COVID
ENTREGA JUDICIAL DE IMÓVEL
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
LEI TEMPORÁRIA
Sumário


I - Tendo sido proferida decisão, transitado em julgado, que determinou a suspensão das diligências executivas em ação executiva para entrega de imóvel arrendado, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, aditado pela Lei 13-B/2021 de 4/4 (que aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), deverá tal suspensão manter-se enquanto não existir uma alteração do quadro legal no sentido da cessação de tal medida.
II - Não pode ter-se por certo que já tenha ocorrido o termo dessa “situação excecional” só porque o estado de alerta não foi prorrogado, sendo de ponderar que está em preparação a aprovação da Proposta de Lei n.º 45/XV que se destina a considerar “revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei”.
III – Assim, não podia o Tribunal a quo em decisão posterior, com fundamento na alínea c) do referido preceito, determinar a entrega do imóvel ao exequente, por a tal obstar o caso julgado formado pela decisão referida em I.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Nos autos de execução para entrega de coisa certa, que AA move a BB e CC, veio a exequente, em 21.12.2022 requerer o prosseguimento da execução que se encontrava suspensa na sequência do despacho proferido em 16.12.2021, que determinou a aplicação ao caso sub judice do regime previsto na alínea b) do n.º 7 do art.º 6.º E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, aditado pela Lei 13-B/2021 de 4/4, o qual dispõe que estão suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório - previsto no citado art.º 6.º-E - os atos a realizar em sede de processo executivo relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Sobre esse requerimento da exequente recaiu o despacho de 03.02.2023, que deferiu o requerido, por se entender que nada obsta a que a execução prossiga com a entrega do imóvel, e a fim de ser efetuada esta, autorizou-se «a requisição do auxílio da força pública, na medida do estritamente necessário à efetivação da diligência, ao abrigo do disposto nos arts. 626º, n.º 3, 757º, n.º 4, e 861º, n.º 1 do CPC.»
Inconformados, os executados apelaram do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I- O despacho recorrido, que ordena o prosseguimento da execução e a entrega compulsiva do imóvel, parece-nos manifestamente desadequado e injusto, pelas seguintes razões:
II- Tendo sido interposto recurso, no processo de embargos, da decisão final proferida nesses autos, verifica-se que ainda não foi proferido despacho de admissão do mesmo, nem lhe foi fixado o competente regime de subida, bem como o respectivo efeito, uma vez que foi requerida a fixação de efeito suspensivo.
III- Portanto, no caso de tal recurso vir a ser jugado procedente, ou ainda se lhe for atribuído o efeito suspensivo, conforme peticionado, a execução do despejo passará a ser um facto consumado, sendo o recurso manifestamente inútil, com todos os enormes prejuízos que isso pode representar para os executados e para o seu agregado familiar (mãe do executado e filhos menores).
IV- Acresce, ainda, que a decisão que ordena o prosseguimento coercivo da presente execução, com intervenção da força pública, é manifestamente desadequada, face aos factos verificados, além de não ter sido fixado o efeito suspensivo solicitado pelos executados, através de despacho devidamente fundamentado, ainda que possa vir a ser fixada uma caução para esse efeito.
V- Deve, assim, o presente recurso ser julgado procedente, pelas razões invocadas, e, ainda, por outras que o Tribunal Superior entenda deverem servir de fundamentação, de forma a suprir as eventuais deficiências destas alegações.
Termos em que se requer a modificação da decisão recorrida, nos moldes supra expostos, não devendo a execução prosseguir, por agora.»

A exequente contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se deve ser suspensa a entrega do imóvel dos autos à exequente.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar sãos os contantes do relatório que antecede, que aqui se dão por reproduzidos, havendo ainda a considerar:
1 - A presente execução foi proposta nos termos do art. 626º, n.º 1, do CPC, baseando-se em sentença que condenou os executados nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo procedente a presente acção e consequentemente:
a) Declaro a resolução do contrato de arrendamento relativo ao prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Sesimbra, descrito na conservatória do registo predial de Sesimbra sob o n.º ...56, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ...55.
b) Condeno os Réus CC e BB a entregar à Autora o prédio referido, livre de pessoas e bens.
c) Absolvo a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.
d) Condeno os Réus no pagamento das custas da presente acção.»
2 – Em 16.12.2021 foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, sem prejuízo da oportuna tramitação dos embargos já deduzidos pelos executados, não se autoriza por ora a diligência de entrega do imóvel, cuja realização está suspensa por força do disposto na alínea b) do n.º 7 do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3.»

O DIREITO
No despacho recorrido, com citação de jurisprudência pertinente, afastou-se «o cenário da cessação da vigência do regime do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, aventado pela exequente, desde logo por se tratar de legislação que não foi expressamente revogada, contrariamente ao que sucedeu com a legislação revogada pelo DL n.º 66-A/22, de 30/09.»
Quanto a este ponto não temos muito mais a acrescentar às considerações feitas na decisão recorrida, referindo apenas o recente acórdão desta Relação de 02.03.2023[1], em cujos fundamentos nos revemos, com o seguinte sumário:
«i. O Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30 de Setembro não serve para aferir se o artigo 6º-E aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril à Lei nº 1-A/2020, de 19.3 já caducou em consequência do “evoluir da pandemia”
ii. Tal regime destinou-se a ter vigência temporária, i.e. destinou-se a vigorar “no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”.
iii. Isto significa que decorrida tal “situação excepcional” a lei cessa a sua vigência não dependendo para tanto de ser revogada (cfr. art.º7º, nº1 do Cód. Civil).
iv. Não temos por certo que já tenha ocorrido o termo dessa “situação excepcional” só porque o estado de alerta não foi prorrogado, sendo de ponderar que está na forja a aprovação de uma proposta Lei n.º 45/XV que se destina a considerar” revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei.”.
v. No elenco das Leis que se consideram revogadas, consta precisamente a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (com excepção do seu artigo 5º), sendo propósito do legislador manter vigentes as alíneas b) a e) do n.º 7, bem como do n.º 8 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março para além da entrada em vigor da Lei revogatória o que é, também, revelador de que tal norma se mantém ainda actualmente em vigor;
vi. A manutenção desta medida legislativa não viola os artigos 18º, nº2 e 62º da CRP.»
Entendimento que também foi acolhido, entre outros, no acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2023[2], com o seguinte sumário:
«I – Tendo sido proferido acórdão, transitado em julgado, que determinou a suspensão das diligências executivas em ação executiva para entrega de coisa imóvel arrendada, ao abrigo do art.º 6.º-A, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (que aprovou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), deverá tal suspensão manter-se enquanto não existir uma alteração do quadro legal no sentido da cessação de tal medida.
II – Apesar do fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro de 2022, ainda não se pode considerar verificada tal alteração legislativa, uma vez que continua a estar prevista nessa lei, em artigo correspondente (o art.º 6.º-E, n.º 7, artigo aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04) essa mesma medida, enquanto durar a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, não se podendo considerar que aquele preceito sido revogado ou caducado, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.»
Na decisão recorrida entendeu-se, porém, que nada obstava a que a execução prosseguisse com a entrega do imóvel, argumentando-se o seguinte:
«Assiste assim razão à exequente quando alega que ao presente caso é aplicável a alínea c) do n.º 7 do art. 6º-E, e não a alínea b), o que significa que a suspensão não é automática, sendo decretada pelo tribunal apenas se o executado tomar a iniciativa de alegar e demonstrar que a entrega o colocará em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Deste modo, considerando que os executados não apresentaram qualquer requerimento no sentido de ser suspensa a entrega, nada obsta a que a execução prossiga com a entrega do imóvel, razão pela qual vai ser deferido o requerido.»
Sucede que na decisão proferida em 16.12.2021, não foi autorizada a entrega do imóvel, por se considerar a mesma suspensa, nos termos da alínea b) do n.º 7 do art. 6º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, preceito no qual se dispõe que estão suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório (previsto no citado art. 6º-E), os atos a realizar em sede de processo executivo relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
As partes conformaram-se com tal decisão, pelo que a mesma transitou, formando-se assim caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo, sobre a decisão que não autorizou a entrega do imóvel (art. 620º do CPC).
A força obrigatória do referido caso julgado formal obsta a que a posterior decisão, ora recorrida, decidisse em sentido contrário, considerando aplicável ao caso a alínea c) do nº 7 do art. 6º-E, e determinando o prosseguimento da execução com a entrega do imóvel, por os executados não terem apresentado qualquer requerimento no sentido de ser suspensa a sua entrega.
A aceitar-se a produção de efeitos da decisão recorrida estaríamos perante uma contradição de julgados, o que não pode aceitar-se.
O caso julgado formal que se constituiu com a decisão de 16.12.2021 e que é vinculativo dentro do processo impede a subsistência da decisão recorrida, impondo a sua revogação.
O recurso merece, pois, provimento.
Vencida no recurso, suportará a exequente/recorrida as respetivas custas – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, pelo que se revoga a decisão recorrida, considerando-se suspensas as diligências com vista à entrega do imóvel dos autos.
Custas pela recorrida.

*
Évora,11 de maio de 2023
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

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[1] Proc. 274/12.4TBRMR.E1, in www.dgsi.pt.
[2] Proc. 8834/20.3T8SNT.L1-2, in www.dgsi.pt.