LIVRANÇA EM BRANCO
AVALISTA
RELAÇÕES IMEDIATAS
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário


1- A livrança constitui um título cambiário autónomo e abstracto, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no artº 703º, nº 1, c) do C.P.C., incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente.
2 – A obrigação do avalista é uma obrigação de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada, e não da obrigação subjacente (artº 32º da LULL).
3 – Por força do carácter autónomo e abstracto do título de crédito e a função de garantia do aval, o avalista só pode opor-se à execução da sua obrigação se estiver nas relações imediatas com o portador da livrança.
4 – Porém, nesse caso recai sobre ele o ónus de alegar e provar os factos referentes ao preenchimento abusivo do pacto de preenchimento e os meios de defesa oponíveis à relação causal, dada a natureza de excepções que estas assumem.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

1 – RELATÓRIO
A exequente, Montepio Crédito - Instituição Financeira de Crédito, SA, instaurou execução contra o executado AA, apresentando como título executivo uma livrança assinada por este como avalista.
Reagiu este através de embargos de executado, em que pediu a extinção da execução invocando em sua defesa diversos fundamentos entre os quais aqueles que aqui relevam: insuficiência do título executivo, incerteza, inexigibilidade e falta de liquidação da quantia exequenda.
Realizada audiência prévia e proferido despacho saneador, neste foram conhecidas as referidas excepções peremptórias, que foram julgadas improcedentes.
Não se conformando com o decidido, nessa parte em que foi conhecido o mérito da sua defesa por excepção, o embargante/executado veio interpor o presente recurso de apelação.

*
2 – DO RECURSO
Sintetizando as suas alegações de recurso, o embargante apresentou as seguintes conclusões:
“A. Vem o presente recurso interposto do douto despacho Saneador prolatado em 04.04.2022, com referência Citius, n.º 89726022, que julgou improcedentes as exceções invocadas pelo Executado em sede de embargos, nomeadamente de; insuficiência do título executivo; incerteza, inexigibilidade e falta de liquidação da quantia exequenda;
B. No caso dos autos foi dada à execução uma livrança originalmente entregue em “branco”, e que, posteriormente, foi preenchida pela emissora e Exequente “Finicrédito-Instituição Financeira de Crédito, S.A.”, pela importância de 17.332.74 euros, apresentando como subscritora a sociedade Hynolte- Comércio de Móveis Unipessoal Lda., a qual na quadrícula “valor” se pode ler, “relativa ao contrato de locação financeira n.º 6522”, livrança que no seu verso se encontra avalizada pelo ora Recorrente.
C. No Requerimento Executivo - RE, é alegado no seu ponto 3 pela Exequente, ora Recorrida, que tendo o aludido contrato sido incumprido (sem que tenha sido mencionada em que data ocorreu o incumprimento, e que prestações estariam em dívida) a Exequente procedeu à sua resolução (desconhecendo-se em que data a dita resolução produziria efeitos) mediante carta registada com aviso de receção data de 17.03.2017,
D. Já no ponto 4 do RE, “não tendo sido cumpridas estas obrigações pelos executados, a Exequente procedeu ao preenchimento da livrança, no valor de €17.332,74, a título de prestações não pagas, acrescida da mora na devolução da viatura, calculado nos termos contratuais, bem como juros de mora vencidos e outras despesas, cujo vencimento se verificou em 31.10.2018”
E. Novamente não identifica a Exequente no seu RE quais as prestações incumpridas, em que montante importa a mora pela devolução da viatura, ou a que período de juros de mora e outras despesas se refere.
F. Acrescendo ainda ao valor que foi aposto na livrança dada a execução, juros de mora, declarando que nessa data totalizavam 157,66 euros, desconhecendo-se, no entanto, a que período de contagem diriam respeito e a que taxa foram contabilizados pela Recorrida.
G. Sucede que quer do RE, quer posteriormente dos documentos juntos pela Recorrida, não se mostra possível determinar quando se iniciou o incumprimento, que prestações se mostravam em incumprimento, qualquer montante eventualmente devido pela sociedade Executada e pelo Recorrente, como avalista da citada sociedade, ou quais os períodos de contagem de juros utilizados.
