CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Sumário

I – O caso julgado afirma-se negativamente como exceção e positivamente como autoridade.
II – A autoridade de caso julgado obsta a que se defina de modo diverso situação já anteriormente julgada.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

Por apenso a Execução de Decisão Judicial Condenatória instaurada por AA contra BB, este último deduziu embargos à execução, através dos quais veio invocar que:

- foi acordado nos pontos 4º e 5º da transação homologada por sentença, dada à execução, que, depois de apurado o montante em dívida nos créditos em causa, a cabeça de casal comunicaria ao interessado o montante que lhe caberia pagar nos mútuos identificados;

- por isso, a exequente não dispõe de título executivo bastante para a execução, uma vez que a quantia em dívida ainda não se encontra liquidada;

- o apuramento do valor a transferir pelo exequente à executada no âmbito do acordado no ponto 4 da transação, não é possível de obter através de mero cálculo aritmético;

- quando assim é, como refere Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3.º, pág. 254, “Não bastando fazer contas, o exequente, tem, no requerimento inicial, de alegar os factos de cuja prova a liquidação depende.”;

- e, esta, como decorre dos dispositivos supra referidos tem de acontecer na ação declarativa onde foi proferida a sentença genérica;

- a falta de liquidação incidental de sentença genérica tem como consequência o indeferimento liminar do requerimento executivo porque a sentença não constitui título executivo nessa parte;

- a liquidação, no caso concreto, deveria ter sido deduzida mediante incidente de liquidação, apresentado no processo de declaração, cuja instância se renova (artigos 358º, 359º e 360º do C.P.C.), porquanto houve condenação genérica e a liquidação da obrigação do pagamento não depende de simples cálculo aritmético;

- por intermédio do seu patrono, a exequente enviou, em 18 de Maio de 2021, um email a informar o executado que o montante que lhe caberia transferir seria 50% de: “1. Crédito Particular com garantia nº ...34;

a) €3.152,73 – Capital em dívida

b) €242,41 – Despesas e Juros de mora à taxa de 4,00%

2. Crédito Particular com garantia nº ...59;

c) €32.621,11 – Capital em dívida

d) €2.500,95 – Despesas e Juros de mora à taxa de 4,00%”, ou seja, € 19.258,60 - €38.517,2 : 2 = €19.258,6.

- em 12 de Agosto de 2021, o executado, por intermédio da sua mandatária, informou a contraparte de que conseguiu negociar o montante em dívida junto da A..., S.A. para €20,000,00 euros;

- no referido email de 12 de Agosto de 2021, fez referência ao facto de que, com tal redução, o executado e a exequente apenas teriam de liquidar € 10.000,00 cada um, ao invés dos €19.258,60 euros;

- não obstante os contactos estabelecidos com a contraparte, informando que havia sido obtido acordo no montante de €20.000,00 euros para exoneração dos contratos em causa, nunca foi obtida resposta ou qualquer contacto;

- em 31 de Agosto de 2021, através da sua mandatária, o executado voltou a renovar o conteúdo do email remetido em 12 de Agosto de 2021;

- em 10 de Setembro de 2021, após ter informado a exequente – em 12 de Agosto de 2021 e 31 de Agosto de 2021 - da redução que havia logrado obter na dívida de ambos, foi o executado contactado novamente através do patrono nomeado da exequente, mas, para renovar a solicitação de pagamento do montante constante do email de 18 de Maio de 2021;

- a conduta da exequente reconduz-se a um abuso de direito ao querer obter a transferência de €19.258,60, quando o executado conseguiu negociar a dívida em €10.000,00 para cada um, em benefício de ambos;

- conclui, pois, que a omissão da exequente e inércia na resposta foi intencional, para, mais uma vez, beneficiando de apoio judiciário, “obrigar” o executado a defender-se em juízo com todos os incómodos e custos inerentes a um processo judicial; processo esse que seria totalmente evitado caso a exequente tivesse respondido ao executado e que conduziria a uma poupança de cerca de €10.000,00 a cada um;

- resulta claro que a exequente agiu no exercício do seu direito em manifesto abuso de direito.

Pede ainda, a final, a suspensão dos autos executivos sem prestação de caução.

 *

Notificada a exequente, esta juntou o seu articulado de defesa, contrariando tudo o que foi aduzido pelo embargante e alegando que no dia 21 de Janeiro de 2022, a embargada intentou contra o embargante incidente de liquidação, que correu termos por apenso ao processo de inventário, sob o nº 2738/20. ... no Juízo de Família e Menores .... O Juízo de Família e Menores ... – Juiz ... decidiu que “não estamos perante uma condenação genérica nos termos referidos no artigo 358º, nº 2 do Código De Processo Civil, encontrando-se a Requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução.

O executado não lhe pagou a quantia a que se obrigou, nem entregou qualquer quantia para o efeito, nem mostrou qualquer intenção de o fazer, pelo que a exequente viu-se obrigada a recorrer aos meios judiciais ao seu dispor. O embargante alegou, também, que em 12 de Agosto de 2021, quatro meses após a subscrição da transação exarada a 4 de Maio de 2021, a quatro dias do fim do prazo que dispunha para pagar à Embargada a quantia a que se obrigou, veio apresentar uma proposta de negociação para redução da dívida em crise. Pergunta ainda : “se o executado/embargante estava obrigado por sentença judicial transitada em julgado a pagar à exequente/embargada a quantia de € 19.258,60 até 16 de Agosto de 2021, se conseguiu negociar a dívida hipotecária para metade do montante em dívida, como alega, por que razão não transferiu para a conta da executada metade da quantia que lhe deve ?

A final, pede a condenação do embargante como litigante de má fé.

*

As partes foram notificadas para se pronunciarem porquanto se entendia que o processo dispunha de todos os elementos necessários à prolação de decisão final, pelo que, sem audiência prévia, proferir-se-ia decisão de mérito.

Nenhuma das partes se opôs a esse desiderato.

Na sequência imediata a Exma. Juíza de 1ª instância a tal procedeu, proferindo sentença final de mérito, a qual se iniciou com um Relatório, prosseguiu com a enunciação da Matéria de facto provada [cf. «O tribunal considera provados, por documento ou por acordo – tendo em conta o requerimento executivo, o título executivo e os documentos apresentados na execução e neste apenso - os seguintes factos:»], e finalizou com o enquadramento de Direito, sendo que, no que à questão da “iliquidez da obrigação” dizia respeito, entendeu que o pedido formulado era certo, líquido e exigível, «Donde, improcede a exceção invocada pelo embargante», e no que à questão do “abuso de direito e da litigância de má fé” respeitava, «(…) não há factos apurados que sustentem, por um lado, a existência de abuso de direito por parte da embargada e, por outro lado, a condenação da exequente como litigante de má fé», termos em que os embargos eram de julgar como totalmente improcedentes, o que se traduziu no seguinte “dispositivo”:

«Pelo exposto, e ao abrigo das disposições supra citadas, decido:

- julgar totalmente improcedentes, por totalmente não provados, os presentes EMBARGOS de executado, determinando-se o prosseguimento da execução quanto ao executado, aqui embargante;

- e julgar improcedentes os pedidos de condenação da exequente e do executado como litigantes de má fé.

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Notifique e registe.

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Custas legais a cargo do embargante/executado, que ficou vencido – v. Artº. 527, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil.

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Fixo a este apenso o valor de € 19.644,83 euros – cf. art. 306, n.º 2, do Código de Processo Civil.»

                                                           *

Inconformado com essa sentença, apresentou o Executado/embargante recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. A sentença que serviu de base à presente execução, condenou o Recorrente em quantia a apurar (Cfr. 4º e 5º da transacção transcritos no corpo do presente), devendo considerar-se ilíquida.
2. A consequência da obrigação se encontrar ilíquida é o indeferimento liminar do requerimento executivo, pois a sentença não constitui título executivo nessa parte.
3. Estamos perante uma obrigação genérica cuja liquidação depende do mecanismo legal previsto nos artigos 358º do CPC – incidente de liquidação.
4. Uma obrigação ilíquida é aquela que não pode ser determinada pelo devedor por mero cálculo matemático ou subtração de um determinado valor, como sucede no caso concreto.
5. Os elementos objetivos constantes da sentença condenatória, que serve de título executivo, não permitem evidenciar só por si que, por mero cálculo aritmético o valor a transferir pelo Executado é o peticionado pela Exequente.
6. Antes de decorridos os 90 (noventa) dias estabelecidos no ponto 6º da transacção (transcrito no corpo do presente), o Recorrente por intermédio da sua mandatária, em 12 de Agosto de 2021, informou a contraparte de que conseguiu negociar o montante em dívida junto da A..., S.A. para €20,000,00 (vinte mil euros), o que significaria reduzir em cerca de metade o montante em dívida - teriam de liquidar €10.000,00 (dez mil euros) cada um, ao invés dos €19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos).
7. O Recorrente logrou obter uma redução da dívida em cerca de cinquenta por cento e, apesar de terem sido efectuados vários contactos com o mandatário da contraparte, não obteve qualquer reacção por parte da Recorrida, até ser citado para a presente execução.
8. A conduta da Recorrente reconduz-se a um abuso de direito, ao querer obter a transferência de €19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos), quando o Executado conseguiu negociar, em benefíciode ambos, a dívida em €10.000,00 (dez mil euros) para cada um (€20.000,00 (vinte mil euros), em oposição aos €38.517,2 (trinta e oito mil quinhentos e dezassete euros e vinte cêntimos) exigidos inicialmente).
9. A omissão da Exequente e inércia na resposta aos contactos do Recorrente à redução da dívida foi intencional.
10. Não faria qualquer sentido o Recorrente proceder à transferência de €10.000,00 (dez mil euros) à Recorrida, como entende o Tribunal Recorrido, quando da proposta da A... é fornecido um IBAN para transferência dos €20.000,00 (vinte mil euros) que foram negociados.
11. Caso a Exequente tivesse respondido às comunicações do Executado e aceite o a redução da dívida obtida junto da A..., ambos teriam poupado cerca de €10.000,00 (dez mil euros), os créditos estariam extintos e a Exequente não estaria em risco de perder a casa, como alega.
12. A Recorrida não agiu com a diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, não teve uma conduta honesta e conscienciosa a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte (e os próprios interesses, considerando a matéria em causa).
13. A Recorrida procedeu de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.
14. A Recorrida poderia ter poupado cerca de €10.000,00 (dez mil euros), não se compreendendo por que razão não respondeu ao Recorrente ou, em alternativa, não contactou directamente a A... em relação à proposta de redução em causa.
15. A conduta da Recorrida em conjugação com os elementos juntos aos autos com os Embargos de Executado(Cfr. Doc.os nos 1 a 6) permitem concluir que a Recorrida excedeu os limites impostos pela boa fé, devendo concluir-se em oposição à decisão recorrida, que agiu no exercício do seu direito em manifesto abuso de direito.
16. A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 358º, 359º, 360º e 704º do Código de Processo Civil e artigo 334º do Código Civil.
TERMOS EM QUE:
Deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a douta sentença, substituindo-se por outra que considere a quantia exequenda ilíquida, indeferindo-se liminarmente o requerimento executivo e que considere que a Embargada/Recorrida agiu com abuso de direito ao propor a presente acção executiva.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada
JUSTIÇA»

                                                           *

A Exequente apresentou as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«1. Lamentavelmente, o Executado, mais uma vez, ao invés de cumprir as suas obrigações e pagar o que deve à Exequente, designadamente, cumprindo o que se encontra exarado na sentença judicial que homologou a transacção subscrita pelo Executado e pela Exequente no âmbito do processo de inventário, continua a abusar do direito de recurso, com intuito patentemente dilatório, tal como se tem verificado noutros processos com idênticos pedidos e causas de pedir.

2. À míngua de razões sérias, persiste, fundamentalmente, na invocação de uma pretensa iliquidez da quantia exequenda.

3. Sucede que no dia 21 de Janeiro de 2022, a Exequente intentou contra o Executado incidente de liquidação, que correu termos por apenso ao processo de inventário, sob o nº 2738/20. ... no Juízo de Família e Menores ... – Juiz ....

4. No âmbito desse incidente de liquidação foi proferido despacho liminar, datado de 02 de Fevereiro de 2022, com os sinais dos autos, segundo o qual, ““(…) aquando da sentença homologatória proferida no processo de inventário já tinham ocorrido os factos necessária à liquidação, não havendo necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo, faltando apenas a comunicação do montante ao requerido que se obrigou ao respetivo pagamento.”.

5. No que concerne à ”comunicação do montante ao requerido que se obrigou ao respectivo pagamento” conforme deflui do despacho liminar acima referido, a mesma foi efectuada ao Recorrente em 18 de Maio de 2021.

6. Assim, ao contrário do aduzido pelo Executado, decidiu o Juízo de Família e Menores ... – Juiz ... que “não estamos perante uma condenação genérica nos termos referidos no artigo 358º, nº 2 do Código De Processo Civil, encontrando-se a Requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução.”

7. Por conseguinte, não procede a argumentação do Recorrente quanto à iliquidez da obrigação exequenda.

8. Para além disso, persiste o Executado na fantasiosa actuação da Exequente com abuso de direito.

9. O Executado não pagou a quantia a que se obrigou, nem entregou qualquer montante para o efeito, nem tampouco mostrou qualquer intenção de o fazer.

10. No dia 12 de Agosto de 2021, quatro meses após a subscrição da transacção exarada a 4 de Maio de 2021, a quatro dias do fim do prazo que dispunha para pagar à Exequente a quantia a que se obrigou, o Executado enviou por email uma proposta de negociação para redução da dívida aqui em causa.

11. O Executado tem para com a Exequente um extenso e variado historial de incumprimentos, nunca tendo cumprido voluntariamente qualquer acordo firmado com a Exequente, nem sequer no que concerne ao pagamento da prestação de alimentos e despesas dos dois filhos, o que levou à instauração de vários incidentes de incumprimento junto do Juízo de Família e Menores ..., bem como ao processo-crime nº 3710/17. ..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... / Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., no qual foi o Recorrente condenado pela prática de dois crimes de violação da obrigação de alimentos, conforme sentença judicial condenatória, com os sinais dos autos.

12. Ora, factualmente, o Executado estava obrigado por sentença judicial, transitada em julgado, a pagar à Exequente a quantia de € 19.258,60 até 16 de Agosto de 2021, o que não fez, nem tampouco pagou à Recorrida qualquer quantia para o efeito.

13. Sendo evidente para a Exequente que a alegada negociação com a A... mais não foi do que um estratagema para justificar mais um desrespeito pela Lei e pela Recorrida.

14. Para além disso, a Exequente não tem qualquer benefício nessa suposta inércia, sendo, aliás, a única prejudicada pelo incumprimento no pagamento da dívida hipotecária.

15. Pois que quem reside nessa casa hipotecada é a Exequente, sendo que o Executado reside na Suíça e, quando se desloca a Portugal reside na casa de seus pais.

16. Quem se encontra em risco de perder a casa onde mora, porque o Executado não cumpre voluntariamente uma sentença judicial transitada em julgado, é a Exequente!!

17. Inexiste, portanto, qualquer abuso de direito por parte da Exequente, assim como se torna evidente que esta não excedeu, em situação alguma, os limites da boa-fé.

18. Sendo que o mesmo já não se pode dizer do comportamento adoptado pelo Recorrente.

19. É, pois, o Executado que faz um uso reprovável do Direito e dos Tribunais, alegando factos que sabe não corresponderem à verdade e argumentando com questões de facto e de Direito já, anteriormente apreciadas em sede judicial, bem sabendo que não lhe assiste qualquer razão.

20. Tentando, com isso, retardar o normal andamento do processo e construir uma desculpa para atrasar (ou inviabilizar) o cumprimento das suas obrigações pecuniárias para com a Exequente.

21. O Executado alterou intencionalmente a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, excedendo mesmo os limites que lhe são impostos pela boa-fé.

22. Na actualidade, caiem sobre a alçada da má-fé, não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes, ou seja, quando por falta de cuidado não se prevê o que deveria ser previsto, omitindo-se as cautelas necessárias a evitar o resultado.

23. Actualmente, o que este instituto sanciona é o reverso dos deveres de cooperação, probidade e lisura processual, impostos às partes.

24. Face ao exposto, o Executado não agiu de boa-fé, sendo, por isso, merecedor da adequada sanção, ou seja, ser condenado como litigante de má-fé em multa e indemnização à Exequente, cuja quantificação se deixa ao prudente arbítrio de V. Exas.

25. No entender da Recorrida, o aresto em apreço aplicou correctamente o Direito, julgando totalmente improcedente os embargos de executado, determinando o prosseguimento da execução quanto ao ora Recorrente, e decidindo também que não há abuso de direito por parte da Recorrida com a instauração da execução principal.

26. Não têm qualquer fundamento as conclusões de recurso, pois a douta sentença não padece dos vícios que lhe foram apontados pelo Recorrente, devendo, por isso, o recurso ser julgado improcedente e confirmada a douta sentença recorrida.

Termos em que,

Deve ser negado provimento ao presente recurso, com o que farão V. Exas.

JUSTIÇA»

                                                                       *

            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando oportunamente pela sua subida devidamente instruído.

                                                                                   *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Embargante/recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

 - desacerto da decisão que desatendeu a alegação de “iliquidez da obrigação exequenda” [mais concretamente, que a liquidação, no caso concreto, deveria ter sido deduzida mediante incidente de liquidação, apresentado no processo de declaração, no quadro legal previsto pelos arts. 358º, 359º e 360º do n.C.P.Civil];

 - desacerto da decisão que entendeu não ter a Exequente, ao interpor a execução, agido no exercício do seu direito em manifesto abuso de direito.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso, é a que foi alinhada na decisão recorrida (e que não foi expressamente alvo de impugnação nas alegações recursivas), a saber:

«Matéria de facto

O tribunal considera provados, por documento ou por acordo – tendo em conta o requerimento executivo, o título executivo e os documentos apresentados na execução e neste apenso - os seguintes factos:

1. Em 16 de fevereiro de 2022, a exequente AA instaurou ação executiva para pagamento de quantia certa contra o executado BB, com vista à cobrança coerciva de € 19.644,83 euros - cf. requerimento executivo, da execução principal.

2. Tal execução baseia-se em sentença judicial homologatória de transação proferida no âmbito do Processo n.º 2738/20...., que correu termos no Juízo de Família e Menores ..., J....

3. E transitou em julgado em 14 de junho de 2021.

4. Do termo de transação que originou a prolatação da sentença dada à execução consta:

A cabeça de casal AA e o interessado BB, acordam em atribuir a casa de morada de família relacionada sob a verba nº 1, Casa de habitação de cave, garagem, rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, sita na Estrada ..., ..., ..., da União das Freguesias ... e ..., Concelho ..., inscrita na matriz sob o artigo ...06, que teve origem no artigo 1896, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...20/freguesia ... à cabeça de casal AA, reconhecendo o interessado BB que tal imóvel é bem pertencente da cabeça de casal.-

Os bens móveis, descritos nas verbas 6 a 32 são atribuídos à cabeça de casal, com exceção da verba nº 23 – cadeira de barbeiro – que é atribuída ao interessado BB.-

Caberá à cabeça de casal a responsabilidade pelo pagamento do mútuo com hipoteca à Caixa Económica Montepio Geral, hoje B..., S.A., pagamento esse referente ao mútuo nº ...00...-

A cabeça de casal e o interessado obrigam-se desde já a diligenciar junto do Banco 1..., hoje B..., S.A., no sentido de apurar o montante actual ainda em dívida referente aos mútuos com hipoteca, respectivamente, mútuos nºs ...00 e ...00, e, em conformidade com isso, o interessado irá transferir metade da quantia que vier a ser apurada para o NIB/IBAN que a cabeça de casal indicar.-

Até final de Maio do presente ano a cabeça de casal comunicará ao interessado por intermédio dos Ilustres Advogados o montante que lhe caberá a pagar correspondente a metade do valor em falta referente aos mútuos nºs ...00 e ...00 à B..., S.A., excluindo o crédito à habitação.-

Após tal comunicação o interessado BB, procederá ao pagamento à cabeça de casal do montante correspondente à parte que lhe compete, no prazo de 90 dias.”.

5. A sentença homologatória da transação acima transcrita foi proferida em 10 de maio de 2021, tendo transitado em 14 de junho de 2021.

6. Na parte da “Liquidação da Obrigação”, a exequente aduziu:

“Na transacção homologada pela sentença transitada em julgado, ficou acordado, no seu ponto 5º, que " Até final de Maio do presente ano a cabeça de casal comunicará ao interessado por intermédio dos Ilustres Advogados o montante que lhe caberá a pagar correspondente a metade do valor em falta referente aos mútuos nºs ...00 e ...00 à B..., S.A., excluindo o crédito à habitação."

Na sobredita transacção ficou acordado, no ponto 6º, que "Após tal comunicação o interessado BB, procederá ao pagamento à cabeça de casal do montante correspondente à parte que lhe compete, no prazo de 90 dias."

Assim, em conformidade com o exarado no contrato de transacção, designadamente nos pontos 4º e 5º, a ora Exequente, por intermédio do seu Patrono, enviou, em 18/05/2021, um e-mail à contraparte a informar que o montante que lhe caberia pagar era de € 19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos), correspondente a metade dos valores em falta referente aos mútuos acima identificados. O Ora Executado foi condenado a pagar à Exequente, a quantia em dívida, no prazo de 90 (noventa) dias a partir da data em que a mesma lhe fosse comunicada pela Exequente.

Até à presente data o ora Executado não pagou a quantia em dívida, nem entregou qualquer quantia para o efeito.

O Executado deve juros de mora sobre a quantia de € 19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos), à taxa legal de 4 %, desde 18/08/2021, os quais nesta data - 16/02/2022 - se computam em 386,23 (trezentos e oitenta e seis euros e vinte e três cêntimos).

Deste modo, o direito de crédito da Exequente cifra-se, nesta data - 16/02/2022 - na quantia de € 19.644,83 (dezanove mil seiscentos e quarenta e quatro euros e oitenta e três cêntimos).”.

7. A exequente juntou ao requerimento executivos dois documentos: o acordo de transação e o email à mandatária do executado.

8. Nesse email consta:

De: CC - Advogado < ...@adv.oa.pt>

Enviado: 18 de maio de 2021 '16:30

Para: ...@adv.oa.pt'

Assunto: FW: ...04 DD "1ª BENTO SOUSA Bs-pot-001462 Assinada por: ...@adv.oa.pt

Exma. Colega:

Anexo-lhe infra o e-mail proveniente da A..., s.A., contendo os montantes ainda em falta, referentes aos pontos 4e e 5e da transacção.

Assim, dando cumprimento ao clausulado na transacção, indico-lhe o IBAN para o qual o seu constituinte deverá transferir metade do valor em falta referente a esses dois mútuos.

O IBAN da m/representada é:  ...45.

Sem outro assunto de momento, apresento os meus melhores cumprimentos.

O Colega ao dispor,

(CC)

De: AA <...>

Enviada: 14 de maio de 2021 11:13

Para: ...

Assunto: ...: ...04 AA 85 -P01-001462

------ Forwarded message ------

De: EE <...>

Date: sexta, 14/05/2021, 11:06

Subject: ...04 AA 85-P01-001462

To: ... <...>

Exma. Sra. AA,

No seguimento do anterior contacto telefónico, venho pelo presente email apresentar os valores solicitados, à data, dos dois créditos de menor valor dos três cedidos, ainda sob nossa gestão:

1. Crédito Particular com garantia nº ...34;

a) €3.152,73 - Capital em dívida

b) €242,41 - Despesas e Juros de mora à taxa de 4,00%

2. Crédito particular com garantia nº ...59;

c) €32.621,11- Capital em dívida

d) €2.500,95 - Despesas e Juros de mora à taxa de 4,00%

Sem outro assunto, apresento os meus cumprimentos, estando ao seu dispor para qualquer esclarecimento adicional que considere necessário,

EE

_________________

Asset Manager

Asset Management / RESI Department

A..., SA

Edifício...,

Rua ...,

Quinta ...

... ..., Portugal

Telef: ...48

Telef: ...47

Email: ...”

9. No dia 21 de Janeiro de 2022, a exequente intentou contra o aqui embargante incidente de liquidação, que correu termos por apenso ao processo de inventário, sob o nº 2738/20. ... no Juízo de Família e Menores ... – Juiz ....

10. No âmbito desse incidente de liquidação foi proferido despacho liminar, datado de 2 de Fevereiro de 2022, que consignou, entre o mais, o seguinte:

“Ora, aquando da sentença homologatória proferida no processo de inventário já tinham ocorrido os factos necessários à liquidação, não havendo necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo, faltando apenas a comunicação do montante ao requerido que se obrigou ao respetivo pagamento.

Entende-se assim que não estamos perante uma condenação genérica nos termos referidos no artigo 358.º n.º 2 do Código de Processo Civil, encontrando-se a requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução, recorrendo aos artigos 715.º e 716.º do Código de Processo Civil, dando conta da comunicação realizada ao requerido com o valor em falta a pagar à entidade bancária.”

11. No âmbito do processo crime n.º 3710/17...., do Juízo Local Criminal ... J..., apurou-se que o aqui embargante, ali arguido, “...nos meses de agosto e setembro de 2017 não pagou a prestação de alimentos aos seus dois filhos, nem o abono de família, bem como o valor referente a 50% das despesas suportadas com a mensalidade e a alimentação escolar pagas pela mãe ao Colégio que os menores frequentam.

8. O arguido só pagou tais valores decorridos vários meses, bem como os valores relativos aos meses de outubro e novembro de 2017 e de forma fracionada.

9. O arguido, até à presente data, não pagou a prestação de alimentos às crianças referentes aos meses de dezembro de 2017, janeiro de 2018, maio de 2018, junho de 2018, agosto de 2018 e outubro de 2018 não pagou, encontrando-se em dívida a quantia de € 1.800,00.

10. O arguido, nos meses de dezembro de 2017, janeiro de 2018, fevereiro de 2018, maio de 2018, junho de 2018, julho de 2018, agosto de 2018 e outubro de 2018, não entregou o abono de família que recebe do Estado Suíço, encontrando-se em débito os valores infra descriminados, cujo valor global ascende ao montante de € 2.752,50”

(…)

“11. O arguido, nos meses dezembro de 2017, janeiro de 2018, maio de 2018, junho de 2018 e outubro de 2018, não entregou as quantias infra descriminadas, referentes a 50% das despesas havidas com a mensalidade do Colégio das crianças e de saúde e educação, as quais ascendem à quantia global de € 837,50” (v. documento 1 junto pela exequente em 29.09.2022).

*

Não há factos não provados

                                                                       *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - A primeira questão que importa solucionar no presente recurso é a que se traduz no alegado desacerto da decisão que desatendeu a alegação de “iliquidez da obrigação exequenda” [mais concretamente, que a liquidação, no caso concreto, deveria ter sido deduzida mediante incidente de liquidação, apresentado no processo de declaração, no quadro legal previsto pelos arts. 358º, 359º e 360º do n.C.P.Civil].

            Sustenta o Embargante/recorrente que no caso concreto, estávamos perante uma obrigação genérica cuja liquidação dependia do mecanismo legal previsto no artigo 358º do CPC, o que concretizou pela seguinte forma: «In casu, entende o ora Recorrente que a sentença que serviu de base à presente execução, condenou-o em quantia a apurar (Cfr. 4º e 5º da transacção supra transcrita), devendo considerar-se, por isso ilíquida. Dos autos, concretamente, não resulta qual o valor do crédito da Exequente, nem que aquele valor já tenha sido liquidado. Na tese defendida pelo Recorrente, não se pode, por essa razão, considerar que a obrigação se encontra líquida no caso concreto, tendo como consequência o indeferimento liminar do requerimento executivo porque a sentença (que serviu de título executivo) não constitui título executivo nessa parte.»

Será assim?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – não lhe assiste qualquer razão, na medida em que o Executado ora Embargante/recorrente se obrigou ao pagamento da quantia que iria ser indicada pela entidade bancária em causa.

Na verdade, como flui claramente do ponto de facto “provado” sob “4.”, do termo de transação que originou a prolação da sentença dada à execução [a qual teve lugar nos autos de inventário correspondentes ao Processo n.º 2738/20...., que correu termos no Juízo de Família e Menores ..., J...], decorria a seguinte concreta obrigação:

«

A cabeça de casal e o interessado obrigam-se desde já a diligenciar junto do Banco 1..., hoje B..., S.A., no sentido de apurar o montante actual ainda em dívida referente aos mútuos com hipoteca, respectivamente, mútuos nºs ...00 e ...00, e, em conformidade com isso, o interessado irá transferir metade da quantia que vier a ser apurada para o NIB/IBAN que a cabeça de casal indicar.-

Até final de Maio do presente ano a cabeça de casal comunicará ao interessado por intermédio dos Ilustres Advogados o montante que lhe caberá a pagar correspondente a metade do valor em falta referente aos mútuos nºs ...00 e ...00 à B..., S.A., excluindo o crédito à habitação.-

Após tal comunicação o interessado BB, procederá ao pagamento à cabeça de casal do montante correspondente à parte que lhe compete, no prazo de 90 dias.”.»

Ora se assim é, s.m.j, estávamos perante uma liquidação dependente de simples cálculo aritmético, porque assente em factos abrangidos pela “segurança do título executivo” – o que, in casu, seria o que fosse indicado pela entidade bancária em causa.

Isto é, tratava-se de uma operação de quantificação da obrigação que se conseguia fazer dentro dos limites que se encontravam fixados pelo título executivo, e mediante simples cálculo aritmético.

Neste mesmo sentido, aduziu-se na sentença recorrida o seguinte:

«(…)

Ou seja, a sentença homologatória proferida no processo de inventário n.º 2738/20...., do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., já integra os factos necessários à liquidação, não havendo necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo, faltando apenas a comunicação do montante ao aqui embargante, que se obrigou ao respetivo pagamento.

Por isso, no requerimento executivo a exequente formula um pedido certo, líquido e exigível.

Na parte da “Liquidação da Obrigação”, no requerimento executivo, estipulou o valor do capital e dos juros peticionados, culminando num pedido global, que é certo, líquido e exigível.

Donde, improcede a exceção invocada pelo embargante.»

Acresce, no caso vertente, que mesmo a assim não se entender, a idêntica conclusão no sentido da efetiva desnecessidade da liquidação, no caso concreto, ter que ser deduzida mediante incidente de liquidação, apresentado no processo de declaração, cuja instância se renovaria [cf. arts. 358º, 359º e 360º do n.C.P.Civil] sempre se obteria.

Isto pela singela e determinante circunstância de que uma tal liquidação já tinha  sido anteriormente intentada junto do processo de inventário (autos principais), tendo sido entendimento do Exmo. Juiz que tal apreciou e decidiu, em despacho liminar, não haver «(…) necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo, faltando apenas a comunicação do montante ao requerido que se obrigou ao respetivo pagamento, (…) encontrando-se a Requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução».

Com efeito, temos que flui claramente dos pontos de facto “provados” sob “9.” e “10.”, respetivamente, o seguinte:

«9. No dia 21 de Janeiro de 2022, a exequente intentou contra o aqui embargante incidente de liquidação, que correu termos por apenso ao processo de inventário, sob o nº 2738/20. ... no Juízo de Família e Menores ... – Juiz ....

10. No âmbito desse incidente de liquidação foi proferido despacho liminar, datado de 2 de Fevereiro de 2022, que consignou, entre o mais, o seguinte:

“Ora, aquando da sentença homologatória proferida no processo de inventário já tinham ocorrido os factos necessários à liquidação, não havendo necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo, faltando apenas a comunicação do montante ao requerido que se obrigou ao respetivo pagamento.

Entende-se assim que não estamos perante uma condenação genérica nos termos referidos no artigo 358.º n.º 2 do Código de Processo Civil, encontrando-se a requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução, recorrendo aos artigos 715.º e 716.º do Código de Processo Civil, dando conta da comunicação realizada ao requerido com o valor em falta a pagar à entidade bancária.”

Ora se assim é, salvo o devido respeito, estava formado caso julgado formal quanto a uma tal questão – no sentido de que a liquidação podia ser operada aquando e na instauração do requerimento executivo.

Na verdade, consabidamente, o caso julgado afirma-se negativamente como exceção e positivamente como autoridade.

Na sua função negativa e como exceção impede pronunciamento judicial posterior entre as mesmas partes, sobre o mesmo objeto (pedido e causa de pedir).

Já na sua função positiva, e como autoridade, projeta os efeitos da respetiva decisão em ações posteriores conexas com aquela em que foi formado e que venham a decorrer entre as mesmas partes sem necessidade de total correspondência e identidade objetiva entre umas e outras.

Assim, a decisão proferida no dito incidente de liquidação, que correu termos por apenso ao processo de inventário, sob o nº 2738/20. ... no Juízo de Família e Menores ... – Juiz ..., devidamente transitada em julgado, através da qual se entendeu «(…) aquando da sentença homologatória proferida no processo de inventário já tinham ocorrido os factos necessários à liquidação, não havendo necessidade de ulterior prova em sede de processo declarativo ulterior incidente de liquidação, (…), encontrando-se a requerente munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução», configura, no fundo, um título jurídico recognitivo ou constituição de direitos, assim se produzindo o efeito positivo externo do caso julgado quanto a esse particular.

Dito de outro modo: a autoridade de caso julgado obsta a que se defina de modo diverso situação já anteriormente julgada.

Esclarecendo este entendimento, já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«I. O efeito positivo externo consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respetivos objetos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objetos processuais conexos.

Adiantemos, preliminarmente, um exemplo, por razões didáticas: se foi declarada perante B a propriedade de A sobre o imóvel x, será improcedente uma segunda ação em que B pede a condenação de A na entrega do mesmo imóvel. O pedido é outro, mas percebe-se a incompatibilidade de efeitos materiais e a oposição de julgados.

Ao contrário do efeito positivo interno do caso julgado que, na realidade,constitui o objeto de uma execução de sentença, o efeito positivo externo do caso julgado não é passível de uma ação executiva, dado não constituir uma vinculação jurídica das partes; basta que determine o sentido de uma decisão posterior.

II. A jurisprudência costuma designar este efeito como autoridade de casojulgado stricto sensu.

Esta autoridade de caso julgado não se cinge apenas às decisões que, por conhecerem do mérito, fazem caso julgado material. Se é certo que as decisões sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (cf. artigo 620.º, n.º 1), não deixam, porém, de ser dotadas de efeito positivo externo dentro desse processo.

Efetivamente, o mesmo tribunal que julgou certa questão processual continua vinculado a ela quando julga questão processual conexa, por estar em relação de prejudicialidade ou de concurso. (…)»[2]

Isto é o que se designa por autoridade de caso julgado, decorrente da vinculação positiva externa ao caso julgado assente no artigo 619º do n.C.P.Civil, em sede de objetos em relação de prejudicialidade.

Na verdade, se o Tribunal tinha anteriormente emitido pronúncia e decisão no sentido de que a Exequente aqui embargada já estava «munida de título executivo bastante para promover a correspondente execução», sendo esse mesmo Tribunal, no perímetro da mesma relação jurídica, instado a decidir a questão suscitada pelo Executado/embargante de que «a Exequente não se encontra munida de título executivo bastante para promover a presente execução» (cf. art. “22.” do articulado de embargos), por já se ter formado caso julgado formal sobre ela, outra decisão não podia proferir do que a que foi proferida na decisão sob recurso – de improcedência da “exceção da iliquidez da obrigação”, donde a desnecessidade de ser deduzido um incidente de liquidação.

Concluindo esta linha de raciocínio, «Deste modo, se o efeito negativo do caso julgado (exceção de caso julgado) leva à admissão de apenas uma decisão de mérito sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo (autoridade de caso julgado) admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.

Em termos de construção lógica da decisão, na autoridade de caso julgado a decisão anterior determina os fundamentos da segunda decisão; na exceção de caso julgado a decisão anterior obsta à segunda decisão.»[3]

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, improcede esta questão recursiva.

                                                           *

4.2 – Vejamos, de seguida, a questão remanescente, a saber, a do alegado desacerto da decisão que entendeu não ter a Exequente, ao interpor a execução, agido no exercício do seu direito em manifesto abuso de direito.

Está afinal em causa aferir se foi ou não correta a interposição da execução pela Exequente, isto na medida em que o Executado/embargante sustentou enfaticamente que a conduta da Exequente reconduz-se a um abuso de direito, ao querer obter a transferência de €19.258,60 dele Executado [quantia executada], quando o próprio conseguiu negociar, em benefício de ambos os devedores [Exequente e Executado], a dívida em €10.000,00 para cada um, donde para um total de € 20.000,00, em oposição aos € 38.517,2 exigidos inicialmente.

Recorde-se que esta questão foi objeto de resposta negativa na sentença recorrida, fundamentando a Exma. Juíza a quo a correspondente decisão, no essencial, pela seguinte forma:

«(…)

A factualidade apurada não permite concluir de todo que exista abuso de direito por parte da exequente com a instauração da execução principal.

Com efeito, da materialidade provada resulta que no dia 12 de Agosto de 2021, quatro meses após a subscrição da transação exarada a 4 de maio de 2021, a quatro dias do fim do prazo que dispunha para pagar à embargada a quantia a que se obrigou, o executado enviou por email uma proposta de negociação para redução da dívida aqui em causa. Todavia, a exequente nunca foi informada da existência de contactos entre o executado e a Instituição A... para negociação da dívida, nem consta dessa proposta qual a duração da mesma.

Acresce que o executado poderia ter pago à embargada metade do montante que com esta instituição acordou, o que não fez.»

Que dizer?

Quanto a nós, independentemente de se concordar ou não com esta linha de argumentação, temos que, compulsando a factualidade dada como “provada”, o que liminarmente resulta é que nada do que relevaria para a apreciação quanto a este particular aí efetivamente consta.

Desconhece-se se foi apenas por lapso ou desatenção que tal sucedeu, mas o que efetivamente resulta é que nada consta dos factos “provados” – nem ex adversu dos “não provados”! – no sentido de que o Executado tivesse mandado um e-mail a comunicar o resultado positivo da negociação que estabelecera com a entidade bancária credora, e que a Exequente tivesse recebido esse e-mail, nem tão pouco que esse resultado positivo tinha sido efetivamente obtido pelo Executado, ou ainda que, apesar da insistência, a Exequente nunca respondeu/reagiu a uma tal comunicação.

Sendo certo que, quanto a nós, inquestionavelmente é esta materialidade cujo apuramento é indispensável para a decisão da causa quanto ao aspeto do invocado abuso de direito.

Ora, compulsando o requerimento de embargos, temos que o Executado/embargante efetivamente alegou com relevância o seguinte:

«43.

Antes de decorridos os 90 (noventa) dias estabelecidos no ponto 6 da transacção para o ora Executado transferir tal montante à então cabeça de casal, em 12 de Agosto de 2021, o Executado, por intermédio da sua mandatária, informou a contraparte de que conseguiu negociar o montante em dívida junto da A..., S.A. para €20,000,00 (vinte mil euros), o que significaria reduzir em cerca de metade o montante em dívida (Cfr. Doc. nº 1 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

44.

A empresa B..., S.A., faz parte do Grupo A..., e nos contactos estabelecidos pelo Executado com B..., S.A., foi encaminhado para o Asset Manager, FF, da A..., S.A., com quem negociou o montante para exoneração dos contratos e causa.

45.

No referido email de 12 de Agosto de 2021, fez referência ao facto de que, com tal redução, o ora Executado e a Exequente apenas teriam de liquidar €10.000,00 (dez mil euros) cada um, ao invés dos €19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos) (Cfr. Doc. nº 1).

46.

Mais informou que a demora no contacto se deveu ao facto de apenas no dia anterior, 11 de Agosto de 2021, lhe ter sido confirmado pela A..., S.A. que aceitaria extinguir a dívida proveniente dos dois créditos – mútuos nºs ...00 e ...00 – se liquidassem €20.000,00 (Cfr. Doc. nº 1 eDoc. nº 2 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

47.

Sucede que, não obstante os contactos estabelecidos com a contraparte, informando que havia sido obtido acordo no montante de €20.000,00 (vinte mil euros) para exoneração dos contratos em causa, nunca foi obtida resposta ou qualquer contacto.

48.

Aliás, na ausência de qualquer contacto por parte da Exequente, o Executado, em 31 de Agosto de 2021, através da sua mandatária, voltou a renovar o conteúdo do email remetido em 12 de Agosto de 2021 (Cfr. Doc. nº 3 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

49.

Mais uma vez, o Executado não obteve qualquer contacto por parte da Exequente.

50.

Apenas em 10 de Setembro de 2021, após ter informado a Exequente – por duas ocasiões, em 12 de Agosto de 2021 e 31 de Agosto de 2021 – da redução que havia logrado obter na dívida de ambos, foi o Executado, novamente, contactado através do patrono nomeado da Exequente, mas, para renovar a solicitação de pagamento do montante constante do email de 18 de Maio de 2021 (Cfr. Doc. nº 4 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

51.

Na sequência de tal email, o Executado através da sua mandatária respondeu, nesse mesmo dia, informando novamente que este havia conseguido negociar directamente a dívida para €20.000,00 (vinte mil euros), tendo inclusivamente reencaminhado os emails que havia remetido anteriormente, em 12 de Agosto de 2021 e 31 de Agosto de 2021 (Cfr. Doc. nº 5 e 6 que ora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos).

Ora,

52.

O Executado logrou obter uma redução da dívida em cerca de cinquenta por cento e, incompreensivelmente, não obteve qualquer reacção por parte da Exequente.

53.

Até ser citado para a presente execução, o Executado não obteve qualquer resposta por parte da Exequente em relação a este assunto, o que mal se compreende, visto que, ao invés de cada um ter de liquidar €19.258,60 (dezanove mil duzentos e cinquenta e oito euros e sessenta cêntimos) passaria apenas a ter de pagar €10.000,00 (dez mil euros).»

Recorde-se que, relativamente a tal, a posição da Exequente no seu articulado de Contestação foi de impugnar o teor do alegado nesse artigos «pela imprecisão, inexactidão e inverdade de que estão impregnados» [cf. art. 1º da dita Contestação], o que clarificou mais adiante, concretamente sustentando que essa “alegação” de negociação não era credível dado o historial de incumprimentos do Executado, rematando com «É claro para a Exequente que essa alegada negociação mais não foi do que mais uma das suas estratégias para tentar justificar o seu desrespeito pela Lei, incumprindo mais uma vez uma sentença judicial.» [cf. art. 15º da dita Contestação].

Neste conspecto, salvo o devido respeito, a matéria em questão não se poderia considerar admitida por acordo, nem estar provada (plenamente) por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

É certo que o Executado/embargante juntou com o seu articulado de embargos alguns documentos contendo a alegada reprodução dos e-mails enviados.

Sucede que, sendo o e-mail um meio de prova correntemente utilizado nos meios judiciais, o mesmo só terá validade desde que seja “credível” e “fidedigno”, isto é, reúna um certo número de condições.

Entre essas condições figura o conseguir-se aferir quem é o titular do endereço de e-mail ou qual a identificação do computador, o IP, a partir do qual foi enviada determinada mensagem e se não houver dúvidas de que apenas uma pessoa tem acesso a esse computador e só ela podia ter enviado aquele e-mail, então uma mensagem eletrónica pode ter efetivamente a validade de qualquer outra prova.

Assim, em termos jurídicos, o e-mail pode efetivamente revestir “força probatória plena”, se for, por exemplo, um e-mail com certificação digital, ou, caso contrário, figurará num processo como uma prova de apreciação livre, sujeita a confirmação, se se tratar de um e-mail “normal”/“corrente”.[4]

Revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, parece-nos inquestionável que os documentos juntos aos autos [contendo a alegada reprodução dos e-mails enviados], não tinham força probatória plena, tendo que ser apreciados nos termos gerais de direito, que o mesmo é dizer, não se poderia nem pode considerar a factualidade deles constante como “provada” sem mais.

Acrescendo que a mesma não foi confessada nem admitida por acordo por parte da Exequente…

Assim sendo, o que quanto a nós decisivamente resulta é que o tribunal de 1ª instância não se pronunciou sobre a referenciada materialidade de facto com relevância para se aferir do invocado abuso de direito.

Pelo que, na medida em que se trata de factualidade cuja resposta é indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão é a da anulação da decisão recorrida, tendo que se proceder a produção de prova, em audiência de discussão e julgamento, para dirimir tal questão.

«Esta é a solução que resulta da conjugação das als. c) do n.º 2 e c) do n.º 3 do art. 662.º do CPCiv., só assim não sendo se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada (plenamente) por documentos ou por confissão reduzida a escrito.»[5]

O que, já vimos, não sucede in casu!

O que tudo serve para dizer que há fundamento para anular a decisão recorrida, a fim se se proceder a julgamento sobre a factualidade supra reproduzida alegada pelo Executado/embargante no seu articulado de embargos [arts. 43º a 53º desse articulado], porque a mesma efetivamente releva e é indispensável para a decisão sobre o invocado abuso de direito.

De referir que com a anulação da decisão recorrida quanto ao segmento atinente ao “Do abuso de direito e da litigância de má fé”, fica prejudicado o conhecimento dessa mesma questão do invocado abuso de direito neste recurso e momento processual.

                                                           *

Nestes termos e limites procedendo o recurso, sendo certo que já ficou apreciada a questão recursiva do alegado desacerto da decisão que desatendeu a alegação de “iliquidez da obrigação exequenda” [questão recursiva considerada improcedente].

                                                           *

(…)
                                               *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, na parcial procedência do recurso, em anular a decisão recorrida, tendo que se proceder a produção de prova, em audiência de discussão e julgamento, para dirimir a questão do invocado abuso de direito em função do concretamente alegado nos arts. 43º a 53º do articulado de embargos, tudo nos termos melhor explicitados supra.

Custas a cargo de Exequente e Embargante, na proporção de ½ para cada um deles.

                                                                       *

                            Coimbra, 2 de Maio de 2023

                                                           Luís Filipe Cravo

                                                         Fernando Monteiro

                                                             Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Citámos RUI PINTO, in JULGAR Online, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas Provisórias”, 2018, a págs. 25.
[3] Assim RUI PINTO, in obra e local citados na nota anterior, ora a págs. 28
[4] Neste sentido, inter alia, o acórdão do TRC de 14.11.2017, proferido no proc. nº 2840/12.9TBFIG.C2, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Citámos agora o acórdão do TRC de 10.05.2022, proferido no proc. nº 1932/19.8T8FIG.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.