ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA DO PEÃO
Sumário


I- Na Relação a convicção alcançada face à prova coincide com a colhida no 1º grau.
II- Assim, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto improcede, mantendo-se a aplicação do direito aos factos.
III- A produção do acidente é imputável exclusivamente ao peão, o que, em princípio, exclui a responsabilidade pelo risco. Cfr. artigo 505º do CC. 
IV- Não se vê modo de corresponsabilizar a condutora do veículo interveniente na produção do acidente, uma vez que circulava no cumprimento das normas estradais, como vimos, face àqueles que defendem uma interpretação actualista do nosso direito positivo e não rejeitam a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.

Texto Integral


Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

i)-

Em 19 de Julho de 2019 veio AA, casado, residente na Rua ..., ..., ..., ..., intentar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, demandando AUTORIDADE DE SUPERVISÃO DE SEGUROS E FUNDOS DE PENSÕES - FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede na Avenida ..., ... ..., pedindo que o Réu seja condenado a pagar-lhe a título de danos patrimoniais e não patrimoniais a quantia de 20.000,00 €.
Alega, em síntese, ter sido no dia 3 de Junho de 2017, frente ao nº 51 da Rua ..., nas ..., quando atravessava a via, após o jantar, vítima de um atropelamento, por parte da viatura automóvel ..-..-NA conduzido por BB, a qual não tinha seguro obrigatório válido.
(Apresentou mais tarde petição inicial aperfeiçoada cfr. fls. 23 e ss)
Junta procuração e documentos.

O Réu foi citado, contestou, excepcionando a sua ilegitimidade e concluindo pela improcedência da acção.
Juntou procuração e documentos.

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Deduziu o Autor incidente de intervenção principal provocada de BB e de CC, condutora e proprietário do veículo interveniente no acidente, o qual foi deferido, tendo os intervenientes, devidamente citados apresentado a sua contestação, onde impugnam a factualidade alegada.


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Foi dispensada a audiência prévia; face à intervenção julgou-se suprida a ilegitimidade passiva do Réu FG; foi fixado o valor da acção; o processo foi saneado; foi identificado o objecto do litígio; foram enunciados os temas da prova, sem reclamações.

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Na pendência da causa veio a falecer o Autor, tendo-lhe sucedido na posição processual os habilitados herdeiros DD (ex-esposa) e os filhos do casal, em número de quatro, todos identificados a fls. 91 e ss.

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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, com gravação dos trabalhos.

Durante o julgamento foram juntos documentos fotográficos a cores relativos ao local do sinistro – cfr. fls. 129 a 130 verso.

ii)-

Com a ref. citius 99906907 e em 8 de Junho de 2022 lavrou-se douta sentença.

Nela deu-se como provado o seguinte complexo de factos:

1) No dia 3 de Junho de 2017, AA e a sua família foram jantar ao café/restaurante “T...”, sito na Rua ..., ... da petição inicial aperfeiçoada);
2) Após o jantar, entre as 21h e as 22h, AA atravessou a via pública na direcção do estacionamento que se localiza à frente do referido café (art.6º da petição inicial aperfeiçoada e art.20º da contestação do FGA);
3) Antes de AA, atravessaram, no mesmo local, uma das suas filhas, o seu genro e netos (art.6º e 7º da petição inicial aperfeiçoada);
4) Quando AA se encontrava a passar a via pública, junto ao eixo da via, foi embatido pelo veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-..-NA, conduzido pela Ré BB e propriedade do Réu EE (art.15º e art.16º da petição inicial aperfeiçoada e art.5º da contestação do FGA);
5) O veículo embateu em AA com a sua frente esquerda (art.28º da contestação do FGA);
6) O veículo ..-..-NA circulava, a velocidade não apurada, na Rua ..., vindo da Rua ..., no sentido oeste/este (art.16º e art.17º da petição inicial aperfeiçoada);
7) Cerca de 38 metros antes do local onde AA atravessou a via existia uma passadeira destinada à travessia de peões, atento o sentido de marcha do veículo ... (art.19º da contestação do FGA e art.10º da contestação dos Réus BB e EE);
8) AA iniciou a travessia da faixa de rodagem sem se assegurar que o podia fazer em segurança (art.11º da contestação dos Réus BB e EE);
9) O local é mal iluminado e com má visibilidade (art.26º da contestação do FGA);
10) No local, no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo ..., existia iluminação pública, que se encontrava ocultada pelas árvores existentes (art.26º da contestação do FGA e art.5º do Código de Processo Civil);
11) Logo a seguir ao embate o veículo cessou a sua marcha, ficando a viatura ligeiramente virada para sul, na direcção do parque de estacionamento (art.21º da petição inicial);
12) AA ficou deitado na via pública inconsciente e a sangrar da cabeça, tendo sido chamada ambulância e autoridades policiais (art.23º e 24º da petição inicial aperfeiçoada);
13) Em consequência do embate AA sofreu a bacia fracturada, L4 e L5 e do halux dto exposto grau I, hematoma retroperitoneal, TCE com hematoma subdural mínimo e periprotesica do acetabulo esq. (art.39º e 40º da petição inicial aperfeiçoada);
14) Após o acidente AA ficou acamado (art.41º da petição inicial aperfeiçoada);
15) Antes do acidente AA locomovia-se sozinho, semeava e plantava produtos hortícolas, vestia-se e alimentava-se sem o auxílio de terceiros (art.42º da petição inicial aperfeiçoada);
16) AA passou a necessitar de auxílio para se deslocar, lavar, tomar as refeições e vestir (art.44º da petição inicial aperfeiçoada);
17) AA foi hospitalizado no Hospital ... e após estar estabilizado foi transferido para o Hospital ... no dia 9/6/2017 e novamente transferido para o Hospital ... (art.46º da petição inicial aperfeiçoada);
18) Posteriormente, AA foi transferido para o Centro Hospitalar ..., ..., com o diagnóstico de politraumatizado pelo acidente de viação, em 1/6/2017 (art.46º e 49º da petição inicial aperfeiçoada);
19) Em 28 de Junho de 2017 AA apresentava as seguintes patologias Dos Ramos ilíaco púbico direita, Exposta do F2 do Haflux, de 2 arcos costais, das apófises transversais de Lei nº 4 e L5 direitas, do sacro à direita com hematoma retroperitoneal, TCE com hematoma subdural e periprotesica do acetabulo esquerdo (art.47º da petição inicial aperfeiçoada);
20) AA teve alta com as seguintes lesões: traumatismo crâneo-encefálico com hematoma epicraneano parieto-occipital direito, traumatismo torácico com 5º e 6º arcos costais à direita e contusão pulmonar associada, traumatismo da bacia dos ramos ilio e isquiopúbico direitos e asa do sacro direito, com hematoma retroperitoneal direito, trauma da coluna vertebral das apófises transversais direitas L4 e L5, trauma dos membros, periprotésica acetabular esquerda e exposta grau I do haluux direita que foi suturada (art.50º da petição inicial aperfeiçoada);
21) Foi prescrito a AA a seguinte medicação: Tramadol e Paracetamol, Enalapril e Hidrocorotiazida, Irbesartan, Metformina, pantoprazl, Apixaban, Amiodarona, Enoxaparina sódica, Tramadol e Paracetamos, Matamizol magnésio, sulfato ferroso e ácido fólico e ciprofloxacina (art.38º da petição inicial aperfeiçoada);
22) AA saiu algaliado com Folley nº 16 e infecção do trato urinário, tendo a família sido ensinada para manutenção da algaliação (art.51º da petição inicial aperfeiçoada);
23) AA saiu do internamento hospitalar a usar fralda (art.52º da petição inicial aperfeiçoada);
24) A 12/7/2017 foi pedido um TC Crâneo Encefálico (art.53º da petição inicial);
25) Para 20/7/2017 foi marcada consulta de ortopedia/traumatologia (art.54º da petição inicial aperfeiçoada);
26) AA sofreu dores em consequência do atropelamento (art.36º da petição inicial aperfeiçoada);
27) AA tinha 83 anos na data referida em 1) (art.5º do Código de Processo Civil);


Nela deu-se como não provado que:

A) A via estava bem iluminada, com boa visibilidade (art.11º da petição inicial aperfeiçoada);
B) AA encontrava-se a 1 metro da filha FF (art.14º da petição inicial aperfeiçoada);
C) O veículo deslocava-se acima da velocidade permitida para o local (art.16º da petição inicial aperfeiçoada);
D) No momento do embate a filha FF tinha terminado de atravessar a via (art.18º da petição inicial aperfeiçoada);
E) AA tinha já passado o eixo da via, encontrando-se aquando do embate a menos de um metro do passeio (art.20º da petição inicial aperfeiçoada);
F) Logo a seguir ao embate a viatura cessou a sua marcha a sete metros (art.21º da petição inicial aperfeiçoada);
G) O veículo não tinha os faróis ligados (art.19º da petição inicial aperfeiçoada);
H) O Autor, na altura do embate, encontrava-se a menos de 1 metro do passeio (art.20º da petição inicial aperfeiçoada);
I) A 22 de Novembro de 2017 foi o Autor transportado de ambulância com maca, a uma consulta de neurocirugia ao Hospital ..., acompanhado por um familiar, atendendo a que o mesmo não se conseguia orientar e locomover, perdendo a noção do espaço após o acidente (art.56º da petição inicial aperfeiçoada);
J) Nessa consulta foi agendado para o dia 30/1/2017 um exame de diagnóstico de neuro-radiologia (art.56º da petição inicial aperfeiçoada);
K) O Autor quase perdeu a vida (art.57º da petição inicial aperfeiçoada);
L) O Autor embateu na lateral esquerda do veículo ..., na zona da porta do condutor (art.29º da contestação do FGA)

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Aplicado o direito aos factos, atentos s pedidos, foi a acção julgada a final improcedente, e por isso se absolveram o Réu e os Intervenientes dos pedidos deduzidos contra os mesmos.
As custas ficaram pelo Autor (Habilitados).

iii)-

Inconformados recorrem os Habilitados do Autor, recurso de apelação que subiu imediatamente, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Os Apelantes apresentam em síntese as seguintes conclusões:

Pretendem se dê como não provados os pontos dos factos vindos como provados:
 
3- Antes de AA, atravessaram, no mesmo local, uma das suas filhas, o seu genro e netos (art.6º e 7º da petição inicial aperfeiçoada);
8 - AA iniciou a travessia da faixa de rodagem sem se assegurar que o podia fazer em segurança (art.11º da contestação dos Réus BB e EE)
9 - O local é mal iluminado e com má visibilidade (art. 26º da contestação do FGA).

Pretendem se dê como provado ainda:

- Em vez do pondo D) dos factos vindos como não provados que: No momento do embate a filha FF e a sua nora GG tinham terminado de atravessar a via;

- O A. acompanhado por 6 elementos da família atravessou a via publica em conjunto com aqueles na direcção do estacionamento que se localiza à frente do referido café; art 6º da PI aperfeiçoada

- A condutora do veículo não travou aquando do atropelamento.

- Devido ao acidente o A. padeceu das seguintes lesões: a)Traumatismo Crânio-encefálico com hematoma epicraniano parieto- occipital direito, b) traumatismo torácico com 5º e 6º arcos costais á direita e contusão pulmonar associada; c) traumatismo da bacia dos ramos ílio e isquiopúbico direitos e asa do sacro direito, com hematoma retroperitoneal direito; d) trauma de coluna vertebral das apófises transversais direitas L4 e L5; e)Trauma dos membros, periprotésica acetabular esquerda e exposta grau I do hallux direito, que foi suturada. Art. 50º da PI aperfeiçoada baseada no Doc 10 – relatório da alta do Centro Hospitalar ... de 28.06.2017, documento não contestado por nenhuma das partes.

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Sobre matéria de direito apresentam, em suma as seguintes considerações:

a. Apresenta-se como extremamente redutor o facto de atribuir culpa exclusiva ao transeunte, aqui A., que por ter atravessado a via publica fora da passeira;
b. E que por via disso ao violar as regras das regras estradais, presumisse culpa exclusivamente sua no acidente verificado.
c. Deveria o tribunal a quo ter ponderado sobre todo o circunstancialismo fáctico, nomeadamente a ausência de travagem por parte da R. condutora, os diversos elementos familiares que atravessaram na mesma altura e que apesar de existir iluminação nocturna, de acordo com os documentos juntos aos autos, não impugnados, pelas imagens supra identificadas- Doc 4 da contestação da 1º R., verifica-se que seria impossível a R., não ter avistado com tempo o A, ao ponto de evitar o embate.
d. Por esse motivo ainda que seja defendida a presunção da culpa a quem viole as regras estradais, não se pode ignorar que a 2º R agiu com culpa ao ter atropelado o A, pessoa idosa que se encontrava no eixo da via numa zona da cidade iluminada, quando podia antever a possibilidade de um atravessamento possível, nomeadamente por uma criança, ao avistar um aglomerado de pessoas que terminavam, também elas, de travessia a via publica fora da passadeira mas entre passadeiras próximas;
e. O que se conclui que perante as declarações dos ocupados do veiculo o atropelamento não seria evitado por o A. atravessar numa das duas passadeiras ali existentes uma vez que declararam que não viram o A. nem seus familiares;
f. O que demonstra que inevitavelmente a R., teve culpa no acidente por não ter demonstrado o cuidado devido na sua condução a fim de evitar o atropelamento.
g. Contudo e caso se entenda que afastada está a culpa da condutora cabe aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado.
h. Estatui o art.º 499º do Código Civil que “são extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”.
i. Na hipótese colocada do fundamento da responsabilidade não residir num acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o lucro ou em todo o caso, o beneficio de uma certa coisa, deve suportar os correspondentes encargos – ubi commodum ibi incommodum
j. Estabelece o direito substantivo civil – art.º 503º, n.º 1, do Código Civil – donde cabe ao proprietário a direcção efectiva do veículo, que o vê a circular no seu próprio interesse, gozando de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do veículo.
l. Assim, prima facie reconhecer-se-ia a responsabilidade pelo risco.
O Tribunal a quo veio aderir à interpretação menos restritiva e automática do art.505º do Código Civil.
m. «No sentido de não implicar esta uma impossibilidade, absoluta/automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação da responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos riscos concretos de circulação da viatura.»
n. Concluindo que «não há dúvidas de que ocorreu uma conduta censurável por parte de AA» (…) e que o seu atropelamento «se deveu em exclusivo, pela forma desatenta e negligente como atravessou a via de trânsito, sem que se possa atribuir ao condutor do veículo ou aos riscos próprios deste qualquer contribuição na produção do acidente.»;
o. Pelo que conclui «que não ocorreu qualquer circunstância que permita concluir pela responsabilização dos Réus pela reparação dos danos sofridos por AA.»
Analise:
p. Entendia-se que não era legalmente admissível o concurso do risco do lesante
com a culpa do lesado, invocando, para o efeito o regime jurídico decorrente do n.º 2 do art.º 570º do Código Civil, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, in, Código Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão, Coimbra Editora, Fevereiro de 2011, páginas 517 e 518, anotação 1 ao artigo 505º do Código Civil.
q. Esse entendimento teve apoio jurisprudencial até ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Outubro de 2007 (Processo n.º 07B1710), in, www.dgsi.pt que, por maioria, sustentou que o artigo “505º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
r. Assim, e como invocado na decisão do tribunal a quo está actualmente firmada no Supremo Tribunal de Justiça uma interpretação não mecânica do art.º 505º do Código Civil tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1).
s. Diz CALVÃO DA SILVA, decompondo a norma em análise – a ressalva feita no início do art.º 505.º (“Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503.º; e esta é a responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art.º 570.º) e o risco da utilização do veículo (art.º 503.º) resulta do disposto no art.º 505.º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art.º 570º.
t. Valerá a doutrina (entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima ) para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10.ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1.
u. Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8.ª ed. revista e ampliada, pág. 309 e ss.
v. Revertendo ao caso sub iudice, impõe-se saber se a facticidade demonstrada encerra um comportamento do Autor, que quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, aqui 2º R., na medida em que o dano deixe de ser um efeito adequado do risco desse veículo.
x. Foi aqui que se entende que o tribunal a quo julgou e decidi-o de forma incorrecta.
z. Embora o A. e seus 5 familiares deveriam ter procedido à travessia na passadeira destinada a peões, existente no local do acidente, deve se ter em consideração que as 5 pessoas mais o A., atravessaram numa estrada com as descrições supra mencionadas ( via publica, larga, caracterizada como uma recta, ascendente, precedida de um cruzamento que diminui a velocidade, dentro da cidade com iluminação publica acrescida da iluminação publicitaria do restaurante);
aa. E aquando do atravessamento da via ninguém avistou qualquer veículo;
bb. Sendo que não se pode ignorar que o atropelamento se deu no eixo da via publica considerando, e de acordo coma prova dos autos, que se trata de uma estrada larga.
cc. Pelo que não se compreende que qualquer condutor nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, não tivesse avistado o idoso que ali atravessava sem o avistar de forma a imobilizar o veículo a tempo de evitar o atropelamento.
dd. Alerta-se que o A. a travessou a faixa de rodagem do lado esquerdo para o lado direito, atento o referido sentido de marcha da 2º R era do lado direito;
ee. Pelo que o A. já tinha atravessado a via contraria (alínea 4) dos fatos provados) quando foi colhido pelo veículo conduzido pela 2ª R;
ff. Tendo esta embatido com o veículo com a sua frente esquerda (alínea 5) dos factos provados)
gg. Da facticidade adquirida processualmente resulta que o ajuizado acidente se ficou a dever ao fato da condutora, 2 R não ter avistado o A. e por via disso não ter imobilizando o seu veículo a tempo de evitar o acidente;
Concluem pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que condene os R. no pagamento imediato aos Recorrentes do valor de € 20.000.


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Contra-motiva o Réu FGA rematando:

1. Resultou provado que o sinistrado procedeu ao atravessamento da via, existindo passadeiras destinadas à travessia de peões a menos de 50 metros do local.
2. Ainda, que havia uma passadeira mais abaixo, a 38 metros do local, e outra mais acima, a 30 metros do local, como confirmou o Agente da PSP, que declarou ainda que a iluminação era pouca, que tirou fotografias mas teve muita dificuldade.
3. Acresce que o sinistro ocorreu entre as 21h e as 22h e o local era efectivamente mal iluminado, como atestam também as fotografias que integram a pág. 39/48 da peça processual com a ref.ª 33171482 / 6081877 de 09-08-2019.
4. De acordo com os depoimentos dos familiares do peão que se encontravam no local, os vários membros da família atravessaram a estrada em frente ao restaurante de onde saíram.
5. Pretendem os Autores que foi um atravessamento em conjunto, o que não é correcto.
6. Sucede que os filhos e o neto do sinistrado já tinham atravessado e estavam no passeio do lado oposto, a nora atravessou antes do sinistrado e a sua mulher e filha tinham ficado para trás, a pagar, e estavam ainda a sair do restaurante.
7. AA iniciou a travessia da faixa de rodagem sem assegurar que o podia fazer em segurança – o mesmo tinham feito os outros familiares, que melhor sorte tiveram…
8. Os Autores reconhecem que 6 pessoas decidiram atravessar a via pública fora da passadeira, infringindo uma das regras de trânsito ao nível da segurança dos transeuntes, e que nenhuma delas viu nem ouviu o carro.
9. O peão surgiu à esquerda do veículo quando este transpunha já o local, não sendo possível à sua condutora vê-lo.
10. Atente-se no facto de nenhum dos ocupantes do veículo ter avistado o sinistrado antes deste bater no veículo.
11. Tal confirma que ele não estava na frente ao veículo, nem no eixo da via, antes tendo surgido do lado esquerdo.
12. Por todo o exposto, foi correcta a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, de que resulta a exclusiva responsabilidade do peão pela produção do acidente.
13. Inexistiu erro de apreciação da prova documental e testemunhal, ou de julgamento.
14. A douta decisão de fls. não violou quaisquer preceitos legais.

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Contra-motivam os Intervenientes, sustentando o acerto da sentença recorrida (facto e direito).

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.
“Questões” são as concretas controvérsias centrais a dirimir.

III - OBJECTO DO RECURSO 

As questões que se colocam ao julgador através da presente apelação consistem em:
- saber quais os factos a ter em conta;
- conhecer do mérito da causa.

IV- mérito do recurso

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Saber quais os factos a ter em conta

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Os Apelantes pretendem se dê como não provado o ponto 3 dos factos provados.

Mas sem razão.
Os familiares da vítima, e esta, atravessavam a via a pé, não em grupo, mas em fila, espassadamente. Atravessavam calma e naturalmente. Por exemplo a testemunha HH, namorada do neto do sinistrado, quando se deu a colisão, já tinha atravessado a estrada na sua totalidade, e já tinha atingido o parque de estacionamento fronteiro ao restaurante onde tinham jantado.
A testemunha GG explica essa travessia em linha, não em grupo, não em aglomerado. Esta testemunha diz que o último a atravessar foi o Autor, que ficara para trás, a dois metros de si.
A testemunha II explica que o neto e os filhos já estavam com a travessia feita, e que uma filha ia mais o pai (o sinistrado), pois haviam ficado mais para trás.  

A Senhora Juiz face à prova oral produzida exprimiu igualmente que dos depoimentos dos familiares do Autor retirou que o Autor, entretanto falecido, ficou um pouco para trás do grupo inicial.

O ponto é de manter.

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Os Apelantes pretendem dar como não provado o ponto 8 dos factos provados.

A Senhora Juiz fundamenta assim tal factualidade:

Em relação ao Facto Provado 8) decorre o mesmo da ponderação de toda a factualidade.
Na verdade, não se pode ignorar que as testemunhas JJ, KK e LL referiram que o veículo circulava de luzes ligadas, pelo que, e considerando que o embate ocorreu junto do eixo da via é forçoso concluir que AA, descuidadamente, não se acautelou de que podia atravessar.
 
E tem razão. O peão atravessava a rua pública, com duas vias de trânsito, na perpendicular, uma recta com 200 metros de extensão. O veículo automóvel circulava com velocidade reduzida – pois só assim se explica, face ao croquis, que tenha ficado parado a pequena distância do local de embate, e colocado a meio da sua faixa de rodagem, sem rastos de travagem -.
A faixa de rodagem por onde o veículo seguia tem sombras de árvores. Havia iluminação pública.
Nestas circunstâncias era mais fácil o peão dar conta da aproximação do veículo, do que a condutora do veículo se aperceber do atravessamento do peão, vindo da outra faixa de rodagem, aproximando-se pela esquerda, atento o sentido de marcha do veículo.

É que, primacialmente, o condutor perante uma faixa de rodagem sombria, com sombras e clarões de luz, adequa a velocidade ás circunstâncias e olha em frente… não lhe é exigido preocupar-se em igual ou mais acuidade com o que se passa na outra faixa.

O peão, pessoa idosa, na altura com 82 anos de idade, atravessava a via sem o amparo especial dos demais familiares que já tinham feito tal travessia. (Não houve a preocupação de o acompanhar pessoalmente, agarrando-o pelo braço durante a aproximação à via e durante a travessia da mesma).

O ponto é de manter.

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Os Apelantes discordam em dar-se como provado que:

9 - O local é mal iluminado e com má visibilidade (art. 26º da contestação do FGA).

Os Apelantes realçam a luz emitida pelo restaurante durante a noite e horário de funcionamento.
Mas essa luminosidade melhora a visibilidade do passeio fronteiro e pouco ou nada mais.

A Senhora Juiz fundamentou assim a resposta:

No que respeita aos Factos Provados 9) e 10) a testemunha JJ esclareceu que a rua, no local em causa, é escura, como de resto foi confirmado por MM, reconhecendo este a pouca visibilidade do local, nomeadamente quando confrontado com as fotografias de fls.130, que esclareceu corresponderem às condições existentes no local na data e hora em causa.
De resto, a iluminação pública que as testemunhas afirmaram existir junto ao parque de estacionamento, do lado oposto do café, encontra-se “escondida” pelas árvores existentes, como as mesmas afirmaram e resulta das fotografias já referidas.

Concordamos com a fundamentação. Há fotografias nos autos. Há mesmo o croquis com o esboço de fls. 45 verso, da averiguação mandada realizar pelo Réu FGA.

Não se está perante o preenchimento do conceito de visibilidade reduzida ou insuficiente do artigo 19º do CE, uma vez que, ente outros, o tempo estava seco, sem chuva ou nevoeiro, e o local tem iluminação pública.


O ponto é de manter.

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Os Apelantes pretendem que em vez do pondo D) dos factos vindos como não provados se dê como provado que: No momento do embate a filha FF e a sua nora GG tinham terminado de atravessar a via.
Porém tal factualidade não tem qualquer relevância para explicar o atropelamento do peão AA, pois a ele alheio.

Pretendem se dê como provado que - O A. acompanhado por 6 elementos da família atravessou a via publica em conjunto com aqueles na direcção do estacionamento que se localiza à frente do referido café.
O facto não se provou. Se o peão e familiares tivessem atravessado a via em grupo as vítimas seriam certamente em maior número, a ter havido colisão.

Pretendem se dê como provado que: - A condutora do veículo não travou aquando do atropelamento.
O facto só teria relevância se dissesse respeito ao momento anterior ao embate. Se com a travagem conseguisse evitar o embate.
Se a condutora travou o veículo aquando do atropelamento ou não, já é irrelevante para a dinâmica do evento.

Os Apelantes pretendem uma redacção algo conclusiva para a factualidade do nº 20 dos factos vindos como provados, acrescentando o nexo de causalidade adequada entre “o acidente” dos autos e as sequelas sofridas pelo AA.
O ponto é inócuo.
É evidente que as sequelas se ficaram a dever ao embate. O nexo de causalidade entre o acidente e as sequelas já ficou factualmente estabelecido no ponto 13. dos factos dados como provados.

Preferimos, por isso, manter a redacção do ponto 20. dos factos vindos como provados.

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Portanto, mantemos o elenco de factos apurado na 1ª instância.
Não oferece contradição. Não padece de ambiguidade, nem cabe oficiosamente alterá-lo.
 

Do mérito da causa

O Autor intenta a presente acção pretendendo do Réu FGA e Intervenientes ser indemnizado apresentando como fonte da obrigação de indemnizar a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos emergente de acidente de viação.
O Autor foi vítima de um atropelamento quando fazia a travessia da via pública, designadamente entrando na faixa de rodagem por onde circulava o ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NA, propriedade de EE e conduzido na altura pela interveniente BB.

O veículo veio a ser dado como não tendo seguro obrigatório de responsabilidade civil uma vez que o aludido CC havia adquirido o mesmo a um familiar recentemente e confiou na manutenção do contrato de seguro celebrado entre o antigo dono e a seguradora “Fidelidade”, o que não se verificou.
Nos termos dos artigos 21~º e 22º do DL 291/2007, de 21 de Agosto, e do artigo 10º, 1 das Condições Gerais do seguro, o contrato de seguro não se transmite em caso de alienação, cessando os efeitos às 24 horas do dia da alienação.

O Autor imputa a responsabilidade exclusiva da produção do acidente à condutora do veículo interveniente, BB.

O Réu FGA e Intervenientes imputam essa responsabilidade exclusivamente ao Autor, entretanto falecido.

Vendo.

Ficou provado que:

1) No dia 3 de Junho de 2017, AA e a sua família foram jantar ao café/restaurante “T...”, sito na Rua ..., ...;
2) Após o jantar, entre as 21h e as 22h, AA atravessou a via pública na direcção do estacionamento que se localiza à frente do referido café;
3) Antes de AA, atravessaram, no mesmo local, uma das suas filhas, o seu genro e netos;
4) Quando AA se encontrava a passar a via pública, junto ao eixo da via, foi embatido pelo veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-..-NA, conduzido pela Ré BB e propriedade do Réu EE;
5) O veículo embateu em AA com a sua frente esquerda;
6) O veículo ..-..-NA circulava, a velocidade não apurada, na Rua ..., vindo da Rua ..., no sentido oeste/este;
7) Cerca de 38 metros antes do local onde AA atravessou a via existia uma passadeira destinada à travessia de peões, atento o sentido de marcha do veículo ...;
8) AA iniciou a travessia da faixa de rodagem sem se assegurar que o podia fazer em segurança;
9) O local é mal iluminado e com má visibilidade;
10) No local, no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo ..., existia iluminação pública, que se encontrava ocultada pelas árvores existentes;
11) Logo a seguir ao embate o veículo cessou a sua marcha, ficando a viatura ligeiramente virada para sul, na direcção do parque de estacionamento;
12) AA ficou deitado na via pública inconsciente e a sangrar da cabeça, tendo sido chamada ambulância e autoridades policiais;

No caso existia a menos de 50 metros do local de atravessamento da via pelo peão, uma passagem especialmente assinalada para esse efeito.
O AA não atravessou a via pública e designadamente a faixa de rodagem por onde circulava o NA nessa passagem assinalada. Só podia fazê-lo aí, dada a existência desta passagem especialmente assinalada para o efeito.
Violou o AA o disposto no artigo 101º, 3 do CE.
Esta a transgressão causal do acidente.

AA ao atravessar a via pública e designadamente a faixa de rodagem por onde circulava o NA, sem se certificar que nela circulava o NA, sem ponderar a velocidade a que este seguia, e sem se certificar que podia atravessar sem perigo de acidente, surgiu frente ao NA, e foi por este atropelado, com a frente esquerda.

O condutor do NA seguia no respeito pelas normas estradais.

Vigora no nosso Direito Estradal o princípio da liberdade de trânsito – artigo 3º, 1 do CE.
Nos termos do nº 2 deste artigo, as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaraçam o trânsito, ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias.  
Consagra-se aqui um dever geral de diligência.
Daqui se retira, em princípio, ser inexigível que a um utente contar com a negligência do outro utente da via.

Mesmo que a condutora do NA tivesse surpreendido o AA a atravessar a via e a aproximar-se da sua faixa de rodagem onde estava a circular, não estava obrigada a evitar a colisão (através de uma manobra de emergência, por exemplo), por não lhe ser exigível contar que o peão, sem mais, e nestas condições, se fosse colocar à frente do veículo.

O Autor agiu negligentemente, pois para a violação das regras estradais basta a negligência.

Provada a negligência da actuação do peão, fica presumida a ilicitude da conduta do infractor.

Assim a produção do acidente dos autos – atropelamento do peão AA – ficou a dever-se a culpa exclusiva do próprio.

Nenhuma culpa se apurou relativamente à condutora do NA – cfr. artigo 483º, 1 do CC. 

Só existe responsabilidade pelo risco nos casos especificados na lei. Cfr. artigo 483º, 2 do CC. 

A produção do acidente é imputável exclusivamente ao peão, o que, em princípio, exclui a responsabilidade pelo risco. Cfr. artigo 505º do CC. 
Não se vê modo de corresponsabilizar a condutora do NA na produção do acidente, uma vez que circulava no cumprimento das normas estradais, como vimos.

É este igualmente o rumo alcançado na sentença recorrida.

A hermenêutica jurídica podia quedar-se por aqui, mas os Apelantes pretendem que, apesar disso, se considere a factualidade á luz da relevância da responsabilidade pelo risco inerente à circulação de qualquer veículo automóvel, atenta a conjugação do disposto nos artigos 503º, 505º e 570º, 1 e 2, todos do CC.

Vejamos.

Existem duas posições jurisprudenciais sobre o tema.
Por um lado, face ao direito positivo, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.
Por outro, numa interpretação mais actualista, essa concorrência não é negada.

Porém, os Apelantes trazem a terreiro dois doutos arestos do STJ:
1- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1) e
2- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017 (Processo n.º 511/14.0T8GRD.D1.S1).

No primeiro deles a decisão final vai na senda da aqui seguida. O respectivo sumário é este: 

I - Num acidente de viação traduzido no embate contra a parte lateral direita da frente de um veículo automóvel em circulação, de um menor com 10 anos de idade, inopidamente surgido em corrida na faixa de rodagem, provindo do intervalo/”corredor” entre dois autocarros estacionados no lado direito da estrada – considerando o sentido de marcha de tal veículo -, e logo após acabar de percorrer a largura dessa via ocupada pelos mesmos, é necessariamente de reputar exclusivo responsável pela eclosão de tal sinistro, o dito menor.

II – Assim, qualquer que seja a interpretação que se leve a efeito no que concerne ao regime normativo integrado pelos arts. 505.º e 570.º, ambos do Cód. Civil - seja tal interpretação ditada pela corrente “tradicional” ou pela corrente “actualista” – jamais o detentor do automóvel poderá ser responsabilizado, em qualquer grau ou percentagem, pelo risco genérico da circulação do veículo, risco este irrelevante em face de tal descrito circunstancialismo.

No segundo deles a decisão final vai igualmente na senda da agora aqui seguida. O sumário do referido douto aresto é esclarecedor:

I - A questão da concorrência entre a culpa do lesado (arts. 505º e 570º do CC) - ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado - e a responsabilidade por riscos próprios do veículo (art. 503º, nº 1, do CC) constitui uma das mais complexas e controversas da jurisprudência civilista nacional dos últimos anos, circunstância para a qual contribui o facto de a mesma questão se apresentar de modos distintos em razão do tipo de situação litigiosa subjacente, ainda que com um núcleo essencialmente comum.
II - Em tese geral, perfilha-se o entendimento de que o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.

III - Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.

IV - Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado – pessoa maior e imputável, que enquanto peão, atravessou uma via com diversas faixas de trânsito, não utilizando a passadeira, situada a 24,5 metros de distância, e provando-se que os semáforos se encontravam verdes para a via onde circulava o veículo automóvel que o atropelou, sem que tenha sido feita prova de qualquer infracção das regras do Código da Estrada por parte do seu condutor –, a indemnização deve ser totalmente excluída.

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Assim a acção improcede por falta de prova – artigo 342º, 1 do CC. 

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V-DECISÃO:

Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, indo confirmada a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes, ora Habilitados do Autor.

Valor da causa: € 20.000,00€.

Coimbra, 2 de Maio de 2023.

(Rui António Correia Moura)                                

(João Moreira do Carmo)                      

(Fonte Ramos)