H. Sendo pacífico que a alegação de celebração de um contrato de locação financeira não importa, sem mais, a efetiva posse e utilização do bem pela locatária, nem a constituição da obrigação de pagamento das prestações/alugueres e eventuais acréscimos inerentes.
I. Sendo, pois, necessário ainda que do título dado à execução, que terá de ser um título complexo, constituído por vários documentos, comprove ainda a efetividade de tal entrega para utilização do bem, no caso o veículo automóvel em causa.
J. Sem o que também não poderá, desde logo, ser estabelecível a exigibilidade da obrigação.
K. Esta necessidade de prova adicional, que ultrapassa o título, terá de o descaraterizar como título executivo, pois o que na verdade o caracteriza e autonomiza como definidor por si só, do fim e dos limites da execução, é exatamente o conter em si mesmo a identificação dos interesses em conflito, de modo que não seja necessário a produção de qualquer prova adicional sobre a pretensão material exequenda.
L. Não está demonstrado no requerimento executivo o modo como a Exequente apurou a quantia exequenda da livrança dada à execução, nomeadamente quanto capital em dívida e juros nele integrados, no que se reporta tal contrato.
M. Em suma, o título apresentando não contém em si quaisquer elementos ou mecanismos que possibilitam a determinação do montante a liquidar pelo Recorrente devedor, já que a sua determinação teria de fazer-se por recurso a um documento exterior ao título e que, neste circunstancialismo, nem sequer prova a existência da obrigação.
N. Pelo que se entende, contrariamente ao doutamente decidido no despacho Saneador, não se pode mostrar somente a livrança junta aos autos apta a se fazer valer como título executivo, nem articulada com o contrato de locação posteriormente junto, sendo, no nosso humilde entender, manifesta a insuficiência de informação deste quanto ao apuramento da quantia exequenda, capital em dívida, juros remuneratórios e de mora, bem quanto à penalidade pela mora na entrega da viatura.
O. E assim, sendo o título executivo pressuposto e condição necessária a qualquer execução, não podendo existir ação executiva sem título bastante, pelo que a reconhecer-se da manifesta insuficiência do título dado à execução, deve a presente execução ser extinta, por insuficiência de título, o que desde já se requer.
P. O aqui Recorrente não recebeu qualquer tipo de comunicação por banda da Exequente e Recorrida, dando nota de qualquer incumprimento da sociedade locatária, do início da mora, e muito menos a informar que essa tenha procedido à resolução contratual na data alegada.
Q. Para a apresentação à execução de um contrato em que o executado reconheça uma dívida, é necessário que seja precedida de interpelação prévia ao seu pagamento, e no caso de o devedor não proceder ao pagamento, ser a mesma comunicada ao garante, no caso o Recorrente, exigência que se mostra doutrinalmente e jurisprudencialmente assente.
R. Dito de outra forma, a exigibilidade, pressupõe a obrigatória interpelação prévia daqueles, que só assim podem ter conhecimento do incumprimento, do montante exato da dívida, como foi apurada, bem como, posteriormente, da data em que foi o contrato resolvido.
S. A resolução do contrato não opera, automaticamente (ope legis), pelo que se torna indispensável uma declaração de vontade da Exequente mutuante, comunicando aos mutuários Executados a resolução do contrato, comunicações que não se mostram concretamente efetuadas/recebidas, como decorre da documentação junto aos autos,
T. pelo que se tem de considerar, no caso em apreço, que nem o contrato se mostra validamente resolvido, nem a totalidade da dívida se pode considerar exigível, por inexistir interpelação nesse sentido.
U. As missivas enviadas pela Exequente constantes dos documentos 2 a 5 da Contestação bem como os avisos de receção correspondentes nunca chegaram ao conhecimento do Recorrente, razão pelo qual não procedeu ao seu levantamento, sem que do facto lhe possa ser imputada qualquer responsabilidade, ou lhe tenha dado azo.
V. Foi por falta de diligência da Recorrida, que as missivas constantes dos docs. 2 e 4, não foram recebidas pelo Recorrente, facto que só à primeira pode ser imputável, incumprindo assim com o dever a que estava adstrita, e ainda nos termos constantes das “Condições Gerais” no seu ponto 14.º al. a), sob a epigrafe “Resolução do Contrato”.
