FALTA DE CITAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - O ónus da prova da falta de citação, ao abrigo do artº 188º nº1 al. e) do CPC,  impende sobre o citando, e mesmo que tal falta exista, ela só é relevante se ele provar que não lhe é imputável, ou seja, que não contribuiu para tal falta, dolosa ou negligentemente, em função de factos que praticou ou omitiu ou que lhe era exigível que não praticasse ou não omitisse.
II - Não estão presentes tais requisitos – antes eles são infirmados -  se se prova que foram praticados todos os atos de citação, ao abrigo dos artºs 232º e 233º do CPC, para morada que o requerido identificou em procuração que juntou aos autos, tendo inclusive, a sua mandatária sido notificada de despacho proferido nos autos.

Texto Integral


Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2ª Adjunto: Moreira do Carmo

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A... – SOCIEDADE FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A, intentou contra AA  procedimento cautelar comum.

Peticionou:

Seja decretada a apreensão imediata do veículo automóvel da marca ..., modelo E 220D ..., com a matrícula ..-UV-.., e com o número de Chassis ....

Requereu ainda a dispensa do ónus de propor a ação principal.

Foi considerado que  requerido foi citado para deduzir oposição ao procedimento, mas não deduziu qualquer oposição dentro do prazo legal.

Foram apresentadas alegações pela requerente, conforme facultado pelo art. 567º, nº 2 do CPC.

2.

Seguidamente foi proferida a seguinte sentença:

«Atento o disposto nos artigos 366º, nº 5 e 567º, nº1, ambos do Código de Processo Civil revisto, dão-se como assentes os factos articulados pelo/a requerente.

Da factualidade apurada resulta provada a qualidade de proprietária da requerente, bem como o direito à restituição da viatura para que lhe possa dar o destino que entender, atenta a cessação do contrato de aluguer celebrado entre as partes e o não exercício válido pelo requerido da opção de compra.

Destinando-se a providência a acautelar o direito de propriedade e pedida que está a restituição através da apreensão do veículo, considera-se que a natureza da providência decretada é adequada a realizar a composição definitiva do litígio, justificando-se a inversão do contencioso.

Assim, e nos termos do artigo 567º, nº 3 do CPC e aderindo, quanto ao demais, aos fundamentos alegados no requerimento inicial quanto à verificação dos requisitos da providência cautelar comum, bem como ao abrigo do disposto nos artigos 405º, 406º, 798º, 799º, todos do Código Civil, e arts. como 366º e 369º do Código de Processo Civil:

- Decreto a providência requerida de apreensão do veículo automóvel da marca ..., modelo E 220D ..., com a matrícula ..-UV-.., e com o número de Chassis ..., bem como dos respectivos documentos e chaves, e a sua entrega à requerente.

- Determino a inversão do contencioso, dispensando a requerente do ónus de propositura da ação principal.»

3.

Inconformado recorreu o requerido.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Por douta Sentença proferida nos presentes Autos de Procedimento Cautelar foi decretada a Providência Requerida pela Requerente A... – Sociedade Financeira de Crédito S.A., de apreensão do veículo automóvel da marca ..., modelo E 220D ..., com a matrícula ..-UV.., e com o número de Chassis ..., bem como dos respetivos documentos e chaves, e a sua entrega à Requerente.

2. Tal não poderia ter acontecido.

3. Com efeito, o Recorrente não tomou conhecimento dos atos de citação que foram efetuados, por ato que não lhe pode ser imputável, havendo, in casu, falta de citação, nos termos e para efeitos do artigo 188.º n.º 1 al. e) do CPC.

4. Sendo que, a falta de citação acarreta a nulidade de todos os atos praticados após o requerimento inicial, nos termos do artigo 187.º al. a) do Código Processo Civil, doravante CPC.

5. O Recorrente não teve conhecimento do procedimento cautelar que contra si foi proposto pela Requerente A... – Sociedade Financeira de Crédito S.A, até ao momento.

6. O Recorrente reside, maior parte do seu tempo, na Suíça onde exerce a sua atividade profissional de empresário e, nunca chegou ao seu conhecimento, nunca viu, nem tampouco, assinou qualquer documento que comprove que ocorreu a sua citação para se defender nos presentes Autos.

7. O Recorrente sabe agora que a primeira tentativa da sua citação ocorreu via postal com aviso de receção, no entanto nunca o mesmo recebeu, ou teve conhecimento, de qualquer carta registada com aviso de receção que correspondesse à sua citação para os presentes Autos.

8. Tomou conhecimento, que no dia 07/12/2022, se procedeu, novamente, à tentativa da sua citação, desta vez através de citação com hora certa, a qual também não foi possível por o recorrente não se encontrar no local, uma vez que se encontrava na Suíça em trabalho.

9. Não poderia o Exmo. Sr. agente de execução/ Exmo. Sr. funcionário judicial apurar que o citando reside ou trabalha, efetivamente no local indicado, procedendo a este tipo de citação, uma vez que o mesmo se encontrar a laborar na Suíça e passa lá maior parte do seu tempo, não tendo momentos certos para regressar a Portugal, apenas vindo quando necessário.

10. Mesmo que assim não se considere, cumpre salientar que o recorrente nunca foi citado pessoalmente por qualquer agente de execução ou funcionário judicial, nem por qualquer outra pessoa que lhe tenha transmitido essa informação nos termos e para efeitos do n.º 1 do artigo 232.º do CPC.

11. Por outro lado, nunca lhe foi transmitido, por qualquer pessoa, que o mesmo havia sido citado judicialmente para se defender no procedimento cautelar nos termos do artigo 232.º n.º 2 al. b).

12. E nunca viu afixado qualquer aviso em qualquer local informação relativa à sua sua citação, nunca tendo tal procedimento chegado ao seu conhecimento por qualquer outro modo.

13. E, portanto, também não se cumpriu a citação do recorrente, nos termos do artigo 232.º n.º 1 e n.º 2 al. a) e b).

14. Acresce que o recorrente nunca rececionou, conheceu, viu ou assinou qualquer carta registada enviada em cumprimento do artigo 233.º do CPC.

15. Não pode aceitar-se o conhecimento da citação pelo requerido quando, comprovadamente, a primeira tentativa de citação realizada por carta registada com aviso de receção não chegou ao seu conhecimento, não a tendo nunca assinado, a segunda tentativa de citação com hora certa foi igualmente infrutífera e, por fim, o mesmo não conheceu e não assinou dentro do prazo da contestação, carta registada nos termos do artigo 233.º do CPC

16. Com efeito, o recorrente nunca conheceu o conteúdo da sua citação, nem qualquer um dos elementos constantes do artigo 227.º do CPC, respeitantes ao procedimento cautelar contra si intentado.

17. O Recorrente não teve, até há pouco tempo, conhecimento do procedimento cautelar que contra si corria, sendo completamente alheio ao mesmo, sendo essa a razão pela qual não teve qualquer manifestação nos Autos, designadamente através de apresentação de contestação,

18. Para além de não ter tomado conhecimento do ato citação, também tal desconhecimento não lhe pode ser imputado.

19. O Recorrente exerce a sua atividade laboral na Suíça, país onde passa a maior parte do seu tempo e, dessa forma, naturalmente não recebeu a sua citação por carta registada com aviso de receção.

20. Por outro lado, a citação com hora certa prevê, no mais, que o citando resida ou trabalhe efetivamente no local indicado, o que não é o caso.

21. O Recorrente passa maior parte do seu tempo, na Suíça, residindo lá, não tendo datas específicas para vir a Portugal.

22. Ainda assim, mesmo que assim não se entenda o recorrente nunca foi citado pessoalmente por qualquer agente de execução ou funcionário judicial, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 232.º do CPC.

23. Nunca lhe foi transmitido, por qualquer pessoa, que o mesmo havia sido citado judicialmente para se defender no procedimento cautelar nos termos do artigo 232.º n.º 2 al. b).

24. Nunca viu afixado qualquer aviso no local relativamente à sua citação, nem tal informação lhe chegou por qualquer outro modo.

25. Ora, é por demais evidente, que o Citando nunca recebeu, por qualquer meio a sua citação para os presentes autos.

26. Sendo que o não recebimento da mesma não lhe pode ser, efetivamente, imputado.

27. Uma vez que a citação é um formalismo imposto por lei, designadamente pelo artigo 219.º do CPC, por permitir ao requerido, exercer o seu contraditório, direito basilar no processo civil, deve todo o processado à exceção do requerimento inicial ser declarado nulo, nos termos do artigo 187.º al. a) e 195.º n.º 1, ambos do CPC.

Contra alegou a requerente pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

Nulidade do processado, com exceção do requerimento inicial, por falta de citação do requerido.

5.

Apreciando.

5.1.

Resultam dos autos a prática dos seguintes atos processuais, aliás discriminados pela recorrida, e que o recorrente não impugnou, essencialmente tendentes à citação do requerido:

i. No dia 03.10.2022, a Recorrida deu entrada do presente procedimento cautelar contra o Recorrente;

ii. No dia 04.10.2022, o Tribunal a quo proferiu Despacho a ordenar a citação do Recorrente para que este, querendo, viesse deduzir oposição ao procedimento cautelar; iii. No dia 06.10.2022, a secretaria do Tribunal remeteu a carta de citação ao Recorrente para a morada indicada no procedimento cautelar;

iv. No dia 20.10.2022, a carta de citação foi devolvida ao Tribunal com a menção “objeto não reclamado”.

v. Em 30.11.2022, o Recorrente juntou procuração forense aos autos a favor da (ainda atual) Mandatária – Cfr. Requerimento sob a referência Citius 7693561.

vi. Em 02.12.2022, o Tribunal Ordenou à Agente de Execução BB (doravante a “Agente de Execução”) que levasse a efeito a citação do Recorrente, através de contacto pessoal, na morada constante da procuração forense como pertencendo ao Recorrente;

vii. No dia 06.12.2022, a Agente de Execução deslocou-se à referida morada e, não tendo encontrado qualquer pessoa nesse local mas apurando que o Recorrente aí residia, deixou nota com indicação de que estaria presente no mesmo local, às 15h15m do dia 07.12.2022 – Cfr. “Aviso de Dia e Hora Certo” – Referência Citius 7716395;

viii. No dia 07.12.2022, a Agente de Execução efetuou a citação do Recorrente, mediante afixação na referida morada, com a presença de duas testemunhas.

ix. No dia 12.12.2022, a Agente de Execução remeteu uma carta ao Recorrente que este se considerava citado mediante afixação.

x. No dia 29.12.2022, o Tribunal proferiu Despacho a ordenar a citação do Recorrente, através da sua mandatária, para, querendo, se pronunciar sobre a inversão do contencioso requerida pela Recorrida.

xi. O Recorrente não deduziu oposição ao procedimento cautelar e não se pronunciou relativamente à requerida inversão do contencioso.

5.2.

Prante este iter procedimental é meridianamente evidente que falece razão ao recorrente, apresentando-se até a atitude e pretensão recursivas temerárias por patentemente infundamentadas.

«To cut a long story short», passe o anglicismo, ou seja, muito breve e resumidamente, há que dizer, reiterando os argumentos da recorrida, o seguinte.

Frustrada a citação por carta registada e a/r para a morada inicialmente indicada como sendo a residência do requerido – artº 228º do CPC -  foi pedida a intervenção de agente de execução para  a sua efetivação, nos termos do artº 231º do CPC.

Antes desta se efetivar, o requerido juntou aos autos procuração forense ao que parece – pois que o nome não coincide totalmente -  a favor da mesma ilustre advogada que patrocina o recurso, na qual foi indicada outra morada.

A Srª Agente de execução diligenciou pela citação requerido já nesta morada.

Não o tendo conseguido pessoalmente, mas apurando que ali residia – o que era de presumir, pois que foi o próprio requerido que, na procuração, indicou tal morada como sendo sua -  seguiu a ritologia legal: deixou nota com indicação de que estaria presente no mesmo local, às 15h15m do dia 07.12.2022 e no dia 07.12.2022, efetuou a citação do requerido, mediante afixação na referida morada, com a presença de duas testemunhas, e no dia 12.12.2022, remeteu-lhe uma carta com a menção de que se considerava citado mediante afixação; tudo conforme o previsto nos artºs 232º e 233º.

Finalmente, «the last, but not the least,» passe, mais uma vez, o estrangeirismo, ou seja, por último mas não de somenos, antes relevantemente, a mandatária do requerido foi notificada de despacho proferido no processo, atinente à possibilidade da inversão do contencioso.

Perante este acervo factual, pasma-se como é que o requerido e a sua ilustre mandatária arguem a nulidade do processado por falta da sua citação ao abrigo do artº 188º nº1 al. e) do CPC, o qual estatui:

1 - Há falta de citação:

e) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.

Na verdade, como resulta da sua letra e constitui jurisprudência pacífica, deste  segmento normativo emergem dois requisitos para a verificação da sua previsão: i) -   o ónus da prova da falta da citação impende sobre o citando; ii) a falta de citação só é relevante se ela não lhe for imputável, ou seja, se ele não contribuiu para tal falta, dolosa ou negligentemente, em função de factos que praticou ou omitiu ou que lhe era exigível que não praticasse ou não omitisse – cfr.  Acs. RG de 10.07.2018, p. 4353/17.3T8BRG-A.G1 e da  RC de 13.07.2020, p. 1186/19.6T8CBR-B.C1, in dgsi.pt.

Ora, reitera-se,  perante os atos que se praticaram no processo e supra aludidos, é evidente que o requerido não cumpriu minimamente estas exigências legais.

Antes pelo contrário, perante tais atos, a conclusão a retirar é que ele, pessoalmente, ou, ao menos, através da sua mandatária, tiveram conhecimento, ou era-lhes exigível que tivessem, da instauração do procedimento e da sua tramitação.

Na verdade, se mais não houvesse, que há como se viu, como expende a recorrida, e outrossim se afigura jurisdicionalmente consolidado: A junção de procuração outorgada pela ré a advogados configura um ato de intervenção no processo, o qual pressupõe que tem conhecimento da existência dos autos.

Destarte, o recurso, factual e juridicamente, não tem qualquer amparo, apresentando-se patentemente descabido.

 E apenas não se despoletando tramitação tendente a apurar da litigância dolosa do requerido e da falta de cumprimento dos deveres deontológicos da sua  ilustre advogada subscritora, com alguma condescendência e no pressuposto de que a presente atuação se deveu a uma menos refletida e errónea, mas não dolosa, apreciação da situação.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente.

Custas  recursivas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em três UCs.

Coimbra, 2023.05.02.