RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REVISTA EXCECIONAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
QUESTÃO NOVA
Sumário


I - Em processo penal, a revista excecional prevista no art. 672.º do CPC só poderia admitir-se quanto a matéria da indemnização civil em que tenham sido condenados os arguidos/demandados, caso os mesmos houvessem interposto desde logo, recurso da decisão proferida em 1ª instância também no que se refere à respectiva condenação em indemnização civil.
II - Aos recursos em processo penal que visem a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no art. 671.º do CPC, incluindo, evidentemente, a norma do n.º 3 que estabelece a denominada dupla conforme. Destarte, ao recurso em processo penal que vise a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no Código de Processo Civil.
III - Nos termos previstos no art. 672.º, n.º 3 do CPC, deverá ser o STJ a apreciar a verificação dos pressupostos da revista excecional desde que haja decisão do TRL sobre essa matéria. Mas, indeferida nulidade apenas arguida em reclamação do acórdão confirmatório do tribunal da Relação,como argumento ex novo, sobre aquela matéria cível e nunca antes suscitado, é legalmente inadmissível o recurso de revista excepcional – tendo por objecto a reversão da condenação solidária ao pagamento de € 2 082 498,49 numa outra de apenas € 686 100,81 –, por falta de decisão expressa ou implícita do tribunal da Relação.
IV - Não tendo os arguidos, no recurso interposto para o tribunal da Relação apenas do acórdão condenatório penal a quo por crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.º, n.º 1, al. c), e 104.º, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT(fraude em carrocel) impugnado ali, expressa e autonomamente, a questão-civil – sendo que o seu ganho nessa matéria apenas poderia advir, reflexa e indirectamente, da eventual procedência do recuso da questão-penal mas que foi confirmada em dupla conforme, o acórdão da Relação recorrido em revista excepcional para o STJ não se pronunciou nem decidiu, relativamente aos arguidos recorrentes de revista excepcional, sobre o acerto do decidido pela 1.ª Instância e acerca do objecto do pedido de indemnização civil.
V - Existirá imodificabilidade, em recurso de acórdão da Relação, pelo STJ, da decisão em matéria de facto e da decisão na parte criminal através de recurso de revista excepcional restrito à parte civil. Nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, porém, não caberá revista de acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em 1.ª instância , salvo nos casos do art. 672.º do CPC, no qual se prevê a revista excepcional.
VI - Admissível embora pelo valor, superior à alçada do tribunal da Relação e tendo a Relação confirmado unanimemente a decisão em 1.ª instância, nos termos e âmbito das questões colocadas nos recursos instaurados apenas em sede penal, a decisão que incidiu sobre reclamação do acórdão do tribunal da Relação e que indeferiu nulidade por alegada omissão de pronúncia quanto à condenação no pedido cível, decisão essa salientando a “inovação” de argumentos que nunca os recorrentes invocaram em recurso, que apenas fizeram incidir na matéria penal, aproveitando eles a sobredita reclamação do acórdão, para levantar um problema novo, que “descobriram”, só ali, dever ser, na sua perspectiva, de conhecimento oficioso, tentando “salvar” dessa forma a sua falta de alegação em via de recurso, problema esse atinente à quantificação do pedido cível e respectivo prejuízo para o Estado, não obstante, desde logo reconhecido como consequência de um negócio jurídico simulado na primeira instância, não permite se vislumbre em momento algum, face ao histórico dos autos, como bem assinalou o acórdão recorrido e reclamado, que tenha gerado da parte daqueles dissenso ou discussão relevante em sede de recurso para o tribunal da Relação.
VII - Desse modo, não há propriamente uma decisão (“acórdão”) da Relação susceptível de revista excepcional nos termos do art. 672.º, n.º 1, do CPC, que possa sequer ser ou constituir objecto deste tipo de recurso, pressuposto negativo este que inquina derradeiramente o seguimento para apreciação sumária pela formação cível.
VIII - Mesmo que se entendesse, porventura na base da consideração da possibilidade de co-aproveitamento de eventuais efeitos determinados pela interposição de recursos por parte doutros arguidos, sempre seria de não admitir a revista interposta tendo em atenção que haveria uma renúncia tácita ao recurso por parte dos recorrentes, dedutível do facto de, contra o que impõe o art. 615.º, n.º 4, do CPC, se não o próprio art. 379.º, n.º 2, do CPP – pois que ambos determinam a invocação de nulidades de sentença em recurso – terem optado por arguir o que consideraram ser uma nulidade por omissão de pronúncia em via de reclamação perante o próprio tribunal da Relação.

Texto Integral



Processo 34/13.5TELSB.L1.S1.


5a Secção (STJ).


Revista Excepcional (art. 672o/1-a) e b) do Código de Processo Civil).


Recorrentes: “J..., Lda”;AA:


BB.

*

ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NA 5a SECÇÂO CRIMINAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I- Relatório


1.1-Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2022 foi decidido: 1


“ 1. No Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz ...), os arguidos AA, BB e CC, com os demais sinais dos autos, e as sociedades arguidas J..., Lda,-(J.....), F..., Lda, A..., SA, P..., SL e F..., UG, foram submetidos a julgamento em processo comum com a intervenção do tribunal coletivo, após acusação do Ministério Público que lhes imputou a prática dos seguintes crimes:


- aos arguidos BB, AA e CC a prática, em co-autoria imediata, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103o, no 1, alíneas a) e c), e 104o, nos 2, alíneas a) e b), e 3, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT);


- às sociedades arguidas J..., Lda, F..., Lda, A..., SA, P..., SL, e F..., UG, de harmonia com o disposto no artigo 7o do RGIT, a responsabilidade pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103o e 104o, nos 2, alíneas a) e b), e 3, do RGIT, a que corresponde, segundo o Ministério Público, nos termos do artigo 11o, nos 1, 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, a pena principal prevista nos artigos 90o-A, no 1, e 90o-B do Código Penal, e a pena acessória prevista nos artigos 90o-A, no 2, e 90o-M do Código Penal.


2. Por acórdão (a quo) de 15 de fevereiro de 2021, foi decidido:


julgar a acusação pública e o pedido de indemnização civil formulado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do ESTADO PORTUGUÊS, parcialmente procedentes, por provados apenas em parte e, em consequência:


a) Absolver a sociedade arguida P..., SL, da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o e 104.o, n.os 2, als. a) e b), e 3, do RGIT.


b) Absolver a sociedade arguida F..., UG, da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o e 104.o, n.os 2, als. a) e b), e 3, do RGIT.


c) Condenar o arguido CC pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.


d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, ficando esta suspensão subordinada ao dever de aquele, no decurso do período de suspensão, entregar à Autoridade Tributária o montante global de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros) por conta do valor fixado a título de indemnização, devendo comprovar anualmente no processo o pagamento de € 12.000,00 (doze mil euros).


e) Condenar o arguido BB pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, ficando esta suspensão subordinada ao dever de aquele, no decurso do período de suspensão, entregar à Autoridade Tributária o montante global de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros) por conta do valor fixado a título de indemnização, devendo comprovar anualmente no processo o pagamento de € 12.000,00 (doze mil euros).


f) Condenar a sociedade arguida J..., Lda, nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT, na pena de 700 (setecentos) dias de multa à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o montante global de € 70.000,00 (setenta mil euros).


g) Condenar a sociedade arguida F..., Lda, nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT, na pena de 1.200 (mil e duzentos) dias de multa à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o montante global de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros).


h) Condenar a sociedade arguida A..., SA, nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT, na pena de 900 (novecentos) dias de multa à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o montante global de € 90.000,00 (noventa mil euros).


i) Não aplicar à sociedade arguida J..., Lda, as penas acessórias previstas nos arts. 90.o-A, n.o 2, e 90.o-M, ambos do Código Penal.


j) Não aplicar à sociedade arguida F..., Lda, as penas acessórias previstas nos arts. 90.o-A, n.o 2, e 90.o-M, ambos do Código Penal.


k) Não aplicar à sociedade arguida A..., SA, as penas acessórias previstas nos arts. 90.o-A, n.o 2, e 90.o-M, ambos do Código Penal.


l) Absolver as sociedades arguidas/demandadas P..., SL, e F..., UG, do pedido de indemnização civil contra as mesmas formulado.


m) Condenar solidariamente os arguidos/demandados AA, BB, J..., Lda, CC, F..., Lda, e A..., SA, a pagarem à Fazenda Nacional o valor de € 2.082.498,49 (dois milhões e oitenta e dois mil quatrocentos e noventa e oito euros e quarenta e nove cêntimos), acrescido juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento [arts. 559.o e 804.o a 806.o, todos do Código Civil, e Portaria n.o 291/2003, de 08.04].


n) Condenar solidariamente os arguidos/demandados CC e DD – UNIPESSOAL, LDa, a pagarem à Fazenda Nacional o valor de € 2.643.850,75 (dois milhões seiscentos e quarenta e três mil oitocentos e cinquenta euros e setenta e cinco cêntimos), acrescido juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento [arts. 559.o e 804.o a 806.o, todos do Código Civil, e Portaria n.o 291/2003, de 08.04].


o) Absolver os arguidos/demandados AA, BB, J..., Lda, CC, F..., Lda, e A..., SA, de tudo o mais que contra os mesmos foi peticionado a título de indemnização civil.


p) Condenar os arguidos CC, AA, BB, J..., Lda, EE, e A..., SA, no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça, quanto a cada um dos mesmos, em 4 (quatro) UC (arts. 513.o e 514.o, n.o 1, ambos do Código de Processo Penal, e art. 8.o, n.o 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III a este anexa).


q) Condenar os arguidos/demandados CC, AA, BB, J..., Lda, F..., Lda, e A..., SA, no pagamento das custas cíveis, nas seguintes proporções: 17% ficam a cargo solidariamente de todos os indicados arguidos; 23% ficam a cargo solidariamente dos arguidos CC e F..., Lda.”


*


3. Inconformados com a decisão final condenatória, dela interpuseram recurso os arguidos AA, BB, J..., Lda e CC.


(...)


3.1. Os recorrentes AA, BB e J..., Lda pedem que o acórdão recorrido seja revogado, “sendo este por outro substituído em que os recorrentes sejam integralmente absolvidos dos crimes pelos quais foram condenados”.


Apresentaram estes recorrentes a seguinte síntese conclusiva (que reproduzimos ipsis verbis):


“(...)


A - DA INTRODUÇÃO (OBJETO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO)


5o - No âmbito dos presentes autos, o tribunal a quo deliberou julgar a acusação pública e o pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, parcialmente procedentes, por provados apenas em parte e, em consequência, condenou o arguido AA, o arguido BB e a arguida J..., Lda, por fraude fiscal qualificada e, ainda, numa parte do PIC e custas.


6o - Não se conformando com tal decisão, vêm da mesma interpor o presente recurso.


B - DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO


7o - A fls. 80 do acórdão proferido, consta o que se transcreve:


Assim, o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido efectuar era a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


Sucede que, por via do negócio simulado celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade arguida J....., a primeira ficou constituída como sujeito passivo de IVA [art. 2.o, n.o 1, al. c), do Código do IVA].


Ora bem,


8o - No âmbito do processo que correu termos sob o n.o 60960/13.9..., na Comarca de ... - Instância Central – 1.a Secção Cível - J., foi proferida sentença a 23 de junho de 2015, já transitada, na qual foram dados como provados os seguintes factos:


(...)


9o - Embora conste dos presentes autos certidão da sentença vinda de transcrever, sem motivo aparente, o Tribunal a quo não lhe faz sequer referência...


10o - Por esta via, no mesmo sistema e momento jurídicos, temos agora duas decisões entre si absolutamente contraditórias:


c) na primeira decisão proferida (e transitada em julgado), foi dado como assente uma relação comercial imaculada, perfeitamente legítima;


d) já com a decisão ora posta em crise, considera-se que o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido a efetuar seria a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


11o - A respeito deste tipo de situações, a estabilizada jurisprudência diz-nos que:


“I. A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581o do Código de Processo Civil. (...)”


“6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498o do Código de Processo Civil.


7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”.


12o - Nesta conformidade, terá de ser declarada a inadmissibilidade desta ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.


Subsidiariamente,


C - DA PRESCRIÇÃO


(...)


20o - Assim, bem se vê que as conclusões do Tribunal a quo quanto ao envolvimento dos recorrentes não passaram de uma “operacã̧o puramente subjectiva e emocional”.


21o - Como tal, é materialmente inconstitucional a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 124.o, n.o 1, 127.o e 128.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, com o sentido em que se confere ao Juiz uma liberdade meramente intuitiva, sustentada em imputadas regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, quando estas nem são sequer reveladas, por violação dos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Subsidiariamente,


E - DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


(...)


Subsidiariamente,


F - DA FRAUDE FISCAL (NÃO) QUALIFICADA


62o - Resulta do acórdão recorrido que o arguido, aqui recorrente, AA, foi condenado pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


63o - Por sua vez, o arguido BB foi condenado, também, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


64o - Depois, foi ainda condenado a sociedade arguida J..... nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT.


65o - Sucede, todavia, que, a ter sido cometido algum crime pelos recorrentes, este não pode ser entendido como qualificado.


66o - Atente-se na jurisprudência dos Tribunais Superiores:


“A consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.” – cfr. acórdão da Relação de Lisboa, proferido a 08-03-2017, sob o n.o 1596/03.0JFLSB.L1-3, in www.dgsi.pt.


67o - Daqui se vê que a (imputada) vantagem patrimonial em caso algum é de valor superior a € 200.000,00, pois o IVA em cada fatura não atinge aquele limite – cfr. artigo 104.o, n.o 3, do RGIT.


68o - Desta feita, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


69o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das faturas, quando, na realidade, o devia ter feito.


70o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Subsidiariamente,


71o - Ainda que se considere que a declaração a que alude o artigo 103.o, n.o 3, do RGIT, tem por referencial a do IVA mensal, só nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2012 poderia a vantagem patrimonial ter ultrapassado o limiar dos € 200.000,00.


72o - Desta feita, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


73o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das declarações mensais de IVA, quando, na realidade, o devia ter feito.


74o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global das várias declarações mensais de IVA, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


75o - Tanto assim que, como resulta do artigo 103.o, n.o 3, do RGIT:


“Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”


76o - Por esta via, é claro que os recorrentes não podem ser condenados pela prática de um crime de fraude qualificada sem ponderação dos valores constantes de cada declaração mensal de IVA.


77o - Desta maneira, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


78o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das declarações mensais de IVA, quando, na realidade, o devia ter feito.


79o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, ou, até, de cada declaração mensal de IVA, implicam a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Em suma,


80o - O Tribunal a quo violou, entre outros que V.as Ex.as certamente melhor irão decidir:


a) os artigos 103.o e 104.o do RGIT;


b) os artigos 124.o, n.o 1, 127.o e 128.o, n.o 1, do CPP;


c) o princípio da equidade;


d) princípios da legalidade;


e) o princípio do acesso ao direito imanente do artigo 20.o da CRP,


f) os artigos 28.o e 32.o da CRP,


g) o artigo 9.o da DUDH,


h) o princípio da estabilização da jurisprudência,


i) o princípio da previsibilidade das decisões, assim arredando a confiança que os cidadãos devem depositar na Justiça,


j) o princípio da segurança jurídica,


k) o princípio do respeito pela jurisprudência dos Tribunais Superiores transitada em julgado (até por não terem sido alegados quaisquer fundamentos sérios para esta alteração de posição), e


l) os artigos 5.o e 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. (...)


*


II – QUESTÕES A DECIDIR


Com a conformação que é dada ao objeto dos recursos pelas conclusões apresentadas, poderemos afirmar que as questões a apreciar são as seguintes:


§ Questão prévia: da admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso.


§§ Dos recursos:


A. Recurso interposto pelos arguidos AA, BB e J.....:


A.1. Violação do caso julgado, relativamente a sentença proferida no processo (cível) no 60960/13.9...;


A.2. Extinção da responsabilidade criminal por prescrição, por terem decorrido mais de cinco anos sobre a prática dos factos (artigo 21o do RGIT);


A.3.Violação do princípio da livre apreciação da prova;


A.4. Impugnação da matéria de facto (lapso de € 100.000,00 nos valores pagos pela A...... à J.....; pontos de facto incorretamente julgados: 4 a 16, 29, 33, 39, 41, 67, 69 a 71); insuficiência da prova para a decisão, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova;


A.5. Erro de direito: atendendo ao valor de cada fatura, não há lugar à qualificação do crime de fraude fiscal. (...)


(...)”

§§. dos recursos

Como acima se enunciou, os recorrentes elencaram diversos fundamentos para os seus recursos, que deverão ser apreciados segundo a ordem de precedência que legal e logicamente lhes cabe, começando-se pelos que podem determinar a extinção do procedimento criminal (a prescrição e o caso julgado), a anulação do julgamento e eventual reenvio (nulidades da decisão), seguidos daqueles que podem determinar a alteração da matéria de facto (erros de julgamento) e, finalmente, as questões de direito suscitadas, designadamente, no que se refere ao enquadramento jurídico dos factos e à escolha e determinação da medida das penas. Por último, apreciar-se-ão as questões relativas à responsabilidade civil dos demandados.


iv.1. da prescrição

Vieram os recorrentes Aires de Oliveira Pinto, BB e J..., Lda (J.....), invocar a prescrição do procedimento criminal por fraude fiscal, argumentando terem já decorrido mais de cinco anos sobre a prática dos factos que lhes são imputados, pelo que se mostra esgotado o prazo prescricional previsto no artigo 21o, no 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei no 15/2001, de 05 de junho.


Ora, dispõe aquele artigo 21o do RGIT que 1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos. 2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos. (...) 4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no no 2 do artigo 42o e no artigo 47o”.


No caso, os recorrentes vinham acusados (e foram condenados) pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103o, no 1, alíneas a) e c), e 104o, nos 2, alíneas a) e b), e 3, do RGIT, ao qual é aplicável pena de prisão de 2 a 8 anos.


Por assim ser, o prazo de prescrição a que tal crime se encontra sujeito é de 10 anos2, conforme previsto no artigo 118o, no 1, alínea b) do Código Penal, por remissão do no 2 do artigo 21o do RGIT (e não o prazo previsto no no 1 desta última disposição legal).


Os factos enformadores do mencionado ilícito terão ocorrido entre fevereiro e outubro de 2012, pelo que, levando em consideração que “o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado” (cf. artigo 119o, no 1 do Código Penal), e aceitando-se, para este efeito, que a consumação do crime, quanto ao(s) emitente(s) das faturas falsas (que é o que está em causa nos autos), ocorre com a respetiva emissão e entrega3, tal prazo prescricional começou a correr em 24.10.2012, data da última fatura emitida (cf. artigo 3o do Código Penal).


O decurso do prazo prescricional, no caso que temos em mãos, suspendeu-se com a notificação da acusação4 (cf. artigo 120o, no 1, alínea b) do Código Penal) e, depois, com a notificação da decisão condenatória não transitada em julgado (cf. artigo 120o, no 1, alínea e) do Código Penal) – devendo ter-se presente que a primeira das apontadas suspensões não pode ultrapassar 3 anos e a segunda 5 anos (cf. artigo 120o, nos 2 e 4).


Além disso, o mencionado prazo interrompeu-se com a notificação da acusação – cf. artigo 121o, no 1, alínea b) do Código Penal.


Sendo certo que, após cada interrupção, começa a correr novo prazo de prescrição e que o prazo de prescrição suspenso volta a correr após a cessação da causa de suspensão e, ainda, que “a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade” (cf. artigos 120o, no 6 e 121o, nos 2 e 3, ambos do Código Penal), é manifesto que, no caso dos autos, ainda não se completou o mencionado prazo prescricional – não só porque ainda não decorreram 10 anos sobre a prática dos factos, como ocorrem causas de suspensão (a primeira iniciada em 2017 e cessada em 2020, e a segunda ainda em curso) e interrupção, sendo apodítico concluir que, não tendo decorrido o prazo normal, também não se mostra excedido o limite previsto no citado artigo 121o, no 3.


Em suma, é evidente que não se verifica, quanto a qualquer dos recorrentes, a prescrição do procedimento criminal, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.


iv.2. da autoridade do caso julgado

Invocaram os recorrentes AA, BB e J..., Lda (J.....), a existência de caso julgado decorrente de, no processo no 60960/13.9... que correu termos no Juízo Central Cível da Comarca de ..., se ter considerado demonstrada a existência de um acordo entre a sociedade F.... ......... .... e a J....., nos termos do qual aquela se comprometeu a fornecer mercadorias a esta última, tendo emitido faturas no valor global de € 6.783.608,26, que não foram pagas. Com base em tais circunstâncias, sustentam que não podia o Tribunal a quo ter considerado provado que os negócios celebrado entre o arguido CC, em representação da arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da arguida J....., e o arguido CC, em representação da arguida A......, foram simulados, por estar a validade daquela relação jurídica abrangida pela autoridade de caso julgado formado no mencionado processo cível.


Na sua resposta, o Ministério Público alega que a sentença mencionada pelos recorrentes não se mostra junta aos autos, não tendo tal decisão sido sequer mencionada pelos recorrentes na contestação apresentada, pelo que o Tribunal recorrido não tinha de conhecer, nem de se pronunciar sobre uma decisão cível que não consta dos autos. Mais adita que as situações retratadas num e noutro processos (o cível, por um lado, e o processo crime, por outro) são diversas, não tendo a ação cível versado sobre a validade da transação comercial, mas apenas sobre a existência e forma de pagamento da quantia em dívida.


Algumas precisões se impõem.


Desde logo, é verdade que, como refere o Ministério Público, a sentença cível a que aludem os recorrentes (e da qual pretendem extrair um efeito preclusivo), não consta dos autos, e os recorrentes também não tiveram a gentileza de juntá-la, limitando-se a transcrever os factos alegadamente dados como provados na mesma, mas não reproduzindo a respetiva fundamentação de facto e de direito ou o seu dispositivo. Assim, em face da alegação produzida, não é possível determinar qual o sentido e alcance da decisão proferida naqueles autos de processo civil (designadamente, não é possível afirmar que tenha sido «dado como assente uma relação comercial imaculada, perfeitamente legítima»).


Não será este, porém, o argumento que decisivamente faz naufragar a pretensão dos recorrentes quanto a esta questão – em abstrato, sempre se poderia determinar a junção de certidão da mencionada decisão (o que só não se justifica pelos motivos que abaixo se deixarão expostos).


Com efeito, o que verdadeiramente releva, no caso, é a diversa natureza dos procedimentos – de um lado, uma ação do foro cível, do outro um procedimento criminal.


Explicitemos.


Como se sabe, no âmbito do direito processual civil, dispõe o artigo 619o, no 1 do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «valor da sentença transitada em julgado» que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580o e 581o, sem prejuízo do disposto nos artigos 696o a 702o.” E, nos termos previstos no artigo 621o do Código de Processo Civil, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (...)”.


Socorrendo-nos da exposição apresentada no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 27.05.20215, não deixaremos de reconhecer que “A força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social.


Espraia-se sob diferentes prismas ou modalidades.


Pode ocorrer por força da exceção do caso julgado, a qual reflete a denominada função negativa do caso julgado. Assim, segundo o disposto no artigo 580.o, n.o 1, do CPC, as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – artigo 581.o, n.o 1, do mesmo Código (tríplice identidade).


Já a figura da autoridade do caso julgado não se afeiçoa à ideia de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objetos processuais. Logo, julgada em termos definitivos certa matéria, numa ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras ações que venham a correr termos entre as mesmas partes, incidindo sobre um objeto diverso, mas cuja apreciação depende decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda ação (cf. acórdão do STJ de 24.4.2015, p. 7770/07.3TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt).


Nas palavras de Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora: Coimbra, 1979, p. 305), o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação jurídica controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».


A força obrigatória reconhecida ao caso julgado material, segundo o mesmo Autor (obra citada, p. 306), encontra arrimo na necessidade de garantir o prestígio dos tribunais, que ficaria seriamente comprometido «se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente». Impõe-se por razões de «certeza ou segurança jurídica», pois, sem a força do caso julgado, cairíamos «numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa - fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas» (ibidem).


Na verdade, o desígnio do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objetivo ou a atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes – mas também a segurança e a paz social. Miguel Teixeira de Sousa (in Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, BMJ n.o 325, pp. 171 a 179) observa que, «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».”


Se assim é no âmbito do processo civil, o certo é que no processo penal a questão tem que ser encarada de modo diverso. A existência de caso julgado penal impede que alguém possa ser submetido a um novo julgamento pelo mesmo crime, por referência a um determinado conjunto de factos – manifesta-se, pois, no princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29o, no 5 da Constituição da República Portuguesa.


E só o caso julgado penal é suscetível de relevar em processo posterior, impedindo uma nova apreciação do mesmo complexo fáctico, por referência a um mesmo tipo de crime.


Precisamente porque no processo penal todos os meios de prova e todas as provas têm de ser produzidos ou examinados em audiência, como decorre do disposto no artigo 355o do Código de Processo Penal, sendo certo que as provas6 no processo penal não têm o mesmo regime jurídico que nos outros ramos do direito e se, por um lado, correspondem aos elementos com base nos quais os factos podem ser demonstrados, por outro, constituem o substrato da “motivação da convicção da entidade decisora acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente no processo e respeite as regras da experiência, as leis científicas e os princípios da lógica7.


Uma decisão proferida num processo que não seja um processo criminal, poderá envolver ou não um julgamento8 com um objeto do processo e com a produção, ou não, de prova. Doutro modo, uma decisão para condenar um arguido, implica que tenha havido um processo, com um inquérito, que tenha havido uma acusação, ou que tendo ou não havido acusação seja proferido um despacho de pronúncia e, envolve, por regra9, um julgamento em processo penal.


Um julgamento feito num processo crime, tem de ser feito de acordo com as regras do processo penal, com os meios de prova que lhe são próprios, relevando necessariamente o modo como a prova é obtida e, também, as proibições de prova.


Atenta a sua natureza própria, uma decisão proferida em processo crime não é passível de ter como meios de prova decisões de outros ramos de direito. Isto porque a decisão a que se chega nesses outros ramos de direito é fruto da aplicação de outras regras processuais que não as do processo penal, podendo ser as lides decididas com base em presunções ou em conformidade com o exercício de direitos disponíveis pelas partes litigantes, suscetíveis de conduzir a um resultado que no processo penal poderá não ser o mesmo (pois a presunção que existe no processo penal é a de que o arguido se presume inocente) e não reproduzem o que sucedeu, mas, outrossim, o que em determinado ramo de direito em função das regras da prova se provou que aconteceu e que como tal se lhe aplicou determinadas regras de direito.10


Tem, pois, de concluir-se que uma sentença proferida noutro ramo de direito – nomeadamente num processo de natureza cível – não pode constituir meio de prova no processo penal, mas, tão somente, poderá produzir efeitos no processo penal (designadamente, enquanto evidência da existência desse litígio cível).


Nos termos do estatuído no artigo 125o do Código de Processo Penal, são admitidas no processo penal todas as provas que não forem proibidas por lei. São admitidos, por conseguinte, todos os meios de prova que se encontram “tipificados, isto é, regulados por lei, que são admitidos, mas ao contrário, são admissíveis todos os que não forem proibidos, mesmo sendo atípicos11. A prova tem por função a demonstração da realidade dos factos, conforme artigo 341o do Código de Processo Penal, configurando-se os meios de prova como “os elementos com base nos quais os factos relevantes podem ser demonstrados12, e a prova, “enquanto resultado da atividade probatória é a motivação da convicção da entidade decidente acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente no processo e respeite as regras da experiência, as leis cientificas e os princípios da lógica13.


Convém manter presente que, no domínio do processo penal, está em causa não “«a verdade formal», mas a «verdade material» que há de ser tomada em duplo sentido: no sentido de uma verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela; mas também no sentido de uma verdade que não sendo «absoluta» ou «ontológica», há de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida14.


Quanto à “verdade” que no processo penal se procura, devemos ter em conta que ela tem a ver com a realidade da vida, com a ação humana e as circunstâncias do mundo humano, pois a verdade que importa ao direito (e assim, ao processo) não poderá ser outra senão a que traduza uma determinação humanamente objetiva de uma realidade humana. É ela pois uma verdade histórico-prática. A sua modalidade não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações, como tudo, o que nestas de material e espiritual participa. ... se trata de uma racionalização de índole prática-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável15.


Assim a reconstituição que se vai fazer dos factos na decisão não é uma reconstituição histórica dos factos, mas uma reconstituição judicial em que vai ser declarado o que é verosímil que tenha sido verdade. Em processo penal a verdade é o que for mais verosímil, plausível, de todas as provas que forem carreadas para o processo e de que o julgador disponha16.


Cabe, pois, concluir que a autoridade de caso julgado que possa ser derivada da decisão proferida no processo no 60960/13.9... (cujo teor, na verdade, se desconhece) não pode ser estendida ao processo penal, devendo a prova relativa aos factos a este processo pertinentes fazer-se, sempre, no âmbito deste processo, maxime, na respetiva audiência de julgamento (como, aliás, sucedeu).


Improcede, assim, o recurso dos arguidosAA, BB e J....., também nesta parte.


*


(...)


iv.5. Questões de direito no âmbito dos recursos interpostos pelos arguidos.

Aqui chegados e perante a improcedência dos recursos interpostos no que se refere à impugnação da matéria de facto, mantidos que se mostram, em definitivo, os factos provados tal como enunciados pelo Tribunal a quo, cumpre analisar e decidir as questões suscitadas pelos arguidos recorrentes em matéria de Direito.


iv.5.1. Do enquadramento jurídico-penal

Sustentam os recorrentes AA, BB e J....., que, a ter sido por eles cometido algum crime, este não pode ser entendido como qualificado.


Para o efeito, estribam-se em que o valor a considerar para efeitos de qualificação do crime, nos termos previstos no artigo 104o, no 3 do RGIT, é o de cada fatura isoladamente considerada, e em nenhuma delas o valor do IVA atinge € 200.000,00.


Mais alegam que, ainda que se considere que a declaração a que alude o artigo 103o, no 3 do RGIT, tem por referencial a do IVA mensal, só nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2012 poderia a vantagem patrimonial ter ultrapassado o limiar dos € 200.000,00.


Concluem que, a não ser assim, estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103o, no 3 e 104o, no 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32o, n,o 2 e 20o, no 2, ambos da CRP e artigo 6o da CEDH.


(...)


Na decisão recorrida, a propósito do enquadramento jurídico dos factos dados como provados, consignou-se:


“C. De harmonia com o disposto no art. 103.o, n.o 1, do RGIT, constituem fraude fiscal, (...) as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, acrescentando-se, com relevância para o caso em apreço, que a fraude fiscal pode ter lugar por:


- Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável [al. a)];


- Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas [al. c)].


Constituem circunstâncias modificativas agravantes do tipo de crime matricial, nos termos do que dispõe o art. 104.o, n.os 2, al. a), e 3, do RGIT:


- A fraude ter lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou


- A vantagem patrimonial ser de valor superior a €200.000,00.


D. Do IVA


Apurou-se que no ano de 2012 a sociedade arguida F..., Lda adquiriu às empresas G.. e C...., sedeadas em Espanha, um total de 19.998,94 toneladas de ferro.


Por seu turno, no ano de 2012, a sociedade arguida F..., Lda emitiu a favor da sociedade arguida J..... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 17.958,620 toneladas de ferro pelo valor total de €11.326.765,99, sendo €9.208.752,83 relativos ao valor da mercadoria, e tendo a primeira liquidado IVA no valor de €2.118.013,15.


Por fim, também no ano de 2012, a sociedade arguida J..... emitiu a favor da sociedade arguida A...... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 16.053,292 toneladas de ferro, pelo valor total de €8.839.821,99, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de aparente transacção intracomunitária de bens [art. 14.o, n.o 1, al. a), do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, aprovado pelo Dec.-Lei n.o 290/92, de 28.12].


Conforme também se apurou, nem o arguido Manuel Bolance, em representação da sociedade arguida Filão Singular, quis vender à sociedade arguida Jomape a referida mercadoria, nem os arguidos Aires Pinto e Bruno Pinto, em representação da sociedade arguida Jomape, quiseram comprar ou vender o ferro, nem o arguido Manuel Bolance, em representação da sociedade arguida Avezada, quis comprar a mercadoria à sociedade arguida Jomape.


Não obstante, por ordem dos arguidos Aires Pinto e Bruno Pinto em representação da sociedade arguida Jomape, esta solicitou à Autoridade Tributária o reembolso do IVA liquidado pela sociedade arguida Filão Singular correspondente à mercadoria facturada pela Filão Singular à Jomape, e que esta transmitiu à sociedade arguida Avezada [art. 19.o, n.o 2, do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias]. O valor total do IVA correspondente à mercadoria facturada pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J..... que esta transmitiu à sociedade arguida A...... é de €1.904.286,65, sendo que, nesta sequência, foi pago à sociedade arguida J..... o reembolso do aludido IVA relativo aos meses de Maio, de Junho e de Julho de 2012, no valor total de €686.100,81.


Já o arguido CC, registou na contabilidade da sociedade arguida F..., Lda facturas emitidas por FF em representação da sociedade P..........., respeitantes à aparente compra por aquela empresa de 17.175,972 toneladas de ferro pelo valor de €9.054.341,05, a que acresce IVA no montante de €2.082.498,49. No entanto, a emissão de tais facturas não assentou na realização de qualquer transacção real entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P..........., apenas tendo servido para permitir a dedução pela primeira do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas pelo arguido CC em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J......


Assim, o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido efectuar era a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


É igualmente simulado o negócio celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P..........., por não ter assentado na realização de qualquer transacção real.


Sucede que, por via do negócio simulado celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade arguida J....., a primeira ficou constituída como sujeito passivo de IVA [art. 2.o, n.o 1, al. c), do Código do IVA].


E, porque o negócio celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P........... é simulado, a primeira ficou impedida de deduzir o IVA que lhe foi facturado pela segunda, no montante de €2.082.498,49 (art. 19.o, n.o 3, do Código do IVA vigente à data da prática dos factos, sendo que por força da entrada em vigor em 01.01.2013 do Dec.-Lei n.o 197/2012, de 24.08, as alterações introduzidas na norma em apreço não relevam para o caso dos autos).


Assim, ao agir em representação da sociedade arguida F..., Lda nos moldes que se consideraram estar provados, o arguido CC visou a não entrega ao Estado de €2.082.498,49 a título de IVA, o que conseguiu, preenchendo assim os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


Quanto aos arguidos AA e BB, ao agirem em representação da sociedade arguida J..... nos termos descritos, com o conhecimento de que o plano engendrado pelo arguido CC incluía a não entrega ao Estado Português do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas por este em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J..... (no montante de €2.118.013,16, a que o arguido CC deduziu, nos termos expostos, o valor de €2.082.498,49), visaram a obtenção indevida de reembolso de IVA susceptível de causar diminuição das receitas tributárias no montante de €1.904.286,65 (que corresponde ao valor total do IVA da mercadoria facturada pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J..... que esta transmitiu à sociedade arguida A......).


Mas, mais do que isso, os arguidos AA e BB, ao agirem conluiados e da forma descrita com o arguido CC, executaram uma parte do plano concertado entre os três, com vista a que a sociedade arguida F..., Lda não entregasse ao Estado o referido montante de €2.082.498,49, valor que aqueles sabiam ser devido ao Estado por estar documentado nas facturas emitidas a favor da sociedade arguida J..... (tais facturas, como se referiu, documentavam, inclusive, um valor ligeiramente superior, de €2.118.013,16, pelo que o dolo dos arguidos AA e BB abrange o montante efectivamente deduzido pela F..., Lda). Aliás, é a intervenção da sociedade arguida J..... que permite a dedução de IVA pela sociedade arguida F..., Lda.


O reembolso à sociedade arguida J..... efectivado pelo montante de €686.100,81 somente releva em sede de determinação da medida concreta da pena, pois o tipo de ilícito de fraude fiscal, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido (que, conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2012, é a Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social – processo 379/07.3TAILH.C1, disponível em www.dgsi.pt), apresenta-se como um crime de perigo.


Além disso, a actuação concertada dos arguidos CC, AA e BB causou ao Estado um prejuízo efectivo de valor próximo ao do IVA que a sociedade arguida F..., Lda devia ter entregue aos cofres do Estado por força da facturação emitida a favor da sociedade arguida J....., no caso, no montante de €2.082.498,49.


É nesse valor que o Estado está desembolsado em consequência da actuação concertada entre os arguidos CC, AA e BB. É certo que o pedido de reembolso em €1.904.286,65 e o reembolso concretizado de €686.100,81 não constituem o acto gerador do prejuízo. Este é gerado pela actuação conjunta dos arguidos CC, AA e BB, pré-ordenada a que a sociedade arguida F..., Lda não entregasse €2.082.498,49, o que sucedeu. E os arguidos AA e BB aceitaram que fossem emitidas a favor da sociedade arguida J..... facturas em que foi liquidado IVA em valor um pouco superior a €2.082.498,49. E, portanto, respondem como co-autores (art. 26.o do Código Penal) por toda a actuação e prejuízo criado pela mesma.


De resto, o benefício que a sociedade arguida J..... iria obter com a adesão dos arguidos AA e BB ao aludido plano não era constituído pelo reembolso pedido no valor de €1.904.286,65 (pois este montante seria entregue à sociedade arguida F..., Lda), mas pela diferença entre o valor que lhe seria facturado pela sociedade arguida F..., Lda e o valor que aquela iria facturar à sociedade arguida A.......


Assim, ao agirem em representação da sociedade arguida J..... nos termos que se consideraram estar provados, também os arguidos AA e BB preencheram os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


O caso dos autos traduz o que usualmente se designa por “fraude carrossel”. Tal como se refere no acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 21.02.2017, esses esquemas de defraudação do Estado em sede de IVA que se desenvolvem através da associação de operações intracomunitárias isentas de IVA e operações nacionais não isentas, implicam a participação de vários operadores que, entre si, formam circuitos económicos de mercadorias ou só circuitos de facturação, nos casos em que a mercadoria é fictícia.17


Na terminologia correntemente utilizada em situações idênticas à dos autos, a sociedade arguida F..., Lda denomina-se de “operador desaparecido” (ou “missing trader”) e a sociedade arguida J..... de “empresa de ligação” (ou “broker”).18


Por fim, os arguidos CC, AA e BB agiram com dolo directo, pois tinham conhecimento dos factos que acima se descreveram e quiseram agir pela forma mencionada (art. 14.o, n.o 1, do Código Penal), tendo ainda actuado todos com consciência da ilicitude da respectiva conduta (art. 17.o, n.o 1, a contrario, do Código Penal).


E. Do IRC


Tal como ficou demonstrado, o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, contabilizou as facturas emitidas pela sociedade P..........., portanto, gastos, em desrespeito pelo disposto no art. 23.o do Código do IRC, na medida em que tais facturas não assentam na realização de qualquer transacção real.


Apurou-se igualmente que, sem a contabilização daquelas, foi apurada em sede de IRC uma matéria colectável, relativamente à sociedade arguida F..., Lda, que deu origem à liquidação desse imposto no montante de €2.643.850,75.


Assim, ao agir em representação da sociedade arguida F..., Lda nos moldes que se consideraram estar provados, o arguido CC visou a não liquidação de €2.643.850,75 a título de IRC, preenchendo assim os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. a), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


Acresce que o arguido CC agiu com dolo directo, pois tinha conhecimento dos factos que acima se descreveram e quis agir pela forma mencionada (art. 14.o, n.o 1, do Código Penal), tendo ainda actuado com consciência da ilicitude da respectiva conduta (art. 17.o, n.o 1, a contrario, do Código Penal).


F. Em suma:


- O arguido CC praticou, em autoria imediata e na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT;


- Os arguidos AA e BB praticaram, em co-autoria imediata e na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


G. Da responsabilidade das pessoas colectivas


Em face da matéria de facto provada, resulta desde logo não ser possível atribuir às sociedades arguidas P..., SL, e F..., UG., a responsabilidade pela prática de qualquer ilícito criminal, devendo as mesmas, portanto, ser absolvidas.


Por seu turno, atenta a factualidade que se considerou estar provada, bem como o disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT:


- A sociedade arguida J..., Lda., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT;


- A sociedade arguida F..., Lda – U........., Lda., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT; e


- A sociedade arguida A...... ........, S.A., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT.”


Posto isto, quase pode dizer-se que, à face do que ficou consignado na decisão recorrida quanto ao enquadramento jurídico dos factos, resulta evidente o preenchimento, por parte dos recorrentes do crime pelo qual foram condenados.


Ainda assim, sempre se dirá, a propósito do recorte normativo do crime de fraude fiscal qualificada, que importa ter em conta que o artigo 104o, no 1 do RGIT contém necessariamente os elementos que compõem o tipo matricial de fraude (tal como resulta da previsão constante do artigo 103o do RGIT) mas também contempla elementos que vão para além daquele tipo legal e que, por isso, fundamentam não só a agravação da punição, como conferem àquela norma uma natureza de especialidade.19


As circunstâncias qualificadoras estão previstas no no 1 do artigo 104o. Todavia, para que a fraude seja qualificada não é suficiente a ocorrência de uma daquelas circunstâncias. O legislador exige que se verifique a «acumulação» de mais de um daqueles elementos, criando assim uma técnica original de qualificação por adição ou por acumulação. A fraude qualificada realiza-se então quando duas ou mais circunstâncias previstas no artigo 104o se acrescentam às condutas ilegítimas tipificadas no artigo 103o.


Porém, o no 2 do artigo 104o do RGIT refere-se expressamente à utilização de faturas ou documentos equivalentes forjados, autonomizando tais casos, que fundamentam por si só a qualificação da fraude fiscal.


Ora, como no caso em apreço os factos foram praticados através da utilização de «faturas falsas» (sem correspondência com negócios jurídicos reais, efetivamente queridos pelas partes contratantes), é evidente que o tipo criminal aqui em causa sempre seria a fraude fiscal qualificada, independentemente de o respetivo valor ultrapassar, ou não, os € 200.000,00 (o que, todavia, não deixa de constituir circunstâncias agravante a se).


Isto mesmo se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.06.200520, no qual, não obstante, também se refletiu que “a remissão que no no 3 do mesmo preceito [o artigo 103o do RGIT], é feita para os valores constantes de cada declaração a apresentar à administração tributária não pode ser entendida doutra forma que não seja a de que para efeitos da exclusão de punibilidade prevista no número anterior, não serão atendidos outros valores que não os constantes de cada declaração. Isto, por dois motivos: a não ser assim, deveria entender-se que, por cada declaração entregue, seria renovada a resolução criminosa com inequívoca influência no número de crimes praticados; por outro lado, perante situações idênticas, isto é, perante dois contribuintes com idênticos rendimentos, sairia beneficiado, sem razão que o justificasse, aquele que, por exemplo, estivesse sujeito ao regime normal de periodicidade mensal, já que os valores declarados seriam obviamente inferiores àqueles que iria declarar, trimestralmente, um outro contribuinte com os mesmos rendimentos.


Ora, acrescentamos nós, a vantagem patrimonial referida no arto103° n°2 do citado diploma legal reporta-se a todos ou a qualquer dos factos enumerados sob o n°1 e respectivas alíneas deste mesmo preceito legal e que devam constar de cada uma das declarações apresentadas ou a apresentar à administração fiscal, ou negócio celebrado e independentemente do valor de cada uma delas, isto é, a não punibilidade da conduta do agente ali prevista tem como limite máximo montante de [15.000] euros enquanto vantagem patrimonial ilegítima por si obtida, seja qual for o período a que respeite, os negócios celebrados, ou o número ou periodicidade das declarações viciadas ou em falta.


Assim, a vantagem patrimonial ilegítima afere-se ou contabiliza-se pela soma aritmética de todos os valores dos livros da contabilidade ou escrituração, do negócio ou negócios simulados, da declaração ou declarações em falta – se não excedente a [15.000] euros, tais factos não são puníveis.”.


Em face do que fica dito, dos factos provados e das disposições legais aplicáveis, perante a uniformidade da atuação dos arguidos e o propósito que os animou – no qual não se identifica renovação da resolução criminal, mas antes persistência no propósito originalmente formulado, parece-nos evidente o acertado da decisão recorrida – neste particular, em linha com a acusação – ao considerar que apenas foi cometido, por cada um dos arguidos recorrentes, um crime de fraude fiscal qualificada, contabilizando-se a vantagem patrimonial ilegítima, no que se refere aos «triângulo negocial» gerado entre a F..., Lda (representada por CC), a J..... (representada por AA e BB) e a A...... (representada por CC) em € 2.082.498,49 (dois milhões, oitenta e dois mil, quatrocentos e noventa e oito euros e quarenta e nove cêntimos).


Esta foi, também, a solução acolhida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.201221, em situação em tudo semelhante à que aqui se estuda, aí se exarando que: “tendo todos os arguidos agido de forma concertada, actuando com o mesmo objectivo comum (tal como resulta dos factos alegados na pronúncia e dos dados como provados), quando decidiram emitir regularmente, nas datas supra descritas, as facturas falsas, para as utilizarem da forma descrita, com vista a obterem vantagens indevidas de IVA e de IRC (nos moldes referidos nos factos objecto deste processo), o último acto de execução da resolução que tomaram sempre ocorreu na vigência do RGIT, quer considerando a data em que foi emitida a última factura falsa (...), quer considerando a última declaração fiscal apresentada na Administração Tributária (...).


Aliás, a integração na contabilidade daquela sociedade F..., Lda de facturas falsas emitidas pela sociedade gerida pelo recorrente, só interessava precisamente para, com a referida utilização, serem obtidas vantagens indevidas de IVA e de IRC pela primeira sociedade, que apresentou as respectivas declarações fiscais (é ilógica a argumentação contrária do recorrente, de que apenas emitiu e entregou as ditas facturas falsas, desconhecendo o destino que lhes ia ser dado, quando os arguidos tinham precisamente aquele objectivo comum; e só porque visavam obter vantagens indevidas na sua utilização é que faz sentido a emissão e entrega das ditas facturas falsas).


Tratando-se, neste caso, da execução daquela única resolução que tomaram (que envolvia quer a emissão das facturas falsas, quer a sua utilização na contabilidade da F..., Lda, com vista a obterem vantagens indevidas de IVA e de IRC, o que significa que a sua consumação se prolongou no tempo, podendo classificar-se a conduta em causa como crime permanente ou duradouro), a consumação do crime de fraude fiscal ocorreu com a prática do último acto, que foi quando cessou a consumação (art. 119o, no 1 e no 2, alínea a), do CP), o que aconteceu sempre na vigência do RGIT como já acima se explicou (independentemente da posição que se adopte quanto ao momento da consumação do crime de fraude fiscal, v.g. seja o da data da última factura emitida, seja o da data da última declaração fiscal apresentada).


Essa única resolução (que afasta desde logo a existência de crime continuado), cuja execução e consumação se prolongou no tempo, não é minimamente posta em causa por as vantagens indevidas visadas se relacionaram com dois tipos de impostos diferentes (no caso IVA e IRC), nem tão pouco com a circunstância de terem sido apresentadas em 3 momentos temporais distintos as respectivas declarações fiscais em nome da F..., Lda (a apresentação das declarações fiscais que, para parte da doutrina e jurisprudência, coincide com o momento da consumação do crime de fraude fiscal, não interfere, nem se confunde com a resolução criminosa prévia que foi tomada porque já faz parte da execução dessa mesma resolução).


De concurso de crimes também não se pode falar uma vez que o bem jurídico violado com a execução daquela única resolução é o mesmo (o qual, em resumo e genericamente, podemos dizer que se relaciona de forma primacial com a protecção do “património público tributário”, ainda que exista “um limiar mínimo de ofensividade para o bem jurídico”22.”


Este é, mutatis mutandis, também o caso destes autos.


Como acima se apontou, no comportamento adotado ao longo do tempo pelos arguidos, tal como resultou provado no julgamento, identifica-se uma pré-determinação ordenada à obtenção de proventos em prejuízo do património público tributário, com aproveitamento das circunstâncias propiciadas pela existência de aparentes transações intracomunitárias, não se vislumbrando, ao contrário do pretendido pelo recorrente CC que tal resulte posto em causa pela circunstância de terem sido afetadas prestações tributárias de diversa natureza (IVA e IRC). Na verdade, a dívida de IRC surge diretamente ligada à existência dos negócios simulados: a AT, no exercício da sua atividade inspetiva, detetou a desconformidade daquelas transações, eliminando-as dos custos imputados pelo arguido CC (que permitiam à sociedade arguida F..., Lda, apresentar um rendimento coletável diminuto), e é nessa sequência que vem a apurar-se o valor de imposto efetivamente devido, após correção da matéria tributável.


Como se disse, tais atos mostram-se claramente conexos e subordinados a um único desígnio – daí que se conclua pela prática de um único crime de fraude fiscal qualificada por parte de cada um dos arguidos, tal como se decidiu no acórdão recorrido.


Não procede, pois, a pretensão do recorrente CC no sentido da separação de processos por via da diversidade de impostos em dívida.


Assim, não podendo os recorrentes deixar de ser responsabilizados em face da matéria de facto provada, impõe-se concluir pela improcedência do recurso.


*


Mais uma vez, não é possível apreciar a hipotética questão de constitucionalidade suscitada a propósito desta matéria pelos recorrentes AA, BB e J....., desta feita por deficiente concretização da dimensão constitucional tida em vista, que não foi pelos recorrentes explicitada, já que se limitaram a referir disposições constitucionais, sem esclarecerem em que medida da dimensão normativa que propõem e suscetível de por em causa tais garantias.


(...)

iv.6. Do pedido de indemnização civil

(...)

iv.6. Do pedido de indemnização civil

O recorrente CC insurge-se, ainda, contra a sua condenação no pagamento, a título de indemnização civil, à Fazenda Nacional das quantias de € 2.082.498,49 (solidariamente com os arguidos/demandados AA, BB, J....., F..., Lda e A......) e de € 2.643.850,75 (solidariamente com a arguida/demandada F..., Lda), ambas acrescidas de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento.


Alega, para o efeito que a sua conduta não preenche os requisitos estabelecidos nos artigos 483o e 497o do Código Civil, para efeitos de atribuição ao demandante das indemnizações civis em que foi condenado, não se verificando o nexo de imputação do facto ao agente, assim como não existe nexo entre os danos reclamados e os factos praticados pelo arguido.


(...)


São corretas e adequadas as considerações tecidas pelo Tribunal a quo quanto aos termos que devem balizar a decisão, designadamente, quando faz emergir a obrigação de indemnizar da prática de atos ilícitos dos quais resultaram prejuízos – no caso, para a Fazenda Nacional.


A objeção formulada pelo recorrente neste âmbito arrancava do pressuposto de que o mesmo não poderia ser responsabilizado criminalmente e, assim sendo, também não poderia ser chamado a reparar danos civis emergentes da prática de crime.


Não lhe tendo sido reconhecida razão na impugnação da matéria de facto e mantendo-se a condenação do arguido nos precisos termos em que fora definida na 1a instância, é evidente que também a condenação cível deve subsistir nos seus precisos termos, já que nenhuma deficiência lhe foi apontada, nem se vislumbra que aqui exista vício que deva ser conhecido oficiosamente.


Face ao que fica dito, o recurso é de improceder também nesta parte.


*


V. Decisão

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA, BB, J..., Lda, e CC, mantendo a decisão condenatória recorrida nos seus precisos termos.


(...)”


*


1.2. Desse acórdão do TRL de 27 de setembro de 2022 reclamaram os arguidos AA, BB e J..., Lda, (J.....).


Estes, tendo visto confirmada a sua condenação em 1a instância por aquele acórdão, que lhes foi notificado a 03.10.2022, vieram então por requerimento apresentado em 03.11.2022 (refa Citius 603835), entre o mais, arguir a «nulidade do acórdão», com fundamento em «omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.o, n.o 1, alínea c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão de conhecimento oficioso, que deveria ter apreciado» - qual seja, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410o, no 2, alínea b) do Código de Processo Penal e por cautela, apresentar recurso de revista excepcional ao abrigo do arto 672o no1 do CPC.


Desta reclamação houve decisão em Conferência de 22 de novembro de 2022, e foi julgada “ “(...)improcedente a arguição de nulidade do sobredito acórdão de 27.09.2022 por omissão de pronúncia(...)”


Nela se considerou, para tanto:


“(...)Os arguidos AA, BB e J..., Lda, tendo visto confirmada a sua condenação em 1a instância por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27.09.2022 que lhes foi notificado em 03.10.2022 vieram, por requerimento apresentado em 03.11.2022 (refa Citius 603835), entre o mais, arguir a «nulidade do acórdão», com fundamento em «omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.o, n.o 1, alínea c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão de conhecimento oficioso, que deveria ter apreciado» - qual seja, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410o, no 2, alínea b) do Código de Processo Penal.


Em fundamento de tal alegação, argumentam que «não pode o Tribunal de 1.' instância, por um lado, qualificar o negócio jurídico celebrado como uma simulaçãorelativa, por outro lado, no momento decisório da quantificação do prejuízo, não aplicar as regras de tributação aplicáveis ao negócio dissimulado (real).


Por tal entendimento constituir manifesta contradição nos seus próprios termos e por violar o disposto nos artigos 39.° da LGT e 14.° do RITI, a decisão de 1.' instância, no que diz respeito ao pedido de indemnização cível formulado, é ilegal, porquanto enferma de vício de conhecimento oficioso, consubstanciado numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do artigo 410.°, n.° 2, alínea b), do CPP.


(...)Em suma, considerando-se, na linha do decidido pelo Tribunal de 1.' instância e confirmado pela decisão recorrida, que efetivamente o negócio celebrado entre a F.... e a Recorrente J..... foi simulado, então, nesse figurino, o prejuízo efetivo do Estado dever ser o montante reembolsado pela Autoridade Tributária à J....., pelo que deveria o Tribunal a quo ter declarado oficiosamente a nulidade da decisão recorrida, na parte referente ao segmento decisório que recaiu sobre o pedido de indemnização civil formulado, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.° 2, do CPP.


(...)


Em face de tais considerações que recuperamos da decisão proferida por este Tribunal afigura-se-nos claro que a situação descrita pelos reclamantes não se enquadra no vício em apreço, antes relevando do enquadramento jurídico dos factos pelos mesmos proposto, no caso, a matéria do pedido de indemnização civil (relativamente ao qual, recordamos, não foi pelos agora reclamantes interposto recurso da decisão proferida em 1a instância)


Na verdade, os reclamantes contrapõem disposições penais a disposições tributárias e civis, procurando alcançar conclusões quanto ao montante do prejuízo sofrido pelo Estado português.


(...)A questão de os factos provados não corporizarem os elementos do tipo legal de crime em causa, ou de permitirem a contabilização do prejuízo patrimonial em termos diversos dos acolhidos na decisão recorrida, não é uma questão de facto contradição insanável da fundamentação mas sim uma questão de direito: potencial erro de subsunção dos factos ao direito.


Ora, se a matéria agora inovatoriamente trazida pelos recorrentes (já que tais argumentos não constavam da respetiva alegação recursória) não é suscetível de integrar o vício invocado, é por demais evidente que não pode ocorrer omissão de pronúncia relativamente a um vício que não se verifica, seja ele de conhecimento oficioso ou não.


No mais, cabe referir que na decisão agora reclamada se consignou, expressamente, que: «considerada a oficiosidade do conhecimento de tais vícios cabe dizer que, lida atentamente a decisão recorrida, não vemos que na mesma se tenha cometido algum dos vícios contemplados no citado artigo 410o, no 2 do Código de Processo Penal designadamente, que a matéria de facto provada seja insuficiente para a decisão, que seja evidente a existência de factos que ficaram por apurar ou que tenha sido extraída da matéria de facto qualquer conclusão patentemente errada, ilógica ou arbitrária.


Na verdade, o Tribunal recorrido tomou posição sobre a totalidade do objeto do processo, tal como o mesmo foi configurado pelos sujeitos processuais, e os factos que apurou são, claramente, bastantes para permitir a decisão alcançada. Como se disse, pode discordar-se da decisão, mas essa discordância relevará já de eventual erro de julgamento».


Parece-nos, pois, claro que não ocorreu qualquer omissão de pronúncia, pelo que tem de concluir-se não assistir qualquer razão aos arguidos reclamantes.


(...)”


*


1.3 – Antes, porém, desta decisão, fora proferido despacho a 09.11.2022 admitindo cautelarmente a subida do recurso de revista excepcional-(subida essa a ocorrer após vir a ser proferida a sobredita decisão sobre a reclamação), nos termos seguintes:


“Refa Citius 603835:


Os recorrentes J..., Lda, AA e BB, vêm, segundo declaração dos próprios, «arguir a nulidade do acórdão e interpor recurso de revista excecional» para o Supremo Tribunal de Justiça.


Tendo em conta que os arguidos AA e BB foram condenados, cada um deles, na pena de quatro anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e a arguida sociedade foi condenada em pena de multa, é evidente, face ao regime legal que acima se deixou exposto, que não é admissível recurso ordinário da decisão penal.


Quanto à revista excecional (prevista no artigo 672o do Código de Processo Civil), só poderia admitir-se a mesma quanto a matéria da indemnização civil em que foram condenados os arguidos/demandados, embora deva notar-se que os mesmos não interpuseram recurso da decisão proferida em 1a instância no que se refere ao pedido de indemnização civil, nunca antes tendo esgrimido os argumentos que agora vêm invocar.


Não obstante, uma vez que, nos termos previstos no artigo 672o, no 3 do Código de Processo Civil, deverá ser o Supremo Tribunal de Justiça a apreciar a verificação dos pressupostos da revista excecional, oportunamente remeter-se-ão os autos àquele Tribunal (após decisão da nulidade arguida).


*


Uma vez que vem invocada a nulidade do acórdão proferido por este Tribunal, por alegada omissão de pronúncia, relativa a decisão que não admite recurso ordinário, deverá a mesma ser conhecida por este mesmo Tribunal, em conferência.


Assim, vão os autos aos vistos e, em seguida, à conferência (em 22 de novembro de 2022).


(...)”


1.3 - O recurso de revista excepcional


1.3.1- Indeferida, como se disse, aquela nulidade, na conferência de 22 de Novembro de 2022, arguida em reclamação do Acórdão do TRL como argumento ex novo nunca antes suscitado, foi determinada então a subida efectiva a este STJ do aludido recurso de revista excepcional, para apreciação.


Para tanto, convocaram os recorrentes como fundamento do recurso, dizendo o seguinte:

A. Em breve síntese introdutória:


“(...)na presente revista, é mister a resolução de uma questão transversal, transponível, juridicamente paradigmática e de relevo socialmente acentuado: a (errada) quantificação do prejuízo do Estado Português nos casos de «fraude carrossel», em que o negócio real ou dissimulado comportou uma transação substantivamente isenta de IVA. Impõe-se, pois, a apreciação da questão invocada por via do presente recurso, quer em face da sua relevância jurídica, quer em face da relevância social e transversal que a resolução da mesma acarreta, sendo a sua apreciação incontornavelmente necessária para uma melhor aplicação do Direito.


O Tribunal a quo, em manifesto vício de violação de lei, confirma a condenação cível dos Recorrentes no pagamento de uma indemnização ao Estado Português, em moldes solidários com outros Arguidos, no valor de € 2.082.498,49, correspondente ao valor de IVA que o Estado Português alegadamente não recebeu, por conta da prática das condutas ilícitas sub judicio pelos Arguidos.


O erro de julgamento e a violação da lei substantiva radicam na circunstância de o Estado Português, independentemente da prática de quaisquer condutas ilícitas pelos Arguidos, não ter sofrido qualquer dano, no que ao fórum do IVA se reporta, porquanto os negócios reais que se julgou terem sido celebrados são isentos desse imposto. Não havendo dano, não há responsabilidade civil; a condenação dos Recorrentes no pagamento da indemnização em apreço, fundada no prejuízo que o Estado Português alegadamente sofreu por conta do montante de IVA que não lhe foi entregue, consubstancia uma manifestamente errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483.o, n.o 1, 497.o, n.o 1, 562.o, 563.o, 564.o, n.o 1 e 566.o, n.o 2, todos do Código Civil, 39.o da Lei Geral Tributária e 2.o, n.o 1, alínea c), do Código do IVA.


A vexata quaestio da decisão a quo – a (errada) quantificação do prejuízo do Estado Português nos casos de «fraude carrossel», em que o negócio real ou dissimulado comportou uma transação substantivamente isenta de IVA – configura uma temática de elevadíssima importância e relevância jurídica e social, transversal à generalidade da parte cível dos processos-crime em referência, pelo que a sua apreciação é, desde logo, justificada no âmbito do regime excecional de admissibilidade recursiva previsto no artigo 672.o do Código de Processo Civil.

B. E em conclusões (na parte que ao recurso de revista excepcional releva)


“(...)


Da questão cuja apreciação em sede do presente recurso, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito:


f) A questão delimitada pelo Recorrentes, face aos seus contornos concretos, em face daquela que é, salvo o devido respeito, uma resposta manifestamente errónea dada pelas instâncias a quo, em violação da lei substantiva ao caso aplicável, justifica a intervenção deste Supremo Tribunal enquanto órgão regulatório, desde logo pela respetiva solução ser juridicamente insustentável.


g) Em suma, o caso dos presentes autos de revista subsume-se no elenco de situações que abordámos supra, como lográmos demonstrar.


h) No processo sub judicio está em causa o julgamento de um alegado caso de “fraude carrossel”, em sede de IVA, através do qual, através de um circuito de faturação de mercadorias, envolvendo operações intracomunitárias isentas de IVA e operações nacionais não isentas de IVA, os Arguidos terão causado prejuízo ao Estado Português em sede do referido imposto, para o que ora releva.


i) A condenação dos Arguidos no pagamento de uma indemnização ao Estado Português, fundada na sua responsabilidade por factos ilícitos, decorre, precisamente, do alegado prejuízo por este sofrido.


j) Daqui decorre a transversalidade dos presentes autos a todos os casos análogos e típicos de «fraude carrossel» (...) Nestes casos, a sociedade A vende bens à sociedade B, incidindo IVA sobre a operação interna (compra e venda de bens, em Portugal).


l) Por sua vez, a sociedade B vende à sociedade C, com sede num país da União Europeia, os referidos bens, sendo tal transação típica e substantivamente isenta de IVA, ao abrigo do artigo 14.o do RITI.


m) A sociedade B deduz ou pede o reembolso do montante de IVA suportado na aquisição dos bens à sociedade A, por tal representar uma transação intracomunitária, nos termos e para os efeitos do artigo 19.o, n.o 2, do RITI.


n) A sociedade A não entrega o IVA por si alegadamente devido ao Estado Português, que lhe foi entregue pela sociedade B, aquando do pagamento dos bens que adquiriu.


o) Nos casos típicos de «fraude carrossel», a sociedade A é o denominado “operador desaparecido” (ou “missing trader”), a sociedade B é a denominada “empresa de ligação” (ou “broker”) e a sociedade C é a legítima adquirente dos bens.


p) Também nesses casos, o negócio simulado é aquele em que tem intervenção o broker (a sociedade B), enquanto mero intermediário fictício, sendo que o negócio dissimulado é aquele que seria celebrado se não fosse a intervenção do intermediário (broker), isto é, entre a sociedade A e a sociedade C. q) Este caso-tipo, ainda que o pudesse ser, não é uma mera hipótese académica, pois a sociedade A é a Arguida “F..., Lda”, a sociedade B é a arguida ora Recorrente “J..., Lda” (ou “J.....”) e a sociedade C é a Arguida “A..., SA”.


r) A questão paradigmática coloca-se quando, como nos presentes autos, o negócio dissimulado é, ele mesmo, um negócio isento de IVA.


s) Isto é, atentando-se ao negócio dissimulado, para efeitos de tributação em sede de IVA, ele representa uma transação isenta nos termos da lei (cf. artigo 14.o do RITI).


t) Ora, se o negócio dissimulado está isento de IVA e é ao negócio dissimulado que se deve atentar para efeitos de tributação, nos termos do artigo 39.o da Lei Geral Tributária, como pode ser calculado um prejuízo para o Estado Português com a conduta dos Arguidos, quando o negócio dissimulado, se efetuado nos termos da Lei e de acordo com a alegada vontade dos intervenientes, estaria isento de imposto?


u) Dever-se-á, no limite, atentar aos reembolsos porventura pagos pelo Estado Português ao broker (a sociedade Recorrente), em resultado do reembolso parcial em sede de IVA decorrente da operação intracomunitária exposta?


v) É, pois, esta a questão: o apuramento e quantificação pelo Tribunal a quo do montante do dano do Estado Português, para efeitos de apuramento de responsabilidade civil dos Arguidos, nos casos de fraude carrossel, em que o negócio real ou dissimulado representa uma operação, em sede de tributação, isenta de IVA.


w) A resposta, ainda que não tenha o devido respaldo jurisprudencial, afigura-se-nos clara:


se o Estado Português, atentando-se ao negócio dissimulado, não teria direito a receber qualquer montante a título de IVA – em face da isenção em sede de IVA do referido negócio – então não há qualquer dano para o mesmo imputável à conduta dos Arguidos.


x) Se não houve dano, não se encontra preenchido um dos pressupostos necessários à verificação da responsabilidade por factos ilícitos dos Recorrentes, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 483.o, n.o 1, 497.o, n.o 1, 562.o, 563.o, 564.o, n.o 1 e 566.o,


n.o 2, todos do Código Civil.


y) Mesmo que assim não se entendesse e caso se assumisse – contrariamente às instâncias a quo – que o prejuízo do Estado equivale ao reembolso que o Estado Português entregou à Recorrente J....., no valor de € 686.100,81, o prejuízo seria o correspondente a essa quantia, porquanto tal solução é a única que se coaduna com a teoria da diferença estabelecida no artigo 566.o, n.o 2, do Código Civil.


z) Por outras palavras: se os Recorrentes não tivessem praticado as condutas que lhes vêm imputadas, em que situação patrimonial estaria o Estado Português?


aa) Duas opções: (i) ou teria direito à tributação da operação dissimulada, a qual, por ser isenta de IVA, não resultaria no arrecadamento de qualquer quantia a título desse imposto; (ii) ou teria direito à restituição dos valores entregues à Recorrente J..... no montante de € 686.100,81, porquanto terão sido alegada e indevidamente deduzidos e reembolsados.


bb)Como é bom de ver, nenhuma das soluções passa por aquela adotada pelas instâncias a quo: a condenação dos Recorrentes, em moldes solidários, com a Arguida “F..., Lda”, no pagamento do valor de IVA indevidamente liquidado


nas faturas por esta emitidas, irrelevando o negócio real que o Tribunal julgou como celebrado e a correspondente tributação aplicável, ou seja, 0.


cc) Tal questão, juridicamente complexa e paradigmática, não encontra respaldo na jurisprudência dos Tribunais Judiciais, não obstante a abundância dos casos de «fraude carrossel», sendo que a sua resolução teria uma repercussão transversale um efeito, quer clarificador, quer estabilizador, na aceção de ABRANTES GERALDES, na jurisprudência vindoura.


dd)Na verdade, a generalidade dos casos presentes na jurisprudência reportam-se à jurisdição Administrativa, onde, usualmente, o valor do prejuízo do Estado Português corresponde às liquidações de imposto cuja legalidade venha confirmada judicialmente, o que no presente caso não se verificou.


ee) Por outro lado, a apreciação desta questão serviria, igualmente, para pôr termo ao tratamento da matéria em discussão de forma errada e juridicamente insustentável pelas instâncias a quo, sendo objetivamente útil a intervenção deste Supremo Tribunal, na qualidade de órgão de regulação do sistema.


ff) Posto isto, cremos que deverá ser admitido o presente recurso de revista, para apreciação da questão ora invocada, a qual, em face da sua relevância jurídica, é manifestamente necessária para uma melhor aplicação do direito, nos termos supra expostos, o que justifica a excecional intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça.


gg) Em suma, encontrando-se preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 672.o, n.o 1, alínea a), do CPC, deverá o presente recurso de revista ser liminarmente admitido.


Dos interesses de particular relevância social que se encontram em causa:


hh)Não obstante a relevância jurídica que detém a questão em apreço, a qual justifica a admissão do presente recurso, cremos que se encontram em causa, igualmente, interesses de particular relevância social, o que subsume a presente pretensão recursiva no âmbito de aplicação da alínea b) do n.o 1 do artigo 672.o do CPC.


ii) Reportando-se o presente recurso à indemnização cível a que os Recorrentes foram condenados, não se poderá olvidar – devendo-se até relevar – que subjacente a tal indemnização está um processo penal, no qual a dedução do referido pedido indemnizatório foi formulado, por tendencialmente obrigatório, em face do vigente princípio da adesão, aplicável por via do artigo 71.o do CPP.


jj) No presente caso, temos presente que a injustiça traduzida no conteúdo errado da decisão recorrida, em face dos concretos contornos do caso sub judicio – todos fatores potencialmente transponíveis para casos tipicamente análogos –, detém um interesse manifestamente difuso, com especial relevo para os direitos dos arguidos e/ou lesantes em tais casos similares.


kk) Cremos, pois, que o objeto do presente recurso e a apreciação da questão que nele se coloca tem um interesse inegavelmente transversal, como supra demonstrámos, em particular nos direitos dos arguidos-lesantes de todos os casos análogos e típicos deste tipo de condutas penalmente visadas.


ll) Aliás: o facto de as instâncias a quo, em consonância, condenarem os Recorrentes ao pagamento de uma indemnização ao Estado Português, quando o mesmo comprovadamente, não sofreu qualquer dano que seja imputável à conduta dos Recorrentes, por conta das receitas do IVA, a nosso ver, será suscetível de causar alarme social e de colocar em causa a confiança da comunidade na realização da justiça pelos Tribunais, no que se refere ao largo universo de pessoas que se podem ver em situação análoga.


mm)Isto porque, segundo cremos, as garantias dos Arguidos a um processo justo e equitativo, com garantias de imparcialidade – não obstante o enxerto cível a que nos reportamos – detêm, desde a implantação do Estado de Direito democrático, um relevo social acentuado e uma importância basilar na sociedade moderna, com particular enfoque nas suas imposições constitucionais e em instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado.


nn) Deste modo, reiteramos que o apuramento do interesse da apreciação do presente recurso não se poderá sustentar unicamente na questão civilística que surge à superfície, devendo-se ponderar e atender à natureza penal intrínseca, a qual justifica o recurso ex lege às normas civis, atento o disposto no artigo 3.o, alínea c), do RGIT.


oo)Posto isto, cremos que deverá ser admitido o presente recurso de revista para apreciação da questão ora invocada, porquanto estão em causa interesses de particular relevância social, o que justifica a intervenção deste STJ a título excecional.


pp) Assim, encontrando-se preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 672.o, n.o 1, alínea b), do CPC, deverá o presente recurso de revista ser liminarmente admitido.


qq) Em suma, deverão os autos ser remetidos à douta formação enunciada no artigo 672.o, n.o 3, do CPC, nos termos e para os efeitos de apreciação preliminar sumária do recurso de revista excecional que ora se interpõe, com vista à apreciação da admissibilidade do mesmo, o que se requer.


1.3.2- Neste STJ o MPo emitiu parecer, dizendo em síntese:


“A) (...) E, nessa lógica, como seria expectável, o Acórdão “sub judice” não se pronunciou e decidiu, relativamente aos arguidos ora recorrentes, sobre o acerto do decidido pela 1a Instância acerca do objecto do Pedido de Indemnização Civil (cfr, págs. 161 e 162)


Pelo que – sendo, no caso, de todo descabido falar de “dupla conforme” ou desconforme –, na falta de decisão, não há recurso.


Falha o pressuposto material essencial da interposição de qualquer recurso, como seja, a decisão judicial (cfr, o art. 627o/1 do Código de Processo Civil)


Claramente, aos ora recorrentes, não os ocupam questão cuja apreciação seja necessária para uma melhor aplicação do direito ou interesses de particular relevância social, mas, bem mais prosaicamente, com todo o respeito, obter a reversão de uma condenação solidária ao pagamento de 2.082.498.49€ numa outra de apenas 686.100,81€ (dando, eles mesmos, por incólume a questão-penal, onde litigaram e perderam), pretendendo discutir, necessariamente, no Supremo Tribunal de Justiça, matéria nova, que nunca aventaram nas Instâncias.


É, pois, manifesto que não é esta a etiologia lógico-jurídica do recurso de revista excepcional, motivo por que deve ser liminarmente rejeitado o presente recurso, por legalmente inadmissível (cfr, os arts. 652o/1-b), 671o/3 e 672o/1 e 3 e 679o do Código de Processo Civil)


* Se assim não se entender.


*


B)-Ónus de concluir.


Será que os recorrentes cumpriram o ónus de formular conclusões? Não o cremos, com todo o respeito por opinião contrária. No caso do presente recurso, em 63 págs., 21 são de “conclusões” (121), ou seja, mais de 33% do texto! Ora, nada se salienta, quando, pecando-se por excesso, se repete em grande parte, repetidamente (perdoe-se o pleonasmo), a alegação.


Neste pressuposto, com vista ao efectivo exercício do contraditório e à “clarificação do debate”, deverão os recorrentes ser notificados para formularem as conclusões de acordo com o que resulta de uma boa interpretação da lei processual-penal, sob pena de rejeição do recurso, nos termos do disposto nos arts. 412o/1 e 414o/2, in fine, e 420o/1-b) do Código do Processo Penal (cfr, nesta matéria, o Ac. do STJ de 09.12.2021, P-125/13.2TELSB.L1.S1).


Porque os ora recorrentes, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa do Acórdão condenatório penal, não impugnaram, ali, expressa e autonomamente, a questão-civil – sendo que o seu ganho nessa matéria apenas poderia advir, reflexa e indirectamente, da eventual procedência do recuso da questão-penal;


Porque, nessa conformidade, o Acórdão recorrido não se pronunciou e decidiu, relativamente aos arguidos ora recorrentes, sobre o acerto do decidido pela 1a Instância acerca do objecto do Pedido de Indemnização Civil;


É legalmente inadmissível o presente recuso de revista excepcional – que tem por objecto reversão da condenação solidária ao pagamento de 2.082.498.49€ numa outra de apenas 686.100,81€ –, por falta de decisão do Tribunal da Relação.


Se assim não se entender, deverão os recorrentes ser notificados para darem cumprimento ao disposto no art. 412o/1 do Código de Processo Penal, formulando as devidas e adequadas conclusões.

C. Em conclusão:


Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:


-Deverá o presente recurso ser liminarmente rejeitado;


-Se assim não se entender, deverão os recorrentes ser notificados para darem cumprimento ao disposto no art. 412o/1 do Código de Processo Penal.


1.3.3- Em resposta vieram ainda os recorrentes dizer, em síntese:


“(...) II - DA RECORRIBILIDADE DA DECISÃO A QUO


Defende o Ministério Público, por via do parecer apresentado, que não se verifica um
dos pressupostos necessários à recorribilidade da decisão recorrida, entendendo que “Falha o pressuposto material essencial da interposição de qualquer recurso, como seja, a decisão judicial (cfr, o art. 627o/1 do Código de Processo Civil)” (3).


Entende o Ministério Público, na sua tese, que os Recorrentes não terão invocado no
recurso que interpuseram do acórdão proferido em 1.a instância, qualquer erro de julgamento no tocante à matéria da condenação atinente ao pedido de indemnização civil e, como tal, não tendo o acórdão recorrido se pronunciado nessa medida, não pode o mesmo ser objeto de recurso.


Vejamos:


Os Recorrentes não recorreram do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 27.09.2022, no que tange à respetiva decisão penal, não por concordarem com o mesmo, mas em virtude de tal decisão - bem ou mal - ser irrecorrível, nos termos da Lei.


No entanto, tal não obsta à interposição de recurso quanto ao segmento decisório reportado à indemnização civil, razão por que os Recorrentes dele recorreram em Revista excecional, em face da sua admissibilidade legal (4).


_____________________


3Cf. ponto 7 do capítulo A) do Parecer, constante da respetiva página 4.


4Cf. artigo 400.o, n.o 3, do CPP e, por todos, o acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, a 04.12.2019, no processo n.o 354/13.9IDAVR.P2.S1 (Rel. Manuel Augusto de Matos).


____________


Distinto é saber se, ao que aparenta defender o Ministério Público, a falta de impugnação específica da matéria atinente à indemnização civil objeto de condenação em 1.a instância, no recurso interposto para a Relação de tal decisão, obsta ao recurso autónomo de tal segmento em 3.a instância.


Por outras palavras, no entendimento do Ministério Público, os Recorrentes, no recurso que interpuseram do acórdão proferido em 1.a instância, em que largamente impugnaram a factualidade inerente à decisão penal e os erros de julgamento a si subjacentes, teriam que, simultaneamente (ou subsidiariamente?), impugnar também a questão civil, acautelando a hipótese de o recurso atinente à decisão penal ser-lhes desfavorável.


Tal entendimento, salvo o devido respeito, não tem qualquer respaldo legal, nem sequer é compatível com um processo justo, equitativo e compatível com as garantias do processo criminal.


Refere o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 07.09.2016, no processo n.o 256/10.0GARMR.E1.S1 (Rel. Pires da Graça), que


O legislador ao aditar a norma do n.o 3 do art. 400.o do CPP, no sentido de que “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da


sentença relativa à indemnização civil”, não exclui os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso relativa à indemnização civil, que vêm condicionados por regras processuais de natureza cível, como é o caso do n.o 2 do art. 400.o do CPP, que faz depender essa admissibilidade de recurso, da interligação entre o valor da alçada e o valor da sucumbência”.


No presente caso, não vem questionado o valor da alçada ou o valor da sucumbência,
vindo, pois, a (in)existência de “decisão recorrida”, na medida em que, defende o Ministério Público, o acórdão recorrido


“[...] não se pronunciou e decidiu, relativamente aos arguidos ora recorrentes, sobre o acerto do decidido pela 1a Instância acerca do objecto do Pedido de Indemnização Civil” (5).


Salvo melhor opinião, eis a razão por que não pode proceder a tese invocada pelo Ministério Público no seu Parecer. Com efeito, refere o acórdão a quo, na p. 162, que:


São corretas e adequadas as considerações tecidas pelo Tribunal a quo quanto aos termos que devem balizar a decisão, designadamente, quando faz emergir a obrigação de indemnizar da prática de atos ilícitos dos quais resultaram prejuízos – no caso, para a Fazenda Nacional” (sublinhado nosso).


Os Recorrentes, por via do seu recurso apresentado em 22.04.2021, impugnaram, precisamente, a factualidade inerente e subjacente à prática dos precisos factos ilícitos que fundaram, na opinião das instâncias a quo, a sua obrigação de indemnizar a Fazenda Nacional.


Isto porque os factos impugnados por via do referido recurso são comuns à decisão cível, que decidiu da obrigação de indemnizar dos Recorrentes, estando a si subjacentes e sendo pressuposto da sua razão de ser.


Foi este, desde logo, o entendimento do acórdão recorrido:


Não lhe tendo sido reconhecida razão na impugnação da matéria de facto e mantendo-se a condenação do arguido nos precisos termos em que fora definida na 1a instância, é evidente que também a condenação cível deve subsistir nos seus precisos termos” (sublinhado nosso).


Em suma: houve impugnação dos factos que subjazem à decisão atinente à obrigação de indemnizar dos Recorrentes e houve uma decisão expressa do acórdão recorrido, no sentido de negar provimento à pretensão dos Recorrentes, porquanto julgou que os factos praticados (e impugnados) pelos Recorrentes, são puníveis criminalmente e, à luz do instituto da responsabilidade civil, serão geradores de uma obrigação de indemnização em face do ilícito criminal praticado.


E é precisamente esta ilação não conforme à Lei das instâncias a quo, que os Recorrentes censuram no presente recurso de revista excecional: o Tribunal da Relação, confirmando a decisão de 1.a instância, incorreu em erro de julgamento, porquanto a factualidade dada como provada não é suficiente nem apta à condenação dos Recorrentes, à luz da Lei, no pagamento de uma indemnização à Fazenda Nacional ou, se o é, nunca nos termos e extensão que foram objeto de condenação.


De resto, cremos por incontrovertido que as alegações de Direito que os Recorrentes apresentam perante este Supremo Tribunal não se configuram como “matéria nova” (6), sendo que em relação a tal matéria o Tribunal não se encontra nem está vinculado – cf. artigo 5.o, n.o 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.o do CPP.


6 Cf. ponto 8, in fine, do capítulo A) do Parecer, constante da respetiva página 4.


Mais:


Com a impugnação da matéria subjacente à «questão penal» – correspondente ao recurso atinente aos factos ilícitos criminais cuja prática vinha imputada aos Recorrentes e à correspetiva subsunção ao regime legal aplicável –, inevitável será ter de se concluir que os Recorrentes atacaram, inelutavelmente, a factualidade subjacente à putativa obrigação de indemnizar a Fazenda Nacional.


Veja-se, a este propósito, o acórdão deste Supremo Tribunal, proferido a 11.01.2018, no processo n.o 111/02.8TAALQ.L1.S1 (Rel. Gabriel Catarino), para o que ora releva:


A causa de pedir, neste tipo de ações, radica na responsabilidade civil extracontratual e os elementos que constituem a causa de pedir, são, para além dos factos antijurídicos, ilícitos e culposos que servem de base à imputação factual criminal, o dano e o nexo causal que ocorre entre a imputação factual, de raiz e natureza criminosa, e o prejuízo ocasionado á entidade lesado com a ação contrária à lei perpetrada pelos agentes criminalmente imputados.


O pedido formulado na presente acção – como de resto no comum das ações cíveis enganchadas, ou engolfadas, nas ações atinentes a criminalidade fiscal/tributária – tem com base, como não podia deixar de ser, o dano que a atividade, itera-se, decorrente de uma atividade ilícita, antijurídica e culposa, ocasionou na esfera do lesado, ou seja do Estado Português.” (sublinhado nosso).


De outra forma, a impugnação factual deduzida pelos Recorrentes teria, ao arrepio
das normas processuais, que ser efetuada em duplicado, numa solução contrária à economia processual e à lógica do processo penal: primeiramente, com referência à questão penal; subsequentemente, com referência à questão cível.


A referida impugnação recursória – comum à questão penal e cível, porquanto reportada aos mesmos factos – nem se poderá apelidar de simultânea ou concomitante, porque é una, indivisível e caracterizada por efeito osmose.


Os factos, esses sim, são comuns às questões (penais e cíveis) em discussão na Jurisdição criminal, por via do princípio da adesão – cf. artigos 71.o e 72.o do CPP.


Atente-se ao teor do acórdão proferido por este Supremo Tribunal, a 28.05.2015, no processo n.o 2647/06.2TAGMR.G1.S1 (Rel. Helena Moniz),


No entanto, a ação civil que adere ao processo penal, ficando nele enxertada, é apenas a que tem por objeto a indemnização de perdas e danos emergentes do facto que constitua crime. Se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, não se funda na responsabilidade civil do agente pelos danos que, com a prática do crime causou, então esse pedido não é
admissível em processo penal. Realmente, a responsabilidade civil e que se conhece no âmbito do processo penal não é a responsabilidade contratual decorrente do simples incumprimento dos vínculos contratuais, mas sim a responsabilidade extracontratual com base em facto ilícito, consistindo este na prática de um crime que foi causa de danos indemnizáveis. A fonte do dever de indemnizar de que se conhece em processo penal é o facto ilícito e não a relação contratual ou outra similar” (sublinhado nosso).


Assim dito, o silogismo é elementar: a impugnação dos factos - necessariamente coincidentes - que consubstanciam a eventual responsabilidade criminal do agente e a paralela obrigação de indemnizar pela prática dos factos ilícitos criminais subjacentes àquela responsabilidade, abrange, quer a «questão penal», quer a «questão cível», em apreciação no processo penal.


O acórdão proferido por este Supremo Tribunal, a 11.02.2015, no processo n.o 28/07.0TAPRD.P2.S1 (Rel. Santos Cabral), explica cristalinamente a dinâmica a que nos referimos e tem, por esse motivo, plena aplicação ao presente recurso:


"II - Com o exercício da ação civil o que está em causa no processo penal é o conhecimento pelo tribunal de factos que constam da acusação e do respetivo pedido de indemnização e que, consequentemente, são coincidentes no que refere à caracterização do ato ilícito. Atributo próprio do pedido cível formulado será o conhecimento e a definição de prejuízo reparável. O itinerário probatório é exatamente o mesmo no que toca aos factos que consubstanciam a responsabilidade criminal e a responsabilidade civil, havendo, apenas, que acrescentar que, em relação a esta, há ainda que provar os factos que indicam o dano e o nexo causal entre o dano e o facto ilícito. [...] O recurso relativo à matéria cível apenas pode abarcar a impugnação da decisão proferida no que toca especificamente ao conhecimento e decisão próprios e específicos do pedido cível, ou seja, ao prejuízo reparável (sublinhado nosso).


Deste modo, o acórdão a quo, ao confirmar a decisão de 1.a instância, no que se
reporta à indemnização civil - na sequência do recurso instaurando pelos Recorrentes


da decisão proferida em 1.a instância não só em relação à matéria penal, mas necessariamente também em relação à vertente cível, pelos motivos que supra se expuseram -, mantendo a condenação dos Recorrentes no pagamento da exata quantia indemnizatória em que os mesmos ali haviam sido condenados, fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483.o, n.o 1, 497.o, n.o 1, 562.o, 563.o, 564.o, n.o 1 e 566.o, n.o 2, todos do Código Civil, 39.o da Lei Geral Tributária e 2.o, n.o 1, alínea c), do Código do IVA.


Tal acórdão, não obstante a dupla conforme verificada, é impugnável por via de
recurso de revista excecional, naturalmente restrito à apreciação de matéria de
Direito, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 672.o, n.o 1, alíneas a) e
b), do CPC, pelo que deverá ser o mesmo apreciado e julgado nos termos requeridos
nas alegações de recurso, que aqui se dão se por integralmente reproduzidos.


Por último, no que tange à excecionalidade da questão objeto de recurso:


Defende igualmente o Ministério Público, numa alegação francamente conclusiva e
acrítica, que no presente recurso não está em causa questão cuja apreciação seja
necessária para uma melhor aplicação do direito ou interesses de particular relevância
social, na medida em que os Recorrentes pretenderão,


“[...] mais prosaicamente, com todo o respeito, obter a reversão de uma condenação solidária ao pagamento de 2.082.498.49€ numa outra de apenas 686.100,81€ (dando, eles mesmos, por incólume a questão penal, onde litigaram e perderam), pretendendo discutir, necessariamente, no Supremo Tribunal de Justiça, matéria nova, que nunca aventaram nas Instâncias”.


A incapacidade de desvincular a questão penal do acerto (ou desacerto) da decisão inerente à responsabilização civil dos Recorrentes, que obedece a pressupostos, não só comuns, mas igualmente distintos, bem como a atípica aplicação do verbo perder - “litigaram e perderam” - atesta a inobjetividade do referido Parecer, com todo o respeito, o que justificará o seu foco no âmbito do direito puramente adjetivo.


Isto porque, independentemente da excecionalidade da questão objeto de um recurso de revista excecional, qualquer recorrente que aceda a este mecanismo processual previsto na Lei terá “litigado e perdido”; de outro modo, não teria a sucumbência necessária à admissibilidade do recurso (!).


Não pode o Ministério Público ignorar a razão que assiste à pretensão recursiva dos Recorrentes, pelo que, e salvo o devido respeito, o ataque (sem fundamento jurídico) à dimensão meramente adjetiva do processado, constitui a sua válvula de escape.


Outrossim, inexistindo razões de fundo para repisar a extensa justificação da excecionalidade da vexata quaestio objeto de recurso, dão-se por integralmente reproduzidas as considerações enunciadas nos artigos l.s a 59.5 das alegações de revista apresentadas pelos Recorrentes.


A questão em apreciação - A (errada) quantificação do prejuízo do Estado Português nos casos de «fraude carrossel», em que o negócio real ou dissimulado comportou uma transação substantivamente isenta de IVA - configura uma temática de elevadíssima importância e relevância jurídica e social, transversal à generalidade da parte cível dos processos-crime em referência, pelo que a sua apreciação é, desde logo, justificada no âmbito do regime excecional de admissibilidade recursiva previsto no artigo 672.o do CPC.


“III. Quanto à questão da regularidade das conclusões da motivação do recurso


No contexto dos requisitos processuais delimitativos que lhes são impostos, os Recorrentes tentaram sintetizar ao máximo nas suas conclusões a matéria objeto do presente recurso.


Em face da já referida relevância excecional da questão em discussão, os Recorrentes cuidaram de abarcar no âmbito do recurso toda a matéria imprescindível (que consta da respetiva motivação), o que poderá ter contribuído para a extensão das suas conclusões. (...)


Cremos, pois, que as conclusões apresentadas não são extensas, prolixas ou impertinentes, contrariamente à opinião do Parecer do Ministério Público.


Sem prejuízo, na eventualidade de V. Exas. assim não entenderem, o que por meríssima cautela de patrocínio se hipotetiza, deverão os Recorrentes ser notificados para o aperfeiçoamento das mesmas, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 414.o, n.o 2, do CPP.”


*


II- Os pressupostos da revista excepcional


2.1- A admissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal está regulada no CPP.


Dispõe o art. 400o n.o 3 do CPP: “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.


E o n.o 2 estabelece: “sem prejuízo do disposto nos artigos 427o e 432o, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior à metade dessa alçada.


Interpreta a jurisprudência deste Supremo Tribunal que o recurso em matéria cível se rege, subsidiariamente, pelo regime processual civil.


Mas não pode ter “a virtualidade de tornar recorrível o que, em função da matéria de que trata, é irrecorrível; no recurso da parte da sentença relativa à indemnização não poderão ser introduzidas questões que lhe sejam estranhas, designadamente as que se prendam com os pressupostos da condenação/absolvição penal”-


(cfr acórdão do STJ, de 13-01-2010, proc. n.o 2569/01.3TBGMR-D. G1.S1, in www.dgsi.pt.


Assim, aos recursos em processo penal que visem a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no arts. 671.o do CPC. Incluindo, evidentemente, a norma do n.o 3 que estabelece a denominada dupla conforme.


Destarte, entende-se que ao recurso em processo penal que vise a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no Código de Processo Civil/CPC.


O art. 671.o, n.o 3, do CPC, dispõe: “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.a instância (...)”.


Seguindo também de perto o Ac deste STJ proferido no proco 6730-08.1TDLSB.L1.S1,na formulação dos requisitos gerais do recurso, dir-se-á que “na nossa organização judiciária, fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito – art. 46.o da LOSJ.


Conforme se salientou, nos nossos regimes adjetivos tanto no penal como no civil, o Supremo Tribunal de Justiça funciona, em sede de recurso, como tribunal de revista, com poderes limitados ao reexame das questões de direito, estando-lhe vedado reapreciar as provas e alterar o julgamento da facticidade, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios lógicos de que possa enfermar a decisão recorrida – art. 434o do CPP - e, sendo permitido pelo texto da própria decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, repara-los ou, não sendo possível (quando não tiver matéria de facto suficiente para a decisão de direito), reenviar o processo para novo julgamento.


Sustenta-se no Ac. de 29/01/2007 do STJ que, do disposto no art.o 434o citado “resulta estar vedado a este Supremo Tribunal o reexame da matéria de facto, o que significa que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação sobre aquela matéria se tornou definitiva, sendo irrecorrível, havendo que rejeitar o recurso na parte em que o recorrente pretende se proceda ao reexame da matéria de facto sob a invocação de que a prova foi erradamente apreciada”.


No Ac. de 21/03/2013, também do STJ, sustenta-se que “os poderes de cognição do STJ em matéria de facto restringem-se à apreciação dos vícios dessa matéria, não podendo fazer uma reapreciação dos elementos de prova apurados, em ordem à formulação de um novo juízo sobre os mesmos. Quer dizer, compete ao STJ não a formulação de um (novo) juízo sobre a valoração da prova, mas apenas a apreciação da validade e legalidade dos meios de prova, por um lado, e da razoabilidade e coerência da matéria de facto fixada, por outro. Cabe-lhe, pois, neste âmbito, avaliar contradições, incoerências, insuficiências das provas, e erros notórios na sua apreciação, desde que tais vícios sejam manifestos e evidentes. São esses «erros de facto» que o STJ pode conhecer, o que não inclui um reexame da prova recolhida para formular um autónomo juízo sobre ela”.


E no Ac. de 2/03/2016 do STJ , que “se a discordância do recorrente for apenas quanto à forma como o tribunal valorou a prova e decidiu a matéria de facto, tal traduz-se em impugnação de matéria de facto apurada - que se integra em objeto de recurso sobre a matéria de facto - e que os recorrentes exercem no recurso interposto para a Relação, e por isso não podem vir repristinar, ainda que em crítica ao acórdão recorrido, por extravasar os poderes de cognição do STJ”.


Estando pois os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça circunscritos ao “reexame de matéria de direito”, podendo conhecer, oficiosamente, dos vícios lógicos da decisão enunciados no art. 410 n.os 2 e 3 do CPP, não pode Supremo Tribunal de Justiça reapreciar questões que versem sobre a decisão da matéria de facto vertida no acórdão recorrido. A sindicância do julgamento da matéria de facto, incluindo, evidentemente, a valoração das provas, compete à 2a instância. Pelo que o decidido pela Relação sobre tal matéria e as questões a ela respeitantes ficou definitivamente resolvida, não sendo permitido um 2o grau de recurso visando mais um reexame da mesma matéria, apreciada e definitivamente decidida, já em recurso.


Assim sucede também no processo civil - arts. 674.o, n.o 3, e 682.o, n.o 2, do CPC.


O recurso perante o STJ não tem como objeto o reexame da decisão em matéria de facto nem a sindicância da valoração das provas que a fundamentam, salvo quando: (i) a factualidade provada for insuficiente ou deficiente para decidir a questão de direito; (ii) haja errada utilização dos meios de prova de que o tribunal dispôs para apreciar a questão de facto, nos casos em que tenha havido ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova; (iii) for violada a lei processual que disciplina os pressupostos e os fundamentos da reponderação pela 2.a instância da decisão sobre a matéria de facto, no sentido de garantir um duplo grau de jurisdição em tal matéria.


O STJ, no recurso de revista, mais não pode que verificar se “a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorram contradições na matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica” – art. 682o n.o 3 do CPC.


Na jurisprudência deste STJ entende-se uniformemente, conforme sustentado no Ac. de 7/02/2017: “Como princípio - regra, a fixação dos factos materiais da causa, baseados na prova livremente apreciada pelo julgador nas instâncias não cabe no âmbito do recurso de revista.2-O S.T.J. limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado. 3- São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. 4- Em suma, o S.T.J. só pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado por provado um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova”.


Por sua vez, no Ac. de 2018-05-03 do STJ, sustentou-se que “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista salvo havendo " ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova" (artigo 674.o/3 do CPC)


III - Não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação previstas nos nos 1 e 2 do artigo 662.o do CPC que, com base numa indispensável análise da prova produzida, registada ou gravada, considerem que se impõe ou que não se impõe a alteração da matéria de facto, a produção de novos meios de prova, a anulação da decisão de 1a instância ou a fundamentação de algum facto essencial (artigo 662.o/4 do CPC).


IV - O Tribunal da Relação, posto perante a impugnação da matéria de facto, tem de apreciar o recurso, fundamentando a sua decisão quanto à alteração ou não dos factos impugnados e bem assim fundamentando a decisão quanto à necessidade de utilização de alguma dos procedimentos mencionados no artigo 662.o do CPC se assim tiver sido solicitado pelo recorrente, constituindo tal omissão nulidade do acórdão que será objeto de reclamação com base no disposto no artigo 615.o/1, alínea d) se dele não for admissível recurso ordinário; não sendo suscitada a utilização desses procedimentos é evidente que a Relação não pode ser censurada por se ter limitado a decidir a impugnação da matéria de facto”.


Por conseguinte, o Supremo Tribunal também no recurso de revista - de acórdão da Relação – que impugne a decisão na parte relativa à indemnização civil, não pode entrar na reapreciação da matéria de facto assente a não ser que a factualidade provada se revelasse insuficiente para a decisão jurídica da causa - art.o 682o n.o 3 do CPC.


Existirá, pois, imodificabilidade, em recurso, pelo Supremo Tribunal, da decisão em matéria de facto e da decisão na parte criminal através de recurso restrito à parte civil.


No caso concreto o elevado valor do montante indemnizatório fixado, (de € 2.082.498,49 acrescido juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento), enquadra-se, obviamente, na alçada do Supremo Tribunal de Justiça (por estar bem acima de 30.000 euros ), ex vi do disposto no art.o44.o da Lei n.o 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) .


O respetivo recurso, se admissível, enquadra-se formalmente na previsão do disposto nos arts. 671o n.o 1 (“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1a instância, que decida do mérito da causa ...), primeira parte e 674o n.o 1 al.a a), ambos do CPC.


Nos termos do arto 671ono3 do CPC, porém, não caberá revista de Acórdão da Relação que confirme , sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em 1a instância , salvo nos casos do arto 672o, no qual se prevê a revista excepcional.


Admissível pela alçada e tendo a Relação confirmado unanimemente a decisão em 1a instância, nos termos e âmbito das questões colocadas nos recursos instaurados, ponto será o de saber se há Acórdão da Relação que se tenha pronunciado sobre a questão cível em relação aos ora recorrentes e, nomeadamente, sobre a matéria ora em questão levantada através do presente recurso de revista excepcional.


Ou seja, trata-se de saber, antes de decidir se é caso para enviar para apreciação preliminar sumária dos pressupostos de revista excepcional previstos no no1, à formação cível do STJ 23 nos termos do arto 672o no3 do CPC, se existe “decisão” do Tribunal da Relação “objecto” de recurso que tenha decidido em dupla conforme o problema levantado em matéria cível.


Dito isto, vejamos então agora em mais detalhe de pinça o que aconteceu no histórico do processo:


2.2- Os arguidos recorrentes foram condenados:


“d) (...) arguido AA pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, ficando esta suspensão subordinada ao dever de aquele, no decurso do período de suspensão, entregar à Autoridade Tributária o montante global de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros) por conta do valor fixado a título de indemnização, devendo comprovar anualmente no processo o pagamento de € 12.000,00 (doze mil euros).


e) (...)o arguido BB pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, ficando esta suspensão subordinada ao dever de aquele, no decurso do período de suspensão, entregar à Autoridade Tributária o montante global de € 48.000,00 (quarenta e oito mil euros) por conta do valor fixado a título de indemnização, devendo comprovar anualmente no processo o pagamento de € 12.000,00 (doze mil euros).


f) (...)a sociedade arguida J..., Lda, nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT, na pena de 700 (setecentos) dias de multa à taxa diária de € 100,00 (cem euros), o que perfaz o montante global de € 70.000,00 (setenta mil euros).


m) (...)solidariamente os arguidos/demandados AA, BB, J..., Lda, CC, F..., Lda, e A..., SA, a pagarem à Fazenda Nacional o valor de € 2.082.498,49 (dois milhões e oitenta e dois mil quatrocentos e noventa e oito euros e quarenta e nove cêntimos), acrescido juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação dos arguidos/demandados para contestarem o pedido de indemnização civil, e vincendos, até integral pagamento [arts. 559.o e 804.o a 806.o, todos do Código Civil, e Portaria n.o 291/2003, de 08.04].


(...)


2.3- Os arguidos J..., Lda., AA e BB, apresentaram contestação à acusação pública, oferecendo apena so merecimento dos autos (fls. 2754 e 2755).


A condenação teve como base os factos relevantes seguintes:


“Tendo em consideração o objeto dos recursos interpostos, importa ter em conta os seguintes segmentos da sentença condenatória recorrida:


II.1. Matéria de Facto Provada


Após a discussão da causa e a produção da prova, da factualidade descrita na acusação pública, com relevância para a decisão a proferir24, encontram-se assentes os seguintes factos:


1. O arguido CC engendrou um plano tendo em vista a aquisição por parte da sociedade arguida de direito espanhol, por si representada, A..., SA (A......), de ferro vendido pelas empresas, também de direito espanhol, G..., SA (G..), e C.... ........, SL (C....), sem que para o efeito aquela tivesse de suportar o pagamento de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).


2. De acordo com o plano formulado pelo arguido CC, a mercadoria seria adquirida às referidas empresas espanholas pela sociedade arguida de direito português F..., Lda (F..., Lda), também representada por aquele, sem haver lugar ao pagamento de IVA, por se tratar de transacção intracomunitária.


3. O referido plano engendrado pelo arguido CC previa que, na realidade, a sociedade arguida F..., Lda venderia a mercadoria à sociedade arguida A...... que, por seu turno, efectuaria o respectivo pagamento.


4. No entanto, o mesmo plano previa ainda que a sociedade arguida F..., Lda iria facturar a mercadoria à sociedade arguida J..., Lda. (J.....), que, por sua vez, facturaria tal mercadoria, sem liquidar IVA, por se tratar de aparente transacção intracomunitária, à sociedade arguida A.......


5. Ainda de acordo com o aludido plano engendrado pelo arguido CC, os pagamentos da mercadoria, a realizar pela sociedade arguida A...... à sociedade arguida F..., Lda passariam primeiro pela conta bancária titulada pela sociedade arguida J....., após o que seriam encaminhados por esta para a conta bancária da sociedade arguida F..., Lda.


6. A fim de ser mantida a aparência da realização de verdadeiras transacções entre as sociedades arguidas F..., Lda e J....., e entre esta e a sociedade arguida A......, o referido plano previa ainda que a mercadoria passaria pelas instalações da sociedade arguida J..... e daí transitaria para os destinatários indicados pelo arguido CC em representação da sociedade arguida A.......


7. O plano engendrado pelo arguido CC previa também que as despesas com o transporte da mercadoria facturada pela sociedade arguida J..... à sociedade arguida A......, das instalações daquela empresa para os destinatários indicados pelo primeiro, seriam suportadas pela A...... e que, para tanto, a J..... emitiria as correspondentes facturas.


8. Por fim, o plano elaborado pelo arguido CC previa que o IVA facturado pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J....., por um lado, não seria entregue ao Estado Português pela sociedade arguida F..., Lda e, por outro lado, seria objecto de pedido de reembolso por parte da sociedade arguida J......


9. Os arguidos AA e BB Pinto, em representação da sociedade arguida J....., aderiram ao descrito plano e aceitaram que esta empresa integrasse o referido circuito de facturação.


10. Os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., nunca quiseram comprar nem vender o ferro que, de acordo com o plano, seria adquirido pela sociedade arguida F..., Lda às empresas espanholas G.. e C...., e que seria depois encaminhado para os destinatários indicados pelo arguido CC.


11. O arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, nunca quis vender à sociedade arguida J..... a mercadoria que seria depois encaminhada para os destinatários pelo mesmo indicados.


12. O arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, nunca quis comprar a mercadoria à sociedade arguida J......


13. Os arguidos CC, AA e BB combinaram entre si que a sociedade arguida J..... receberia como contrapartida pela entrada da mesma no aludido circuito de facturação a diferença entre o valor que lhe seria facturado pela sociedade arguida F..., Lda e o valor que aquela iria facturar à sociedade arguida A.......


14. Ainda de acordo com o combinado, tal contrapartida a ser recebida pela sociedade arguida J..... seria paga através da diferença entre o valor das transferências bancárias da sociedade arguida A...... para a conta da sociedade arguida J..... e o valor das transferências bancárias desta para a conta da sociedade arguida F..., Lda.


15. O arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, delineou ainda um plano que previa que esta não entregasse ao Estado Português o montante pela mesma devido a título de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC).


16. Na execução do planeado nos termos mencionados, o arguido CC, em representação das sociedades arguidas F..., Lda e A......, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., agiram pela forma a seguir descrita.


17. Em 08.02.2012, foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Ílhavo a constituição, pelo arguido CC, da sociedade arguida F..., Lda.


18. O arguido CC indicou como sede da sociedade arguida F..., Lda a Avenida ..., ..., ..., ....


19. A sociedade arguida F..., Lda, com o NIPC ..., tem como objecto social a “compra e venda de ferro e produtos similares, importação e exportação”, a que corresponde o CAE 46720-R3.


20. A sociedade arguida F..., Lda encontra-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal, com periodicidade trimestral, e encontra-se colectada no Serviço de Finanças de....


21. Desde a data da constituição da sociedade arguida F..., Lda, foi sempre o arguido CC quem tomou todas as decisões referentes às opções e destino da empresa, sendo o responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da mesma, nomeadamente pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português, e pela gestão da contabilidade da empresa e pela emissão de facturas.


22. Em 15.02.2012, o arguido CC procedeu à abertura de uma conta bancária na agência do Banco BES da ..., em ..., em nome da sociedade arguida F..., Lda, com o n.o ....


23. No ano de 2012, a sociedade arguida F..., Lda adquiriu às empresas G.. e C...., sedeadas em Espanha, um total de 19.998,94 toneladas de ferro.


24. No ano de 2012, a empresa G.. emitiu a favor da sociedade arguida F..., Lda facturas correspondentes à venda a esta de 6.113,920 toneladas de ferro, pelo valor total de € 3.248.569,80, a um preço médio de € 531,34 por tonelada, conforme o quadro seguinte, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de transacção intracomunitária de bens:


(ver quadro no original da sentença) 25. No ano de 2012, a empresa C.... emitiu a favor da sociedade arguida F..., Lda facturas correspondentes à venda a esta de 13.885,020 toneladas de ferro, pelo valor total de € 7.185.940,54, a um preço médio de € 517,53 por tonelada, conforme o quadro seguinte, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de transacção intracomunitária de bens:


(ver quadro no original da sentença) 26. A sociedade arguida J....., com o NIPC ... e com sede na Rua ..., ... e ..., dedica-se desde 1940 à indústria de produtos de alumínio e de redes de arame, a que corresponde o CAE 25931-R3.


27. A sociedade arguida J..... encontra-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal, com periodicidade mensal.


28. O arguido AA é desde 04.09.1971 sócio e gerente da sociedade arguida J......


29. No ano de 2012, foram sempre os arguidos AA e BB que tomaram todas as decisões referentes às opções e destino da sociedade arguida J....., sendo os responsáveis pela administração e gestão dos pagamentos aos credores desta, nomeadamente pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português e pelo pedido de reembolso de IVA, bem como pela gestão da contabilidade da empresa e pela emissão de facturas.


30. O arguido BB assumiu formalmente o cargo de gerente da sociedade arguida J..... entre 05.11.2012 e 04.03.2015.


31. No ano de 2012, a sociedade arguida F..., Lda emitiu a favor da sociedade arguida J..... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 17.958,620 toneladas de ferro pelo valor total de € 11.326.765,99, sendo € 9.208.752,83 relativos ao valor da mercadoria, a um preço médio de € 512,78 por tonelada, e tendo a primeira liquidado IVA no valor de € 2.118.013,15, conforme o quadro seguinte:


(ver quadro no original da sentença)


32. Da referida quantidade total de 17.958,620 toneladas de ferro, 1.905,328 toneladas, correspondentes às facturas 1/2012, 2/2012, 3/2012, 5/2012, 6/2012, 7/2012, 8/2012, 9/2012, 10/2012, 14/2012, 16/2012, 20/2012, 22/2012, 25/2012, 34/2012 e 39/2012, ficaram em poder da sociedade arguida J......


33. Para pagamento de parte do valor titulado pelas facturas elencadas no ponto 31, entre 02.03.2012 e 12.11.2012, na sequência do combinado com os arguidos CC e BB nos moldes acima expostos, o arguido AA, em representação da sociedade arguida J....., ordenou a transferência para a mencionada conta bancária titulada pela sociedade arguida F..., Lda, a que corresponde o NIB ..., do montante global de € 4.543.157,73, conforme o quadro seguinte:


(ver quadro no original da sentença) 34. A sociedade arguida A......, com o NIF-ES ... e com sede na ..., ... .../..., ..., Espanha, dedica-se, para além do mais, à construção civil, iniciou a sua actividade em 25.02.2008 e mostra-se registada desde 31.12.2011 para efeitos de transacções intracomunitárias.


35. A partir de 10.06.2009, o arguido CC passou a ocupar o cargo de administrador único da sociedade arguida A......, situação que se manteve ao longo do ano de 2012.


36. No ano de 2012, a sociedade arguida J..... emitiu a favor da sociedade arguida A...... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 16.053,292 toneladas de ferro, pelo valor total de € 8.839.821,99, a um preço médio de € 550,65 por tonelada, conforme o quadro seguinte, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de aparente transacção intracomunitária de bens: (ver quadro no original da sentença)


37. A mercadoria facturada pela sociedade arguida J..... à sociedade arguida A...... foi recebida nas instalações daquela proveniente directamente das empresas espanholas G.. e C...., tendo estas, por seu turno, facturado tal mercadoria à sociedade arguida F..., Lda que, por sua vez, a facturou à J..... nos moldes acima expostos.


38. Tais 16.053,292 toneladas de mercadoria facturadas pela sociedade arguida J..... à sociedade arguida A...... deram entrada nas instalações daquela empresa e foram reexpedidas, sem sofrerem qualquer transformação, para as instalações de empresas sedeadas em Espanha e na Alemanha, indicadas pelo arguido CC.


39. Para pagamento de parte do valor titulado pelas referidas facturas, entre 07.06.2012 e 30.11.2012, na sequência do combinado com os arguidos AA e BB, o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, ordenou a transferência para a conta bancária a que corresponde o NIB ..., da Caixa Geral de Depósitos, titulada pela sociedade arguida J....., do montante global de € 3.665.325,00, conforme o quadro seguinte: (ver quadro no original da sentença) 40. Em execução do citado plano, foi facturado pela sociedade arguida J..... o custo do transporte da mercadoria facturada por esta à sociedade arguida A......, das instalações daquela empresa para os destinatários indicados pelo arguido CC, situados em Espanha e na Alemanha, conforme o quadro seguinte, e sem que a primeira liquidasse IVA, por se tratar de prestação de serviços intracomunitária:


(ver quadro no original da sentença) 41. Dando execução ao descrito plano, por ordem dos arguidos AA e BB em representação da sociedade arguida J....., esta solicitou à Autoridade Tributária o reembolso do IVA liquidado pela sociedade arguida F..., Lda correspondente à mercadoria facturada pela F..., Lda à J....., e que esta transmitiu à sociedade arguida A.......


42. O valor total do IVA correspondente à mercadoria facturada pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J..... que esta transmitiu à sociedade arguida A...... é de € 1.904.286,65.


43. Nesta sequência, foi pago à sociedade arguida J..... o reembolso do aludido IVA relativo aos meses de Maio, de Junho e de Julho de 2012, no valor total de € 686.100,81.


44. Com vista a permitir a dedução do IVA que incidiu sobre o valor facturado pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J....., o arguido CC acordou com GG e com HH a constituição de duas empresas.


45. Em execução do acordado, no dia 29.03.2012 foi constituída a sociedade P........... .........., Lda. (P...........), tendo na escritura sido indicada como sede da empresa a morada da empresa “P........ ..........”, sita na Avenida ... ....


46. A sociedade P..........., com o NIPC ..., tem como objecto social a “comercialização de metais”, a que corresponde o CAE ....


47. Esta sociedade encontra-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal, com periodicidade trimestral, e mostra-se colectada no Serviço de Finanças de ....


48. Desde a data da constituição da sociedade P..........., foi sempre FF o responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da empresa, nomeadamente pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português e pela gestão da contabilidade daquela e pela emissão de facturas.


49. Ainda em execução do acordado com o arguido CC, no dia 09.10.2012, HH procedeu à constituição da sociedade P.... ....... .........., Lda. (P.... .......), tendo indicado como sede desta a morada da empresa “P........ ..........”, sita na Avenida ..., ....


50. A sociedade P.... ......., com o NIPC ..., tem como objecto social a “comercialização de metais”, a que corresponde o CAE ....


51. Esta sociedade encontra-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal, com periodicidade trimestral, e mostra-se colectada no S...... .. ........ .. .......


52. Desde a data da constituição da sociedade P.... ......., foi sempre HH o responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da empresa, nomeadamente pelo pagamento dos impostos devidos ao Estado Português e pela gestão da contabilidade daquela e pela emissão de facturas.


53. Após a constituição da sociedade P.... ......., HH, com o conhecimento do arguido CC e agindo em representação daquela sociedade, procedeu em data não determinada à emissão das facturas a seguir indicadas, que foram registadas na respectiva contabilidade, a favor da sociedade P...........:


(ver quadro no original da sentença) 54. A emissão destas facturas não assentou na realização de qualquer transacção real entre as sociedades P........... e P.... ......., e apenas serviu para permitir a dedução de IVA por parte da primeira.


55. Por sua vez, o arguido CC registou na contabilidade da sociedade arguida F..., Lda as seguintes facturas emitidas por FF em representação da sociedade P..........., respeitantes à aparente compra por aquela empresa de 17.175,972 toneladas de ferro pelo valor de € 9.054.341,05, a que acresce IVA no montante de €2.082.498,49, a um preço médio de €527,15:


(ver quadro no original da sentença)


56. A emissão destas facturas não assentou na realização de qualquer transacção real entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P..........., e apenas serviu para permitir a dedução pela primeira do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas pelo arguido CC em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J......


57. Com base nas referidas facturas emitidas por FF em representação da sociedade P..........., o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, deduziu os montantes de IVA a seguir indicados, com referência aos trimestres de 2012 que também de seguida se indicam:


(ver quadro no original da sentença)


58. Sem a contabilização das referidas facturas emitidas pela sociedade P........... a favor da sociedade arguida F..., Lda, que não assentam na realização de qualquer transacção real, foi apurada em sede de IRC uma matéria colectável, relativamente à sociedade arguida F..., Lda, que deu origem à liquidação desse imposto, no montante de € 2.643.850,75.


59. O arguido CC, agindo em representação da sociedade arguida F..., Lda, registou na contabilidade desta relativa ao ano de 2012 aquisições à sociedade arguida de direito espanhol P.......... ..........., S... (P.......... ...........).


60. A sociedade arguida P.......... ..........., com o NIF-ES ... e com sede em ..., ..., Espanha, dedica-se, para além do mais, à comercialização de máquinas de vending e de produtos alimentícios, de bebidas e de tabaco, tendo iniciado a sua actividade em 13.10.2008 e, para efeitos de transacções intracomunitárias, em 06.02.2013.


61. A partir de 29.07.2009, o arguido CC passou a ocupar o cargo de sócio-gerente da sociedade arguida P.......... ..........., situação que se mantinha no ano de 2012.


62. O arguido CC, em representação da sociedade arguida P.......... ..........., emitiu em Fevereiro e em Marco de 2012, a favor da sociedade arguida F..., Lda, facturas correspondentes à aparente aquisição por esta de 425,54 toneladas de ferro, pelo valor global de € 219.153,10.


63. No ano de 2012, para além das vendas que efectuou à sociedade arguida J....., a sociedade arguida F..., Lda, vendeu igualmente ferro à sociedade arguida de direito espanhol A...... e à sociedade arguida de direito alemão F..., UG (F........), a um preço inferior ao da aquisição, num total de 39.067,66 toneladas, pelo valor global de €22.342.010,43, a um preço médio de €517,676 por tonelada.


64. O arguido CC tinha conhecimento dos factos acima descritos.


65. O arguido CC quis agir pela forma mencionada, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e em comunhão de esforços e de intenções com FF e com HH, que agiram em representação, respectivamente, das sociedades P........... e P.... ......., na sequência de plano por aquele gizado e a que estes aderiram.


66. O arguido CC actuou pela forma descrita com o intuito de a sociedade Arguida F..., Lda não entregar ao Estado Português o IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas pela mesma a favor da sociedade arguida J......


67. O arguido CC quis ainda agir pela forma mencionada, em representação da sociedade arguida A......, e em comunhão de esforços e de intenções com os arguidos AA e BB, que agiram em representação da sociedade arguida J....., na sequência de plano elaborado pelo primeiro e a que estes aderiram, tendo em vista a obtenção pela sociedade arguida J..... do reembolso do IVA correspondente a valores documentados nas facturas emitidas pela sociedade arguida F..., Lda a favor da J......


68. O arguido CC sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.


69. Os arguidos AA e BB tinham conhecimento dos factos acima descritos aos mesmos e à sociedade arguida J..... respeitantes, bem como que o plano engendrado pelo arguido CC incluía a não entrega ao Estado Português do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas por este em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J......


70. Os arguidos AA e BB quiseram agir pela forma mencionada, em representação da sociedade arguida J....., e em comunhão de esforços e de intenções com o arguido CC, na sequência de plano elaborado por este e a que aqueles aderiram, tendo em vista a obtenção pela sociedade arguida J..... do reembolso do IVA correspondente a valores documentados nas facturas emitidas pelo arguido CC em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor daquela.


71. Os arguidos AA e BB sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


*


No acórdão a quo ( 1a instância) foi dado como não provado:


“II.2. Matéria de Facto Não Provada


Da acusação pública, com relevância para a decisão a proferir, não se provou que:


a) Os arguidos AA e BB participaram na criação das sociedades P........... .........., Lda. e P.... ....... .........., Lda.


b) A sociedade arguida J..., Lda, obteve reembolso de IVA liquidado pela sociedade arguida F.... ........ .........., Lda., no valor total de € 739.000,00.


c) A sociedade P........... .........., Lda., foi constituída no dia 29.03.2016.


d) A constituição das sociedades P........... .........., Lda., e P.... ....... .........., Lda., foi efectuada com o conhecimento, de comum acordo e em conjugação de esforços com os arguidos AA e BB.


e) A emissão de facturas por parte de HH, em representação da sociedade P.... ....... .........., Lda., a favor da sociedade P........... .........., Lda., foi efectuada com o conhecimento dos arguidos AA e BB.


f) Com base em facturas emitidas por FF, em representação da sociedade P..........., o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, deduziu o montante total de € 2.192.539,78 a título de IVA, com referência aos quatro trimestres de 2012.


g) O arguido CC registou na contabilidade da sociedade arguida F.... ........ .........., Lda., aquisições à sociedade arguida P.......... ..........., S.L., com o conhecimento dos arguidos AA e BB.


(...)”


2.4- No recurso para a Relação como se viu, apresentaram como questões a decidir, além da prescrição, também: (e citamos)


“A - Da Introdução (Objeto e Delimitação do Recurso)


5o - No âmbito dos presentes autos, o tribunal a quo deliberou julgar a acusação pública e o pedido de indemnização civil formulado pelo Ministério Público, em representação do Estado Português, parcialmente procedentes, por provados apenas em parte e, em consequência, condenou o arguido AA, o arguido BB e a arguida J..., Lda por fraude fiscal qualificada e, ainda, numa parte do PIC e custas.


6o - Não se conformando com tal decisão, vêm da mesma interpor o presente recurso.


B - Da Autoridade do Caso Julgado


7o - A fls. 80 do acórdão proferido, consta o que se transcreve:


Assim, o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido efectuar era a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


Sucede que, por via do negócio simulado celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade arguida J....., a primeira ficou constituída como sujeito passivo de IVA [art. 2.o, n.o 1, al. c), do Código do IVA].


Ora bem,


8o - No âmbito do processo que correu termos sob o n.o 60960/13.9..., na Comarca de ... - Instância Central – 1.a Secção Cível - J., foi proferida sentença a 23 de junho de 2015, já transitada, na qual foram dados como provados os seguintes factos:


“1 - A sociedade “F..., Lda”, dedica-se à compra e venda de ferro e produtos similares, importação e exportação. (A)


2 - A sociedade “J..., Lda”, tem por objeto social a indústria de produtos de alumínio e redes de arame. (B)


3 - “F..., Lda” emitiu, a pronto pagamento, e enviou à ré, entre 14/08/2012 e 24/10/2012, as faturas nos 22/2012 a 35/2012, 38/2012 e 39/2012 (dezasseis) constantes de fls. 40 a 56, a debitar material que lhe forneceu, no valor total de € 6.783.608,26, IVA incluído. (C)


4 - A ora Ré não efetuou o pagamento das referidas faturas até ao presente. (D)


5 - A A. e a Ré acordaram, num encontro entre os respetivos representantes que teve lugar em finais de Janeiro/princípios de Fevereiro de 2012, no estabelecimento de relações comerciais entre elas para fornecimento, por aquela a esta, de fio-máquina.


6 - A primeira encomenda teve lugar por volta de 20 de Fevereiro de 2012, sendo esta e os fornecimentos seguintes pagos, pela Ré à A., por transferência bancária, aquando da chegada dos camiões com a mercadoria, sendo os descarregamentos feitos após a A. ter recebido o comprovativo do pagamento.


7 - A partir de Maio de 2012, a ora Ré começou a fornecer fio máquina à empresa espanhola A...... ........, S.A.


8 – Este fio máquina era fornecido à ora Ré pela ora A..


9 - A A. e a Ré acordaram que o preço da mercadoria fornecida pela A. à Ré para ser entregue à A...... ........, S. A., só seria pago, pela Ré à A., oito pela dias após aquela ter recebido os respetivos valores da A...... e não, como consta das faturas, a pronto pagamento.


10 - A entrega do preço da mercadoria pela ora Ré à ora A. foi sempre feito nos termos assim acordados entre 29 de Maio de 2012 e até final de Junho de 2012.


11 - A partir de Julho de 2012 os fornecimentos deixaram de ser pagos pela A...... ........ S... em termos regulares como até aí.


12 - E, por via disso, a ora Ré entrou em incumprimento das faturas com o saldo a favor da ora A. a aumentar apesar de sempre lhe ter feito pagamentos até Novembro de 2012.


13 - A ora Ré deixou de ser reembolsada do IVA, por a Autoridade Tributária e Aduaneira ter desconfiado de que havia desconformidade, pelo que ao IVA respeitava, nas faturas da ora A., desconfiança, que levou à inspeção das suas (da Ré) contas e à retenção do IVA dos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2012, respetivamente, nos valores de € 328.000,00, de € 505.000,00 e de € 428.000,00.


14 - A ora Ré ainda não recebeu da A...... os valores das mercadorias correspondentes às faturas em causa nesta ação.


15 - Os materiais recebidos pela Ré da ora A. eram vendidos à A...... tal como aquela os recebia.


16 - A ora A. “F.... ........ .........., Lda” tem como sócio gerente CC, residente na Avenida ..., ..., Espanha - fls. 211/212.


17 - A sociedade “A..., SA” tem como único administrador desde e de Junho de 2009 CC – fls. 259 e 267.”


9o - Embora conste dos presentes autos certidão da sentença vinda de transcrever, sem motivo aparente, o Tribunal a quo não lhe faz sequer referência...


10o - Por esta via, no mesmo sistema e momento jurídicos, temos agora duas decisões entre si absolutamente contraditórias:


c) na primeira decisão proferida (e transitada em julgado), foi dado como assente uma relação comercial imaculada, perfeitamente legítima;


d) já com a decisão ora posta em crise, considera-se que o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido a efetuar seria a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


11o - A respeito deste tipo de situações, a estabilizada jurisprudência diz-nos que:


“I. A autoridade de caso julgado formado por decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obsta que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo, neste caso, a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 581o do Código de Processo Civil. (...)”


“6 - Da excepção de caso julgado se distingue a autoridade de caso julgado, pressupondo esta a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498o do Código de Processo Civil.


7 - O efeito preclusivo do caso julgado determina a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.”.


12o - Nesta conformidade, terá de ser declarada a inadmissibilidade desta ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva.


D - Da Inconstitucionalidade


21o - Como tal, é materialmente inconstitucional a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 124.o, n.o 1, 127.o e 128.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, com o sentido em que se confere ao Juiz uma liberdade meramente intuitiva, sustentada em imputadas regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, quando estas nem são sequer reveladas, por violação dos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Subsidiariamente,


E - Da Impugnação da Matéria de Facto


“25o - Avançando por algo muito objetivo, por requerimento apresentado a 21 de dezembro de 2021, alegaram os recorrentes que:


Para além do mais, e sempre no espírito da colaboração que revelaram desde o primeiro momento em foram interpelados a respeito deste que assunto, constatam que na matéria de facto agora ajustada, resulta - nos valores que lhes dizem respeito - que nas transferências efetuadas pela J..... à A...... se alcança um valor global de € 3.565.325,00, quando o valor correto é de € 3.665.325,00, pelo que não terá sido considerada a transferência de € 100.000,00 efetuada no dia 19/06/2012.


26o - Apesar de os recorrentes terem alertado para um lapso de € 100.000,00, o mesmo mantém-se no acórdão prolatado, pelo que terá de ser retificado por este Tribunal.


Seguindo, diremos que:


27o - Na ótica dos arguidos, mal decididos foram os seguintes factos dados como provados: 4. a 16, 29., 33., 39., 41., 67., e 69. a 71.


(...)


37o - Neste conspecto, verificamos que o acórdão proferido baseia-se na ideia de que a J..... tinha “necessariamente de estar a par do objectivo do arguido CC de não entregar IVA ao Estado português”.


38o - Não havendo qualquer nenhuma prova que demonstre esse conhecimento, socorre-se o Tribunal de (imputada) prova indireta e indiciária.


39o - Quanto à prova indireta, o Tribunal circula em torno da suposta falta de racionalidade económica do material vir de uma siderurgia espanhola para Portugal e voltar a ser reexpedida para outros mercados.


“45o - Aliás, foi o preço mais baixo que trouxe a racionalidade económica ao negócio.


46o - A aquisição a esta trading a um preço inferior ao preço de compra direto à siderurgia suporta-se comercialmente nos preços praticados por indexação aos volumes de vendas.


“54o - Sendo assim, são evidentes a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e o erro notório na apreciação da prova.


55o - Neste contexto, consignam os recorrentes que foram especificados os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados e que indicaram as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (os quais, naturalmente, têm de ser entre si todos conjugados).


56o - Não obstante, caso exista alguma imprecisão, desde já de dispõem a reformular a impugnação como for tido por conveniente.


“(...)


58o - Portanto, devia o Tribunal a quo ter afastado a J....., o AA e o BB de todo este lamentável contexto.


59o - Viram-se, isso sim, envolvidos numa amálgama para a qual em nada contribuíram, pelo menos de forma consciente.


(...)


61o - Concluindo, a matéria impugnada nos termos supra expressos deverá ser dada como não provada, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; pela contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e/ou, pelo erro notório na apreciação da prova - cfr. artigo 410.o, n.o 2, do CPP.


Subsidiariamente,


F - Da fraude fiscal (não) qualificada


62o - Resulta do acórdão recorrido que o arguido, aqui recorrente, AA, foi condenado pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


63o - Por sua vez, o arguido BB foi condenado, também, pela prática, em autoria imediata e na forma consumada, de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


64o - Depois, foi ainda condenado a sociedade arguida J..... nos termos do disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT, pela prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT.


65o - Sucede, todavia, que, a ter sido cometido algum crime pelos recorrentes, este não pode ser entendido como qualificado.


66o - Atente-se na jurisprudência dos Tribunais Superiores:


A consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.” – cfr. acórdão da Relação de Lisboa, proferido a 08-03-2017, sob o n.o 1596/03.0JFLSB.L1-3, in www.dgsi.pt.


67o - Daqui se vê que a (imputada) vantagem patrimonial em caso algum é de valor superior a € 200.000,00, pois o IVA em cada fatura não atinge aquele limite – cfr. artigo 104.o, n.o 3, do RGIT.


68o - Desta feita, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


69o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das faturas, quando, na realidade, o devia ter feito.


70o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Subsidiariamente,


71o - Ainda que se considere que a declaração a que alude o artigo 103.o, n.o 3, do RGIT, tem por referencial a do IVA mensal, só nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2012 poderia a vantagem patrimonial ter ultrapassado o limiar dos € 200.000,00.


72o - Desta feita, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


73o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das declarações mensais de IVA, quando, na realidade, o devia ter feito.


74o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global das várias declarações mensais de IVA, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


75o - Tanto assim que, como resulta do artigo 103.o, n.o 3, do RGIT:


“Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”


76o - Por esta via, é claro que os recorrentes não podem ser condenados pela prática de um crime de fraude qualificada sem ponderação dos valores constantes de cada declaração mensal de IVA.


77o - Desta maneira, o Tribunal a quo violou os artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT.


78o - Aparentemente, o Tribunal interpretou aqueles artigos sem considerar os valores parcelares das declarações mensais de IVA, quando, na realidade, o devia ter feito.


79o - Tolerar a decisão do Tribunal a quo e estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103.o, n.o 3 e 104.o, n.o 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, ou, até, de cada declaração mensal de IVA, implicam a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32.o, n,o 2 e 20.o, n.o 2, ambos da CRP e artigo 6.o da CEDH.


Em suma,


80o - O Tribunal a quo violou, entre outros que V.as Ex.as certamente melhor irão decidir:


a) os artigos 103.o e 104.o do RGIT;


b) os artigos 124.o, n.o 1, 127.o e 128.o, n.o 1, do CPP;


c) o princípio da equidade;


d) princípios da legalidade;


e) o princípio do acesso ao direito imanente do artigo 20.o da CRP,


f) os artigos 28.o e 32.o da CRP,


g) o artigo 9.o da DUDH,


h) o princípio da estabilização da jurisprudência,


i) o princípio da previsibilidade das decisões, assim arredando a confiança que os cidadãos devem depositar na Justiça,


j) o princípio da segurança jurídica,


k) o princípio do respeito pela jurisprudência dos Tribunais Superiores transitada em julgado (até por não terem sido alegados quaisquer fundamentos sérios para esta alteração de posição), e


l) os artigos 5.o e 6.o, n.o 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.


2.5 - Por sua vez o TRL indeferiu todas estas questões.


Para tanto, ali se considerou:


“iv.5. Questões de direito no âmbito dos recursos interpostos pelos arguidos.

Aqui chegados e perante a improcedência dos recursos interpostos no que se refere à impugnação da matéria de facto, mantidos que se mostram, em definitivo, os factos provados tal como enunciados pelo Tribunal a quo, cumpre analisar e decidir as questões suscitadas pelos arguidos recorrentes em matéria de Direito.


iv.5.1. Do enquadramento jurídico-penal

Sustentam os recorrentes AA, BB e J....., que, a ter sido por eles cometido algum crime, este não pode ser entendido como qualificado.


Para o efeito, estribam-se em que o valor a considerar para efeitos de qualificação do crime, nos termos previstos no artigo 104o, no 3 do RGIT, é o de cada fatura isoladamente considerada, e em nenhuma delas o valor do IVA atinge € 200.000,00.


Mais alegam que, ainda que se considere que a declaração a que alude o artigo 103o, no 3 do RGIT, tem por referencial a do IVA mensal, só nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2012 poderia a vantagem patrimonial ter ultrapassado o limiar dos € 200.000,00.


Concluem que, a não ser assim, estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103o, no 3 e 104o, no 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo – cfr. artigos 32o, n,o 2 e 20o, no 2, ambos da CRP e artigo 6o da CEDH.


(...)


Na decisão recorrida, a propósito do enquadramento jurídico dos factos dados como provados, consignou-se:


“C. De harmonia com o disposto no art. 103.o, n.o 1, do RGIT, constituem fraude fiscal, (...) as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, acrescentando-se, com relevância para o caso em apreço, que a fraude fiscal pode ter lugar por:


- Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável [al. a)];


- Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas [al. c)].


Constituem circunstâncias modificativas agravantes do tipo de crime matricial, nos termos do que dispõe o art. 104.o, n.os 2, al. a), e 3, do RGIT:


- A fraude ter lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou


- A vantagem patrimonial ser de valor superior a €200.000,00.


D. Do IVA


Apurou-se que no ano de 2012 a sociedade arguida F..., Lda adquiriu às empresas G.. e C...., sedeadas em Espanha, um total de 19.998,94 toneladas de ferro.


Por seu turno, no ano de 2012, a sociedade arguida F..., Lda emitiu a favor da sociedade arguida J..... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 17.958,620 toneladas de ferro pelo valor total de €11.326.765,99, sendo €9.208.752,83 relativos ao valor da mercadoria, e tendo a primeira liquidado IVA no valor de €2.118.013,15.


Por fim, também no ano de 2012, a sociedade arguida J..... emitiu a favor da sociedade arguida A...... facturas correspondentes à aparente venda a esta de 16.053,292 toneladas de ferro, pelo valor total de €8.839.821,99, não tendo a primeira liquidado IVA, por se tratar de aparente transacção intracomunitária de bens [art. 14.o, n.o 1, al. a), do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias, aprovado pelo Dec.-Lei n.o 290/92, de 28.12].


Conforme também se apurou, nem o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, quis vender à sociedade arguida J..... a referida mercadoria, nem os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., quiseram comprar ou vender o ferro, nem o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, quis comprar a mercadoria à sociedade arguida J......


Não obstante, por ordem dos arguidos AA e BB em representação da sociedade arguida J....., esta solicitou à Autoridade Tributária o reembolso do IVA liquidado pela sociedade arguida F..., Lda correspondente à mercadoria facturada pela F..., Lda à J....., e que esta transmitiu à sociedade arguida A...... [art. 19.o, n.o 2, do Regime do IVA nas Transacções Intracomunitárias]. O valor total do IVA correspondente à mercadoria facturada pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J..... que esta transmitiu à sociedade arguida A...... é de €1.904.286,65, sendo que, nesta sequência, foi pago à sociedade arguida J..... o reembolso do aludido IVA relativo aos meses de Maio, de Junho e de Julho de 2012, no valor total de €686.100,81.


Já o arguido CC, registou na contabilidade da sociedade arguida F..., Lda facturas emitidas por FF em representação da sociedade P..........., respeitantes à aparente compra por aquela empresa de 17.175,972 toneladas de ferro pelo valor de €9.054.341,05, a que acresce IVA no montante de €2.082.498,49. No entanto, a emissão de tais facturas não assentou na realização de qualquer transacção real entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P..........., apenas tendo servido para permitir a dedução pela primeira do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas pelo arguido CC em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J......


Assim, o negócio celebrado entre o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, e os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e entre os arguidos AA e BB, em representação da sociedade arguida J....., e o arguido CC, em representação da sociedade arguida A......, é simulado (art. 240.o, n.o 1, do Código Civil), por interposição da J..... (o negócio real pretendido efectuar era a venda de ferro pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida A......).


É igualmente simulado o negócio celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P..........., por não ter assentado na realização de qualquer transacção real.


Sucede que, por via do negócio simulado celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade arguida J....., a primeira ficou constituída como sujeito passivo de IVA [art. 2.o, n.o 1, al. c), do Código do IVA].


E, porque o negócio celebrado entre a sociedade arguida F..., Lda e a sociedade P........... é simulado, a primeira ficou impedida de deduzir o IVA que lhe foi facturado pela segunda, no montante de €2.082.498,49 (art. 19.o, n.o 3, do Código do IVA vigente à data da prática dos factos, sendo que por força da entrada em vigor em 01.01.2013 do Dec.-Lei n.o 197/2012, de 24.08, as alterações introduzidas na norma em apreço não relevam para o caso dos autos).


Assim, ao agir em representação da sociedade arguida F..., Lda nos moldes que se consideraram estar provados, o arguido CC visou a não entrega ao Estado de €2.082.498,49 a título de IVA, o que conseguiu, preenchendo assim os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


Quanto aos arguidos AA e BB, ao agirem em representação da sociedade arguida J..... nos termos descritos, com o conhecimento de que o plano engendrado pelo arguido CC incluía a não entrega ao Estado Português do IVA correspondente aos valores documentados nas facturas emitidas por este em representação da sociedade arguida F..., Lda a favor da sociedade arguida J..... (no montante de €2.118.013,16, a que o arguido CC deduziu, nos termos expostos, o valor de €2.082.498,49), visaram a obtenção indevida de reembolso de IVA susceptível de causar diminuição das receitas tributárias no montante de €1.904.286,65 (que corresponde ao valor total do IVA da mercadoria facturada pela sociedade arguida F..., Lda à sociedade arguida J..... que esta transmitiu à sociedade arguida A......).


Mas, mais do que isso, os arguidos AA e BB, ao agirem conluiados e da forma descrita com o arguido CC, executaram uma parte do plano concertado entre os três, com vista a que a sociedade arguida F..., Lda não entregasse ao Estado o referido montante de €2.082.498,49, valor que aqueles sabiam ser devido ao Estado por estar documentado nas facturas emitidas a favor da sociedade arguida J..... (tais facturas, como se referiu, documentavam, inclusive, um valor ligeiramente superior, de €2.118.013,16, pelo que o dolo dos arguidos AA e BB abrange o montante efectivamente deduzido pela F..., Lda). Aliás, é a intervenção da sociedade arguida J..... que permite a dedução de IVA pela sociedade arguida F..., Lda.


O reembolso à sociedade arguida J..... efectivado pelo montante de €686.100,81 somente releva em sede de determinação da medida concreta da pena, pois o tipo de ilícito de fraude fiscal, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido (que, conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2012, é a Conta do Estado na rubrica que inclui as receitas fiscais destinadas à realização de fins públicos de natureza financeira, económica ou social – processo 379/07.3TAILH.C1, disponível em www.dgsi.pt), apresenta-se como um crime de perigo.


Além disso, a actuação concertada dos arguidos CC, AA e BB causou ao Estado um prejuízo efectivo de valor próximo ao do IVA que a sociedade arguida F..., Lda devia ter entregue aos cofres do Estado por força da facturação emitida a favor da sociedade arguida J....., no caso, no montante de €2.082.498,49.


É nesse valor que o Estado está desembolsado em consequência da actuação concertada entre os arguidos CC, AA e BB. É certo que o pedido de reembolso em €1.904.286,65 e o reembolso concretizado de €686.100,81 não constituem o acto gerador do prejuízo. Este é gerado pela actuação conjunta dos arguidos CC, AA e BB, pré-ordenada a que a sociedade arguida F..., Lda não entregasse €2.082.498,49, o que sucedeu. E os arguidos AA e BB aceitaram que fossem emitidas a favor da sociedade arguida J..... facturas em que foi liquidado IVA em valor um pouco superior a €2.082.498,49. E, portanto, respondem como co-autores (art. 26.o do Código Penal) por toda a actuação e prejuízo criado pela mesma.


De resto, o benefício que a sociedade arguida J..... iria obter com a adesão dos arguidos AA e BB ao aludido plano não era constituído pelo reembolso pedido no valor de €1.904.286,65 (pois este montante seria entregue à sociedade arguida F..., Lda), mas pela diferença entre o valor que lhe seria facturado pela sociedade arguida F..., Lda e o valor que aquela iria facturar à sociedade arguida A.......


Assim, ao agirem em representação da sociedade arguida J..... nos termos que se consideraram estar provados, também os arguidos AA e BB preencheram os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


O caso dos autos traduz o que usualmente se designa por “fraude carrossel”. Tal como se refere no acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 21.02.2017, esses esquemas de defraudação do Estado em sede de IVA que se desenvolvem através da associação de operações intracomunitárias isentas de IVA e operações nacionais não isentas, implicam a participação de vários operadores que, entre si, formam circuitos económicos de mercadorias ou só circuitos de facturação, nos casos em que a mercadoria é fictícia.25


Na terminologia correntemente utilizada em situações idênticas à dos autos, a sociedade arguida F..., Lda denomina-se de “operador desaparecido” (ou “missing trader”) e a sociedade arguida J..... de “empresa de ligação” (ou “broker”).26


Por fim, os arguidos CC, AA e BB agiram com dolo directo, pois tinham conhecimento dos factos que acima se descreveram e quiseram agir pela forma mencionada (art. 14.o, n.o 1, do Código Penal), tendo ainda actuado todos com consciência da ilicitude da respectiva conduta (art. 17.o, n.o 1, a contrario, do Código Penal).


E. Do IRC


Tal como ficou demonstrado, o arguido CC, em representação da sociedade arguida F..., Lda, contabilizou as facturas emitidas pela sociedade P..........., portanto, gastos, em desrespeito pelo disposto no art. 23.o do Código do IRC, na medida em que tais facturas não assentam na realização de qualquer transacção real.


Apurou-se igualmente que, sem a contabilização daquelas, foi apurada em sede de IRC uma matéria colectável, relativamente à sociedade arguida F..., Lda, que deu origem à liquidação desse imposto no montante de €2.643.850,75.


Assim, ao agir em representação da sociedade arguida F..., Lda nos moldes que se consideraram estar provados, o arguido CC visou a não liquidação de €2.643.850,75 a título de IRC, preenchendo assim os elementos do tipo objectivo do crime de fraude fiscal qualificada previsto nos arts. 103.o, n.o 1, al. a), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


Acresce que o arguido CC agiu com dolo directo, pois tinha conhecimento dos factos que acima se descreveram e quis agir pela forma mencionada (art. 14.o, n.o 1, do Código Penal), tendo ainda actuado com consciência da ilicitude da respectiva conduta (art. 17.o, n.o 1, a contrario, do Código Penal).


F. Em suma:


- O arguido CC praticou, em autoria imediata e na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT;


- Os arguidos AA e BB praticaram, em co-autoria imediata e na forma consumada, um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT.


G. Da responsabilidade das pessoas colectivas


Em face da matéria de facto provada, resulta desde logo não ser possível atribuir às sociedades arguidas P.......... ..........., S..., e F........ ..........., U..., a responsabilidade pela prática de qualquer ilícito criminal, devendo as mesmas, portanto, ser absolvidas.


Por seu turno, atenta a factualidade que se considerou estar provada, bem como o disposto no art. 7.o, n.o 1, do RGIT:


- A sociedade arguida J..., Lda., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT;


- A sociedade arguida F.... ........ .........., Lda., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, als. a) e c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT; e


- A sociedade arguida A...... ........, S.A., é responsável pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos arts. 103.o, n.o 1, al. c), e 104.o, n.os 2, al. a), e 3, ambos do RGIT, e pelos arts. 90.o-A, n.o 1, e 90.o-B, n.os 4 e 5, ambos do Código Penal, ex vi art. 3.o do RGIT.”


Posto isto, quase pode dizer-se que, à face do que ficou consignado na decisão recorrida quanto ao enquadramento jurídico dos factos, resulta evidente o preenchimento, por parte dos recorrentes do crime pelo qual foram condenados.


Ainda assim, sempre se dirá, a propósito do recorte normativo do crime de fraude fiscal qualificada, que importa ter em conta que o artigo 104o, no 1 do RGIT contém necessariamente os elementos que compõem o tipo matricial de fraude (tal como resulta da previsão constante do artigo 103o do RGIT) mas também contempla elementos que vão para além daquele tipo legal e que, por isso, fundamentam não só a agravação da punição, como conferem àquela norma uma natureza de especialidade.27


As circunstâncias qualificadoras estão previstas no no 1 do artigo 104o. Todavia, para que a fraude seja qualificada não é suficiente a ocorrência de uma daquelas circunstâncias. O legislador exige que se verifique a «acumulação» de mais de um daqueles elementos, criando assim uma técnica original de qualificação por adição ou por acumulação. A fraude qualificada realiza-se então quando duas ou mais circunstâncias previstas no artigo 104o se acrescentam às condutas ilegítimas tipificadas no artigo 103o.


Porém, o no 2 do artigo 104o do RGIT refere-se expressamente à utilização de faturas ou documentos equivalentes forjados, autonomizando tais casos, que fundamentam por si só a qualificação da fraude fiscal.


Ora, como no caso em apreço os factos foram praticados através da utilização de «faturas falsas» (sem correspondência com negócios jurídicos reais, efetivamente queridos pelas partes contratantes), é evidente que o tipo criminal aqui em causa sempre seria a fraude fiscal qualificada, independentemente de o respetivo valor ultrapassar, ou não, os € 200.000,00 (o que, todavia, não deixa de constituir circunstâncias agravante a se).


Isto mesmo se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.06.200528, no qual, não obstante, também se refletiu que “a remissão que no no 3 do mesmo preceito [o artigo 103o do RGIT], é feita para os valores constantes de cada declaração a apresentar à administração tributária não pode ser entendida doutra forma que não seja a de que para efeitos da exclusão de punibilidade prevista no número anterior, não serão atendidos outros valores que não os constantes de cada declaração. Isto, por dois motivos: a não ser assim, deveria entender-se que, por cada declaração entregue, seria renovada a resolução criminosa com inequívoca influência no número de crimes praticados; por outro lado, perante situações idênticas, isto é, perante dois contribuintes com idênticos rendimentos, sairia beneficiado, sem razão que o justificasse, aquele que, por exemplo, estivesse sujeito ao regime normal de periodicidade mensal, já que os valores declarados seriam obviamente inferiores àqueles que iria declarar, trimestralmente, um outro contribuinte com os mesmos rendimentos.


Ora, acrescentamos nós, a vantagem patrimonial referida no arto103° n°2 do citado diploma legal reporta-se a todos ou a qualquer dos factos enumerados sob o n°1 e respectivas alíneas deste mesmo preceito legal e que devam constar de cada uma das declarações apresentadas ou a apresentar à administração fiscal, ou negócio celebrado e independentemente do valor de cada uma delas, isto é, a não punibilidade da conduta do agente ali prevista tem como limite máximo montante de [15.000] euros enquanto vantagem patrimonial ilegítima por si obtida, seja qual for o período a que respeite, os negócios celebrados, ou o número ou periodicidade das declarações viciadas ou em falta.


Assim, a vantagem patrimonial ilegítima afere-se ou contabiliza-se pela soma aritmética de todos os valores dos livros da contabilidade ou escrituração, do negócio ou negócios simulados, da declaração ou declarações em falta – se não excedente a [15.000] euros, tais factos não são puníveis.”.


Em face do que fica dito, dos factos provados e das disposições legais aplicáveis, perante a uniformidade da atuação dos arguidos e o propósito que os animou – no qual não se identifica renovação da resolução criminal, mas antes persistência no propósito originalmente formulado, parece-nos evidente o acertado da decisão recorrida – neste particular, em linha com a acusação – ao considerar que apenas foi cometido, por cada um dos arguidos recorrentes, um crime de fraude fiscal qualificada, contabilizando-se a vantagem patrimonial ilegítima, no que se refere aos «triângulo negocial» gerado entre a F..., Lda (representada por CC), a J..... (representada por AA e BB) e a A...... (representada por CC) em € 2.082.498,49 (dois milhões, oitenta e dois mil, quatrocentos e noventa e oito euros e quarenta e nove cêntimos).


Esta foi, também, a solução acolhida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.201229, em situação em tudo semelhante à que aqui se estuda, aí se exarando que: “tendo todos os arguidos agido de forma concertada, actuando com o mesmo objectivo comum (tal como resulta dos factos alegados na pronúncia e dos dados como provados), quando decidiram emitir regularmente, nas datas supra descritas, as facturas falsas, para as utilizarem da forma descrita, com vista a obterem vantagens indevidas de IVA e de IRC (nos moldes referidos nos factos objecto deste processo), o último acto de execução da resolução que tomaram sempre ocorreu na vigência do RGIT, quer considerando a data em que foi emitida a última factura falsa (...), quer considerando a última declaração fiscal apresentada na Administração Tributária (...).


Aliás, a integração na contabilidade daquela sociedade F..., Lda de facturas falsas emitidas pela sociedade gerida pelo recorrente, só interessava precisamente para, com a referida utilização, serem obtidas vantagens indevidas de IVA e de IRC pela primeira sociedade, que apresentou as respectivas declarações fiscais (é ilógica a argumentação contrária do recorrente, de que apenas emitiu e entregou as ditas facturas falsas, desconhecendo o destino que lhes ia ser dado, quando os arguidos tinham precisamente aquele objectivo comum; e só porque visavam obter vantagens indevidas na sua utilização é que faz sentido a emissão e entrega das ditas facturas falsas).


Tratando-se, neste caso, da execução daquela única resolução que tomaram (que envolvia quer a emissão das facturas falsas, quer a sua utilização na contabilidade da F..., Lda, com vista a obterem vantagens indevidas de IVA e de IRC, o que significa que a sua consumação se prolongou no tempo, podendo classificar-se a conduta em causa como crime permanente ou duradouro), a consumação do crime de fraude fiscal ocorreu com a prática do último acto, que foi quando cessou a consumação (art. 119o, no 1 e no 2, alínea a), do CP), o que aconteceu sempre na vigência do RGIT como já acima se explicou (independentemente da posição que se adopte quanto ao momento da consumação do crime de fraude fiscal, v.g. seja o da data da última factura emitida, seja o da data da última declaração fiscal apresentada).


Essa única resolução (que afasta desde logo a existência de crime continuado), cuja execução e consumação se prolongou no tempo, não é minimamente posta em causa por as vantagens indevidas visadas se relacionaram com dois tipos de impostos diferentes (no caso IVA e IRC), nem tão pouco com a circunstância de terem sido apresentadas em 3 momentos temporais distintos as respectivas declarações fiscais em nome da F..., Lda (a apresentação das declarações fiscais que, para parte da doutrina e jurisprudência, coincide com o momento da consumação do crime de fraude fiscal, não interfere, nem se confunde com a resolução criminosa prévia que foi tomada porque já faz parte da execução dessa mesma resolução).


De concurso de crimes também não se pode falar uma vez que o bem jurídico violado com a execução daquela única resolução é o mesmo (o qual, em resumo e genericamente, podemos dizer que se relaciona de forma primacial com a protecção do “património público tributário”, ainda que exista “um limiar mínimo de ofensividade para o bem jurídico”30.”


Este é, mutatis mutandis, também o caso destes autos.


Como acima se apontou, no comportamento adotado ao longo do tempo pelos arguidos, tal como resultou provado no julgamento, identifica-se uma pré-determinação ordenada à obtenção de proventos em prejuízo do património público tributário, com aproveitamento das circunstâncias propiciadas pela existência de aparentes transações intracomunitárias, não se vislumbrando, ao contrário do pretendido pelo recorrente CC que tal resulte posto em causa pela circunstância de terem sido afetadas prestações tributárias de diversa natureza (IVA e IRC). Na verdade, a dívida de IRC surge diretamente ligada à existência dos negócios simulados: a AT, no exercício da sua atividade inspetiva, detetou a desconformidade daquelas transações, eliminando-as dos custos imputados pelo arguido CC (que permitiam à sociedade arguida F..., Lda, apresentar um rendimento coletável diminuto), e é nessa sequência que vem a apurar-se o valor de imposto efetivamente devido, após correção da matéria tributável.


Como se disse, tais atos mostram-se claramente conexos e subordinados a um único desígnio – daí que se conclua pela prática de um único crime de fraude fiscal qualificada por parte de cada um dos arguidos, tal como se decidiu no acórdão recorrido.


Não procede, pois, a pretensão do recorrente CC no sentido da separação de processos por via da diversidade de impostos em dívida.


Assim, não podendo os recorrentes deixar de ser responsabilizados em face da matéria de facto provada, impõe-se concluir pela improcedência do recurso.


*


Mais uma vez, não é possível apreciar a hipotética questão de constitucionalidade suscitada a propósito desta matéria pelos recorrentes AA, BB e J....., desta feita por deficiente concretização da dimensão constitucional tida em vista, que não foi pelos recorrentes explicitada, já que se limitaram a referir disposições constitucionais, sem esclarecerem em que medida da dimensão normativa que propõem e suscetível de por em causa tais garantias.


*


(...)”


E, continuando, referiu o Ac TRL recorrido:


*


"5.1. Quanto ao recurso dos arguidos AA, BB e J..., Lda, Lda:

“- O douto acórdão recorrido não padece de vícios que determinem qualquer irregularidade ou nulidade.


- Dos autos resulta que a injunção referida pelos recorrentes consta do apenso A-11 e deu origem à Acção de Processo Ordinário com o no 60960/13.9... que correu termos na Comarca do ..., ... – Juízo de Grande Instância Cível – Juiz ....


- Analisado tal apenso A-11 constata-se que do mesmo não consta a alegada sentença. Analisada a contestação apresentada pelos ora recorrentes e junta de fls. 2754 a 2757 constata-se que os mesmos nada invocaram sobre essa sentença pelo que facilmente se conclui que o Tribunal a quo não tinha de conhecer e nem de se pronunciar sobre uma decisão cível que não consta dos autos.


- No referido processo a causa de pedir é o incumprimento do contrato de fornecimento de serviços existente entre a sociedade F..., Lda e a sociedade J....., tendo esta em dívida o pagamento do valor global de € 6.783.608,28 pelas mercadorias fornecidas.


- A causa de pedir da injunção apresentada funda-se, pois, num contrato válido celebrado entre as partes nunca tendo sido aflorada em tal processo, por nenhuma das partes, a questão da inexistência ou simulação da relação contratual que esteve na origem da divida cujo pagamento se reclamava, razão pela qual a alegada sentença proferida não abordou nem decidiu sobre tal questão.


- Estamos, pois, perante situações diversas sendo que a acção cível, supra referida, nunca versou sobre a validade da transacção comercial alegada mas sim sobre a existência e forma de pagamento da quantia em divida.


- Inexiste pois, em nosso entender, a alegada violação de caso julgado.


- No acórdão ora impugnado foram os recorrentes condenados pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. pelos arts. 103o no 1 alíneas a) e c) e 104o no 2 alínea a) e 3 do RGIT, por factos ocorridos entre 01-03-2012 e 24-10-2012, a que corresponde pena de prisão de 2 a 8 anos.


- Nos termos do disposto noa art. 21o no 2 do RGIT conjugado com o art. 118o, n.o1, b), do CP. o prazo de prescrição do respectivo procedimento é não de cinco anos, como alegam os recorrentes, mas de dez anos, pelo que facilmente se conclui pela improcedência da invocada prescrição do procedimento criminal;


- Relativamente à inconstitucionalidade invocada os recorrentes limitam-se a invocar a mesma, mas em momento algum referem qual a interpretação que foi dada pelo tribunal a quo sobre essa norma e em que medida ela viola as normas constitucionais que citam, nem sobre qual é afinal o sentido a dar a essas normas de acordo com tais preceitos constitucionais;


-No entanto sempre se dirá que não se vislumbra qualquer violação das normas constitucionais invocadas nem dos princípios da presunção da inocência e do in dúbio pro reo uma vez que o Tribunal a quo motivou de forma extensa, precisa e clara os factos que deu como provados quanto aos aqui recorrentes e fez uma apreciação e valoração, correcta, de todos os elementos probatórios existentes nos autos e descritos na sua motivação conjugando-os com as regras da experiência, da lógica e da razão;


- Da análise da decisão do tribunal a quo facilmente se constata que a decisão do tribunal a quo longe de se tratar de uma convicção “subjectiva e emocional” abordou todas as questões agora levantadas pelos recorrentes explicando, de forma lúcida, coerente e exaustiva, quer os fundamentos dos factos dados por assente quer os que foram considerados não provados.


- Efectivamente, o teor da decisão criticada permite inferir, ao contrário do que entendem os recorrentes, que o Tribunal a quo ficou convencido da realidade dos factos que arrolaram como assentes e indicaram o percurso ou o raciocínio lógico que o conduziu a essa convicção, de modo bastante a que o Tribunal de recurso possa aferir da sua adequação (substancial), possibilidade que se estende, inevitavelmente, a qualquer destinatário directo e aos demais cidadãos.


- Tudo isto para concluir que estamos perante uma “motivação” apta ao fim a que se destina, porquanto a expressão nela contida do exame crítico das provas indicadas permite alcançar o processo formativo da convicção do Tribunal, relacionando-se a discordância dos recorrentes não com a existência de qualquer inconstitucionalidade mas com razões de diferente índole, conexas com a impugnação ampla da matéria de facto por erro de julgamento, que invocou.


- Lendo-se globalmente o texto do acórdão impugnado, afigura-se-nos que os factos nele dados como provados são suficientes, correspondem ao alegado pelo MoPo, pela defesa e ao resultado da discussão da causa e não enfermam de obscuridade, contradição ou deficiência;


- A fundamentação do acórdão “sub judicio” cumpre exemplarmente os respectivos requisitos legais, ali se encontrando muito bem explicitado e explicado o processo de formação da convicção do Tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os depoimentos prestados em audiência conjugando-os com a prova documental existente nos autos;


- Fundamentação que, de resto, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum;


- Assim, contrariamente ao sustentado pelos recorrentes, somente as ilações retiradas pelo Tribunal a quo, se compatibilizam com o efectivo resultado dos meios de prova produzidos conjugados com as regras da lógica e experiência comum;


- Também quanto à prova (indirecta) do conhecimento e participação dos recorrentes no plano elaborado para o não pagamento do IVA, esclareceu o Tribunal tê-la extraído, no caso em análise, dos demais elementos existentes nos autos e das regras da normalidade e da experiência comum;


- Na verdade, é lícito ao tribunal, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencendo sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida: em face dos apurados condicionalismos pessoais dos recorrentes, os particulares contornos das suas condutas têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos, sem que se verifique qualquer erro na apreciação da prova e sem contradição da fundamentação na modalidade de se terem dado como provados factos contraditórios ou da omissão da sua motivação;


- Não vislumbramos, pois, o menor fundamento para divergir da expressão da convicção adquirida pelo Tribunal a quo, tanto pela forma exaustiva como descreveu as razões pelas quais o levou a considerar a realidade inserta nos pontos questionados, como, essencialmente, porque os recorrentes para além de meros comentários de índole subjectiva não forneceram um único elemento de prova que aponte em sentido contrário ao decidido.


- Inexiste, portando, em nosso entender, qualquer dos invocados vícios do art. 410o no 2 do CPP ou erro de julgamento;


- Importa ainda referir que não assiste razão aos recorrentes quando alegam não ter o tribunal a quo retificado o lapso referente à transferência no valor de € 100.000.00 uma vez que tal consta do ponto 39 da factualidade dada por assente do acórdão impugnado;


- Quanto à qualificação jurídica, em nosso entender, também não assiste razão aos recorrentes uma vez que tendo por base os factos que foram dados como provados os recorrentes cometeram, um só crime de fraude fiscal, uma vez que a sua conduta concertada consistiu na execução da resolução que tomaram conjuntamente com o arguido CC, que tinha como objectivo a não entrega ao Estado pela sociedade arguida F..., Lda de IVA no montante de €2.082.498,49, valor que aqueles sabiam ser devido ao Estado por estar documentado nas facturas emitidas a favor da sociedade arguida J......


- A vantagem patrimonial referida no n.2 do artigo 103 do RGIT de 2001 reporta-se a todos e qualquer um dos factos do n.1, seja qual for o período em causa.


- a decisão recorrida não violou, pois, qualquer norma legal ou constitucional.


Nestes termos e pelos expostos fundamentos, deverá negar-se provimento ao recurso e confirmar-se inteiramente a douta decisão recorrida.”


(...)”


2.6 - E por fim, já na aludida decisão de reclamação do Acórdão, decidiu indeferir, dizendo em síntese, salientando a “inovação”, que aliás reconhecem, de argumentos, sob a capa de nulidade e de vício por omissão de pronúncia e de contradição:





“(...) Os arguidos AA, BB e J..., Lda, tendo visto confirmada a sua condenação em 1a instância por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27.09.2022 – que lhes foi notificado em 03.10.2022 – vieram, por requerimento apresentado em 03.11.2022 (refa Citius 603835), entre o mais, arguir a «nulidade do acórdão», com fundamento em «omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.o, n.o 1, alínea c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão de conhecimento oficioso, que deveria ter apreciado» - qual seja, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410o, no 2, alínea b) do Código de Processo Penal.


Em fundamento de tal alegação, argumentam que «não pode o Tribunal de 1.a instância, por um lado, qualificar o negócio jurídico celebrado como uma “simulação” relativa, com interposição fictícia da J..... e, por outro lado, no momento decisório da quantificação do prejuízo, não aplicar as regras de tributação aplicáveis ao negócio dissimulado (real).


Por tal entendimento constituir manifesta contradição nos seus próprios termos e por violar o disposto nos artigos 39.o da LGT e 14.o do RITI, a decisão de 1.a instância, no que diz respeito ao pedido de indemnização cível formulado, é ilegal, porquanto enferma de vício de conhecimento oficioso, consubstanciado numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do artigo 410.o, n.o 2, alínea b), do CPP.


(...)


Em suma, considerando-se, na linha do decidido pelo Tribunal de 1.a instância e confirmado pela decisão recorrida, que efetivamente o negócio celebrado entre a F.... e a Recorrente J..... foi simulado, então, nesse figurino, o prejuízo efetivo do Estado dever-se-ia considerar fixado em € 686.100,81, i.e. o montante reembolsado pela Autoridade Tributária à J....., pelo que deveria o Tribunal a quo ter declarado oficiosamente a nulidade da decisão recorrida, na parte referente ao segmento decisório que recaiu sobre o pedido de indemnização civil formulado, nos termos do disposto no artigo 410.o, n.o 2, do CPP.


Assim, não tendo o Tribunal a quo tomado conhecimento do vício de que padece a decisão de 1.a instância, nos termos do artigo 410.o, n.o 2, alínea b), do CPP, que supra demonstrámos, o acórdão recorrido padece da nulidade de omissão de pronúncia, porquanto não aprecia uma questão de que deveria ter tomado conhecimento – aqui, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, por ser de conhecimento oficioso – atenta a jurisprudência fixada por via do acórdão n.o 7/95 deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.1995.»


(...)


Alegam que(...) o valor a considerar para efeitos de qualificação do crime, nos termos previstos no artigo 104o, no 3 do RGIT, é o de cada fatura isoladamente considerada, e em nenhuma delas o valor do IVA atinge € 200.000,00.


Mais alegam que, ainda que se considere que a declaração a que alude o artigo 103o, no 3 do RGIT, tem por referencial a do IVA mensal, só nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2012 poderia a vantagem patrimonial ter ultrapassado o limiar dos € 200.000,00. Concluem que, a não ser assim, estaríamos diante de uma inconstitucionalidade material pois que a interpretação e a aplicação da norma complexa extraída do cotejo dos artigos 103o, no 3 e 104o, no 3, do RGIT, com o sentido em que se permite o cômputo global dos valores de cada fatura, implica a violação dos princípios da legalidade, da presunção da inocência, do in dubio pro reo, do direito ao acesso ao direito e, ainda, do direito a um processo justo tendo visto confirmada a sua condenação em 1a instância por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27.09.2022 – que lhes foi notificado em 03.10.2022 – vieram, por requerimento apresentado em 03.11.2022 (refa Citius 603835), entre o mais, arguir a «nulidade do acórdão», com fundamento em «omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.o, n.o 1, alínea c), do CPP, porquanto o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre uma questão de conhecimento oficioso, que deveria ter apreciado» - qual seja, a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410o, no 2, alínea b) do Código de Processo Penal.


Em fundamento de tal alegação, argumentam que «não pode o Tribunal de 1.a instância, por um lado, qualificar o negócio jurídico celebrado como uma “simulação” relativa, com interposição fictícia da J..... e, por outro lado, no momento decisório da quantificação do prejuízo, não aplicar as regras de tributação aplicáveis ao negócio dissimulado (real).


Por tal entendimento constituir manifesta contradição nos seus próprios termos e por violar o disposto nos artigos 39.o da LGT e 14.o do RITI, a decisão de 1.a instância, no que diz respeito ao pedido de indemnização cível formulado, é ilegal, porquanto enferma de vício de conhecimento oficioso, consubstanciado numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do artigo 410.o, n.o 2, alínea b), do CPP.


(...)


Em suma, considerando-se, na linha do decidido pelo Tribunal de 1.a instância e confirmado pela decisão recorrida, que efetivamente o negócio celebrado entre a F.... e a Recorrente J..... foi simulado, então, nesse figurino, o prejuízo efetivo do Estado dever-se-ia considerar fixado em € 686.100,81, i.e. o montante reembolsado pela Autoridade Tributária à J....., pelo que deveria o Tribunal a quo ter declarado oficiosamente a nulidade da decisão recorrida, na parte referente ao segmento decisório que recaiu sobre o pedido de indemnização civil formulado, nos termos do disposto no artigo 410.o, n.o 2, do CPP. Assim, não tendo o Tribunal a quo tomado conhecimento do vício de que padece a decisão de 1.a instância, nos termos do artigo 410.o, n.o 2, alínea b), do CPP, que supra demonstrámos, o acórdão recorrido padece da nulidade de omissão de pronúncia, porquanto não aprecia uma questão de que deveria ter tomado conhecimento – aqui, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, por ser de conhecimento oficioso – atenta a jurisprudência fixada por via do acórdão n.o 7/95 deste Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.1995. (...)


Em face de tais considerações – que recuperamos da decisão proferida por este Tribunal – afigura-se-nos claro que a situação descrita pelos reclamantes não se enquadra no vício em apreço, antes relevando do enquadramento jurídico dos factos pelos mesmos proposto, no caso, a matéria do pedido de indemnização civil (relativamente ao qual, recordamos, não foi pelos agora reclamantes interposto recurso da decisão proferida em 1a instância).


Mantendo presente que “o vício previsto na al. b) do no. 2 do art. 410o do CPP, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum (cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 14/03/2002, proc. no. 3261/01-5)”31, resulta manifesto que a questão suscitada pelos reclamantes não preenche tais pressupostos.


Na verdade, os reclamantes contrapõem disposições penais a disposições tributárias e civis, procurando alcançar conclusões quanto ao montante do prejuízo sofrido pelo Estado português.


Ora, sendo embora verdade que o artigo 39o, no 1 da Lei Geral Tributária prevê que, «Em caso de simulação de negócio jurídico, a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado», e que do respetivo artigo 38o consta, «1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes. 2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas (...)», é igualmente certo que o artigo 10o do mesmo diploma estabelece que «O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão dos bens não obsta à sua tributação quando esses atos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis». Como se vê, tais disposições têm em vista a determinação da matéria tributável, para efeitos fiscais. Delas não decorre, porém, qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão no caso que temos em mãos. Nem tal poderia suceder, face ao que se deixou dito quanto às características do vício de que aqui cuidamos.


A questão de os factos provados não corporizarem os elementos do tipo legal de crime em causa, ou de permitirem a contabilização do prejuízo patrimonial em termos diversos dos acolhidos na decisão recorrida, não é uma questão de facto – contradição insanável da fundamentação – mas sim uma questão de direito: potencial erro de subsunção dos factos ao direito.


Ora, se a matéria agora inovatoriamente trazida pelos recorrentes (já que tais argumentos não constavam da respetiva alegação recursória) não é suscetível de integrar o vício invocado, é por demais evidente que não pode ocorrer omissão de pronúncia relativamente a um vício que não se verifica, seja ele de conhecimento oficioso ou não.


Julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão de 27.09.2022, por omissão de pronúncia, nada havendo a alterar na decisão proferida nos autos”


2.7- O recurso de Revisão


Aqui chegados e dando desde já como assente que a prolixidade de conclusões é um não-problema, porquanto delas se percebe suficientemente o que os recorrentes pretendem, temos então por demais evidente e derradeiro poder concluir que os recorrentes vieram apenas, aproveitando a sobredita reclamação do acórdão, levantar um problema novo, que “descobriram”, só ali, dever ser, na sua perspectiva, de conhecimento oficioso, tentando “salvar” dessa forma a sua falta de alegação em via de recurso, problema esse atinente à quantificação do pedido cível e respectivo prejuízo para o Estado, não obstante, desde logo reconhecido como consequência de um negócio jurídico simulado na primeira instância, sendo certo que não se vislumbra em momento algum, face ao histórico dos autos, como bem assinalou o acórdão recorrido e reclamado, que tenha gerado da parte daqueles dissenso ou discussão relevante em sede de recurso para o Tribunal da Relação, como bem decorre da identificação feita quanto às questões elencadas nas ou a partir das conclusões do recurso interposto.


Por isso é que a questão, de direito, agora trazida pela via do recurso de revista excepcional, que os recorrentes formulam assim “– a (errada) quantificação do prejuízo do Estado Português nos casos de «fraude carrossel», em que o negócio real ou dissimulado comportou uma transação substantivamente isenta de IVA – configurando uma temática de elevadíssima importância e relevância jurídica e social, transversal à generalidade da parte cível dos processos-crime em referência, pelo que a sua apreciação é, desde logo, justificada no âmbito do regime excecional de admissibilidade recursiva previsto no artigo 672.o do Código de Processo Civil”-, é assumidamente ( como se viu da “inovação” invocada apenas em sede de reclamação ) uma questão manifestamente nova, senão extemporânea ao recurso para a Relação, não suscitada neste em concreto, e que este sequer entendeu dever ou ter de conhecer oficiosamente, como supra se viu.


Como muito bem e acertadamente se explicou no parecer do MP neste STJ “(...)Não impugnaram, ali, expressa e autonomamente, a questão-civil – esgrimindo sobre o seu objecto causas de erro de julgamento e pedidos específicos – sendo que o seu ganho nessa matéria apenas poderia advir, reflexa e indirectamente, da eventual procedência do recuso da questão-penal, que induzisse a eliminação dos pressupostos comuns (de facto ou de direito) à pretensão indemnizatória do Estado. (...)o Acórdão “sub judice” não se pronunciou e decidiu, relativamente aos arguidos ora recorrentes, sobre o acerto do decidido pela 1a Instância acerca do objecto do Pedido de Indemnização Civil, sendo, no caso, de todo descabido falar de “dupla conforme” ou desconforme –, na falta de decisão, não há recurso.


(...) Tão-simplesmente: Falha o pressuposto material essencial da interposição de qualquer recurso, como seja, a decisão judicial (cfr, o art. 627o/1 do Código de Processo Civil) pretendendo discutir, necessariamente, no Supremo Tribunal de Justiça, matéria nova, que nunca aventaram nas Instâncias (...)”


Nestes termos é de concluir que não houve propriamente uma decisão (“Acórdão”) da Relação susceptível de revista excepcional nos termos do arto 672 no1 do CPC, que possa sequer ser ou constituir objecto deste tipo de recurso de revista excepcional nos termos pretendidos, pressuposto negativo este que inquina derradeiramente o seguimento para apreciação sumária pela formação cível.


Não obstante, poderia contudo, assumir-se, mesmo controversamente embora sem conceder, que apesar de os ora únicos recorrentes de revista cível excepcional não o tenham, na verdade, feito autonomamente da sua condenação cível, a verdade é que parte do acórdão de 1a instância foi alvo de recurso por parte do co-arguido e co-demandado CC e por motivos que, como se vê das conclusões da motivação transcritas a fls. 17 a 28 do Acórdão Recorrido, se não poderia considerar que respeitassem exclusivamente à sua pessoa, por isso defender-se que não só podendo, caso o recurso tivesse procedido, terem-se os respectivos efeitos estendido aos ora recorrentes – arts. 634o n.o 1 e 2 al.a c) do CPC –, como, à luz do disposto no art.o 634o n.o 5 do CPC, ter-lhes permitido assumir em qualquer momento a posição de recorrente principal inclusivamente nos momentos deste recurso.


Esta solução teria naturalmente de se compatibilizar com outras consequências incontornáveis do princípio da adesão, mormente as de o trânsito da decisão na parte criminal implicar a fixação em definitivo da matéria de facto que, simultaneamente, corporizasse pressuposto(s) da responsabilidade civil, sendo manifestamente improcedente – e rejeitável – o recurso, ou a parte dele, que se propusesse rediscutir tal matéria.


Mas, ainda assim, mesmo que se entendesse porventura na base da consideração da possibilidade de co-aproveitamento de eventuais efeitos determinados pela interposição de recursos por parte doutros arguidos, sempre seria de não admitir a revista interposta tendo em atenção que haveria uma renúncia tácita ao recurso por parte dos recorrentes, dedutível do facto de, contra o que impõe o art.o 615o n.o 4 do CPC, se não o próprio art.o 379o n.o 2 do CPP – pois que ambos determinam a invocação de nulidades de sentença em recurso – terem optado por arguir o que consideraram ser uma nulidade por omissão de pronúncia em reclamação perante o próprio TRL. E, desse modo, com apoio em entendimento sustentado em acórdãos das secções cíveis, v. g. nos de 17.12.2020 e de 26.1.2021 - Proc. n.o 103/06.8TBMNC.G1.S1 – «Por outro lado, a apresentação de reclamação do acórdão da Relação de Guimarães de 10-07-2019, em lugar da interposição de recurso de revista, poderia também ser considerada como renúncia tácita ao direito de recorrer com fundamento na nulidade invocada e, por isso, espoletando a assim denominada preclusão lógica.» –, de 13.9.2011 – Proc. n.o 649/05.5TBLLE.E1.S1 – «Estipulando o n.o 3 do art. 668.o do CPC [de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.o 329-A/95], que devem, em caso de recurso, ser as nulidades arguidas nesse recurso, a sua dedução em requerimento dirigido ao tribunal que as tenha praticado implica a renúncia tácita ao direito de recorrer, nos termos do art. 681.o, n.os 1, 2 e 3, do CPC [de 1961]» – e de 16.10.2012 - Proc. n.o 1282/05.7TBOVR-M.C1.P1.S1 – «A simples arguição de nulidades perante o tribunal recorrido implica a renúncia ao direito de recorrer da decisão arguida de nula ou a aceitação da mesma, nos termos do art. 681.o, n.os 1 a 3, do CPC [de 1961].».


Posto isto, considera-se ter de naufragar derradeiramente a admissibilidade do recurso.


III-Decisão


Pelo exposto, não se admite o recurso de revista excepcional nos termos do arto 672o no1 do CPC.


Taxa de justiça a cargo de cada um dos recorrentes, que se fixa em 5 Uc por cada um- ex vi do previsto na TABELA III (a que se referem os n.os 7 e 9 do artigo 8.o do Regulamento de custas processuais)


Lisboa, 9 de Março 2023


(texto revisto pelo relator e processado por meios informáticos ex vi do arto 94o. no2 do CPP, sendo assinado digitalmente na plataforma Citius)


Os Juizes Conselheiros


Agostinho Torres (relator)


Helena Moniz (1a adjunta)


António Gama (2o adjunto)

_________________________________________________

1. Negritos nossos para melhor identificação dos aspectos recursivos relevantes no presente recurso de revista excepcional para o STJ.↩︎

2. Prazo aplicável também no caso de o procedimento criminal respeitar a pessoa coletiva, em conformidade com o que se prevê no artigo 118o, no 3 do Código Penal.↩︎

3. Com este alcance, vd., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 05.01.2011 (no processo no 110/98.2IDAVR.P1, Relator: Desembargador Ernesto Nascimento) e de 19.02.2014 (no processo no 1048/08.2TAVFR.P4, Relatora: Desembargadora Élia São Pedro), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, bem como a jurisprudência nos mesmos referenciada.↩︎

4. A acusação (refa Citius ...), deduzida em 11.02.2017, foi notificada aos arguidos AA e BB em 13.07.2017 e ao arguido CC em 17.08.2017.↩︎

5. No processo no 4171/20.1T8LSB.L1-2, Relatora: Desembargadora Gabriela Cunha Rodrigues, acessível em www.dgsi.pt.↩︎

6. Recorde-se que, em conformidade com a previsão constante do artigo 124o, no 1 do Código de Processo Penal, constituem objeto “da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência de crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis”.↩︎

7. Paulo de Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina, 2014, pág. 173.↩︎

8. Pode haver condenação sem julgamento com condenações de preceito por falta de contestação, ou por falta de oposição a reversão, etc...↩︎

9. Exceção ao processo sumaríssimo (artigos 392o e seguintes do Código de Processo Penal), que envolve a adesão do arguido à pena proposta, e à figura da suspensão provisória do processo (artigo 281o do Código de Processo Penal), que não determinando uma condenação impõe, ou pode impor, injunções e regras de conduta.↩︎

10. Vd., com interesse no tratamento da questão, a dissertação de mestrado apresentada por Joaquim Luís Nunes Malafaia Bastos Teixeira, “Os Efeitos das Decisões Judiciais no Processo Penal”, cuja exposição recuperamos no texto deste acórdão e que pode ser consultada em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/50184/1/Joaquim%20Lu%C3%ADs%20Nunes%20Malafaia%20Bastos%20Teixeira.pdf↩︎

11. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Editorial Verbo, 4.a edição, 2008, pág. 137. Sobre a legalidade da prova, Sandra Oliveira e Silva, Legalidade da Prova e Provas Proibidas, RPCC, Ano 21, n.o 1, págs. 7 e seguintes.↩︎

12. Paulo de Sousa Mendes, As proibições de prova no processo penal, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 133.↩︎

13. Paulo de Sousa Mendes, Ob. e loc. cit.↩︎

14. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ... págs. 193 e 194.↩︎

15. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, págs. 48/9.↩︎

16. Neste sentido, Joana Aguiar e Silva, “A Prática Judiciária entre o Direito e Literatura”, Almedina, pág. 37 e 38, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ..., pág. 141, Maria Clara Calheiros, A Construção Retórica do Processo Penal, in Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por Ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, pág. 363, Castanheira Neves, Ob. cit., pág. 48/9. “O ideal de verdade ao nível da ciência jurídico-penal é isso mesmo, um ideal impossível de se cumprir na prática. Tal deriva ... das condições contextuais que acompanham e estruturam o desenvolvimento concretizador do direito penal, ou seja, que se expressam no âmbito do direito processual penal. Face à inexistência de alternativas a este estado de coisas, teremos naturalmente de aceitar que no fundo a verdade do direito penal é uma verdade contextualizada, que pode ou não coincidir com outro tipo de verdades ou mesmo a ideia de verdade presente no seu escopo”, Fernando Conde Monteiro, “O problema da verdade em direito processual penal (Considerações Epistemológicas)”, in Que Futuro Para o Direito Processual Penal, Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por Ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, pág. 331.↩︎

17. Disponível em www.dgsi.pt – processo 2/15.2IFLSB-D.L1-5.↩︎

18. Cf. António Carlos dos Santos, “Sobre a «fraude carrossel» em IVA: nem tudo que luz é oiro”, Vinte anos de Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Coimbra: Almedina, p. 57 e ss.↩︎

19. Cf. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais – Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Almedina, 2021, págs. 107-110.↩︎

20. No processo no 0412101, Relator: Desembargador Ângelo Morais, acessível em www.dgsi.pt.↩︎

21. No processo no 43/07.3IDPRT.P1, Relatora: Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, acessível em www.dgsi.pt↩︎

22. Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 304.↩︎

23. Ainda que, não obstante, a apreciação preliminar sumária da formação não condicione a admissão do recurso pela Secção criminal, pois não interfere com a decisão sobre a (ir)recorribilidade do acórdão da Relação. Não vincula a Secção criminal sobre tal decisão, da recorribilidade do acórdão da Relação, que só à secção criminal cumpre proferir (acórdão do STJ, de 12-01-2022, Proc. n.o 519/16.8T8LLE.E1.S1)↩︎

24. Com exclusão, portanto, da referência a meios de prova e da factualidade que reveste natureza conclusiva.↩︎

25. Disponível em www.dgsi.pt – processo 2/15.2IFLSB-D.L1-5.↩︎

26. Cf. António Carlos dos Santos, “Sobre a «fraude carrossel» em IVA: nem tudo que luz é oiro”, Vinte anos de Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal: Jornadas Fiscais em Homenagem ao Professor José Guilherme Xavier de Basto, Coimbra: Almedina, p. 57 e ss.↩︎

27. Cf. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais – Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Almedina, 2021, págs. 107-110.↩︎

28. No processo no 0412101, Relator: Desembargador Ângelo Morais, acessível em www.dgsi.pt.↩︎

29. No processo no 43/07.3IDPRT.P1, Relatora: Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, acessível em www.dgsi.pt↩︎

30. Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 304.↩︎

31. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.03.2004, no processo no 03P3566, Relator: Conselheiro Simas Santos, acessível em www.dgsi.pt.↩︎