W. Ora, não se verifica que a resolução relativa ao contrato de locação n.º 6522, tenha sido válida e efetivamente comunicada ao ora Recorrente, e que a mesma fosse ou chegasse ao seu conhecimento.
X. E, não estando o dito contrato de locação validamente resolvido, a dívida exequenda não é exigível, muito menos pelos montantes peticionados, que nem sequer foram concretamente demonstrados como foram calculados.
Y. No caso em apreço, não tendo a Exequente procedido à interpelação dos
Executados/Embargantes, não podia exigir deles o cumprimento da totalidade da dívida, quando muito, existe mera mora, mora que não foi convertida em incumprimento definitivo,
Z. A exigibilidade da obrigação exequenda, enquanto condição da ação executiva, deve estar demonstrada em momento prévio à sua instauração, nomeadamente através de prova complementar, a realizar pelo exequente, quanto à realização da interpelação extrajudicial do devedor.
AA. E por outro lado, os elementos trazidos aos autos pela Exequente têm de se mostrar manifestamente suficientes para o efeito de se apurar, com um grau de segurança exigível, o valor em dívida.
BB. Note-se que não está só em causa a possibilidade de retirar do título executivo o valor em dívida partindo de uma data de incumprimento e do clausulado do próprio contrato.
CC. No caso em apreço, ocorreram vicissitudes posteriores ao alegado incumprimento, nomeadamente a contabilização dos juros nos diversos períodos, mora quanto à entrega da viatura, contabilizações só a Exequente estaria em condições de explicar, aritmeticamente, a forma como se formou a totalidade da dívida.
DD. Isto para dizer que a execução não se basta com a execução da livrança, sendo necessário conjugar tal documento com outros documentos e com a alegação demonstrativa da liquidação da obrigação exequenda tendo em conta todas as vicissitudes ocorridas.
EE. No caso sub judice, para além da falta de elementos que permitem perceber como é que a Exequente alcançou o valor peticionado, acresce que o mesmo (valor) assenta num pressuposto que também não se verifica, a saber: o vencimento antecipado da totalidade dívida.
FF. A Exequente tem o ónus de liquidação da obrigação quanto ao capital a juros, com alegação, em termos compreensíveis, da factualidade e das operações de cálculo que permitissem aos Embargante, em sua defesa, a necessária verificação e ao Tribunal a adequada e cabal sindicância.
GG. Assim, in casu, não cumpriu a Exequente adequadamente esse ónus -especificação dos valores parcelares que considera compreendidos na prestação/alugueres devida de juros vencidos, que de resto não informa em quanto importam, e que os integrou no referido capital em dívida,
HH. tão só alude a que preencheu a livrança pelo montante de 17.332,74, sendo que este montante compreende o somatório das “prestações não pagas, acrescida da mora na devolução da viatura, calculada nos termos contratuais, bem como juros de mora vencidos e outras despesas”, pelo que não se alcança como fixou aquele elevado montante de capital alegadamente em dívida.
II. O que deixou inviabilizada a verificação dos seus cálculos e o respetivo controlo pelo Embargante e mesmo pelo Tribunal, ante a não alegação suficiente dos necessários factos de suporte e das operações de cálculo/contabilização a que procedeu para atingir as ditas quantias.
JJ. O que teria de ter determinado em sede de Saneador a iliquidez da dívida quanto ao valor dos juros peticionados, incluindo os moratórios, e por esta via, a extinção da execução quanto a estes valores.
KK. Informação que por força de razão deveria constar de interpelação prévia para a constituição em incumprimento definitivo, o que, como sabemos, não existe.
LL. Em suma, competia à Exequente fazer a prova, com o máximo rigor e informação, de como apurou, cada uma das verbas que constituíam o total das quantias que reclama em incumprimento, capital, juros vencidos e mora e outras despesas.
MM. Como se disse, ao ora Recorrente, nunca foi possibilitado, em concreto, saber como se formou, e qual o montante efetivamente devido à Exequente e desde quando, nem tem forma de calcular tal liquidação.
NN. Esta falta de liquidação/quantificação é essencial para o cálculo das quantias que a Exequente pode exigir do Recorrente.
OO. A não demonstração da liquidação das alegadas quantias em dívida pela Exequente, dado que se trata de factos constitutivos do seu direito, terá de lhe ser desfavorável, cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o que terá também de acarretar a improcedência da presente execução.
PP. Isto sem olvidar que, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.”
QQ. Efetivamente, com respeito pelos ditames da boa-fé, impunha-se à Exequente que indicasse ao Embargante, com o máximo de rigor possível, não só a formação da quantia exequenda alegadamente em dívida, como, concretamente e com rigor, como a contabilizou.
RR. A boa-fé exigiria, logo que a sociedade locatária deixasse de cumprir com o plano de pagamentos em vigor, que a Exequente devesse avisar/notificar o Embargante para cumprir em lugar desta, de forma a se evitar a surpresa de uma mais larga responsabilidade derivada de uma eventual mora ou do não cumprimento, como de resto agora se verifica.
SS. Sem uma tal liquidação, cujo ónus impendia sobre a aqui Exequente e cuja falta não se mostra imputável ao Avalista, ora Recorrente, não é lícito que se considere este, desde logo, constituído em mora como decorre do preceituado no artigo 805.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código Civil.
TT. Não fazendo sequer sentido o prosseguimento dos embargos com a liquidação em falta, arguindo-se aqui, como em sede de embargos, a incerteza, a iliquidez e a inexigibilidade da alegada dívida cujo pagamento coercivo a Exequente pretende obter por via dos presentes Autos executivos.
UU. E, em consequência, verificadas as exceções invocadas em sede de embargos de executado, da ausência de título bastante para a presente execução; da insuficiência do título executivo; da inexigibilidade da quantia exequenda; da ilíquida obrigação exequenda;
VV. Vindo a Execução a improceder por falta de liquidação dependente de simples cálculo aritmético, nem se encontrar assente em factos que estão abrangidos pela segurança do título executivo, ou que possam ser oficiosamente conhecidos pelo Tribunal.
Normas violadas: n.º 5 do artigo 10.º do CPC, art. 781.º do CC, art.º 724.º, n.º 1, al. ª e), do CCP, art.º 716.º, n.º 1 do CPC.
Termos em que se requer a Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, que deva ser julgada procedente a presente Apelação e, em consequência, se dignem proferir decisão revogatória do douto despacho ora posta em crise, substituindo-a por decisão que considere verificadas as exceções invocadas em “UU”, e em consequência, ser extinta a presente execução, absolvendo-se o recorrente da instância.”
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Pela exequente/recorrida foi apresentada resposta às alegações do recorrente, defendendo que a apelação carece de fundamento, por não existirem as excepções deduzidas pelo embargante em sua defesa, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente e as decisões recorridas confirmadas apos apreciação nesta sede.
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3 – O OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, as questões colocadas à apreciação do tribunal de recurso podem sintetizar-se tal como o apelante as indica: conhecer do decidido em relação às alegadas insuficiência do título executivo, inexigibilidade da quantia exequenda e iliquidez da obrigação exequenda, que o despacho recorrido declarou não se verificarem.
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4 – DOS FACTOS
Uma vez que não está em causa no recurso qualquer discussão sobre os factos, mas tão só questões relativas à aplicação do Direito, relevantes para a decisão do recurso são tão só as vicissitudes processuais a que alude o recorrente, suficientemente explicitadas nas suas conclusões, acima transcritas, e a que faremos referência no decurso da fundamentação quando tal se justifique.
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5 – APRECIANDO E DECIDINDO
A – Quanto ao título executivo
Em primeiro lugar, recordamos que o litígio surge na sequência de um contrato de locação financeira, celebrado entre a empresa Hynolte Comércio Móveis Unipessoal Lda. (entretanto declarada insolvente) e a financiadora agora exequente.
Nesse contrato o ora recorrente foi fiador, e tendo sido solicitada a entrega de uma livrança em branco ficou esta em poder da exequente.
Posteriormente, entendendo que o contrato foi incumprido, por falta de pagamento de rendas vencidas, a exequente decidiu proceder à sua resolução.
Assim, em 17 de Março de 2017, por carta registada com aviso de receção a recorrida declarou proceder à resolução do contrato.
Todavia, a carta enviada ao ora recorrente, que nunca comunicou à ora recorrida qualquer alteração de morada, foi devolvida com a menção “objecto não reclamado”, pelo que a carta de resolução não foi recebida pelo recorrente.
A recorrida preencheu a livrança em branco que tinha em seu poder, e com base nela instaurou a execução contra a qual reage o executado nestes embargos.
No requerimento executivo a recorrida consignou sumariamente a origem da sua pretensão e uma breve exposição dos factos que o fundamentam.
Em face dos dados fornecidos pelos autos, e das razões apresentadas na petição de embargos e na contestação da exequente, o despacho recorrido decidiu pela improcedência das excepções atendendo às características do título subjacente à execução, uma vez que em virtude das características do título executivo, a incorporação, literalidade, autonomia e abstração, era desnecessária a alegação de qualquer relação extra-cartular ou causa de pedir.
Por força do princípio da incorporação, e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem, i.e., princípio da abstração, uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução por si só, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual a obrigação cambiária se abstrai.
É essa a orientação sublinhada pela jurisprudência, em situações análogas (subscrição de livrança como avalista, preenchimento da livrança entregue em branco, ainda que a execução surja no domínio das relações imediatas).
Por ser particularmente esclarecedor, e aplicável às alegações do apelante, citamos o sumário do Ac. da Relação de Coimbra de 15-12-2021, processo n.º 2550/20.3T8SRE-A.C1, relatado por Cristina Neves (in www.dgsi.pt):
“I- A livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos artºs 75º e 76º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstracto, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no artº 703º, nº 1, c) do C.P.C., incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente.
II- Prestado aval ao subscritor da livrança, a obrigação do avalista é uma obrigação de garantia do pagamento da obrigação cambiária avalizada, no seu vencimento, e não da obrigação relação subjacente (artº 32º da LULL), mantendo-se esta obrigação de garantia, mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (artºs 75º e 76º da LULL).
III- Dado o carácter autónomo e abstracto do título de crédito e a função de garantia do aval, só podem os avalistas opor-se à execução desta obrigação, se estiverem nas relações imediatas com o portador da livrança (artº 17º da LULL e 731º do C.P.C.), cabendo-lhes, nesse caso, o ónus de alegar e provar os factos referentes ao preenchimento abusivo do pacto de preenchimento e os meios de defesa oponíveis à relação causal, porque constituindo exceções de direito material (artº 342º, nº 2 do C.C.).”
Por assim ser, afigura-se que não há motivo para discordar do julgamento feito na primeira instância, que acompanhamos por inteiro.
Na verdade, o avalista não pode opor os meios pessoais de defesa do devedor principal contra o portador, e aceitar o contrário seria negar a natureza do aval, como acto cambiário abstracto; ao avalista apenas é lícito opor as excepções derivadas da relação existente entre si e o portador, nos termos gerais do direito cambiário, porque o avalista presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado e não directamente à obrigação causal subjacente.
O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança mas apenas sujeito da relação cambiária estabelecida.
Note-se que o recorrente não alega qualquer facto concreto que consubstancie a prática de preenchimento abusivo por parte da exequente, e o ónus de alegação e prova dessa matéria recaía necessariamente sobre ele.
E nem se pode aceitar a ideia, em que o recorrente procura apoiar-se, de que nas relações imediatas não se aplica o regime da abstração e literalidade.
Com efeito, para sustentar a alegada insuficiência do título executivo, o embargante alegou em suma o seguinte:
- As partes estão no domínio das relações imediatas, pelo que a obrigação cambiária de aval deixará de ser literal e abstracta, passando a relevar o conteúdo da convenção extracartular que se celebrou entre as partes.
- Assim, pode ele enquanto avalista opor à exequente portadora da livrança todas as excepções que ao subscritor seria permitido invocar.
- Nessa conformidade, era indispensável a demonstração pela exequente, nomeadamente com base no contrato de locação financeira subjacente à livrança dada à execução, de qual o montante eventualmente devido por si, como avalista da sociedade subscritora, sendo também inviável o recurso ao simples cálculo aritmético.
- Defende ainda que seria necessária a prova documental da efectiva entrega do veículo automóvel objecto do contrato de locação em causa, sem o que não seria possível estabelecer a exigibilidade da obrigação.
- A obrigação pecuniária não se mostra suscetível de ser determinada por simples cálculo aritmético, pois desconhecem-se as cláusulas constantes do contrato, o que bastaria para obstar à sua força executiva.
- Não está demonstrado no requerimento executivo o modo como a exequente apurou a quantia exequenda da livrança dada à execução, nomeadamente quanto ao capital em dívida e juros nele integrados.
A este respeito, e no seguimento do que expusemos acima, recordamos o que consta da decisão impugnada.
“Na situação dos autos foi dada à execução uma livrança emitida em 17-10-2018 que tem inscrita como data de vencimento 31-10-2018, sendo certo que o requerimento executivo data de 23-01-2019.” (…)
“Deste modo, a livrança não foi oferecida enquanto mero quirógrafo da obrigação, ou seja, enquanto documento probatório da existência da obrigação incorporada no título, mas enquanto título cambiário, de natureza meramente formal.”
“Neste contexto, e tal como impressivamente se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-01-2018 (disponível, como os demais que citaremos, em www.dgsi.pt, neste caso sob Processo n.º 1993/14.6TBPTM-A.E1), estando em causa execução baseada num tal título cambiário, «não tem cabimento falar-se em causa de pedir, pelo menos com o sentido em que é utilizado na ação declarativa, pois trata-se de executar títulos que têm como características a incorporação, literalidade, autonomia e abstração, sendo desnecessária a alegação de qualquer relação extra-cartular ou causa de pedir».”
“Deste modo, é claramente inócua a falta de junção, com o requerimento executivo, do contrato subjacente ou de qualquer outro documento diverso da livrança, assim como seria absolutamente desnecessária a alegação da relação subjacente, o que ainda assim a exequente fez nos seguintes (transcritos) termos:
«1 - A Exequente e a Executada Hynolte Comércio de Móveis Unipessoal, Lda., celebraram um contrato de locação financeira, com o n.º 6522, em 03/09/2010, tendo sido o mesmo fiador pelo Executado AA e gerente.
2 - Como garantia das obrigações assumidas, foi assinada pelos Executados uma livrança em branco, a ser preenchida pela Exequente em caso de incumprimento.
3 - Tendo sido o contrato incumprido, a Exequente procedeu à resolução, mediante carta registada com aviso de receção enviada aos Executados, em 17/03/2017, e exigindo o pagamento das quantias em dívida, no valor de € 8 875,72, assim como a entrega do bem locado.
4 - Não tendo, no entanto, sido cumpridas estas obrigações pelos Executados, a Exequente procedeu então ao preenchimento da livrança, no valor de € 17 332,74, a título de prestações não pagas, acrescida da mora na devolução da viatura, calculado nos termos contratuais, bem como juros de mora vencidos e outras despesas, e cujo vencimento se verificou em 31/10/2018.
5 - Ao valor que consta na livrança, acrescem ainda juros de mora, contabilizados desde a data do seu vencimento, até à presente data, e que se cifram em € 157,66, assim como juros vincendos, à taxa de 4% ao ano, até integral e efectivo pagamento.
6 - Termos em que são os Executados responsáveis pelo montante global de € 17490,40, acrescido de juros de mora, à taxa legal aplicável, até integral e efectivo pagamento. (…)».
Dito isto, não olvidamos que o executado/embargante também alegou, como frisámos, estar no domínio das relações imediatas, pelo que a obrigação cambiária de aval deixará de ser literal e abstrata, sendo-lhe lícito enquanto avalista opor à exequente portadora da livrança todas as exceções que ao subscritor seria permitido invocar.
Ora, estando expressamente admitida a qualidade de avalista (tanto na livrança como no contrato que lhe esteve na génese), importa fazer notar que está jurisprudencialmente estabilizado o entendimento de acordo com o qual o avalista, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento, pode opor ao portador do título a violação de tal pacto, incumbindo-lhe o ónus de alegação e prova dessa violação (entre muitos outros que poderíamos citar, vide, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2020: Processo n.º 2304/14.6YYLSB-A.L1-8).”
“Todavia, essa é uma questão que não contende com a suficiência do título dado em execução, que se impõe afirmar sem quaisquer dúvidas à luz do supra citado artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (para semelhante conclusão em situação de idêntico jaez vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-02-2019: Processo n.º 4242/14.3TBCSC-A.L1-7).”
“Assim sendo, e sem necessidade de outros considerandos, por manifestamente despiciendos, julgo não verificada a invocada insuficiência do título executivo.”
Concordamos com a decisão em apreço, pelo que julgamos improcedente a alegação da falta/insuficiência do título executivo dado à execução.
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B) Quanto à exigibilidade e à liquidez da obrigação
Na sequência do que alegou quanto ao título, o embargante fundamenta ainda o seu recurso, tal como fez na petição de embargos, invocando o que considera ser a incerteza, inexigibilidade e falta de liquidação da obrigação.
A posição do recorrente, quanto a estes pontos, sintetiza-se nas seguintes razões:
- Ele avalista não recebeu qualquer comunicação por parte da exequente sobre o incumprimento da sociedade locatária, o início da mora, e nem sequer a resolução contratual, sendo que a exigibilidade pressupõe a prévia interpelação dos garantes.
- A resolução não pode ser considerada um efeito automático do incumprimento, exigindo-se a respectiva comunicação, por escrito, com prova de recepção.
- No caso, quando muito existe apenas mora, que não foi convertida em incumprimento definitivo, verificando-se por essa via a inexigibilidade da quantia exequenda.
- No requerimento executivo a exequente jamais demonstrou, concretamente e com o necessário rigor, como se formaram as importâncias ali apuradas, nem tal resulta dos documentos juntos com tal requerimento, estando assim impedido de sindicar e confirmar que os cálculos tenham sido efetuados de acordo com as concretas taxas contratuais em vigor nos respetivos períodos de contagem.
- A exequente tem o ónus de liquidação da obrigação quanto ao capital e juros, com alegação, em termos compreensíveis, da factualidade e das operações de cálculo que permitissem a necessária verificação e a adequada e cabal sindicância, o que terá de determinar a iliquidez da dívida quanto ao valor dos juros peticionados, incluindo os moratórios.
- A boa-fé exigiria, logo que a sociedade locatária deixasse de cumprir com o plano de pagamentos em vigor, que a exequente devesse avisar/notificar o embargante para cumprir em lugar desta, de forma a evitar-se a surpresa de uma mais larga responsabilidade derivada de uma eventual mora ou do não cumprimento, como de resto agora se verifica.
- Deste modo, a exequente contribuiu e deu causa por omissão de comportamento para que o embargante ficasse impossibilitado de ficar sub-rogado nos direitos que lhe competiam, pelo pagamento das prestações entretanto vencidas.
- Não podendo a exequente exigir do embargante o pagamento da quantia exequenda, dado o seu desconhecimento acerca do quantitativo das suas responsabilidades como avalista, incorreu aquela em mora do credor.
Examinando as considerações do recorrente que foram expostas, logo se constata a permanência dos equívocos fundamentais antes rejeitados na apreciação da suficiência do título, nomeadamente o que respeita à desnecessidade para a exequente de alegação da relação subjacente e, em consequência, a pretendida explicitação dos cálculos associados à liquidação da obrigação exequenda, bem como o erro sobre a distribuição do ónus da prova, quando o recorrente o faz recair sobre a parte contrária.
Como já ficou dito, a basear-se a defesa do executado numa eventual violação do pacto de preenchimento, cabia-lhe a ele, na qualidade de avalista, o ónus de alegação e prova dessa eventual violação do pacto de preenchimento, sendo certo que nem cumpriu o ónus da respectiva alegação.
Diga-se de passagem que também em relação à resolução operada pela exequente não assiste razão ao embargante. O que resulta dos autos, e o recorrente não contesta, é que a exequente remeteu carta registada com aviso de recepção para a morada do recorrente, aquela que conhecia e constava do contrato, tendo ocorrido a devolução com a menção de não reclamado.
Torna-se desse modo impossível considerar que a falta de recepção dessa correspondência é imputável à exequente. A aceitar-se como boa a posição do recorrente, de que a resolução só seria concretizada pela efectiva recepção da carta, tal circunstância determinaria uma incerteza nas relações jurídicas e no estabelecimento de relações contratuais verdadeiramente incomportável para a ordem jurídica.
Por isso mesmo dispõe o Código Civil, no seu art. 224º, n.º 2, que a declaração não deixa de produzir os seus efeitos em consequência da devolução:
“1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada.
2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.”
Em suma, também no respeitante a esta linha da defesa do embargante acompanhamos as considerações e a decisão do douto despacho recorrido.
A este propósito, das questões relacionadas com o preenchimento concreto da livrança e a eventual interpelação do executado, o despacho em questão começa por citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-04-2018, relator Paulo Amaral, no processo n.º 128/17.8T8ENT-A.E1, in www.dgsi.pt, proferido em situação similar.
Neste foi considerado, no tocante à alegação de preenchimento abusivo e/ou falta de interpelação, o seguinte:
A primeira pergunta que cabe fazer é esta: qual foi o pacto? O que é que as partes combinaram a respeito do preenchimento? Que tempo de vencimento combinaram, que valor combinaram?
Em que é que as livranças não respeitaram o pacto? Quais são as diferenças entre o acordado e o que consta das livranças?
Não se sabe porque os embargantes nada dizem a este respeito.
Por isso, o despacho recorrido está certo quando afirma que não existe uma adequada alegação de excepção por preenchimento abusivo.
Em relação à falta de interpelação do avalista, é certo que tal vem alegado na p.i., mesmo que de uma forma confusa.
Mas para o caso é indiferente uma vez que, como também se nota no despacho recorrido, nenhum comando legal impõe ao credor a prévia interpelação dos devedores cambiários antes de proceder ao preenchimento da letra e porque, também aqui, o executado nada alega sobre uma convenção nesse sentido, isto é, que exigisse tal interpelação.
«Como se nota bem no ac. da Relação de Coimbra, de 6 de Outubro de 2015, “uma tal interpelação prévia do avalista não é reclamada, ao menos expressamente, pela lei cambiária, o que explica que quem sustente uma tal exigência (…) não indique o texto legal em que ela, directa ou indirectamente, se contém”. Na verdade, o título cambiário torna-se completo com o seu preenchimento não estando os requisitos da sua validade intrínseca dependentes do conhecimento anterior pelo devedor do modo como ele se irá completar» (do ac. desta Relação de 25 de Março de 2017).”
(…)
“Assim, a conclusão que se tira é que a dita interpelação prévia não é obrigatória. Não o sendo, em nada fica afectada a execução numa situação em que, como no caso dos autos, o título foi preenchido sem que antes se tivesse comunicado ao avalista o modo como ele o iria ser”.
Também a este respeito (natureza da obrigação do avalista), leia-se o Ac. da Relação de Évora de 07-04-2022, relatora Florbela Lança, no processo n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1, também disponível na mesma base de dados.
E no mesmo sentido converge o Supremo Tribunal de Justiça.
Veja-se o Ac. de 11-10-2022, no processo n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1, relatado por Isaías Pádua (também disponível em www.dgsi.pt), particularmente incisivo nesta matéria.
Ou, na mesma linha, o Ac. proferido no processo nº 475/09.2YFLSB, com data de 08-10-2009, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, disponível na mesma base de dados, e citado nos autos pela embargada:
“Desempenhando a alegação de preenchimento abusivo a função de excepção, por confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução, incumbiria aos recorrentes o ónus da prova correspondente, como repetidamente tem sido afirmado pelo Supremo Tribunal da Justiça (cfr., nomeadamente, os acórdãos de 24 de Maio de 2005, 14 de Dezembro de 2006 ou de 17 de Abril de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 05A1347, 06A2589 e 08A727).”
“Sendo o oponente avalista, incumbe-lhe ainda alegar e provar factos que lhe permitissem invocar o preenchimento abusivo.”
Concluindo, também nesta instância de recurso julgamos infundadas as alegações do recorrente, quanto às pretensas excepções peremptórias, que por isso julgamos improcedentes.
Assim se decide, nos termos do dispositivo que segue.
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6 - DECISÃO
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando as decisões impugnadas.
As custas do recurso impendem sobre o recorrente, dado o seu decaimento (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que este beneficia.
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Évora, 11 de Maio de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier