DECISÃO DE FACTO
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS NÃO PROVADOS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário


1. A decisão de facto que se limite a indicar conclusiva e obscuramente, sob a epígrafe «Factos não provados com relevância para a decisão da causa», que «Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes»: não procede à discriminação dos factos não provados, conforme lhe é exigido pela 1ª parte do nº4 do art.607º do C. P. Civil; não permite interpretar que factos alegados foram considerados não provados, uma vez que não se conhece quais os factos que o Tribunal a quo julgou não relevantes para a decisão jurídica a tomar; exige a anulação da decisão, nos termos do art.662º/2-c) do C. P. Civil, para que o Tribunal a quo discrimine todos os concretos factos que julgou não provados e julgue aqueles indicados pela Relação, caso não os tenha julgado e decidido.
2. A decisão recorrida que se limite a fundamentar conclusivamente que «Os factos não provados resultaram da inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência.», não cumpre as exigências de análise crítica da prova e de exposição da mesma em relação a cada um dos factos não provados exigida no art.607º/3 e 4 do C. P. Civil, o que implicaria a descida do processo para suprir a falta, nos termos do art.662º/2-d) do C. P. Civil, ainda que não se verificasse a circunstância do art.662º/2-c) do C. P. Civil.

Texto Integral


As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:

No presente incidente de habilitação de cessionário, deduzido por AA contra BB, CC, DD, EE e FF, por apenso à ação executiva movida contra estes:

1. O requerente, no seu requerimento inicial, pediu a sua habilitação em lugar do exequente, alegando como fundamento:
1.º- Por contrato de cessão de crédito, outorgado no passado dia 06 de março de 2020, o Requerido FF cedeu ao ora Requerente o crédito vencido sobre BB e mulher, CC e EE e mulher, DD, cujo pagamento foi peticionado no âmbito do processo executivo n.º ...9..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ... (cfr. doc. n.º ... que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais).
2.º- Mediante o referido contrato de cessão de crédito o Requerido cedeu ao Requerente, nos termos do disposto no artigo 577.º, n.º 1 do Código Civil, a totalidade do crédito peticionado no referido processo executivo e, ainda, os juros à taxa legal em vigor (cfr. doc. junto sob o n.º 1).
3.º Assim, com a outorga do contrato de cessão de crédito, transmitiram-se para o Requerente os direitos, garantias e outros acessórios do direito, tanto assim é que o Requerente aceitou a referida cessão sem reservas ou condições (cfr. doc. junto sob o n.º 1).
4.º Acresce que, o Requerente já efetuou, mediante cartas registadas com aviso de receção, enviadas no passado dia 13 de maio de 2020, a interpelação extrajudicial dos executados da cessão do crédito (cfr. docs. n.ºs ..., ..., ... e ... que se juntam e se dão aqui por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais).
5.º Sendo que, embora as referidas cartas registadas com aviso de receção estejam datadas de 14 de maio de 2020, tal deveu-se a um lapso de escrita, que desde já se penitencia, porque as cartas foram efetivamente enviadas no dia 13 de maio de 2020 (cfr. docs. juntos sob os n.ºs 2, 3, 4 e 5).
2. Os executados EE e DD apresentaram contestação, na qual defenderam:
a) Que a cessão de créditos é inválida por ilegitimidade do cedente, tendo em conta: que o cedente não é titular do crédito objeto da cessão, por ter atuado em representação de terceiros, e quando já não estava investido de podres para tal, conforme foi defendido no articulado superveniente para explanar a relação causal subjacente ao título; que o cedente, ao transmitir na cessão um crédito que não lhe pertence, incorre numa venda bens alheios nula; que a cessão não é acompanhada de instrumento de representação (arts.12º a 50º da contestação).
b) Que a cessão de créditos é inválida por nulidade do negócio que lhe serve de base, tendo em conta:
b1) Que a cláusula 4ª do contrato de cessão demonstra que o crédito é cedido para pagamento de uma dívida que o cedente tinha para com o cessionário, o que corresponde a uma dação em cumprimento nos termos do art.837º do C. Civil;
b2) Que, todavia, esta dação é uma farsa, pois: não existem quaisquer mútuos e dívida a extinguir para justificar a cessão; as partes criaram uma aparente realidade assente em mútuos para justificar a cessão e para ficcionar a extinção de obrigações, sem que houvesse qualquer dação em pagamento nem qualquer outro negócio suscetível de transmitir o crédito; o cedente e o cessionário não quiseram verdadeiramente a cessão de créditos, continuando o exequente na convicção que o crédito continua na sua esfera jurídica e o cessionário na consciência que nenhum crédito detém sobre o cedente e que nada foi transmitido para pagamento de dívidas; tudo foi feito para retirar proventos do processo executivo, tentando enganar os embargantes/aqui opoentes e o Tribunal para prejudicar os executados; sendo os atos simulados por cedente e cessionários e o negócio transmissivo nulos nos termos do art.240º/2 do C. Civil, a cessão de créditos também não é válida; a cessão de créditos não passou de um ato formal sem efeitos práticos, não se operando qualquer transmissão uma vez que o cedente nada tinha a transmitir nos termos referidos em a) (arts.51º a 99º da contestação).
c) Que a verdadeira e única finalidade da transmissão foi afetar a posição processual dos executados, tendo em conta: que só ocorreu depois do acórdão da Relação de Guimarães, que ordena a discussão e a produção de prova no que e refere à relação causal subjacente ao título; que estas circunstâncias da relação causal, sendo dadas como assentes, conduzirão à improcedências das pretensões do exequente; que, por estas razões, não é conveniente ao exequente uma intervenção direta enquanto parte; que, com a cessão, o inicial exequente deixa de intervir na qualidade de parte e passa a poder intervir como testemunha; que isto leva a que não seja possível produzir a prova esperada de prestação de depoimento de parte pelo exequente para dele extrair confissão de determinada factualidade; que todos os contornos da cessão indicam que esta foi realizada como instrumento necessário a atingir determinados objetivos, para inquinar o uso normal da ação executiva e da descoberta da verdade, para o exequente se ver afastado da lide e não se ver implicado na aferição dos factos.
3. Foi proferida decisão, que julgou procedente o incidente, nos seguintes termos:
«Nos termos e fundamentos acima expostos, decido:
6.1.- Julgar procedente a presente habilitação de cessionário e, consequentemente, declaro o requerente como sucessor do exequente, prosseguindo ele, nessa posição de exequente nos autos de execução apensos.
6.2.- Custas pelo executado contestante.
6.3.- Notifique.
6.4.- Registe.
6.5.- Informe o AE do teor da presente sentença.».
4. Os requeridos EE e DD interpuseram recurso de apelação, na qual apresentaram as seguintes conclusões:
«I- O Tribunal a quo ao ignorar o conhecimento de questões que foram levadas pelas partes ao seu conhecimento incorre em omissão de pronúncia sindicando a sentença com nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC.
II- Ao ser arguida a invalidade da cessão, ilegitimidade do cedente, da invalidade do negócio subjacente e, ainda, da verdadeira intenção de prejudicar a posição processual dos executados que subjaz à cessão, o Tribunal a quo incorre numa verdadeira nulidade.
III- O cessionário, só pode adquirir do cedente os créditos que este lhe quis transmitir e se for titular deles.
IV- O cessionário não pode adquirir mais créditos do que aqueles que o do cedente era titular.
V- Ao ser arguido que o Exequente transmitiu ao cessionário direitos de que não era titular, o Tribunal a quo tinha que ter conhecido dos factos levados ao seu conhecimento.
VI- Ao ignorar as questões fácticas suscitadas pelos Recorrentes o Tribunal a quo inquinou a sentença com nulidade.
VII- Ao considerar que os requisitos para uma válida cessão de crédito estão preenchidos, em particular a existência de um direito, o Tribunal a quo errou no seu julgamento.
VIII- No contrato de cessão de crédito não é feita a menção de que o cedente intervém na qualidade de representante/procurador, pelo contrário, o Exequente assume a qualidade de cedente a título próprio e pessoal, sendo assim identificado.
IX- O negócio subjacente ao título executivo foi celebrado pelo Exequente em representação de GG e mulher HH. Estes senhores outorgaram procuração a favor do Sr. II, que, por sua vez, substabeleceu no Sr. FF, Exequente nestes autos.
X- Ao existir uma atuação sem poderes de representação, os actos por si praticados são ineficazes.
XI- A cessão do crédito é totalmente inválida e também por essa razão não se operou a transmissão do crédito.
XII- Errou o Tribunal recorrido ao levar ao probatório nenhuma da matéria de facto alegada pelos recorrentes referente à falta de legitimidade do cedente, falta e vícios da vontade, designadamente da simulação e de prejudicar a posição processual dos executados.
XIII- em face da documentação junta no apenso A ( embargos de executado) e de pleno conhecimento do Tribunal recorrido, poderia e deveria desde logo o Tribunal julgar provada a matéria invocada nos pontos: 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 41, 43, 44, 47.
XIV- O caso em apreço a nulidade tem duas dimensões: a primeira delas tem que ver com a própria simulação dos mútuos, que, como se verá, inexistem em clara virtude da inexistência de qualquer meio probatório idóneo. Em segundo lugar, a simulação entre os declarantes- cedente e cessionário- conquanto estes nenhuma cedência querem fazer materialmente, visando, a substituição do cedente tendo em vista adulterar as qualidades processuais em que o cedente se encontra, tendo sido já requerido o seu depoimento de parte.
XV- Inexiste nos autos qualquer prova que sustente a existência do crédito do cessionário sobre o cedente, além das declarações que referem que tal montante havia sido entregue em “liquido”.
XVI- à falta de qualquer documento de suporte desses supostos empréstimos, de qualquer comprovativo de pagamento ou declaração nesse sentido e atenta a total contradição do depoimento do cessionário, não se pode chegar a outra conclusão que não a de que não existiu qualquer empréstimo e que as partes visam enganar os recorrentes com essa suposta divida para visar operar a transmissão do crédito da esfera do cedente.
XVII- inexistindo mútuos entre cessionário e cedente, a própria razão que as partes declaram para a cessão de créditos falece, deixando a nu aquilo que se pretendia realizar que visava apenas e somente alterar a qualidade processual do cedente de parte para eventual testemunha.
XVIII- Cedente e cessionário através de um pacto simulatório ( contrato de cessão de créditos) pretenderam enganar os recorrentes de maneira a alterar a qualidade processual do primeiro.
XIX- Assim, verificando-se que não existe qualquer prova dos supostos mútuos realizados pelo irmão cessionário ao irmão cedente, e que a cessão visava apenas a alteração ou remoção da posição do cedente de parte, terá que se concluir pela inexistência desses concretos mútuos, devendo os seguintes pontos integrar o probatório: 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70,71, 72, 74, 75, 80, 82, 83.
XX- A cessão de créditos tem como objectivo primordial afectar e dificultar a posição processual dos recorrentes, pois repare-se que logo em sede de embargos de executado foi peticionado o depoimento de parte do recorrido cedente, visando extrair do recorrido cedente a sua confissão quanto a muita da matéria alegada em tais articulados.
XXI- Por isso, não pode deixar de se considerar que esta alteração subjectiva que o cedente ensaia realizar não coarcta um meio de defesa e de prova absolutamente essencial por parte dos recorrentes, o qual, como se sabe, remonta desde o primeiro momento em que foram apresentados os embargos de executado.
XXII- A habilitação de cessionário é totalmente desfavorável aos recorrentes, não podendo deixar de ser vista como uma estratégia que visa tornar mais difícil a posição dos recorrentes no processo, porquanto é totalmente diferente a prestação do depoimento de parte pelo recorrido cedente do que a prestação de depoimento na qualidade ed testemunha, tanto ao nível da autorresponsabilização do cedente, como o peso do Tribunal e da audiência em que existe uma deliberada confrontação entre a parte e o Tribunal de molde a perceber e percepcionar qual a segurança desde depoimento perante os factos desfavoráveis e questões que lhe forem apresentadas e que visam extrair a confissão.
XXIII- Além de que se verifica que essa substituição visa colocar no lugar de parte o cessionário que nada sabe acerca da fonte ou relação subjacente ou causal que motiva a existência do quirófgrafo dado à execução.
XXIV- E recorde-se ainda que a discussão da relação causal subjacente à emissão do quirógrafo foi ordenada pelo Tribunal da Relação de Guimarães em Acordão proferido ao abrigo apenso de embargos de executado, pelo que, admitir-se a habilitação do cessionário não só coarcta intoleravelmente um meio de prova dos recorrentes, tornando mais difícil a sua posição no processo, mas também contorna inaceitavelmente a própria decisão do Tribunal Superior que revogou a sentença primitivamente proferida precisamente com base no esclarecimento da relação causal.
XXV- Sabendo concretamente as consequências do pedido de depoimento de parte e as suas consequências, não é inocente que desde logo se tenha engendrado o plano de cedência do suposto crédito, a qual ocorreu cerca de 8 dias após a apresentação dos embargos de executado por banda dos recorrentes, tendo sido requerido o incidente de habilitação apenas após a prolação do Acórdão que revogou a douta sentença recorrida.
XXVI- Assim, face à análise cronológica e documental dos autos terá que se considerar provada a seguinte matéria invocada na contestação:102. 103, 104, 105, 106, 107, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120.
XXVII- Consequentemente deverão ser julgados como não provados os pontos 1, 2 e 3 constantes no probatório da sentença recorrida.
XXVIII- Os documentos juntos aos autos não foram devidamente apreciados, nem há uma fundamentação coerente dos mesmos, porquanto estes só provam, efectivamente que existiu uma cessão inválida.
XXIX- A sentença proferida violou os artigos 240.º, 837.º, 579.º, 577.º, ambos do Código Civil e 615.º do CPC.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO,
Se requer muito respeitosamente a V/ Exas. que julgue a apelação totalmente procedente e, em consequência, revogue a sentença proferida, substituindo-a por outra que não admita a habilitação de cessionário, fazendo, assim, vossas excelências a inteira e habitual JUSTIÇA!».

5. O requerente respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«I. O recurso apresentado pelos Recorrentes deve, desde logo, ser rejeitado, uma vez que este não cumpriu o ónus constante no artigo 640.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.
II. Os Recorrentes não indicam os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, nem sequer indicam em relação a cada um deles a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto que pretendem impugnar nas conclusões do recurso.
III. Não é despiciendo dar anotar que na interpretação ao artigo 640.º do Código de Processo Civil deve evitar-se uma abordagem excessivamente formalista e intransigente, modelando os aspetos formais deste artigo de acordo com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
IV. Contudo, com o devido respeito, não se pode demonstrar cumprido o ónus de identificação dos concretos meios probatórios ou de gravação que impunham decisão diferente sob a matéria de facto.
V. É que, os Recorrentes não indicam os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, nem sequer indicam em relação a cada um deles a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto que pretendem impugnar nas conclusões do recurso, quer nas motivações de recurso, quer nas conclusões de recurso, os Recorrentes limitam-se a referenciar genericamente a documentação junta no apenso A – conclusão XIII – ou a remeter para os documentos juntos aos autos – conclusão XXVIII –, sem qualquer apreciação crítica ou indicação dos factos que se encontram incorretamente julgados face àqueles documentos.
VI. Quer isto dizer, para o que aqui importa, na impugnação da matéria de facto com base na prova documental e em provas gravadas, deviam os Recorrentes ter identificado os concretos documentos e indicar os depoimentos em que fundam o seu entendimento, indicando com exatidão os documentos e as passagens da gravação em que baseiam o seu recurso, o que não sucedeu no caso em apreço, visto que os Recorrentes apenas se limitaram a referenciar genericamente a documentação junta aos autos, não procedendo à indicação dos depoimentos e das concretas passagens em que fundam a sua discordância com a decisão do Meritíssimo Juiz a quo.
VII. Pelo exposto, os Recorrentes não cumpriram o ónus constante do artigo 640.º do CPC, devendo, assim, o recurso ser totalmente rejeitado.

MERAMENTE À CAUTELA, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA,

VIII. Em primeiro lugar, o Meritíssimo Juiz a quo decidiu corretamente e não incorreu em qualquer erro de julgamento da matéria de facto ou de direito, não merecendo a decisão recorrida qualquer tipo de censura.
IX. Na motivação da decisão sobre a matéria de facto e de direito o Meritíssimo Juiz a quo explicou de forma suficiente e inequívoca o motivo pelo qual improcederam as exceções de ilegitimidade, invalidade da cessão e de não se encontrar afetada a posição processual dos aqui Recorrentes.
X. A cessação de crédito é definida pelo qual se transmite a terceiro uma parte ou a totalidade de um crédito, independentemente do consentimento do devedor – cfr. artigo 577.º do Código Civil e opera, em termos processuais, através da modificação subjetiva pela intervenção de novas partes, a qual, no caso em apreço, se encontra expressamente prevista no artigo 356.º do Código de Processo Civil.
XI. Nas palavras do ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA, processo n.º 1898/18.1T8PTM.E1, datado de 07 de novembro de 2019, disponível em www.dgsi.pt: “Das disposições legais acabadas de transcrever decorre, em primeiro lugar, que, o incidente de habilitação de adquirente ou cessionário visa, tão só, produzir modificação nos sujeitos da lide (modificação subjetiva, como a designam os arts. 261.º e 262.º, al. a), do Código de Processo Civil). Essa modificação opera-se colocando o adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio no lugar e na posição processual que o cedente ocupava no processo, para que a causa prossiga entre os atuais titulares da relação jurídica controvertida. O habilitado, sucedendo na posição processual do cedente, passa a exercer os mesmos direitos e fica sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que àquele competiam, sem interferir com o objeto da causa (iii). Produz, deste modo, efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objeto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir (iv).” [Sublinhado nosso].
XII. E, como aponta o ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, processo n.º 4490/16.1T8GMR-A.G1, datado de 24 de abril de 2019, disponível em www.dgsi.pt “atentas as finalidades prosseguidas pelo incidente de habilitação, que como se disse, se reconduzem a efeitos meramente processuais, na medida em que visa tão-somente, produzir a modificação subjetiva dos sujeitos em determinada lide pendente, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objeto daquela, tal como é configurado pelo pedido e causa de pedir”, não comportando, por isso, neste incidente processual, a discussão e decisão sobre o direito que constitui o próprio objeto da causa.
XIII. Assim, muito bem andou a sentença recorrida ao indeferir a matéria de exceção alegada pelos Recorrentes.
XIV. Sendo certo que, os Recorrentes também não alegaram, nem provaram, em que termos é que a cessão de crédito foi um meio para, alegadamente, os colocar numa posição processual mais difícil.
XV. O Recorrido e o senhor FF somente utilizaram uma faculdade legalmente tipificada para resolver o facto do aqui Recorrido ser credor daquele há muitos anos e, posteriormente, deram cumprimento à obrigação de comunicação ao devedor da cessão de créditos operada, fazendo-o extrajudicialmente e judicialmente com o presente incidente. Tudo conforme deixaram devidamente documentado com os documentos n.ºs ... a 5 do incidente de habilitação de cessionário.
XVI. A cessão de créditos não vai invalidar ou tornar desnecessária a discussão e produção de prova no que à relação causal subjacente ao título executivo diz respeito, sendo certo que, o senhor FF continuará sempre a intervir nestes autos, ainda que na qualidade de testemunha, cujo depoimento está sujeito ao crivo da livre apreciação da prova pelo Meritíssimo Juiz.
XVII. Com efeito, também neste segmento a sentença recorrida não merece qualquer censura, julgando corretamente que a cessão do crédito não causa qualquer perturbação ao direito de defesa dos Recorrentes.
XVIII. Assim sendo, o Meritíssimo Juiz a quo decidiu corretamente, apreciando devidamente toda a prova junta, examinada e produzida na sua globalidade nos presentes autos.
XIX. Assim sendo, a sentença recorrida não merece qualquer censura quanto à matéria de facto e de direito, muito menos enferma de qualquer vício ou nulidade.
XX. Pelo exposto, a douta decisão proferida terá de se manter, por inexistir qualquer nulidade, erro de julgamento de facto ou de direito.

NESTES TERMOS, DEVE O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO SER JULGADO TOTALMENTE IMPROCEDENTE E MANTER-SE INALTERADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA.
ASSIM FARÃO V.EX.AS INTEIRA JUSTIÇA.».

6. O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, em separado e com efeito devolutivo.
7. Subido o processo a este Tribunal da Relação nos próprios autos, determinou-se a descida para fixar o valor processual, tendo após, o Tribunal a quo, a 09.12.2022, fixado o valor da causa em € 284 212,31 euros.
8. Subido o processo, novamente, a esta Relação, por despacho de 04.02.2023 foram convidados os recorrentes, querendo, a cumprirem o contraditório quanto à questão da rejeição do recurso, suscitada pelo recorrido na sua resposta de 12.07.2022, nos termos do art.655º/2 do CPC.
9. Os recorrentes defenderam que cumpriram os ónus do art.640º do C. P. Civil, pois não tiveram nada a sindicar quanto aos factos provados, mas pretenderam o aditamento de factos novos.
10. A 06.04.2023 proferiu-se despacho de admissão de recurso com efeito devolutivo e com subida nos próprios autos e de inscrição do processo em tabela, no qual se considerou também que «A apresentação de impugnação à matéria de facto sem o cumprimento dos ónus do art.640º do CPC pode determinar a rejeição da apreciação desta impugnação mas não determina a rejeição do recurso de apelação.  A apreciação da aceitação ou da rejeição da apreciação da impugnação da matéria de facto, face ao cotejo com as exigências do art.640º do CPC, far-se-á no próprio acórdão.».
11. Submeteu-se o processo à conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.

Definem-se como questões a decidir:

1. Oficiosamente: se a decisão recorrida do Tribunal a quo, face ao seu conteúdo, confrontado com o objeto do recurso referido em 2 infra e com o regime do art.662º/2-c) e d) do C. P. Civil, permite ou não permite a apreciação do objeto do recurso e as suas consequências.
2. Em relação às questões suscitadas, caso possam ser conhecidas, importa apreciar:
2.1. Se a decisão recorrida incorreu em nulidade por não conhecer questões invocadas, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil (conclusões I a VI).
2.2. Se, em relação à matéria de facto da sentença, e face a 3 infra:
a) Se devem ser aditados à matéria de facto provada os factos alegados pelos réus: nos arts.16º a 21º, 23º a 27º, 30º a 34º, 37º e 38º, 41º, 43º e 44º, 47º, nos arts.59º e 60º, 62º a 72º, 74º e 75º, 80º, 82º e 83º e nos arts.102º a 107º, 109º a 120º da contestação (conclusões XII a XIX, XXVI).
b) Se devem ser julgados não provados os factos provados em 1, 2 e 3 da sentença recorrida (conclusões XXVII a XXVIII).
2.3. Se a sentença errou por não apreciar se o cedente tem ou não o direito cedido (conclusões VII a XI) e se o cedente e o cessionário simularam o ato para afetar a posição processual dos recorrentes (conclusões XX a XXV).

III. Fundamentação:

1. Decisão de facto da sentença recorrida:

«4. - Fundamentação de facto:
4.1.- Factos provados com relevância para a decisão da causa:
1.- Por contrato de cessão de crédito, outorgado no passado dia 06 de março de 2020, o Requerido FF cedeu ao ora Requerente o crédito em discussão nos autos de execução n.º 7891/19...., que correm seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ..., conforme documento n.º ... junto com o requerimento inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- Com a outorga do contrato de cessão de crédito, transmitiram-se para o Requerente os direitos, garantias e outros acessórios do direito, tanto assim é que o Requerente aceitou a referida cessão sem reservas ou condições.
3.- O exequente foi devidamente notificado dessa cessão de créditos, conforme documentos n.ºs ..., ..., ... e ... juntos com o requerimento inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.2.- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes.
4.3.- Convicção do tribunal:
Para além dos factos firmados pelo acordo das partes, o tribunal formou a sua convicção no teor do contrato de cessão de créditos e missivas juntas com o requerimento inicial.
O depoimento de parte do requerente e do exequente FF e os depoimentos das testemunhas JJ e KK forma absolutamente irrelevantes para o apuramento dos factos controvertidos porquanto nada de relevante acrescentaram ao teor dos documentos juntos com o requerimento inicial.
Os factos não provados resultaram da inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência.».

2. Apreciação do objeto do recurso:

2.1. Da questão prévia e oficiosa identificada em II-1. supra:

Importa examinar a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo (transcrita em III-1 supra), em confronto com o objeto da defesa dos oponentes /executados (sintetizado no relatório de I-2 supra) e com o objeto de recurso (em que é pedido, nomeadamente, o aditamento aos factos provados de matéria alegada como fundamento de cada uma das três questões suscitadas na contestação e referidas em III-2-a), b) e c) supra).

A modificação da decisão de facto pela Relação, para além do regime do art.640º do C. P. Civil para a impugnação dos factos, encontra-se regulada no art.662º do C. P. Civil, sob a epígrafe de «Modificabilidade da decisão de facto», que prevê:

«1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…)
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
3 - Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma: (…)
b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.».
Ora, examinando a decisão de facto (em relação à qual os recorrentes entenderam não terem sido decididos factos alegados), verifica-se que esta padece de obscuridades e omissões.
Por um lado, no que se refere à identificação concreta dos factos julgados não provados pelo Tribunal a quo, verifica-se:
a) A decisão de facto não identificou em 4.2. os factos concretos alegados pelo oponente que concretamente julgou não provados, limitando-se a indicar conclusiva e obscuramente «Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes», sem proceder à discriminação dos factos não provados, conforme lhe é exigido pela 1ª parte do nº4 do art.607º do C. P. Civil.
b) Não é possível interpretar que todos os factos alegados e não constantes da decisão de facto provada foram considerados não provados, uma vez: que a indicação de factos não provados foi indicada sob a epígrafe de «Factos não provados com relevância para a decisão da causa», sem que se conheça quais os factos que o Tribunal a quo julgou não relevantes para a decisão jurídica a tomar; que, ainda que se pudesse considerar que o Tribunal a quo, implicitamente, desconsiderou a matéria respeitante ao direito do cedente e à oneração da defesa dos executados/oponentes (face à fundamentação expressa nos últimos 5 parágrafos da fundamentação de 5.2. supra), esta consideração não se estenderia aos factos alegados como fundamento da simulação absoluta de declarações realizadas pelas partes no ato de cedência, nos termos do art.240º do C. Civil, com base na qual os oponentes invocaram a invalidade do ato de cedência, uma vez que a simulação (que corresponde a um vício da vontade gerador da nulidade de declarações negociais) não foi direta e expressamente apreciada na decisão recorrida.
Ora, esta falta exige a anulação da decisão, nos termos do art.662º/2-c) do C. P. Civil, para que o Tribunal a quo: discrimine todos os concretos factos que julgou não provados em 4.2., por este juízo não poder ser realizado nem suprido por este Tribunal da Relação; julgue e decida os factos que fundamentaram a arguição da simulação de declarações da cessão de créditos, realizada nos termos do art.240º do C. Civil, caso não os tenha julgado e decidido, por estes poderem ser relevantes de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito, face ao regime dos arts.240º ss do C. Civil e do art.356º do C. P Civil.
Por outro lado, examinando a decisão recorrida, no que se refere à fundamentação dos factos não provados, verifica-se que esta se limitou a referir conclusivamente que «Os factos não provados resultaram da inexistência de qualquer prova quanto à sua ocorrência.», sem cumprimento das exigências de análise crítica da prova e exposição da mesma em relação a cada um dos factos não provados, que lhe cabe realizar, nos termos do art.607º/3 e 4 do C. P. Civil.
Este défice de fundamentação exigiria a descida do processo para suprir a falta, nos termos do art.662º/2-d) do C. P. Civil, ainda que não se verificasse a circunstância do art.662º/2-c) do C. P. Civil.
Desta forma, deve ser anulada a decisão, para que o Tribunal de 1ª instância: discrimine cada um dos factos que julgou não provados e apresente fundamentação expressa sobre a análise crítica da prova que suportou esse juízo; indique quais os factos que julgou não relevantes para julgar e decidir, de acordo com todas as soluções plausíveis das questões de direito; julgue e decida, caso não tenha procedido a este julgamento e decisão, os factos alegados na contestação como fundamento da simulação de negócio da cessão de créditos.

2.2. Das questões suscitadas identificadas em III-2 supra:

As questões suscitadas no recurso ficam prejudicadas face à anulação da decisão determinada em III-2.1. supra.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes Desembargadoras da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em anular a decisão recorrida para que o Tribunal a quo:

a) Discrimine cada um dos factos que julgou não provados e apresente fundamentação expressa sobre a análise crítica da prova que suportou esse juízo e decisão.
b) Indique quais os factos que julgou não relevantes para julgar e decidir (de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito).
c) Julgue e decida, caso não tenha procedido a este julgamento e decisão, os factos alegados na contestação como fundamento da simulação de negócio da cessão.

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A taxa de justiça das custas da apelação, face ao decretamento oficioso de anulação da decisão recorrida, devem ser suportadas pelo recorrente e pelo recorrido, de acordo com os impulsos processuais do recurso e da resposta, nos termos do art.530º/1 do C. P. Civil, com dispensa de custas de parte.
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Guimarães, 11 de maio de 2023
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra M. Viana P. Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade