RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
FACTOS CONTROVERTIDOS
CONHECIMENTO IMEDIATO DO MÉRITO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO-SURPRESA
CONHECIMENTO DO VÍCIO PELA RELAÇÃO
ANULAÇÃO DA SENTENÇA
Sumário

I – Encontrando-se controvertidos a generalidade dos factos alegados no requerimento de reclamação de créditos – quer quanto à sua existência quer quanto à invocada garantia – a decisão de não produzir prova quanto aos mesmos, afastando-se dos trâmites previstos no n.º 1 do artigo 791.º CPC, por se entender disporem os autos dos elementos necessários ao conhecimento imediato do mérito, encontra-se sujeita ao princípio do contraditório previsto no n.º 3 do art. 3.º CPC.
II – O tribunal não podia, oficiosamente, ordenar a produção de prova com vista a apurar se o imóvel penhorado, relativamente ao qual é invocado um direito de retenção, se encontrava na posse da reclamante e, de seguida, sem que tal prova tivesse sido sujeita a contraditório, entendendo que os autos detinham já todos os elementos (dispensando implicitamente a produção da prova oferecida pelas partes, quanto àquele e aos demais factos controvertidos), conhecer do mérito, socorrendo-se do resultado de tais diligências para dar como não demonstrada a posse da reclamante, e com esse fundamento (entre outros), proferir decisão de não reconhecimento de tal crédito.
III – A prolação de sentença nessas condições, com violação do principio do contraditório, constituindo uma decisão-surpresa encontra-se ferida de nulidade, a invocar em sede de recurso.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Processo n° 5576/17.0T8CBR-B.Cl – Apelação

Relator: Maria João Areias

1° Adjunto: Paulo Correia

2° Adjunto: Helena Melo

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Por apenso à execução que C..., S.A., move contra AA e BB, vem CC apresentar reclamação de créditos, com a seguinte alegação:

é credora de um crédito global de € 10.200,00 euros, porquanto emprestou essa verba ao executado BB, para aquisição do imóvel descrito como garagem sito na Quinta ..., ..., e que se mostra penhorado nos autos;

o executado reconheceu o direito de crédito da reclamante por documento particular assinado no dia 2 de novembro de 2017 e autenticado no Cartório Notarial em ..., no dia 3 de novembro de 2017;

as partes acordaram em que, a partir do dia 3 de novembro de 2017, a requerente ostentaria um direito de retenção, até efetivo e integral pagamento da dívida, nos termos do artigo 754.º do Código Civil, tomando, a ora reclamante, a posse efetiva do aludido imóvel, que usufruiu deste então.

Em consequência, pede que se reconheça o direito de retenção sobre o imóvel penhorado nos autos, e seja ordenada a imediata suspensão da instancia executiva, sustando-se a venda quanto ao referido imóvel, reconhecendo-se e graduando-se o crédito no lugar que lhe compete.

A exequente deduz oposição, impugnando a existência do crédito, bem como do invocado direito de retenção:

do documento de reconhecimento de dívida nada consta quanto ao destino da quantia mutuada;

o imóvel não está na posse da reclamante e, ainda que estivesse, tal não lhe conferia qualquer direito de retenção, não se enquadrando a alegada relação creditícia em qualquer das als. do nº1 do artigo 755º do CC.

Notificada para o efeito, a Sr.ª Agente de Execução veio informar, em 21.09.2022, que “Conforme resulta da Certificação de Afixação efetuada pelo funcionário forense da signatária, DD, com o cartão profissional nº ..., a diligência foi concretizada em 20.05.2022, pelas 14.47h, não estando qualquer pessoa presente na fração.

No entanto, através de um contacto com 2 senhores que se encontravam numa garagem próxima, com a porta aberta e a praticar algum de atividade vulgarmente designado por "biscate", foi possível confirmar qual a fração do executado AA.

Estes senhores disseram conhecer bem o executado, tendo indicado com precisão qual o portão da garagem onde foi afixado o edital, pois de outra forma não seria possível dado que as garagens não se encontram identificadas ou numeradas.

Os referidos senhores, cuja identificação se desconhece, acrescentaram que o executado é ali visto com alguma frequência.”

No dia 22 de setembro, o exequente veio aditar o seu rol de testemunhas.

Pelo juiz a quo é proferido Saneador/Sentença que, conhecendo do mérito, termina com o seguinte:

VI - DISPOSTIVO

Em face do exposto, ao abrigo das disposições legais supra mencionadas, decido:

- não reconhecer os créditos reclamados por CC.

Custas legais a cargo da Credora reclamante, que ficou vencida (v. art.º 527.º, do Código de Processo Civil).

Notifique e registe.”


*

Não se conformando com tal decisão, a credora reclamante dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

I – DA NULIDADE PROCESSUAL

I. A reclamante, ora recorrente procedeu à reclamação de créditos nos presentes autos.

II. A mesmo foi contestada no dia 07 de Julho de 2022, pelo exequente, C..., S.A.

III. Findo os articulados, o Tribunal a quo procedeu à notificação do Agente de Execução no sentido deste vir aos autos prestar esclarecimento quanto à identificação dos possuidores do imóvel penhorado nos autos.

IV. Não tendo a reclamante, ora recorrente, sido notificada do esclarecimento acima referido.

V. Sendo apenas notificada da sentença agora em crise.

VI. Isto é, o Tribunal a quo, sem audição das partes, procedeu à decisão de mérito da causa, inesperadamente, no dia 21 de Novembro de 2022.

VII. Ora, entende a recorrente que decisão sobre o mérito pelo Tribunal a quo, sem a realização de Audiência Prévia, ou notificação da possibilidade de decisão de mérito sem realização da mesma, viola os trâmites do processo e, por conseguinte, nula qualquer decisão ali tomada.

VIII. Isto é, o Tribunal a quo não podia ter decidido sem antes promover a audiência prévia, ou então dispensá-la nos termos previstos no artigo 593.º

IX. Uma vez que, apenas nas situações previstas no artigo 592.º do CPC, ocorre a não realização, ope legis, da Audiência Prévia.

X. Não se vislumbrando a subsunção nas alíneas previstas no n.º 1 do artigo 592.º do CPC do caso em apreço.

XI. Concluindo-se que a não realização da Audiência Prévia apenas poderia ocorrer à luz do artigo 593.º do CPC,

XII. Indagando pelos diversos números e alíneas do artigo 593.º, resulta que a dispensa da Audiência Prévia apenas ocorrerá quando o processo haja de prosseguir (para audiência de julgamento).

XIII. Existindo ainda a possibilidade de dispensa da Audiência Prévia e elaboração de despacho saneador com conhecimento imediato do mérito (saneador-sentença) à luz do artigo 595.º n.º 1 alínea b), ex vi alínea c) do artigo 597.º, todos do CPC.

XIV. Porém, tal dispensa, e salvo melhor e douta opinião, deveria ser precedida de despacho no sentido de ouvir as partes quanto à agilização e adequação formal do processo, ao arrepio dos normativos do nº 3 do artigo 3.º e n.º 1 do artigo 6.º, todos do CPC.

XV. Ao fazê-lo, proferiu uma decisão surpresa, tendo violado o princípio do contraditório disposto no artigo 3.º do CPC, positivado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

XVI. O Tribunal a quo cometeu, assim, uma nulidade processual em conformidade com o disposto no artigo 195.º do CPC.

XVII. Além de que, nunca poderia o Tribunal a quo conhecer do mérito da causa, no caso sub judice, uma vez que a posse do imóvel se encontrava em discussão.

XVIII. Isto é, existindo alegação tanto da ora recorrente como do Agente de Execução, díspar, quanto à posse do imóvel, durante a fase dos articulados, seria necessário a produção de prova quanto a esse tema, nomeadamente, com inquirição de testemunhas.

XIX. Deste modo, deveria ter sido facultado o direito de contraditório por parte da reclamante, ora recorrente, através da notificação, quanto à comunicação operada pelo Agente de Execução, bem como decidir pela realização de Audiência Prévia para discussão de facto e direito como alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

XX. Não o fazendo, o Tribunal a quo inquinou o processo de nulidade por violação das normas processuais, em apreço as normas relativas à Audiência Prévia e direito do contraditório previsto no

II – DO ERRO DE JULGAMENTO (error facti)

XXI. Sem prescindir do já alegado, certo é que a sentença, agora em crise, comporta incongruências na sua fundamentação, nomeadamente identificação do devedor do crédito mutuado.

XXII. Isto é, a reclamante, ora recorrente, procedeu ao mútuo da quantia de €10.200,00 a AA.

XXIII. Contrariamente ao descrito na sentença que refere ter sido a BB, já então falecido.

XXIV. Tendo a sentença agora em crise confundido o sujeito devedor, ambos executados nos autos, sendo o primeiro, AA, progenitor do segundo, BB.

XXV. A garagem em questão nos autos, reporta-se a um bem que inicialmente seria de BB.

XXVI. Todavia, e no âmbito da execução, por via da Negociação Particular no Processo de Execução n.º 1215/15...., na qual o BB era executado, o progenitor, AA, procedeu à aquisição da mesma.

XXVII. Isto é, o progenitor AA, adquiriu, no âmbito da execução, o bem penhorado do filho BB.

XXVIII. Para aquisição dessa garagem, a reclamante, ora recorrente, emprestou a quantia de € 10.200,00 a AA, contrariamente ao descrito no relatório da sentença agora em crise.

XXIX. Pelo que, tal incongruência impediu o Tribunal a quo de decidir quanto ao direito de retenção por confusão quanto ao sujeito devedor da reclamante, ora recorrente.

XXX. Desta feita, a incongruência patente no relatório implica erro de julgamento (error in judicando) por resultado de uma distorção da realidade factual (error facti).

XXXI. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, mas o mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso

XXXII. Não obstante, esse erro não é irrelevante para construção fáctica que justifica o direito de retenção, reclamado pela ora recorrente nos autos.

XXXIII. Pois tratando-se de uma traditio como garantia do crédito mutuado, importa fixar corretamente o percurso lógico e factual dos acontecimentos.

XXXIV. Isto é, o mútuo da ora reclamante a AA para aquisição da garagem tendo este concedido, à reclamante, ora recorrente, a posse do imóvel para garantia do credito.

XXXV. Assim sendo, importa a reforma da sentença quando aos factos, nomeadamente a quem foi mutuada a quantia (AA) de €10.200,00 (Dez mil e duzentos euros), para aquisição da garagem, estando esta na posse da ora recorrente, para garantia do pagamento integral do crédito.

III – DO DIREITO DE RETENÇÃO

XXXVI. Sem prescindir do já alegado, sucede que quanto à aplicação do direito ao caso concreto, salvo melhor e douta opinião, o Tribunal a quo decidiu mal quanto ao direito de retenção.

XXXVII. Senão vejamos, o Tribunal a quo, e no seguimento da jurisprudência, enumera os três pressupostos para verificação do direito de retenção na sua fundamentação:

XXXVIII. Ou seja, segundo a jurisprudência e doutrina, o direito de retenção surge quando ocorre a detenção e posse com obrigação de entrega de uma coisa no seguimento de um crédito exigível, existindo uma conexão casual entre o crédito do detentor e a coisa.

XXXIX. Verificando-se, in casu, a subsunção dos requisitos na factualidade alegada pela reclamante, ora recorrente.

XL. O primeiro requisito, a detenção e posse do bem, surge por acordo da ora reclamante com o devedor, AA, no qual acordam que face ao mútuo para aquisição da referida garagem indicada nos autos, aquela manteria a posse até efetivo e integral pagamento.

XLI. Usufruindo desse imóvel – garagem - desde então; Guardando lá os seus veículos, nomeadamente o veículo da marca ..., e outros pertences; Procedendo à limpeza do espaço; Administrando o bem, através da elaboração de contractos de eletricidade e seguro; Pagando o condomínio, bem como mantendo os necessários contactos com as diversas administrações do mesmo; Pagando os impostos, taxas, seguros enquanto detentora do imóvel; Sendo a única possuidora das chaves e demais cópias da mesma, que permitem o acesso ao bem.

XLII. Factualidade alegada na Petição Inicial com prova documental e não impugnada pelo executado AA.

XLIII. Havendo somente as declarações de transeuntes aquando da elaboração do auto de penhora do Agente de Execução.

XLIV. Ora, neste capítulo, e havendo factualidade não provada nos autos, deveria o Tribunal a quo proceder à produção de prova, v.g., realização de Audiência Prévia ou, em sede de Julgamento, inquirição de testemunhas, no sentido de apurar a factualidade e considerar (ou não) como provado.

XLV. Não o determinando, por não conceder direito ao contraditório quanto ao esclarecimento prestado pelo Agente de Execução, o Tribunal a quo violou as normas do processo civil, por violação do direito do contraditório, já acima alegado.

XLVI. Quanto ao segundo requisito, crédito exigível, o mesmo decorre do mútuo celebrado entre a reclamante, ora recorrente, e o executado AA.

XLVII. Sendo esse crédito reconhecido por Documento Particular assinado no dia 2 de Novembro de 2017 e autenticado, no Cartório Notarial ....

XLVIII. Conferindo assim, à luz da alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC, exequibilidade ao crédito da reclamante, ora recorrente.

XLIX. Por fim, competia à ora recorrente o ónus da prova do terceiro requisito: a existência de uma conexão casual entre o crédito do detentor e a coisa.

L. Neste ponto, justificou a reclamante, ora recorrente, que o crédito cedido a AA, teve como função o pagamento do preço para aquisição da garagem indicada nos autos e hodiernamente na posse da reclamante.

LI. Não tendo o executado, AA, impugnado os referidos factos.

LII. Ou seja, toda a factualidade alegada pela reclamante, ora recorrente, não foi impugnada pelo devedor AA.

LIII. Sendo a vontade das partes que, por via do mútuo celebrado entre CC, ora recorrente, e AA, executado, aquela emprestaria a quantia de € 10.200,00 (Dez mil e duzentos euros) com objetivo de aquisição da garagem sito na Quinta ... – ... – (…).

LIV. Aquisição essa levada a cabo na ação executiva no qual era executado o filho, então falecido, de AA.

LV. De modo a garantir o crédito da reclamante, acordaram as partes que a mesma manteria a posse sobre essa garagem, utilizando-a, até ao pagamento integral do crédito.

LVI. Ora, esta relação material subsumida nas normas de direito substantivo civil, configura um direito de retenção sobre o imóvel, nos termos do artigo 754.º do CC.

LVII. Situação que o Tribunal a quo não reconheceu, por considerar somente a existência de direito de retenção apenas nas situações elencadas no artigo 755.º do CC.

LVIII. Pelo que considera a ora recorrente que decidiu mal o Tribunal a quo, salvo melhor e douta opinião, quanto ao direito de retenção.

LIX. Devendo o mesmo ser reconhecido à ora recorrente, face ao preenchimento dos pressupostos do aludido instituto.

ASSIM

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER DECLARADO NULO O PROCESSADO, POR VIOLAÇÃO DOS TRÂMITES PROCESSUAIS E DIREITO DO CONTRADITÓRIO.

OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA:

DETERMINAR PELA RECTIFICAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E MATÉRIA DE DIREITO, RECONHECENDO-SE O DIREITO DE RETENÇÃO DA ORA RECORRENTE.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais ao abrigo do nº4 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.  


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões objeto de recurso seriam as seguintes:
1. Nulidade da decisão que conheceu do mérito da reclamação no saneador:
1.2. Sem que tivesse havido lugar a realização de audiência prévia ou a despacho a dispensá-la
1.3. Sem audição prévia das partes, em violação do princípio do contraditório
2. Erro na identificação do proprietário do imóvel
3. Os autos não reuniam elementos para conhecimento de mérito – havendo factualidade não provada nos autos, respeitante à posse da garagem penhorada, deveria o Tribunal a quo proceder à produção de prova, no sentido de apurar a factualidade e considerar (ou não) como provado.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão

A primeira crítica da Apelante à decisão recorrida, reside na circunstância de que, findos os articulados, o juiz a quo procedeu à notificação do agente de execução para prestar esclarecimentos quanto à identificação dos possuidores do imóvel penhorado nos autos, tendo de seguida proferido sentença de não reconhecimento do seu crédito:

- sem que a Apelante tenha sido notificada de tal esclarecimento;

- sem audição das partes – sem designar audiência prévia ou notificação da possibilidade de realização da decisão de mérito sem realização da mesma.

Segundo a Credora/Apelante, o juiz não podia ter decidido de mérito sem antes promover a audiência prévia ou, então, dispensá-la nos termos previstos no artigo 593º CPC, sendo que, ainda que se quisesse socorrer da possibilidade de dispensa de audiência prévia e elaboração do despacho saneador com conhecimento imediato do mérito, à luz do art. 595º, nº1, al. b), ex vi, al. c) do art. 597º, do CPC, tal dispensa sempre deveria ter sido precedida de despacho no sentido de ouvir as partes quanto à agilização formal do processo, ao arrepio do nº3 do art. 3º e do nº1 do art. 6º, todos do CPC.

Vejamos, assim, se o juiz a quo poderia ter conhecido do mérito da reclamação de créditos, sem dar conhecimento às partes: i) da diligência por si solicitada ao Agente de Execução e dos esclarecimentos prestados por este na sequência da mesma, respeitante à questão da posse do imóvel (e cujo resultado foi por si tido em consideração para dar por implicitamente demonstrado que o executado continua na posse da garagem); ii) sem marcação de audiência prévia e, sobretudo, iii) sem dar previamente a conhecer às partes que, no seu entender, os autos reuniam já todos elementos para conhecer do pedido.

A ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (15.000,00 €), inclui, em regra, a realização de uma audiência prévia, regra que comporta unicamente duas exceções tipificadas:

1. nos casos em que a lei o estabelece, e que se mostram elencados no nº1 do art. 592º [a) ações não contestadas que tenham de prosseguir; b) quando o processo deva findar no saneador pela procedência de uma exceção dilatória já debatida nos articulados];

2. nos casos em que o juiz a pode dispensar e que se encontram previstos no nº 1 do artigo 593º.

Fora tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade.

Já quanto às ações comuns declarativas de valor inferior a metade da alçada da Relação, findos os articulados e sem prejuízo do disposto no nº2 do artigo 590º, é ao juiz que cabe definir quais os trâmites que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade e adequação dos atos ao seu julgamento[1] (artigo 597º CPC), entre os quais se contam, entre outros:

a) assegurar o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;

b) convocar a audiência prévia;

c) proferir despacho saneador, nos termos do nº1 do art. 595º (conhecer exceções dilatórias e nulidades processuais, conhecer do mérito da causa).

Competindo ao juiz, nestas ações, decidir sobre quais desses atos a praticar, não se pode afirmar que a regra é a de que os mesmos não sejam praticados[2].

Embora tal poder seja, em princípio, discricionário, não pode o juiz, “não obstante a redação da al. a), deixar de assegurar o exercício do contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa, nos mesmos termos em que o tem de fazer nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação, visto que tal constituiu uma derivação do direito fundamental à jurisdição (art.20. CT)[3]”.

Ou seja, se a opção pelos atos a praticar é discricionária, a satisfação dos princípios que subjazem à previsão de cada um desses atos não o é.

Assim, segundo Lebre de Freitas, nestas ações, não se verificando nenhuma das exceções previstas no art. 592º e a ação não houver de prosseguir, nomeadamente, por ser caso de conhecer do despacho saneador do mérito da ação, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito, a fim de evitar decisões-surpresa. Na opinião de tal autor, se o juiz entender que a matéria a decidir foi objeto de suficiente debate nos articulados, pode dispensar a diligência, no âmbito do exercício do dever de gestão processual, a título de adequação formal, mas justificando a dispensa dessa diligência e devendo sobre tal dispensa ouvir as partes, ao abrigo do disposto nos arts. 6º, nº1, e 3º, nº1[4].

Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[5] admitem ainda que, em caso de manifesta improcedência do pedido, e tal exceção já haja sido suficientemente debatida nos articulados, também aí o juiz poderia dispensar a audição das partes antes de conhecer do pedido no saneador.

No caso em apreço, não nos encontramos perante uma ação declarativa comum, mas perante uma ação declarativa incidental e instrumental, de reclamação, verificação e graduação de créditos, a processar por apenso à ação executiva, e que se contém algumas especialidades que a afastam da ação comum.

O procedimento posterior aos articulados encontra-se regulado no artigo 791º do CPC:

1. Se a verificação de algum dos impugnados estiver dependente de produção de prova, seguir-se-ão os termos do processo comum declarativo, posteriores aos articulados (…) ou seja, o disposto nos arts. 590º e ss (nº1 do artigo 790º);

2. Se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos impugnados não depender de prova a produzir, proferir-se-á logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente (nº2 do artigo 791º);

3. São havidos como reconhecidos os créditos e as respetivas garantias reais que não foram impugnados, sem prejuízo das exceções ao efeito cominatório da revelia, vigentes em processo declarativo, ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado a rejeição liminar da declaração (nº4 do artigo 790º).

O que se pretende afirmar com a asserção do nº2, de que, se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos créditos impugnados não depender de prova a produzir, “proferir-se-á logo sentença”, encontra-se conexionado com:

- a consagração do efeito cominatório pleno no caso de ausência de impugnação – haver-se-ão como reconhecidos esses créditos e as suas garantias reais (previsto no nº4) –, afastando-se o regime declarativo comum que, nessas circunstâncias, no caso de ausência de impugnação, levaria à prolação de despacho a considerar confessados os factos, ouvindo-se as partes quanto ao direito, antes de proferir sentença[6].

- com a opção de uma simplificação processual relativamente ao processado comum – no caso de “a verificação dos créditos impugnados não depender de prova a produzir”, o processo passará de imediato para a fase da elaboração da sentença, sem que haja lugar, em regra, à realização da audiência prévia.

E em que circunstâncias é que a verificação de créditos impugnados não depende de prova a produzir?

- quando não existam factos controvertidos, baseando-se a impugnação do crédito unicamente em questões de direito;

- quando, havendo factos controvertidos, o apuramento da matéria de facto impugnada (fundamento da ação ou da defesa) se afigure irrelevante e, como tal inútil, porquanto, ainda que se provassem tais factos, os mesmos não influiriam no decisão de mérito.

De qualquer modo, a sentença a que se reporta o nº2 do art. 791º terá de ser proferida com respeito dos princípios gerais do processo civil, nomeadamente, com observância do princípio do contraditório, segundo o qual tal princípio deve ser observado ao longo do processo, não sendo lícito ao juiz, “salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir de questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (artigo 3º, nº3, do CPC).

Com a introdução da regra do nº3 pretende-se impedir que, a coberto, deste princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão[7].

Assim, se houver que apreciar exceções não debatidas nos articulados ou se, apesar da existência de matéria controvertida, o juiz entender que os autos reúnem todos os elementos para conhecer de imediato do mérito da causa, a elaboração da sentença terá de ser precedida de audição das partes, quer quanto à matéria da exceção, quer quanto à possibilidade de conhecimento imediato do mérito. Com efeito, a existência de matéria controvertida, relativamente à qual ambas as partes ofereceram os seus meios de prova, levaria, em princípio, ao prosseguimento dos autos para instrução da causa, pelo que, tal como afirma a Apelante, o conhecimento do mérito nesta fase, constituiu uma antecipação do processado, e, como tal, uma decisão-surpresa para as partes, que com o disposto no nº3, do artigo 3º, se pretende evitar.

Ou seja, à questão de saber se, havendo factos impugnados, a decisão de não produzir prova quanto aos mesmos, antecipando o momento do mérito, envolvendo a decisão sobre se, em tal caso, é de seguir os termos processuais do nº1 ou, se, a via do prosseguimento dos autos, tenderíamos a concluir dever ser, ela própria, sujeita ao contraditório das partes.

Mas o caso em apreço envolve ainda outros contornos – havendo factos controvertidos, o juiz entendeu ser necessário apurar quem seria o atual ocupante da fração, determinando oficiosamente a notificação do Agente de Execução “para esclarecer, se necessário através de auto de constatação, quem se encontrava na posse do imóvel penhorado aquando da penhora nos autos executivos”, na sequência da qual, após deslocação ao local, o AE veio informar que “o executado é ali visto com alguma frequência”.

Impugnados pelo exequente todos os factos alegados no requerimento de reclamação de créditos, o tribunal a quo decidiu (afastando-se do processado previsto no nº2, do art.790º), oficiosamente, ordenar a produção de prova com vista a apurar na posse de quem se encontraria a garagem penhorada relativamente à qual é invocado um direito de retenção.

E de seguida, profere sentença a decidir do mérito, sem que tal prova tivesse sido sujeita a contraditório.

Com efeito, sem se assegurar que as partes houvessem sido notificadas da diligência que determinara oficiosamente e do respetivo resultado, e apesar da existência de outras matérias controvertidas, o juiz a quo, entendendo que o processo detinha já todos os elementos para conhecer do mérito – dispensando (implicitamente) a produção de qualquer outra prova, quer quanto aos demais factos controvertidos, quer quanto ao facto sobre que incidira a prova por si determinada oficiosamente e retirando às partes o direito a quanto a ele produzirem a prova por si indicada –, decide do mérito, considerando que a reclamante não se encontrava na posse da fração penhorada, com base nas diligências a que havia procedido.

Se o juiz entendia que havia lugar a produção de prova quanto a algum dos factos controvertidos, por o considerar relevante para a decisão de mérito, cairíamos claramente na hipótese do nº1 do 791º, devendo seguir-se “os termos do processo comum declarativo, posteriores aos articulados”, ou seja, no caso, os termos previstos no art. 597º e ss., por se tratar de incidente declarativo de valor inferior a metade da alçada da Relação do seguindo-se as fases de saneamento – podendo haver lugar a despacho pré-saneador, audiência prévia e despacho saneador – e condensação, audiência final e sentença.

O que o juiz não podia era, à margem das partes, determinar oficiosamente a realização de determinadas diligências com vista ao apuramento de factos controvertidos, sem lhes dar conhecimento das mesmas e do respetivo resultado[8], passar de imediato a conhecer do mérito, socorrendo-se de tais diligencias para dar como (implicitamente) demonstrado determinado facto, julgando improcedente o crédito do reclamante.

Com efeito, da respetiva leitura ressalta que a decisão recorrida de improcedência da reclamação, assenta na inexistência do invocado direito de retenção do crédito da reclamante, com os seguintes fundamentos:

- por um lado, o alegado acordo (verbal) entre as partes de que a credora ostentaria um direito de retenção até integral pagamento da dívida, não teria a virtualidade de criar um direito de retenção – o direito de retenção resulta diretamente da lei e não do acordo entre as partes;

- por outro lado, afirmando não possuir a declaração de reconhecimento de dívida qualquer tipo de menção ou ligação à aquisição pelo executado do imóvel penhorado, e invocando as informações obtidas pela Sra. AE de que o executado é ali visto com alguma frequência, a decisão recorrida conclui que o direito de retenção invocado pela reclamante também não resultava diretamente da lei, nos termos dos arts. 754º e 755º do CC.

Ou seja, não só, incidiu sobre questões não debatidas pelas partes, como se socorreu de um facto que veio a dar como provado, na sequência de uma diligência de determinou oficiosamente e cujo resultado foi por si tido em consideração (do qual terá deduzido implicitamente que a credora reclamante não se encontraria na posse do imóvel), sem o exercício de qualquer contraditório.

Ao proferir decisão a conhecer de imediato do mérito da reclamação de créditos:

- dando por demonstrado determinado facto com base em prova por si oficiosamente determinada, sem ter previamente dado a conhecer às partes o resultado de tais diligências;

- e, encontrando-se controvertidos a quase totalidade dos factos, sem prévia observância do disposto no artigo 597º (por força do nº1 do art. 790º) – convocando audiência prévia, ou, dispensando-a, assegurar o exercício do contraditório quanto ao mérito da causa –,

a decisão recorrida configura uma decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório nos termos previstos no nº3 do artigo 3º CPC.


*

Há muito se discute na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se a prolação de uma decisão com violação do princípio do contraditório configura uma nulidade processual ou uma nulidade da decisão ou da sentença, para efeitos de determinar se o cometimento de tal irregularidade pode ser suscitado em sede de recurso ou perante o juiz da causa, nos termos previstos para as nulidades em geral (artigos 196ºa 202º, CPC).

São três as correntes que se consegue identificar na jurisprudência sobre a natureza e o regime de arguição da nulidade consistente na prolação de uma decisão com violação do principio do contraditório: uma primeira que defende que estamos perante uma nulidade procedimental, sujeita ao regime geral dos arts. 195º e 199º[9]; uma outra qualifica-a como nulidade processual, mas cujo remédio reside, não na reclamação para o juiz, mas na interposição de recurso; e uma terceira que entende que estamos perante uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, al. d), igualmente impugnável pela via do recurso.

O incumprimento do princípio do contraditório por parte do tribunal recorrido, seria suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no artigo 195º, nº1, do CPC, por omissão de um ato que a lei prescreve e que consistia em facultar às partes o exercício do contraditório, omissão esta que inquina a decisão de modo a poder influenciar no exame ou na decisão da causa.

Contudo, “a intensidade da violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processo civil, que a decisão final ao dar cobertura, implícita a esse desvio processual, acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada[10]”.

A partir desta assunção, a doutrina (seguida pela jurisprudência dominante), vinha adotando a segunda corrente, sustentando que esta nulidade processual ao estar coberta por decisão judicial, e ainda que não se configurasse como uma das nulidades previstas no artigo 615º, nº1 do CPC, acabava por inquinar a decisão, ferindo-a de nulidade.

Em consequência, e invocando a máxima tradicional de que “das nulidades reclama-se, das decisões recorre-se”, entendia-se que o meio de reação próprio contra esta decisão judicial seria o recurso a interpor da mesma, com fundamento na sua nulidade por falta de audição das partes antes de ter sido proferida a decisão que é objeto do recurso.

Era essa a posição assumida por José Alberto dos Reis, que afirmava que “se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infração de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo[11]”.

Esta posição – de que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial, e que se há despacho que pressuponha o ato viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação da nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso, era igualmente partilhada por Manuel de Andrade[12], Anselmo de Castro[13], e Antunes Varela[14].

O debate sobre tal questão levou ao surgimento da terceira corrente, liderada por Miguel Teixeira de Sousa, no sentido de que a violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº3, do CPC, dá origem, não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195º do CPC, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), CPC[15].
Tal autor faz assentar tal distinção na dupla perspetiva pela qual a sentença pode ser considerada – sentença como trâmite ou vista como ato[16].
A decisão pode apresentar vícios de mera oportunidade, que ficam, em princípio, sujeitos ao regime geral das nulidades do processo (artigos 195º a 202º), por ex., se o juiz proferir decisão final omitem-se atos que a lei prescreve, podendo isso influir no exame da causa (art. 195º). A inoportunidade da decisão (aspeto de forma) conduz à sua nulidade enquanto ato processual[17].
A lei contém ainda um conceito próprio e especifico de nulidade de decisão, previsto no artigo 615º CPC, respeitante a um vício de limites, ou seja, quando a sentença não contém tudo o que devia ou contém mais do que devia.
E, segundo Miguel Teixeira de Sousa[18], a nulidade prevista na al. d), do nº1, do art. 615º – quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento –, tanto abarca a não possibilidade absoluta de conhecimento de uma questão, se o tribunal não pode conhecer, em circunstância alguma, dessa questão (por ex., quando a questão não foi levantada entre as partes e não é de conhecimento oficioso), como quando o tribunal não pode conhecer, em certas condições, dessa questão, mas poderia conhecê-la em outras circunstâncias [por ex., não pode conhecer da falta de um pressuposto processual sanável sem convidar a parte a suprir o vício (art. 6º, nº2) ou o tribunal não pode proferir uma decisão surpresa (art.3 nº3), mas pode decidir com base num fundamento não alegado depois de ouvir as partes[19]]. 
A decisão-surpresa é um vício único e próprio, respeitando à decisão como ato, sendo uma decisão nula por excesso de pronúncia [art. 615º, nº1, al. d)], dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem audição prévia das partes, não se pode pronunciar[20].
Reconhecendo que a questão nem sempre encontra resposta tão evidente – as nulidades processuais devem ser arguidas no processo perante o juiz (arts. 197º e 198º), ainda que tais nulidades se projetem na sentença, mas que não se reportem a qualquer das alíneas do nº1 do artigo 615º –, António Santos Abrantes Geraldes[21], sustenta que assim não será quando é cometida uma nulidade de conhecimento oficioso ou em que o próprio juiz, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa: “Sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, al. d).[22]
Rui Pinto[23] chega à mesma conclusão com base em diferente abordagem: afirmando que, tal como qualquer ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195º CPC, nomeadamente nos casos em que se trate de um ato processual fora do momento devido ou no caso de decisão-surpresa, sustenta que tais nulidades só podem ser conhecidas pelo juiz da causa quando respeitem ao procedimento e já não à matéria da causa. O juiz não pode conhecer da arguição da nulidade por decisão surpresa pois esta é atinente ao objeto da causa, apenas podendo ser invocada como fundamento de recurso, nos termos gerais, caso ele seja admissível.
Também na Jurisprudência encontramos inúmeros Acórdãos no sentido de que a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº3 do CPC dá origem, não uma nulidade processual nos termos do artigo 195º, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d) – cfr, entre outros, Acórdãos do STJ de 22-02-2017, relatado por Chambel Mourisco, de 13-10-2020, relatado por António Magalhães, de 16-12-2021, relatado por Luís Espírito Santo, e de 07-06-2022, relatado por Ricardo Costa; Ac. do TRE de 25-09-2014, relatado por Francisco Xavier, Ac. do TRL de 11-07-2019, relatado por Micaela Sousa, Ac. do TRP de 20-05-2020[24].
Por fim, é ainda apontada a possibilidade de uma quarta via, que considerando que a o contraditório é um direito processual fundamental, a falta da sua atuação concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, pelo que uma sentença proferida nessas condições pode considera-se ferida de nulidade extra-formal, um vício da sentença que deve ser feito valer pela via do recurso[25].

Não procedendo à prévia comunicação às partes da diligência oficiosamente   determinada e dos respetivos resultados e da sua intenção de conhecer de imediato do mérito, para que as partes pudessem tomar a posição que muito bem entendessem, e sem aguardar a sua reação, com violação da lei processual aplicável e em violação do principio do contraditório, a prolação da sentença nestas circunstâncias constituiu uma nulidade da própria decisão.

O que se afigura decisivo e a apontar para uma nulidade da própria decisão e não uma nulidade processual, reside na circunstância de se tratar de um vício da decisão: ela só é nula por ter sido proferida nos moldes em que o foi:

- se não se tivesse socorrido das diligências que efetuou para averiguar quem tinha a posse da fração para o efeito de dar como provado que a credora não detinha a posse da mesma, não atendendo a tal facto por o considerar irrelevante, não haveria aqui qualquer nulidade resultante de não ter dado a conhecer o resultado de tais diligências às partes (e de não ter produzido a prova a tal respeito oferecida pelas partes).

- se tivesse optado por determinar o objeto do processo e os temas de prova, quanto aos factos controvertidos, também não teria cometido qualquer nulidade pelo facto de não ouvir as partes.

E se considerássemos tratar-se de uma nulidade da sentença, então, sendo a sentença suscetível de recurso ordinário, a nulidade tinha necessariamente de ser neste suscitada (nº4 do art. 615º).

De qualquer modo e independentemente da qualificação que façamos de tal nulidade – seja por se considerar uma nulidade inominada nos termos do artigo 195º, nº1, seja por se considerar uma nulidade nos termos do artigo 615º, nº1, CPC, ou por dar relevo ao facto de violar um direito processual fundamental –, entende-se que a invocação de tal vício é de fazer valer pela via do recurso.

Concluindo, é de anular a decisão recorrida, a ser substituída por outra que dê conhecimento às partes da diligência ordenada e do respetivo resultado, e por decisão de gestão processual que, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo, designe audiência prévia ou, dispensando-a, assegure o contraditório quanto à intenção de conhecer do mérito.


*

Face à declaração de nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório, ficam prejudicadas as restantes questões levantadas nas alegações de recurso.

A Apelação é de proceder sem outras considerações.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, anulando-se a decisão recorrida, a fim de assegurar o exercício do contraditório, quer quanto ao resultado da diligência oficiosamente determinada pelo tribunal, quer quanto à sua intenção de apreciar de imediato o mérito da causa, por em seu entender, e apesar da existência de factos controvertidos, os autos disporem de todos os elementos para o efeito.

Custas da apelação a suportar pela parte vencida a final.


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Declaração de voto de vencido (art. 663.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC)

Dissenti da decisão proferida maioritariamente por entender que, no caso, este tribunal não podia tomar conhecimento do vício de nulidade esgrimido contra a decisão recorrida.

Uma primeira nota para assinalar a clareza do acórdão quanto ao enunciado das teses essenciais postas em confronto quanto à natureza do vício prévio/da decisão proferida com omissão de regras processuais destinadas a assegurar o contraditório - com consequências designadamente na forma de impugnação da decisão -, o que me dispensa de as renovar aqui.

A segunda nota para assumir, e daí a minha fonte de divergência com o douto acórdão, a minha inteira adesão à configuração do vício como nulidade processual geral prevista no art. 195.º, n.º 1 do CPC, acompanhando, ao demais, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (CPC Anotado, Vol. 1.º, 3.ª edição, pág. 10), salvo nos casos em que o ato afetado se encontra “coberto por qualquer decisão” que se lhe seguiu (v.g. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 393).

“Coberto por decisão judicial” não com o sentido e alcance de incluir qualquer decisão judicial proferida e que não foi precedida de ato processual imposto por lei - como tem sido frequentemente interpretada a expressão, muito na visão utilitarista de Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, pág. 134 ) - antes com o significado de a própria decisão, ela mesmo, ainda que em termos implícitos, assumir a não realização do ato imposto ou ordenar a prática de ato ilegal; ou seja o sentido originariamente conferido pelo Prof. Alberto dos Reis (Comentário, 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 597 a 513).

Quando assim não for, o vício é de natureza processual, que não gera nulidade da sentença/decisão.

E, como bem se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de 03.05.2021 (proferida no processo 1250/20.9T8VIS.C1, disponível em www.dgsi.pt) “ Uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites (…) Tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro material da decisão ou um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo”.

Por outro lado, o entendimento que vimos seguindo parece ser o único compatível com o nosso modelo de recursos, modelo que os configura com o objetivo de apreciar questões já antes levantadas e decididas no processo (salvo quanto às questões de conhecimento oficioso) e não destinado a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido

Sendo os recursos meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não pode confrontar-se o Tribunal ad quem, como ocorre na situação dos autos, com questões novas.

Assim, a meu ver, no caso dos autos, reconduzindo-se o vício a uma nulidade geral, não coberta pela própria decisão recorrida (com a abrangência limitada acima enunciada), devia a nulidade ter sido primeiramente invocada perante o tribunal onde foi cometida (1.ª instância) e só da respetiva decisão podia ser interposto recurso para a segunda instância (v.g. os acórdãos do STJ, de 01.02.2011, proc. 6845/07.3TBMTS.P1.S1, de 14.05.2009, proc. 09B0677; de 22.09.2005, proc. 05B1488 e de de 13.01.2005, proc. 04B4031).

Em conformidade com esse entendimento votei no sentido de o recurso não poder ser apreciado nesta parte.           
Paulo Correia                                                  

 Coimbra, 02 de maio de 2023

                                                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).



[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p. 703.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, Almedina, p. 673.
[3] José Lebre de Freitas, obra citada, p. 673.
[4] Obra citada, pp. 641-642.
[5] “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os artigos da Reforma”, 2013, Vol. I, Almedina, p. 493, nota 1.1. ao artigo 593º.
[6] Como afirmam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, nesta sede, o regime associado à revelia operante é mais intenso do que o fixado em geral para a ação declarativa: em vez da simples confissão dos factos (art. 567º, nº1), a falta de oposição é sancionada, em regra com um efeito cominatório pleno, conduzindo logo ao reconhecimento dos créditos reclamados e das garantias reais respetivas (nº4) – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, p. 197.
[7] Neste sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p. 19.
[8] Quando se trate de prova constituenda, e ainda que seja determinada oficiosamente, o principio do contraditório implica que a ambas as partes seja facultada a intervenção no ato da sua produção e que possam discutir todas as provas colhidas oficiosamente – José Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., Coimbra Editora, pp. 131-132, em especial, nota 21.
[9] Neste sentido, entre outros, Ac. do TRC de 03-05-2021, relatado por Moreira do Carmo, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do STJ de 22-02-2017, disponível in www.dgsi.pt.
[11] “Código Civil Anotado”, Vol. V, reimpressão, Coimbra-1984, p. 424.
[12] “Noções Elementares de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, p. 424.
[13] “Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, p. 133.
[14] “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, p. 372 e ss.
[15] Na jurisprudência, cfr.
[16] Cfr., “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, disponível in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html .
[17] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, “Manual do Processo Civil”, AAFDL Editora - 2022, Vol. I, p.628.   
[18] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pp. 632-633.
[19] Neste sentido de que a violação do principio do contraditório do art. 3º, nº3 do CPC, dá origem, não a uma nulidade processual nos termos do artigo 195º, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronuncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), se pronunciou também o Acórdão do STJ de 13-10-2020, relatado por António Magalhães, disponível in www.dgsi.pt.
[20] “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, disponível in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html.
[21] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 3ª ed., 2016, Almedina, pp. 24-25.
[22] Em igual sentido, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p.. 20-21.
[23] “Manual do Recurso Civil”, Vol. I, AAFDL Editora, pp. 90-91.
[24] Todos disponíveis in www.dgsi.pt. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, comentando o citado acórdão do TRE de 25-09-2014, considerou que sendo este entendimento menos rigoroso, é louvável, na medida em que enforma de uma compreensão inteligente da razão de ser dos ónus processuais – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pp. 739-740.
[25] Luís Correia de Mendonça, “O Contraditório e a Proibição das Decisões Surpresa”, disponível in https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf.