ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
INDEFERIMENTO
Sumário


I - A imparcialidade do juiz, inerente ao ato de julgar, é pressuposto de uma decisão justa, essencial à confiança pública na administração da justiça e constitui um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais como um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo.
II - Ainda que as questões colocadas num recurso atribuído a Juiz Desembargador amigo de longa data do mandatário do arguido pudessem ser aferidas por aquele de forma objectivamente imparcial, reta e justa, tal poderá constituir, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a proferir e, nessa mesma medida, desencadear desconfiança no sistema da justiça, globalmente considerado.
III - Assim, a decisão de recurso atribuído a Juiz Desembargador amigo de longa data e mandatário do arguido pode, fundadamente, dar azo a suspeita, perante o cidadão médio, representativo da comunidade, de que poderá aquele deixar de ser imparcial e qualquer intervenção do Sr juiz peticionante em processo em que pontue o visado sujeito processual será sempre, face às aparências que habitam comummente no imaginário habitual da comunidade, susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância.
IV - Constitui por isso, tal relação de amizade, motivo para concessão de escusa de intervenção no recurso por parte do Sr Juiz a quem o mesmo foi atribuído.

Texto Integral



Proc.o no 9/20.8GEPLM.E1-A.S1


[Incidente de escusa: Juiz Desembargador AA ]


Em Recurso Interposto pelo MP para o TRE ( origem:Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Central Criminal de ... – Juiz ...) distribuído ao Juiz Relator: Desembargador AA.


Dr BB, Advogado, portador da Cédula Profissional no ..., Mandatário de CC, arguido nos autos.


*


Acordam os Juízes em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça- 5a Secção Criminal

I. O Pedido de escusa


O Exmo Sr Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora, Dr AA, veio solicitar, ao abrigo do disposto no artigo 43.0, n.0s 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, que este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) o escuse de intervir no processo no 9/20.8GEPLMEl, nos termos e com os fundamentos seguintes:


O processo supra referenciado respeita a recurso interposto pelo MO P.O onde figura como mandatário do arguido o Exmo. Sr. Dr. BB.


O requerente e este são reciprocamente amigos desde há mais de vinte anos a esta parte. Decorrente dessa amizade o requerente é visita de casa do Exmo. Sr. Dr. José Barradas, e este visita da casa do requerente, sendo que integram ambos o mesmo círculo de amizades e convivem, por esse motivo, de forma frequente, em acontecimentos de natureza social, designadamente em jantares, festas de aniversário, bem como em outros eventos de cariz público, nos quais também tomam parte outras pessoas do círculo de amigos do Requerente e do Exmo. Sr. Dr. BB, que assim estão conhecedores das relações de convivência existentes entre o requerente e o Exmo. Sr. Dr. José Barradas.


Acresce, ainda, que em situação em que o requerente necessitou de resolver aspetos relacionados com a aquisição de um imóvel e inerentes formalidades legais a cumprir, recorreu aos serviços e apoio técnico do referido Ilustre Advogado no exercício da sua atividade profissional.


A imparcialidade do juiz, inerente ao ato de julgar e pressuposto de uma decisão justa, é essencial à confiança pública na administração da justiça e é "um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais, um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental" (artigo 6.0, SI, da CEDH e artigo 14.0, n.0 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).


Nos termos do disposto nos n.0s 1, 2 e 4 do artigo 43. 0 do CPP, "[o] juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir " quando "correr o risco de [a sua intervenção]ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


Conforme se escreveu no acórdão do STJ de 6 de Julho de 2005 (CJ, Acs. STJ, XIII, II, 236) «os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, "sérios" e "graves". (...) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (...) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade. ».


O ora requerente sempre pautou a sua conduta profissional pelos valores da retidão, isenção, objetividade, imparcialidade e justiça sendo que, in casu, face à situação existente e atrás descrita, junto da opinião pública, a sua intervenção, tendo até em atenção todo o constante escrutínio que se vem fazendo relativamente à atividade dos tribunais, pode causar fundada dúvida sobre a sua imparcialidade.


Os factos acima relatados, não afetando embora a capacidade e sentimento do signatário para apreciar e decidir as questões colocadas no indicado recurso de uma forma imparcial, reta, justa e objetiva, podem constituir, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a proferir e, nessa mesma medida, desencadear desconfiança no sistema da justiça, globalmente considerado.


Termos em que, vem pedir a V. Excelências que lhe seja concedida escusa de intervir no indicado processo.”

II. O Mérito do pedido de escusa


2.1- O pedido formulado inscreve-se formalmente na previsão do arto 43o, no4, é tempestivo (arto 44 do CPP) e está devidamente dirigido ao tribunal superior ex vi do arto 45o no1, a) também do mesmo diploma.


Não se vislumbra manifesto fundamento de recusa ou de rejeição liminar.


2.2- Os factos relativos à qualidade e intervenção processual do Exmo Sr Juiz Desembargador estão comprovados nos autos.


Os factos atinentes à forte relação de amizade com o ilustre mandatário do arguido, de longos anos, invocados pelo Sr Juiz Desembargador, não são colocados em causa, sendo por isso aceites como verdadeiros.


Não se alcança a necessidade de diligências de prova complementares necessárias à ponderação do caso e decisão.


2.2- Ao Sr Juiz solicitante da escusa foi atribuído, como relator, o julgamento do recurso interposto pelo MPo contra o arguido defendido por aquele Sr Advogado, Dr BB. O processo crime atém-se na presente fase, a apreciação de recurso interposto pelo Ministério Público, inconformado que ficou com o teor do acórdão condenatório do arguido, na parte da decisão de suspender a execução da pena de três anos e seis meses de prisão aplicada àquele pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo arto 25o al. a) do D.L. no 15/93 de 22/01, com referência às Tabelas I-A e I-B, anexas ao mencionado diploma.


2.3 - A imparcialidade do juiz, inerente ao ato de julgar e pressuposto de uma decisão justa, é essencial à confiança pública na administração da justiça e é "um direito fundamental dos destinatários das decisões judiciais, um dos elementos integrantes e de densificação da garantia do processo equitativo, com a dignidade de direito fundamental" (artigo 6.°, §1, da CEDH e artigo 14.°, n.° 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos).


Nos termos do disposto nos n.°s 1, 2 e 4 do artigo 43.° do CPP, "[o] juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir" quando "correr o risco de [a sua intervenção]ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade ".


Ponto é, aqui, saber se os motivos invocados pelo Sr Juiz Desembargador, ligados à longa relação de amizade e maior intimidade social com o mandatário do arguido constituem motivo sério e grave para gerar suspeita e desconfiança sobre a sua imparcialidade.


A resposta não deixará de ser afirmativa.


«Os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, "sérios" e "graves". (...) Não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (...) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.».- como bem se explicou no já citado acórdão do STJ de 6 de Julho de 2005 (CJ, Acs. STJ, XIII, II, 236).


O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta, pois, na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade


O pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz Desembargador AA respalda-se séria e objectivamente na necessidade de garantir e prevenir que sobre o sistema de justiça, em geral, e em particular no caso para que pede dispensa de intervir, recaia o perigo da suspeição e da desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da decisão, como o mesmo salienta, e bem, no seu requerimento.


Sobre o fundamento da suspeição a que se refere o art.o 43.o do CPP, este Supremo Tribunal tem tido jurisprudência firme cuja aplicação se mostra actualizada, não se justificando repetir os ensinamentos que dela emanam, valendo por todos, a fundamentação efectuada no Ac. do STJ de 13-04-2005, Proc. n.o 05P1138, em www.dgsi.pt.


Efectivamente, ali se escreveu:


A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.


Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.


(...) As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.


(...)


O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias.”.


No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 23-09-2009, Proc. n.o 532/09.5YFLSB; ou o de 27-10-2021, Proc. n.o 69/18.1TREVR-B.S1 ou, mais recentemente, o de 22/09/2022, Proc. n.o 362/19.6GESLV.E1-A.S1 – todos em www.dgsi.pt.


No caso presente, verifica-se que o Senhor Juiz Desembargador intervém como relator num processo em que o sujeito processual arguido é representado por Sr advogado , sendo este e o Sr Juiz reciprocamente amigos desde longa data.


Qualquer intervenção do Sr juiz peticionante em processo em que pontue o visado sujeito processual será sempre, face às aparências que habitam comummente no imaginário habitual da comunidade, susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância do juiz.


Importa preservar uma situação que dissipe todas as dúvidas ou reservas, pois as aparências têm importância, devendo ser concedida a escusa pedida por um Juiz por temer, fundadamente, que sobre si recaia a suspeição de falta de imparcialidade, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida e, através da aceitação do seu pedido de escusa, reforçar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.


«Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição...» – já escrevia Cavaleiro de Ferreira in “Curso de Processo Penal”, I, pp. 237-239.


Ao contrário do que sucede com os impedimentos, cujo elenco é taxativo (art.o 39o do Código de Processo Penal), o legislador utilizou, para as causas geradoras de suspeição e fundamento de recusa, uma fórmula ampla, abrangente de todos os motivos que sejam adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz: o “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.


Diversa era a solução do Código Processo Penal de 1929, que (no seu art.o 112o) descrevia, também de modo exaustivo, os motivos pressupostos da recusa. Esses fundamentos eram as relações de parentesco ou afinidade no quarto grau da linha colateral entre o juiz ou sua mulher e a parte acusadora, o arguido ou o ofendido; relações de interesse várias e relações de inimizade.


Se é certo que a técnica legislativa do actual Código é diversa da utilizada no Código mencionado, também o é que as relações que constituíam motivo de suspeição, na vigência do Código Processo Penal de 1929, continuam a ser motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz no actual Código Processo Penal – Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, I, 2a ed. 1994, pág. 199.


«A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser consideradas objectivamente, não bastando um puro convencimento subjectivo por parte do Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil, ou do próprio juiz na escusa, para se ter por verificada a ocorrência da suspeição».


«É a partir do senso e experiência comuns que tais circunstâncias devem ser ajuizadas» Ac. da Rel. de Coimbra de 10/7/1996 (in Col. Jur., 1996, tomo IV, p. 63). «Para o efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente, o prejudique» – Ac. da Rel. de Évora de 5/3/1996 (in Col. Jur., 1996, tomo II, p. 281).


Ora, sendo certo que não se pode dizer, apesar do circunstancialismo de facto emergente da assinalada amizade que o Mmo Juiz Desembargador não seja objectiva e subjectivamente idóneo a intervir neste processo, no entanto, para apreciar e decidir o pedido de escusa formulado, o que importa crucialmente será determinar se o cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que poderá deixar de ser imparcial, na análise e decisão do recurso interposto face ao circunstancialismo invocado.


Ora, in casu, verificando-se ser de presumir, de forma óbvia, a imparcialidade subjectiva, contudo, afigura-se-nos estar objectivamente justificado o receio suscitado de que a sua intervenção no processo corra o risco de ser considerada suspeita. Por conseguinte, a factualidade narrada supra, indubitavelmente, constitui motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Sr Juiz Desembargador escusante no processo de recurso em causa que lhe foi distribuído.

III. DECISÃO


Consequentemente, acordam os juízes neste STJ em:

a. Conceder a escusa solicitada pelo Senhor Juiz Desembargador AA, nos termos do art.o. 43.o, do CPP, por existir fundamento para tal;

b. Sem custas.


Lisboa, 23 de Fevereiro de 2023


Agostinho Torres (Relator) (texto processado e revisto pelo relator)


Helena Moniz (Adjunta)


António Gama (Adjunto)