CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Sumário


I- O facto de o tribunal ter apreciado a questão da exceção de caso julgado invocada na contestação, considerando que a mesma não se verifica, não ficou impedido de considerar verificada a exceção de autoridade de caso julgado.
II- O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão).
III- Ao contrário do que acontece com a exceção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir.
IV- A aplicação da exceção de autoridade de caso julgado não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva previsto artigo 20º da CRP. Consiste, pelo contrário, numa garantia de segurança jurídica para a comunidade e de coerência das decisões judiciais, valores contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais.

Texto Integral

Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra

Juízo de Competência Genérica de Condeixa-a-Nova

249/20.0T8CDN.C1

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra:

BB;

CC;

DD;

4ª EE;

5º FF

GG;

7º HH;

II;

 9º JJ;

10º Descendentes incertos dos falecidos CC e de KK, pedindo a condenação solidária destes no pagamento ao autor:

a) do montante de 4.000.000$00 na antiga moeda, o equivalente à quantia de €19.951,91;

b) dos juros de mora vencidos até 1/09/2020 no montante de €20.092,39 e nos vincendos computados sobre o valor de €19.951,91, à taxa de juros de mora das dívidas de natureza civil e até efetivo e integral pagamento;

c) subsidiariamente e sem prescindir a ser declarado nulo o contrato de mútuo identificado na petição inicial, a condenação solidária dos réus a restituir ao autor a quantia de €19.951,91, acrescida de €20.092,39, a título de frutos civis;

d) a condenação solidária dos réus no pagamento de juros de mora desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

e) ainda subsidiariamente e sem prescindir; a condenação solidária dos réus a restituir ao autor a quantia de €19.951,91, com fundamento no enriquecimento sem causa, acrescida de €20.092,53, a título de juros vencidos;

f) a condenação solidária dos réus no pagamento de juros de mora vincendos até integral e efetiva restituição do montante emprestado;

g) a condenação solidária dos réus no pagamento das custas, incluindo as de parte, e demais encargos com o presente processo, em montantes a apurar a final.

Alegou em síntese que em finais de setembro e inicio de outubro de 2005 emprestou verbalmente ao LL o montante de €4.000.000$00, o equivalente a €19.951,91, tendo-se este obrigado a restituir ao autor aquele montante. Por forma a confirmar que recebeu este montante, o LL apôs a sua assinatura num documento designado de declaração.

No dia .../.../2005, o LL faleceu, no estado de viúvo, sem descendentes, nem ascendentes e não tendo deixado testamento. Conforme sentença de habilitação de herdeiros, foram habilitados os réus acima identificados.

O autor sempre julgou que um cheque que o LL lhe entregou em finais do ano de 1998 seria para restituir o dinheiro emprestado, até porque nessa interpelou o LL para que lhe restituísse o dinheiro que lhe tinha emprestado.

Porém, até à presente data, ainda não lhe foi restituído tal dinheiro.

Os réus FF e marido II, DD e esposa EE, CC e BB e esposa HH, JJ e esposa GG contestaram, invocando, entre o mais, a exceção de caso julgado, ao abrigo do disposto nos art.ºs 577.º, nº. 1 al. i), 576.º, nºs. 1 e 2, e 578.º do Código de Processo Civil declarando o Tribunal o impedimento conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição dos RR. da instância.

Foi admitida a intervenção principal provocada de MM e NN, como associadas dos RR., ordenando-se em consequência a sua citação, nos termos do art.º 319º do Código de Processo Civil.

Os intervenientes MM e marido OO contestaram, suscitando várias questões, entre as quais a exceção de caso julgado.

O autor respondeu, concluindo como na petição inicial.

Em sede de audiência prévia foi proferido despacho saneador que entre outras decisões, julgou procedente a invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e, nessa decorrência, absolvendo-se os réus e intervenientes principais da presente instância.

Inconformado com esta decisão, o autor AA interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“Primeira: O Recorrente impugna a decisão judicial vertida no DESPACHO SANEADOR SENTENÇA que considerou e julgou procedente a oficiosamente considerada invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e em consequência absolveu os Réus/recorridos e principais intervenientes da instância.

Segunda: Apesar de, das contestações dos Réus não constar, salvo o devido respeito e sem embargo por opinião mais abalizada, a invocação da exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, o tribunal a quo, oficiosamente, decidiu verificar-se tal exceção tendo fundamentado a sua decisão proferida sobre a exceção nominada de caso julgado invocada pelos Réus, nos termos constantes da decisão aqui em crise.

Terceira: Que se diga que o tribunal a quo não se pronunciou sobre o que lhe foi levado ao seu conhecimento e sobre o que lhe foi pedido, nem tão pouco sobre todas as questões que deveria ter apreciado e conheceu de questões de que não podia conhecer pois que não lhe foi invocado ou solicitado qualquer conhecimento de qualquer suposta exceção inominada de autoridade de caso julgado a qual além do mais não tem tradução legal, muito menos seria aplicável ao caso concreto dos autos, pelo que a decisão aqui em crise é nula nos termos do plasmado na al. d) do n.º 1 do artigo 615º do C.P.C., nulidade que aqui se invoca e se requer seja a mesma conhecida e declarada para todos os devidos e legais efeitos pelo Venerando Tribunal ad quem.

Quarta:  A fundamentação expendida pelo tribunal a quo peca por manifesto erro na interpretação que faz do que foi trazido aos autos e erra na aplicação do direito ao caso concreto, pelo que a decisão aqui em crise é enferma de erro de aplicação da lei e erro de julgamento, o que aqui se invoca e se requer seja pelo Venerando tribunal ad quem conhecido e julgado, devendo em consequência revogar a decisão aqui em crise.

Quinta: O Tribunal a quo aplicou assim, de forma errada a Lei violando nomeadamente o disposto no artigo 20.º da C.R.P. o disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615º, artigo 619º, o n.º1 e n.º 2 do artigo 576º, na al. i) do artigo 577º, no artigo 580º e no artigo 581º todos do Código de Processo Civil, o que importa a sua revogação e substituição por outra que aplicando de forma correta mande seguir os autos para produção de prova a realizar no âmbito da realização de audiência de discussão e julgamento, ou apreciando no imediato condene os Recorridos nos termos peticionados pelo Recorrente.

Sexta: O tribunal a quo na sua manifesta errática decisão, em teorização de uma suposta exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, fundamentando a sua decisão no sentido de se verificar procedente a invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado o tribunal a quo, refere ser dominante a orientação da jurisprudência dos tribunais superiores que vai no sentido de poder “funcionar a invocada exceção inominada de autoridade de caso julgado pressupondo no entanto a decisão de uma determinada questão que não pode voltar a ser discutida”, sendo no entanto manifesto que não vai nesse sentido interpretativo e de aplicação do direito e não é unanime a jurisprudência nem a distinta teoria e doutrina do direito, sendo manifesto que as questões que são colocadas na ação que correu termos declarativos no processo n.º ...9 do extinto Tribunal Judicial da Comarca ..., são diferentes das questões colocadas ao tribunal nos autos em que a decisão aqui em crise foi proferida.

Sétima: Ademais no nosso parco entendimento tal invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado é manifestamente violadora do direto de acesso aos tribunais plasmado na Constituição Portuguesa, pois que, a coberto da interpretação do julgador em primeira instância, sem qualquer contraditório, nem produção de prova em sede de julgamento, seria vedado o acesso aos tribunais a um conjunto grande de pessoas que interpusesse determinados pleitos para obter decisão de mérito sobre diferendos, cujas situações jurídicas apenas reflexamente e muito de forma remota tiveram qualquer contacto com situações jurídicas que foram objeto de decisões anteriores, seriam bastantes para que o julgador decidisse oficiosamente a verificação da invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado em processos que levariam à absolvição da instância os demandados em tais pleitos.

Oitava: como ilegal é a decisão aqui em crise por aplicar no caso concreto, norma que extrai supostamente da interpretação que faz dos n.º1 e n.º2 do artigo 576º e do artigo 577º ambos do C.P.C., pois que tal interpretação é inconstitucional por violar nomeadamente o artigo 20º, da C.R.P., ao julgar encontrar-se verificada a exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, quando interpretada no sentido de a autoridade do caso julgado ter o efeito positivo de impor a primeira decisão, constituindo pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, sendo o objeto da primeira decisão questão prejudicial da segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

Nona: Nem tão pouco se pode dizer como na verdade é dito na decisão aqui em crise que “o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”, pois que o objeto da primeira ação, salvo o devido respeito e sem embargo por opinião mais abalizada, é uma suposta dívida que tinha supostamente subjacente um empréstimo do então LL ao aqui Autor AA traduzida pela entrega daquele a este de um determina cheque, sendo que o objeto da segunda ação, na qual foi proferida a decisão aqui em crise é tão só o não pagamento de um empréstimo concedido pelo Autor aqui Recorrente ao falecido LL cujos Réus na presente ação são seus sucessores.

Décima: E se é certo que na ação interposta pelo falecido LL contra o Autor aqui Recorrente, supostamente é peticionado o pagamento de determinado montante em dinheiro que o mesmo teria emprestado a este último, a verdade é que em tal ação, não foi discutida a existência ou inexistência do empréstimo cuja não restituição nos presentes autos é fundamento e pedido.

Décima Primeira: Na referida ação interposta pelo referido LL nem sequer foi deduzido pedido reconvencional por parte do aqui Autor/Recorrente, nem na mesma ação nunca verdadeiramente foi aceite ou apreciado o documento que suporta a confissão de dívida assumida por parte deste para como o aqui Autor/Recorrente e que nos autos, cuja decisão aqui em crise foi proferida, é peticionado o seu pagamento/devolução do referido empréstimo se encontra sendo que tal documento e o conteúdo do mesmo nunca foi apreciado e julgado pelo tribunal no processo causa.

Décima Segunda: Na decisão proferida em tal ação que correu termos declarativos no processo n.º ...9 do extinto Tribunal Judicial da Comarca ..., não consta que o então Autor tenha sido absolvido de tal inexistente pedido reconvencional.

Décima Terceira: O pedido que é trazido a juízo, por parte do Autor/Recorrente, na ação cuja decisão aqui em crise foi proferida, em nada se consubstancia nem se confunde ou tão pouco é com conexo com o pedido deduzido na ação intentada pelo falecido LL e que os aqui Réus são seus sucessores, tendo sido proferida decisão condenatória em tal ação do aqui Autor/Recorrente, nem nada foi dito ou decidido em tal decisão condenatória sobre o pedido nos presentes autos deduzido pelo aqui Autor/Recorrente, nem tão pouco de tal decisão consta o que quer que seja que possa vir a ser considerado questão prejudicial, ou que o objeto de tal decisão constitua ou possa vir a constituir questão prejudicial na presente ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.

Décima Quarta: A invocada exceção dilatória de autoridade de caso julgado não pode de todo ser dar como verificada nos presentes autos cuja decisão aqui se encontra em crise pois que, como ademais também já foi decidido nomeadamente nos arestos cujos sumários acima se deixam transcritos, “o caso julgado implícito só pode ser admitido em relação a questões suscitadas no processo e que devam considerar-se abrangidas, embora de forma não expressa, nos termos e limites precisos em que julga” e “A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu”.

Décima Quinta: As causas de pedir nas duas ações não têm paralelo e são manifestamente diametralmente opostas sem qualquer conexão, nem as situações e relações jurídicas subjacentes se podem ter por conexas ou o resultado de uma ação condicione o resultado da outra pois que numa das ações o aqui Autor/Recorrente foi Réu por supostamente ser devedor e nos presentes autos é Autor por ser credor dos sucessores do falecido LL.

Décima Sexta: Sendo certo que o que for decidido em determinada relação jurídica em que se é devedor não pode de todo impedir que perante uma relação jurídica em que se é credor seja coartado o direito de fazer valer tal crédito em juízo caso o mesmo não seja voluntariamente cumprido.

Décima Sétima: Na decisão em crise foi erradamente julgada a verificação da exceção inominada de autoridade de caso julgado nos presentes autos, devendo os mesmos prosseguir os seus trâmites normais.

Décima Oitava: O Tribunal a quo na decisão recorrida aplicou de forma errada a Lei e o direito violando o disposto nos artigo 20º da C.R.P. nos artigos 576º n.º 1 e n.º 2, 577º n.º1 al. i), 578º, 580º, 581º, e 619º n.º1 todos do C.P.C., o que importa a sua revogação e substituição por outra que aplicando de forma correta mande seguir os autos para produção de prova a realizar no âmbito da realização de audiência de discussão e julgamento, ou apreciando no imediato condene os Recorridos nos termos peticionados pelo Recorrente.

Termos em que, nos mais de direito e sempre com o muito suprimento de V. Exas. deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que aplicando de forma correta o direito mande seguir os autos para produção de prova a realizar no âmbito da realização de audiência de discussão e julgamento, ou apreciando no imediato condene os Recorridos nos termos peticionados pelo Recorrente.”

O recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

“1. O âmbito do presente recurso encontra-se circunscrito pelo Recorrente no abalizado entendimento que o Tribunal a quo não podia ter apreciado e conhecido da exceção inominada de autoridade de caso julgado e consequentemente absolvido os RR. da instância, porquanto se trataria de matéria que não foi invocada e suscitada pelos RR. na sua contestação.

2. Logo no que tange à matéria factual, é mister observar que o Recorrente desconsidera em absoluto a contestação apresentada pelos RR., alicerçada e reforçada além do mais no espelho de várias decisões Judiciais, já transitadas em julgado, com íntima e direta conexão com os factos apresentados (novamente) a Juízo.

3. O Recorrente desconsidera toda a motivação da Douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que, além do mais, conheceu de uma exceção dilatória que foi arguida pelos RR. na sua contestação tendo como pano de fundo o instituto do caso julgado material e o seu dual efeito (positivo e negativo).

4. Assim, reforçando o que se vem expondo - e que foi levado em consideração pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo na motivação da Douta sentença – é manifesto que os RR. sustentaram na sua contestação que a causa de pedir e o pedido do Autor não eram novos nas instâncias judiciais, cuidando de verter matéria factual para demonstração do alegado.

5. Nesta esteira, conforme matéria apreciada no processo n.º ...9, da extinta Vara Mista de Coimbra, ali foi dado como não provado que o aqui Autor/Recorrente tivesse emprestado dinheiro a LL.

6. Mais ficou igualmente provado, para além do supra aludido, que o aqui Autor/Recorrente alterou a verdade dos factos, pessoais e relevantes para o desfecho da causa, tendo sido condenado como litigante de má-fé.

7. Mas ainda que assim não fosse, o facto é que a exceção de autoridade de caso julgado configura matéria de exceção dilatória inominada e insuprível, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito e dá lugar à absolvição da instância (cfr. artigos n.ºs 576.º, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, al. e), todos do Código Processo Civil).

8. Ora, ainda que os RR. não tivessem requerido e invocado a exceção dilatória de caso julgado, não estava o Tribunal a quo impedido de decidir pela verificação da autoridade do caso julgado, pois trata-se de uma solução que, como deriva da legis, não pode ter-se por inesperada, não violando, por conseguinte, o exercício do contraditório pelas partes.

9. Questão diversa são os efeitos jurídicos que decorrem da verificação da autoridade do caso julgado.

10. Reconhece-se que a questão não é de facto unânime entre a Jurisprudência, isto porque tem-se ramificado uma certa tendência Jurisprudencial que dita que, sempre que se verifique no caso concreto a autoridade de caso julgado os Tribunais devem determinar a absolvição do pedido ao invés da absolvição da instância.

11. Ora, ainda que fosse caso disso, isto é, que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, perante o fundamento da verificação da autoridade de caso julgado, deveria ter decretado a absolvição dos RR. do pedido, ao invés de ter absolvido os RR. da instância, a verdade é que se estaria perante mero erro de qualificação jurídica.

12. E precavendo-se a hipótese do Tribunal a quo ter incorrido em erro na determinação do efeito da verificação da autoridade de caso julgado sempre poderia o Venerando Tribunal da Relação supri-lo.

13. Como tal, sempre seria admissível que a decisão recursória a proferir pelo Tribunal ad quem absolvesse os RR. do pedido como efeito jurídico cominatório da dita situação de autoridade do caso julgado. Cfr. o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/03/2019, proferido sob o Proc. n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1 e Acórdão do Tribunal  da Relação de Lisboa, datado de 26/10/2021, proferido sob o processo n.º 511/20.1T8PDL-A.L1-7, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.).

14. Por tal motivo, com reporte ao caso concreto e por mera cautela de patrocínio, na eventualidade de se percorrer o Douto entendimento que a verificação da autoridade de caso julgado determina a absolvição dos RR. do pedido, requer-se que a decisão recursória a proferir venha suprir tal efeito jurídico corrigindo-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo no dia 28/09/2022, em sede de audiência prévia, inscrevendo-se o efeito daí decorrente no plano do mérito do pedido, decidindo-se assim julgar procedente e verificada a exceção de autoridade de caso julgado e, nessa decorrência, absolverem-se os Réus e intervenientes principais do pedido.

15. Todos os factos alegados pelo Autor/Recorrente na sua petição inicial são os mesmos factos que fizeram parte da contestação à ação que lhe moveu o falecido LL, no longínquo ano de 1999.

16. Ora, conforme matéria devidamente apreciada no processo n.º ...9, da extinta Vara Mista de Coimbra, bem sabe o aqui Recorrente, que foi dado como não provado o facto deste ter emprestado dinheiro a LL.

17. Somente por distração se pode compreender a alegação de recurso do Recorrente quando afirma que no processo n.º ...9 “não foi discutida a existência ou inexistência do empréstimo”, bem sabendo que naquele processo foi devidamente alegado a existência do referido empréstimo pelo próprio e foi com base naquela invocação que os RR. se defenderam por exceção e peticionaram a improcedência do pedido formulado pelos Autores.

18. Aliás, repare-se que é o próprio Autor/Recorrente a verter no ponto 11 da sua petição inicial que “Ora a verdade é que sempre lhe tem sido negado que o cheque que foi entregue pelo falecido LL tenha sido para liquidar a dívida ao aqui Autor”, numa posição de reconhecimento que já existiu pronúncia e conhecimento da matéria por parte das diversas Instâncias Judiciais sobre tal matéria.

19. Tal confissão vem entroncada na referência que faz a números de processos judiciais constituindo o expresso reconhecimento que, embora tenha conhecimento do teor das decisões dos Tribunais, manifesta o não acatamento das mesmas.

20. Em sede recursória o Recorrente pretende fazer passar a ideia que nem o Tribunal de primeira instância, nem os Tribunais Superiores (Tribunal da Relação de Coimbra, do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional) foram chamados a pronunciar-se sobre o suposto empréstimo.

21. É notório que o Recorrente ao reiterar a causa de pedir que em toda a sua plenitude já foi objeto de apreciação judicial procura agora responsabilizar os RR., ainda que agora na qualidade de herdeiros habilitados de LL, para com isso “renovar” o objeto da ação”.

22. No fundo, pretende retirar proveito de uma nova roupagem jurídica dos sujeitos processuais, sendo que o Tribunal a quo, de forma atenta, concluiu que o autor procura com a presente demanda obter um resultado que não alcançou naquela outra ação, por via da então exceção deduzida na contestação.

23. Como muito bem ilustrado pelo Tribunal a quo, dúvidas inexistem que no processo n.º ...9 o aqui autor (ali réu) ficou incontornavelmente vencido, não podendo agora “querer reeditar, directa ou indirectamente, o assunto, justamente porque a tanto se opõe a autoridade do caso julgado material formado na anterior acção”.

24. E, assim, em virtude do caso julgado formado no âmbito da acção que correu termos sob o n.º .../99, assim como em diversas Decisões dos Tribunais Superiores, determina o direito objetivo que está vedado ao autor pedir a condenação dos herdeiros de LL.

25. É, ainda, do modesto entendimento dos RR., aqui Recorridos, que face à matéria factual constante dos autos o Tribunal a quo, paralelamente à exceção de autoridade de caso julgado, podia ter julgado igualmente verificada a exceção dilatória do caso julgado (art.º 577.º alínea i) CPC), conforme arguida em sede de 1.ª instância pelos RR. e que determinaria a sua absolvição da instância (art.º 576.º n.º 2 do CPC), sem prejuízo da mesma revestir matéria de conhecimento oficioso do Tribunal (art.º 578.º do CPC).

Pelo que,

26. Tratando-se a exceção dilatória do caso julgado de matéria de conhecimento oficioso não está vedado ao Tribunal ad quem o conhecimento de tal exceção dilatória apreciando-a no imediato podendo constar do Douto acórdão a proferir.

27. Tudo conjugado, deve o presente recurso improceder com as legais consequências.”                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia.
2. Da verificação da autoridade do caso julgado.
3. Violação do princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º da CRP).

FUNDAMENTOS DE FACTO

Com base nos documentos juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com interesse para a apreciação da questão suscitada- exceção de caso julgado:
1- Processo .../99 que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Comarca ...:

LL intentou ação declarativa de condenação contra AA e mulher PP, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de 4.000.000$00, acrescida de juros legais, desde 1 de maio até integral pagamento.

Alegou para tanto e em síntese ter emprestado a quantia de 4.000.000$00 aos réus, quantia que ainda não lhe foi restituída, não obstante as sucessivas interpelações.

Os réus contestaram, negando que os réus lhe tenham emprestado qualquer quantia, acrescentando que foram eles que, em outubro de 1995 emprestaram ao autor a quantia de 4.000.000$00, quantia que o autor lhes restituiu através do cheque que, na p.i., falsamente, alega ser o cheque representativo do empréstimo efetuado aos réus.

O autor replicou, mantendo ao alegado na p.i.

Em 10-10-2000 foi proferida a seguinte decisão com o seguinte dispositivo:

“Julgo a ação parcialmente provada e procedente e, em consequência:

Declaro nulo, por falta de forma, o mútuo que o A. fez ao R. marido no valor de 4.000,00.

Condeno o R. marido a pagar/restituir ao A. a quantia de 4.000,00$00, acrescida de juros, à taxa legal de 01-05-1999, até integral pagamento.

Absolvo a R. mulher do pedido.

Condena-se o R. marido, como litigante de má-fé:

Na multa de 40.000.000$00; e

Numa indemnização a favor do A., a fixar em momento posterior, consistente no reembolsar do A. dos acréscimos quer de despesas quer de honorários do seu mandatário, acréscimos decorrentes e causados pela oposição deduzida pelo R. à açcão.”

2- Presente ação:

AA intentou a presente ação declarativa com processo comum contra BB, CC, DD, QQ, FF, GG, HH, II, JJ e descendentes incertos dos falecidos CC e KK, residentes em parte incerta, pedindo a:

a) Condenação solidária dos réus no pagamento/restituição ao autor do montante de 4.000.000$00 na antiga moeda, o equivalente à quantia de €19.951,91;

b) Condenação solidária dos réus no pagamento dos juros de mora vencidos até 1/09/2020 no montante de €20.092,39 e nos vincendos computados sobre o valor de €19.951,91, à taxa de juros de mora das dívidas de natureza civil e até efetivo e integral pagamento;

c) Subsidiariamente e sem prescindir a ser declarado nulo o contrato de mútuo identificado na petição inicial, a condenação solidária dos réus a restituir ao autor a quantia de €19.951,91, acrescida de €20.092,39, a título de frutos civis;

d) A condenação solidária dos réus no pagamento de juros de mora desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

e) Ainda subsidiariamente e sem prescindir; a condenação solidária dos réus a restituir ao autor a quantia de €19.951,91, com fundamento no enriquecimento sem causa, acrescida de €20.092,53, a título de juros vencidos;

f) A condenação solidária dos réus no pagamento de juros de mora vincendos até integral e efetiva restituição do montante emprestado;

g) A condenação solidária dos réus no pagamento das custas, incluindo as de parte, e demais encargos com o presente processo, em montantes a apurar a final.

Alegou para tanto e em síntese que em finais de setembro e inicio de outubro de 1995 por acordo verbal com LL, emprestou a este dinheiro no montante de 4.000.000$00, tendo este se obrigado a restituir igual montante ao autor. Por forma a confirmar que recebeu tal montante em dinheiro e que ficava em dívida de tal montante para o aqui autor, o referido LL apôs a sua assinatura num documento designado de declaração.

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia

Dispõe-se no invocado art.º 615º, nº. 1 al. d), do CPC, que “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento”.

Decorre de tal norma que o vício que afeta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma, aqui em causa, face à invocação do recorrente).

                  Preceito legal esse que deve ser articulado com o nº. 2 no art.º 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

                  Impõe-se ali um duplo ónus ao julgador, o primeiro traduzido no dever de resolver todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação pelas partes (salvo aquelas cuja decisão vier a ficar prejudicada pela solução dada antes a outras), e o segundo (que, como vimos, é aqui colocado em causa pela recorrente) traduzido no dever de não ir além do conhecimento dessas questões suscitadas pelas partes (a não ser que a lei lhe permita ou imponha o seu conhecimento oficioso)[1].

                  Ora, no caso em apreço, o facto de o tribunal a quo ter apreciado a questão da exceção de caso julgado invocada na contestação, considerando que a mesma não se verifica, não ficou impedido de considerar verificada a exceção de autoridade de caso julgado[2].

                  De modo mais explicito, podemos ainda invocar o Ac. do TRL, de 26-10-2021[3]:  “Não estando o juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo proceder a diferente subsunção ou qualificação jurídica de determinada questão, invocada a exceção de caso julgado, não está ele impedido de, sendo caso disso, e sem necessidade de observar o princípio do contraditório nos termos previstos no art.º 3.º, n.º 3, do C.P.C., decidir pela verificação da autoridade do caso julgado, figura que entronca na mesma razão de ser da que foi invocada e que não pode considerar-se estranha em relação a esta, representando uma solução perfeitamente plausível ante a possibilidade de não se demonstrarem todos os requisitos da exceção) e que, por isso, não pode ter-se por inesperada para a contraparte”.

                  Não se verifica assim, a invocada nulidade.


2. Da verificação da autoridade do caso julgado

Na decisão recorrida entendeu-se que “o que se verifica não é a exceção de caso julgado, acima julgada inverificada, mas a autoridade do caso julgado inerente à sentença proferida e consolidada na ordem jurídica, efeito que visa preservar o prestígio dos tribunais e a certeza/segurança jurídica, evitando a instabilidade na definição das relações jurídicas.

Nesse pressuposto, o que se verifica não é a excepção de caso julgado, acima julgada inverificada, mas a autoridade do caso julgado inerente à sentença proferida e consolidada na ordem jurídica, efeito que visa preservar o prestígio dos tribunais e a certeza/segurança jurídica, evitando a instabilidade na definição das relações jurídicas.

Ante o supra exposto, conclui-se pela verificação da excepção dilatória inominada de autoridade de caso julgado, ao abrigo do regime estabelecido nos artigos 576º, nºs 1 e 2 e 577º, ambos do Código de Processo Civil e, nessa decorrência, deverão os réus (e intervenientes principais) ser absolvidos da presente instância”.

Sustenta o recorrente que na presente ação o objeto é uma suposta dívida que tinha subjacente um empréstimo do então LL ao aqui autor AA traduzida pela entrega daquele a este de um determinado cheque, sendo que o objeto da segunda ação, na qual foi proferida a decisão aqui em crise é tão só o pagamento de um empréstimo concedido pelo aqui autor AA ao falecido LL cujos réus na presente ação são seus sucessores, não tendo sido deduzido pedido reconvencional na primeira ação.

Defendem os recorridos que todos os factos alegados pelo autor/recorrente na sua petição inicial são os mesmos que fizeram parte da contestação à ação que lhes moveu o falecido LL, no longínquo ano de 1999, sendo que no proc. ...9, foi dado como não provado o facto deste ter emprestado dinheiro a LL.

“O instituto do caso julgado exerce, assim, duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal”[4].

Dispõe o artigo 619.º, n.º 1, do CPC que “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 580.º e 581.º do CPC, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

O caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artigo 621.º do Cód. Proc. Civil, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga». Trata-se de um corolário do conhecido princípio dos praxistas enunciado na fórmula latina «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat». Embora se saiba que sobre a questão da exacta delimitação dos limites objectivos do caso julgado se manifestam posições não inteiramente convergentes, deve admitir-se que «os fundamentos da sentença pedem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado.[5].

«A decisão sobre o pedido e causa de pedir fica imutável, impedindo não só que o tribunal decida diferentemente sobre o mesmo objecto ou mesmo, e mais de uma vez, do mesmo modo. Os limites objectivos do caso julgado situam-se no segmento decisório da sentença. Mas sendo esta a conclusão do silogismo judiciário terão de ser ponderadas as premissas, como antecedente lógico do referido segmento, e se absolutamente determinantes (desde que não se traduzam, apenas em meros argumentos de exegese jurídica ou de exposição doutrinária) é-lhes conferida a força de “res judicata”. Como antecedente lógico da “leitura” da parte decisória, há que proceder à respectiva interpretação, o que implica seguir o “iter” que conduziu à conclusão encontrada e que contem pressupostos dados por assentes a constituírem a fundamentação”[6].

Lebre de Freitas e outros[7] consideram que:

«(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.»

Por sua vez, no respeitante aos limites objetivos do caso julgado, Teixeira de Sousa[8] escreve o seguinte:

«O caso julgado abrange a parte decisória …, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…).

Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.

(…)

O caso julgado da decisão também possui valor enunciativo: essa eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória: se, por exemplo, o autor é reconhecido como proprietário, então não o é o demandado (…).

Além disso, está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.»

Assim, a autoridade do caso julgado material implica o acatamento de uma decisão de mérito transitada cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de outra ação a julgar posteriormente, ainda que não integralmente idêntico, de modo a obstar a que a relação jurídica ali definido venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.

Na vertente da autoridade de caso julgado, como refere Mariana França Gouveia[9] “a decisão ou as decisões tomadas na primeira acção vinculam os tribunais em acções posteriores entre as mesmas partes relativas a pedidos e/ou causas de pedir diversos”.

A verificação da exceção de caso julgado é mais exigente em termos de pressupostos, dependendo da tríplice identidade prevista no art.º 581º do CPC.

A autoridade do caso julgado apenas pressupõe a identidade subjetiva nas duas ações; os pedidos e as causas de pedir podem ser diferentes.

Em suma, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido noutra ação no quadro da relação material controvertida aqui invocada[10].

Ou seja, por outras palavras “O caso julgado material, como autoridade de caso julgado, pressupõe sempre uma relação de prejudicialidade, no sentido de que o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto da ação posterior, sendo pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta venha a ser proferida.

A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as acções, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art.º 3º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial”[11].

“Restringindo o efeito preclusivo às exceções invocáveis, a doutrina maioritária faz integrar no âmbito do caso julgado todas as exceções que o réu poderia ter alegado na primeira acção. Esta possibilidade verifica-se, por exemplo, nos casos em que o réu na primeira acção vem propor acção de efeito contrário contra o aí autor.

Nestas situações, o agora autor alega como fundamentos o que poderia ter alegado como excepção na primeira acção. Diz-se, então, que o juiz está impedido pelo caso julgado de decidir esta acção, na medida em que os fundamentos da sua acção não tenham sido alegados na primeira, não podem agora sê-lo.

Este efeito preclusivo é normalmente inserido pela doutrina do caso julgado. Entende-se que o caso julgado abrange toda esta matéria, que a sua força abarca tudo aquilo que o réu poderia ter alegado, sendo indiferente se realmente o referiu ou na primeira acção”[12].

Importa agora analisar os parâmetros comparativos entre o objeto da ação no processo n.º ...9, da extinta Vara Mista de Coimbra e a decisão ali proferida e o objeto da presente ação.

Afigura-se-nos que a condenação do réu marido AA a pagar/restituir ao autor LL a quantia de 4.000,00$00, acrescida de juros, à taxa legal de 01-05-1999, até integral pagamento no processo nº ...9 consubstancia decisão de questão fundamental com autoridade de caso julgado, nos termos do 621.º do CPC.

No alcance desse caso julgado devem considerar-se também compreendidas as questões ali suscitadas em sede de defesa que não mereceram procedência, como, foi o caso do alegado empréstimo de AA a LL, em outubro de 1995 no montante de 4.000.000$00. E devem ainda ser consideradas precludidas as questões que incumbia à defesa alegar e provar face ao direito invocado pela ali autora, nos termos do artigo 573º do CPC.

Verificada que está a autoridade do caso julgado material constituído pela decisão proferida no processo nº ...9 e sendo tal efeito incompatível com os efeitos prático-jurídicos objeto das pretensões deduzidas na presente ação, o seu alcance não pode deixar de se repercutir no próprio mérito destas pretensões.

Conforme se afirma no Ac. do STJ, de 28.03.2019 acima citado “verificada a autoridade do caso julgado de uma decisão de mérito que seja incompatível com o objeto a decidir posteriormente noutra ação, o seu alcance não pode deixar de se repercutir no próprio mérito desta, importando, nessa medida, a sua improcedência com a consequente absolvição do réu do pedido”.

Diferentemente sucede no domínio da exceção dilatória de caso julgado como tal incluída no artigo 577.º, alínea f), do CPC, cuja procedência determina a absolvição do réu da instância nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), e 576.º, n.º 2, do mesmo Código.

No caso em apreço, a decisão recorrida decidiu julgar procedente a invocada exceção dilatória inominada de autoridade de caso julgado e, nessa decorrência, absolveu os réus e intervenientes principais da presente instância.

Trata-se, no entanto, de um erro de qualificação jurídica, pelo que este tribunal de recurso pode supri-lo, e como tal, em absolver os réus e intervenientes principais da presente instância, como fez o tribunal a quo, absolvê-los do pedido[13].


3. Violação do princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º da CRP)
Dispõe o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa:
“1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”

Conforme se refere no Ac. do STJ, de 17-06-2014[14] “A aplicação da excepção dilatória de caso julgado material não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva. Consiste, pelo contrário, numa garantia de segurança jurídica para a comunidade e de coerência das decisões judiciais, valores contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais.

Admitir-se, com base no acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, uma discussão permanente acerca de questões já decididas por sentença transitada em julgado, teria um custo jurídico e social não suportável pelo sistema judicial, promoveria um desrespeito pelos tribunais e aumentaria indefinidamente a litigiosidade.

Por força destes valores sociais e colectivos, restringe-se o acesso à justiça nos casos em que uma determinada questão já foi decidida por sentença transitada em julgado, aceitando-se que, neste contexto, prevaleça a segurança sobre a justiça.”

Em consequência, a interpretação dada pela decisão recorrida ao instituto da autoridade do caso julgado e os efeitos preclusivos da figura sobre o conhecimento do mérito não violam os direitos à tutela judicial efetiva e à defesa, não padecendo a decisão de qualquer inconstitucionalidade.

Não houve, portanto, qualquer violação do artigo 20.º da CRP.

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida que julgou procedente a verificação da autoridade do caso julgado, não com o efeito de absolvição da instância, mas sim de absolvição do pedido.

Custas pela apelante, atendendo ao seu vencimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

                                                                                                    Coimbra, 2 de maio de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original





([1]) Ac. do STJ, de 8-11-20220, proc. 5396/18.5T8STB-A.E1.S1, relator Isaías Pádua, www.dgsi.pt.
([2]) Cfr. Ac. do STJ, de 19-09-2019, proc. 789/18.0T8VNG.P1.S1, relatora Catarina Serra, www.dgsi.pt. em que se decidiu: “Pelo facto de o tribunal a quo ter apreciado a questão da autoridade do caso julgado e, decidindo pela sua procedência, absolvido os réus do pedido, não fica o tribunal de recurso necessariamente impedido de considerar verificada a excepcão dilatória de caso julgado e absolver os réus da instância”.
([3]) Proc. 511/20.1T8PDL-A.L1-7, relator José Capacete, www.dgsi.pt.

([4]) Ac. do STJ, de 12-12-2017, proc. 3435/16.3T8VIS-A.C1, relator Isaías Pádua, www.dgsi.pt.
([5]) Antunes Varela e outros in “Manual de Processo Civil”, p. 694.
([6]) Ac. do STJ, de 17-11-2015 (proc. 34/12.2TBLMG.C1.S1, relator Sebastião Póvoas, www.dgsi.pt.
([7]) Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354.
([8]) Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579.

([9]) A Causa de Pedir na Ação Declarativa, 2019,  p. 499.
([10]) Ac. do STJ, de 28-03-2019, proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1, relator Tomé Gomes, www.dgsi.pt.
([11]) Ac. do STJ, de 21-06-2022, proc. 43/21.0YHLSB.L1-A.S1, relator Nuno Ataíde das Neves, www.dgsi.pt.

([12]) Mariana França Gouveia, obra citada, p. 399.
([13]) Cf. Ac. do TRL, de 26-10-2021, proc. 511/20.1T8PDL-A.L1-7, relator José Capacete, www.dgsi.pt.
([14]) Proc. 233/2000.C2.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, www.dgsi.pt.