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente”. Em segundo lugar, diz que “o tribunal deve basear-se nos rendimentos… que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal”. O juízo de inconstitucionalidade não incidiu sobre o primeiro segmento; não incidiu sobre a parte do art. 64.º n.º 7, em que se determina que o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente; incidiu sobre o segundo, e só sobre o segundo; incidiu sobre a parte do art. 64.º, n.º 7, em que se determina que o tribunal deve basear-se nos rendimentos que se encontrem fiscalmente comprovados, e só sobre a parte em que se determina que o tribunal deve basear-se nos rendimentos que se encontram fiscalmente comprovados.
Entendendo, como entendemos, que os três acórdãos do Tribunal Constitucional não determinam que deva abandonar-se a referência ao rendimento líquido do lesado, o cálculo da indemnização por danos patrimoniais futuros deverá conformar-se com os critérios conformados pela lei e pela jurisprudência — designadamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Entre os critérios constantes na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça estão o de que a aplicação das fórmulas constantes tabelas da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio de 2008, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 26 de Junho de 2009, e / ou do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2007 deve atender ao rendimento líquido do lesado e o de que o resultado da aplicação das fórmulas deverá corrigir-se, considerando critérios de equidade.
O princípio de que, na fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros, deverá atender-se ao rendimento líquido do lesado decorre dos princípios gerais dos arts. 562.º ss. do Código Civil e, por consequência, deverá aplicar-se independentemente da regra do art. 64.º n.º 7, do Decreto-Lei n.º 291/2007, na redacção do Decreto-Lei n.º 153/2008.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 2395/06.3TJVNF.P1.S1, diz que “no cálculo da indemnização por danos patrimoniais decorrentes da perda da capacidade de ganho deve ser considerado, entre outros factores, o salário líquido (e não o bruto) recebido pelo lesado”; o acórdão de 7 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 3557/07.1TVLSB.L1.S1, e o acórdão de 19 de Outubro de 2016, proferido no processo n.º 1893/14.0TBVNG.P1.S1, dizem que “deve ser contabilizado o valor líquido do salário”, porque “assim o exige a teoria da diferença”; e, finalmente, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2017, no processo n.º 806/12.8TBVCT.G1.S1, explica-se que “o montante que o autor deixou de receber não foi o montante ilíquido, mas o montante líquido e, por isso, o ressarcimento não poderia nunca considerar o valor de retribuição ilíquido”».
Do mesmo modo, os arestos citados em contra-alegações, nomeadamente do STJ, de 20.1.2021, Proc. 6705/14.1T8LRS.L1.S1.
O que acabámos de expor serve, mutatis mutandis, para o caso dos autos.
Não estando em causa a perda de rendimento salarial futuro por parte do lesado, mas a atribuição de indemnização ao cônjuge pela falta do rendimento com que aquele contribuía para o agregado familiar, entendemos que o valor salarial a atender não contempla o que deveria ser pago ao Estado ou à Segurança Social, uma vez que o lesado e cônjuge não contariam com esses valores, mas apenas o montante líquido efetivamente recebido, sendo certo que a indemnização a perceber pela A. não está sujeita a imposto, designadamente IRS (art. 12.º, n.º 1 b) CIRS.[1]
Não são aqui aplicáveis as regras que vigoram para as indemnizações por violação do contrato de trabalho ou por acidente laboral, uma vez que aquelas prestações são sujeitas, depois, a tributação em sede de IRS.
Sendo assim, é o rendimento líquido com que o lesado e a A. poderiam contar efetivamente que servirá de base ao cálculo da indemnização em apreço.
Neste contexto, o tribunal recorrido considerou ser líquido o rendimento anual de € 53.697,98.
Se bem compreendemos o raciocínio – uma vez que os passos deste não ficaram expressos na sentença – o juiz a quo começou por referir o rendimento global de € 88.460,09, montante constante da certidão de liquidação de IRS de 2018, junta aos autos a 18.3.2022, mas atendeu ao rendimento coletável que aí consta de € 79.067,99.
A estes € 79.067,99, subtraiu, depois, o valor da retenção na fonte que se vê na mesma liquidação (€ 25.370,01) e, assim, obteve o que qualificou de rendimento líquido de € 53.697,98.
Considerando, como vimos, que o rendimento a ter em conta é, de facto, o líquido, não nos parece certo aquele raciocínio.
O rendimento coletável (€ 79.067,00) não é o rendimento bruto a considerar, mas sim o que resulta como base para o Fisco aplicar a taxa de IRS depois de deduzidas as despesas que o Estado permite se abatam ao rendimento bruto (nomeadamente com saúde, educação e outras).
O rendimento bruto auferido em 2018 é o que resulta declarado na declaração de IRS de 2018, proveniente quer de trabalho dependente, quer de trabalho independente (anexo B).
A declaração de IRS encontra-se sob doc. n.º 27, junto com a PI.
Dessa declaração decorre que da entidade patronal com o NIF ..., o falecido recebeu em 2018 o total de € 85.382.06 (quadro 4 do modelo 3, Anexo A) e da entidade com o NIF ..., recebeu o total de € 4.104,04 (quadro 4 do anexo B), sendo o total bruto de € 89.486,10.
Para apurar o rendimento líquido há que subtrair o que foi retido na fonte pelo trabalho dependente (€ 24.344,00 – quadro 4 do anexo A) e o retido na fonte pelo trabalho independente (€ 1.026,01 – quadro 602 do anexo B), ou seja, a quantia de € 25.370,01. A este valor acrescem as contribuições para a Segurança Social, de € 9.392,10 (quadro 4 do anexo A), posto que estas não seriam recebidas pelo sinistrado, mas sim pagas por si para vir a ter direito a reforma, sendo que a A. irá já receber o valor por inteiro considerando a esperança de 30 anos de vida.
O total a abater ao rendimento bruto é, assim, de € 34.762,11 (€ 25.370,01+€ 9.392,10).
De modo que: € 89.486,10 - € 34.762,11 = € 54.723,99, sendo este o rendimento líquido anual.
Como referido, e na sequência do fixado em primeira instância e não contestado, metade daquele valor seria consumido pelo falecido em despesas próprias suas, admitindo-se que metade fosse destinado à A.
Esta metade é de € 27.361,99/anuais.
Ora, a A. recebe pensão de sobrevivência mensal de € 871,49, sendo este valor multiplicado por 14 (porque inclui subsídio de férias e de Natal) e não por 12 como se considerou na sentença.
Esta pensão é de abater na indemnização que calcula a perda da demandante em função do não recebimento do rendimento auferido pelo falecido marido, uma vez que se trata de uma prestação mensal que a Segurança Social paga aos cidadãos que perderam um familiar direto de quem dependiam para se sustentarem, variando o seu montante de acordo com o valor de referência: aquele que o falecido recebia (ou teria direito a receber), à data da morte.
Estaria a A. a receber duas vezes compensação – da Segurança Social e das Seguradoras – pelo mesmo dano, caso se não abatesse à indemnização devida pela seguradora do lesante o valor recebido a título de prestação de sobrevivência.
A prestação de sobrevivência recebida, é, pois de abater, sendo o valor da mesma de € 12.200,86/anuais.
Neste sentido, ac. STJ, de 25.2.2003, Proc. 03B3071:
1. A indemnização pedida pelo cônjuge e pelo filho do falecido em acidente de viação com fundamento na perda de rendimento de trabalho não é fixada à luz dos princípios que regem sobre o direito de alimentos a que se reporta o artigo 495º, nº. 3, do Código Civil.
2. Um dos modos possíveis de cálculo da indemnização relativa a danos futuros por frustração de ganhos de trabalho por contra de outrem é o de considerar dever representar um capital produtor de um rendimento que se extinga no fim do previsível período da vida activa da vítima e que garanta as prestações periódicas correspondentes.
3. Na envolvência de juízos de equidade e de lógica de probabilidade, no cálculo do referido capital, por referência à vítima, devem considerar-se, se for caso disso, inter alia, a natureza do trabalho, o salário auferido, o dispêndio relativo a necessidades próprias, a depreciação da moeda, as condições de saúde ao tempo do decesso, o tempo provável de trabalho realizável e a expectativa de aumento salarial e de progressão na carreira.
4. A pensão de sobrevivência visa compensar a perda pelos familiares dos beneficiários do sistema de segurança social do rendimento de trabalho, e o subsídio por morte visa a compensação do dispêndio no funeral daqueles, não constituindo directa contrapartida deles para aquele sistema.
5. Não são cumuláveis, na esfera jurídica dos familiares dos beneficiários da segurança social, a indemnização pela perda do rendimento de trabalho pelos falecidos e as despesas com o funeral em razão de acidente de viação e as prestações de segurança social relativas a pensões de sobrevivência e subsídio por morte.
No mesmo sentido ac. STJ, de 02-10-2007 - Revista n.º 2763/07: Não são cumuláveis, na esfera patrimonial dos credores da indemnização, a indemnização por perda do rendimento do trabalho e do dispêndio com o funeral da vítima e a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte devidos aos beneficiários da segurança social. (…) Daí que tais valores, em princípio, devam ser deduzidos no montante indemnizatório devido.
Também ac. STJ, de 13-09-2012 - Revista n.º 1026/07.9TBVFX.L1.S1 - 7.ª Secção: Em acção em que se controverte o montante da indemnização correspondente aos lucros cessantes futuros decorrentes do falecimento, em acidente de viação, do pai do autor/ menor, incumbe à ré seguradora alegar e provar quaisquer factos impeditivos que obstem ao arbitramento do valor do capital peticionado, traduzidos nomeadamente, em acrescidas despesas a cargo do falecido ou no recebimento pelo autor de um montante a título de pensão de sobrevivência, não acumulável com a indemnização – não podendo configurar-se o eventual recebimento desta prestação da Segurança Social como facto notório, inferível apenas dos regimes normativos em vigor.
Deste modo, àqueles € 27.631,99, haverá que descontar € 12.200,86, assim se apurando a quantia de € 15.431,13/anual.
Aqui chegados, consideremos a equação apontada em primeira instância:
(2.237, 40-871,49) x12x30 x (1-0,01) = 486.810,33.
Com esta fórmula, considerou-se que, antecipando-se o recebimento da totalidade que seria recebida em 30 anos, se deve descontar 1% do valor total por efeito da possibilidade de aplicação do capital total recebido de uma vez.
Todavia, este raciocínio não tem em conta a possibilidade de aumento futuro (num prazo de 30 anos) dos rendimentos por parte do sinistrado e nem as expectáveis promoções.
Assim, se aplicássemos o raciocínio da primeira instância tendo em conta o valor que achámos, de € 15.431,13/anuais, teríamos o seguinte:
€ 15.431,13 x 30 x (1-0,01) = € 458.304,56.
Mas, conforme referimos, não cremos ser de aplicar aquela percentagem de 1% porque obnubila a possibilidade de aumento futuro de rendimentos e progressão na carreira, pelo que, aplicamos o raciocínio sem esse desconto:
€ 15.431,13 x 30 = € 462.933,90.
De uma forma ou de outra, o valor apurado é sempre inferior ao encontrado em primeira instância. Mas, uma vez que os critérios a que a lei faz apelo são os da equidade, não cabe a este tribunal de recurso alterar a decisão quando a mesma se situa numa margem de aceitabilidade, conforme começamos por afirmar, com o ac. do STJ, de 30.3.2023: os valores achados, na fixação de indemnização com base em equidade, apenas devem ser afastados em recurso se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade, se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adotados, numa jurisprudência evolutiva e atualística.
Quer isto dizer que o recurso é totalmente improcedente, assim se mantendo a decisão recorrida.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 8.5.2023
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Augusto de Carvalho
______________
[1] 1 - O IRS não incide, salvo quanto às prestações previstas no regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, alterado pelas Leis n.ºs 59/2008, de 11 de setembro, 64-A/2008, de 31 de dezembro, e 11/2014, de 6 de março, sobre as indemnizações devidas em consequência de lesão corporal, doença ou morte, pagas ou atribuídas, nelas se incluindo as pensões e indemnizações auferidas em resultado do cumprimento do serviço militar, as atribuídas ao abrigo do artigo 127.º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e as pensões de preço de sangue, bem como a transmissão ao cônjuge ou unido de facto sobrevivo de pensão de deficiente militar auferida ao abrigo do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 240/98, de 7 de agosto:
(…)
b) Ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente;