ACIDENTE DE VIAÇÃO OCORRIDO EM PORTUGAL
INTERVENIENTE VEÍCULO MATRICULADO EM FRANÇA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário

A ação de responsabilidade civil, emergente de acidente de viação ocorrido em Portugal, no qual interveio um veículo matriculado em França, pode ser intentada contra o Gabinete Português Carta Verde ou contra a Seguradora francesa, representada em Portugal por gestora identificada.

Texto Integral


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

“AA, (…), propôs acção declarativa sob a forma de processo comum contra A..., Sucursal Francesa, representada em Portugal por B..., S.A, (…), pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 6.471,25, a título de danos patrimoniais e € 346,25 a título de danos não patrimoniais.

“Para, tanto, alega em síntese, que a autora e lesada tem nacionalidade francesa e residência habitual e permanente em França, Estado onde também reside o segurado da Ré – e aliás, a própria Ré – possuem residência habitual, encontrando-se ambos, ocasionalmente, em Portugal na data em que ocorreu o sinistro.

“Mais alega que no dia 17.08.2017, pelas 11h30, desfrutando de férias em Portugal, a Autora caminhava a pé pelo Largo ..., ..., em ..., quando uma viatura de matrícula francesa ..-..2-FZ, de marca ..., conduzida pelo segurado da Ré e titular da Apólice ...83, ao circular sem o devido cuidado com o veículo pela via pedonal onde decorria a feira quinzenal, atropelou com o rodado do lado direito, o calcanhar do pé direito da Autora. (…)

“A Ré, regularmente citada, apresentou contestação, alegando a ilegitimidade passiva, porquanto a presente ação teria de ser interposta apenas contra o Gabinete Português de Carta Verde, enquanto legal representante da companhia de seguros. Mais alegou a prescrição do direito de indemnização, impugnando os factos alegados na petição inicial.

(…)

“Dispõe a este respeito o artigo 90º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto que “Compete ao Gabinete Português de Carta Verde, organização profissional criada em conformidade com a Recomendação n.º 5 adoptada em 25 de Janeiro de 1949, pelo Subcomité de Transportes Rodoviários do Comité de Transportes Internos da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas e que agrupa as empresas de seguros autorizadas a explorar o ramo «Responsabilidade civil - Veículos terrestres automóveis» («Serviço nacional de seguros»), e subscritor do Acordo entre os serviços nacionais de seguros, a satisfação, ao abrigo desse Acordo, das indemnizações devidas nos termos da presente lei aos lesados por acidentes ocorridos em Portugal e causados:

a) Por veículos portadores do documento previsto nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 28.º e com estacionamento habitual em país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido a esse Acordo, ou matriculados em país terceiro que não tenha serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido seja ao Acordo, seja à secção ii do Regulamento anexo ao Acordo, mas que, não obstante, sejam portadores de um documento válido justificativo da subscrição em país aderente ao Acordo de um seguro de fronteira válido para o período de circulação no território nacional e garantindo o capital obrigatoriamente seguro;

b) Ou por veículos com estacionamento habitual em país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido a esse Acordo e sem qualquer documento comprovativo do seguro.”

“Conforme decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12/04/2018, proc. 2608/16.3T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt, “1 – O Fundo de Garantia Automóvel é a entidade competente para o pagamento de indemnização a um lesado residente em Portugal em resultado de dano sofrido em acidente causado por veículo segurado noutro Estado-membro da EU e ocorrido nesse outro Estado-membro, nas condições previstas no DL 291/2007 de 21 de agosto. 2 – Ao Gabinete Português da Carta Verde compete a satisfação das indemnizações devidas por acidentes ocorridos em Portugal sempre que a responsabilidade seja atribuída a seguradoras inscritas em gabinetes congéneres estrangeiros.”.

“Por outro lado, dispõe o artigo 2º do Acordo entre os Serviços Nacionais de Seguros dos Estados-Membros do espaço da União Europeia e outros Estados associados, de 30 de Maio de 20021, que “Os serviços nacionais abaixo assinados conferem reciprocamente aos demais serviços nacionais signatários poderes para, em seu próprio nome e em nome dos seus membros, resolverem de forma amigável todos os sinistros e serem notificados de quaisquer procedimentos de natureza judicial ou extrajudicial susceptíveis de conduzir ao pagamento de indemnizações decorrentes de acidentes, dentro do âmbito de aplicação e dos objectivos do Regulamento Geral.”.

“Constando ainda do artigo 5º do referido Acordo que, quer a França, quer Portugal, são subscritores do referido Acordo.

“Acrescentando o nº 4 do artigo 5º do Regulamento Geral anexo às decisões da Comissão Europeia, de 28/07/2003 que “Os sinistros devem ser geridos pelo serviço nacional com plena autonomia e em conformidade com as disposições legais e regulamentares aplicáveis no país de ocorrência do acidente em matéria de responsabilidade, indemnização das pessoas lesadas e seguro automóvel obrigatório, no melhor interesse da seguradora que emitiu a carta verde ou a apólice de seguro ou, se for caso disso, do serviço nacional envolvido.”.

“De tudo o exposto não se vê como possa ser contornada a conclusão da ilegitimidade da ré para a causa.

“Atento ao exposto, julgo procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva invocada, julgando a ré A..., Sucursal Francesa, representada em Portugal por B..., parte ilegítima para a acção, absolvendo-a da instância.”


*

Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. A Autora, de nacionalidade francesa e na qualidade de lesada em acidente de viação ocorrido em Portugal, em 17/08/2017, envolvendo um veículo, também, de matrícula francesa com apólice de seguro automóvel titulada pela Ré em França, interpôs ação de responsabilidade civil diretamente contra a seguradora francesa titular da apólice, a A..., representada em Portugal pela representante para sinistros, B..., a qual, regularmente citada através da representante em Portugal, veio deduzir exceção dilatória de ilegitimidade passiva, alegando que é sobre o Gabinete Português de Carta Verde (GPCV) que recai a competência exclusiva relativamente a todas as questões relacionadas com a regularização do sinistro, porquanto França é um dos países subscritores do Acordo entre os Serviços Nacionais de Seguro dos Estados Membros, e como tal, a presente ação deveria ter sido interposta contra o GPCV e não contra a seguradora.

2. Em Despacho Saneador Sentença o Tribunal a quo que julgou procedente a exceção dilatória de Ilegitimidade passiva deduzida pela Ré, considerando-a parte ilegítima e absolvendo-a da instância, decisão que é objeto do presente recurso.

3. O regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel vem estabelecido no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o qual transpôs (em parte) para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que alterou as Diretivas n.º 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, e nos termos do disposto no artigo 90.º, al. a), 1ª parte, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto: «Compete ao Gabinete Português de Carta Verde (organização profissional criada em conformidade com a Recomendação n.º 5 adotada em 25 de janeiro de 1949, pelo Subcomité de Transportes Rodoviários do Comité de Transportes Internos da Comissão Económica para a Europa da Organização das Nações Unidas (…), a satisfação, ao abrigo desse Acordo, das indemnizações devidas nos termos da presente lei aos lesados por acidentes ocorridos em Portugal e causados:

a) Por veículos portadores do documento previsto nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 28.º e com estacionamento habitual em país cujo serviço nacional de seguros tenha aderido a esse Acordo (…).”.

4. Pelo que, se o sinistro ocorrer em Portugal e envolver um veículo de matrícula estrangeira (cujo serviço nacional tenha aderido ao Acordo Multilateral de Garantia e da Convenção Tipo Inter-Gabinetes) - como é o caso da França e de Portugal, no que ao presente caso respeita - e desde que exista um documento comprovativo de seguro válido e eficaz em Portugal previstos nas alíneas b), a e) do n.º1, do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, será competente para proceder à satisfação das indemnizações devidas nos termos daquele diploma legal, o Gabinete Português de Carta Verde.

5. Porém, dos Estatutos da Associação Gabinete Português de Carta Verde, no seu artigo 4º, al. c), decorre ser desígnio do GPCV «...assegurar os legítimos direitos das vítimas de acidentes ocorridos em Portugal sempre que a responsabilidade deva ser atribuída a seguradoras inscritas nos Gabinetes congéneres estrangeiros colaborando e procurando obter a colaboração de todas as entidades públicas competentes de modo a facilitar o tráfego de veículos matriculados ou registados no estrangeiro abrangidos por extensão territorial válida do seguro de responsabilidade civil automóvel do país de origem, para Portugal...»

6. Estas disposições visam, não só facilitar a circulação dos veículos, como também proteger as pessoas vítimas de acidentes de viação, facilitando-lhes a indemnização ao possibilitar-lhes uma organização com legitimidade para ser demandada como representante da seguradora estrangeira titular da apólice do veículo responsável pelo acidente ocorrido em Portugal.

7. Nesses casos, tal como nos acidentes no estrangeiro causados por veículos automóveis habitualmente estacionados noutros Estados-Membros, os lesados podem apresentar os pedidos de indemnização ao Organismo de indemnização, ainda que num regime de subsidiariedade, pois como é evidente, isso não lhes retira o direito de acção direta contra a seguradora responsável, já que esse direito ou faculdade decorre, desde logo, do artigo 64º do DL 291/07, o qual transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2000/26/CE que consagra no artigo 3º que: «Os Estados-Membros devem assegurar que as pessoas lesadas a que se refere o nº1, cujo prejuízo resulte de acidentes na acepção da referida disposição tenham direito a acção diretamente contra a empresa de seguros que cubra a responsabilidade civil de terceiro”

8. Nesse sentido decidiram já, não só o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. 03B3010, de 18/012/2003 em que foi relator o Juiz Conselheiro Santos Bernardino, mas também vários Tribunais da Relação, entre os quais o TRC no Ac. de 01/07/2014, em que foi relatora a Juíza Desembargadora Maria Domingas Simões, o TRG no Acórdão de 13/07/2021, em que foi relator o Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, ou o Ac. de 17/11/2016 em que foi relator o Juiz Desembargador Heitor Rodrigues.

9. Como se lê no citado Ac. do STJ: «A ação em que seja pedida indemnização por danos decorrentes de acidente de viação, ocorrido em Portugal, causado por veículo automóvel matriculado num Estado Membro da União Europeia, deve ser dirigida, em princípio, contra o Gabinete Português de Carta Verde, mas pode ser intentada contra o segurado ou o segurador como diretamente responsável pelos danos causados»

10. Como decorre evidente, com estas disposições o Legislador visou facilitar a circulação dos veículos e a proteção das pessoas vítimas de acidentes de viação, como mero garante da obrigação de indemnizar da seguradora estrangeira titular da apólice, mas não restringe – nem o poderia fazer – o direito de ação direta do terceiro lesado sobre a seguradora titular da apólice, enquanto diretamente responsável, ou, até, sobre a sua correspondente ou representante em Portugal.

11. Ao invés de prosseguir a facilitação de proteção à vítima de acidente – que o Legislador procurou com a criação dos gabinetes gestores – a Sentença proferida pelo Tribunal recorrido inverteu a lógica e o Espírito da Lei e dificultou à lesada Recorrente, a indemnização a que tem direito, pois por mais absurdo que pareça – e parece – decidiu SEM FUNDAMENTAR a respetiva interpretação jurídica (apesar da transposição desarticulada de disposições legais), que o GPCV, mero garante/gestor não titular da obrigação de indemnizar, é, na verdade, o único e exclusivo titular do interesse em contradizer, em detrimento da própria titular da Apólice que é a seguradora estrangeira!

12. É grave e gritante o erro do Despacho Saneador-Sentença proferido pelo Tribunal recorrido e violador do disposto no artigo 30.º do CPC, no artigo 64.º e o artigo 90.º, al. a), 1ª parte, do Decreto-Lei n.º 291/2007, na Diretiva 2009/103/CE e no artigo 4.º do Estatuto do Gabinete da Carta Verde, devendo ser revogada por Acórdão que reconheça a inteira legitimidade passiva da Ré titular da apólice de seguro estrangeira e ordene o prosseguimento dos Autos.


*

            A Ré contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

*

A questão a decidir é a de saber se o Gabinete (GPCV) tem competência exclusiva para a representação da Seguradora, impondo a lei que a ação em causa deva ser intentada obrigatoriamente contra aquele.

*

            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

*

            Conforme se retira dos seus Estatutos, a associação denominada Gabinete Português Carta Verde atua como gabinete gestor, representando os interesses das seguradoras e gabinetes estrangeiros e assegura os direitos das vitimas de acidentes ocorridos em Portugal da responsabilidade das seguradoras inscritas nos gabinetes congéneres estrangeiros.

            A ele compete, nos termos do disposto no artigo 90.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 291/2007, a satisfação das indemnizações devidas nos termos desta lei aos lesados por acidentes ocorridos em Portugal e causados, no que aqui interessa, por veículos matriculados e segurados em França.

            O Gabinete é um garante da obrigação de indemnização que cabe à seguradora.

A sua existência tem em vista facilitar a posição de todos os envolvidos, na defesa dos seus interesses.

As normas referenciadas não são de natureza processual, destinadas a definir uma legitimidade exclusiva, ao contrário do que acontece com o art.64, nº 1, a), do DL 291/2007, este inserido em “disposições processuais”.

Aqui (“Legitimidade das partes e outras regras”) é fixado que as acções destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório.

Quer isto dizer que, no limite de capital referido, a legitimidade pertence sempre à seguradora.

Questionar-se-á então a representação da seguradora.

A lei não nos diz que esta deva ser feita obrigatória e exclusivamente pelo GPCV.

Ora, como resulta da contestação, a “B...” é também uma sociedade reguladora de sinistros, cuja atividade se traduz na instrução e liquidação de processos de sinistros automóvel, abrangidos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel matriculados em Estados aderentes ao sistema de carta verde.

Os Serviços Nacionais de Seguros dos Estados-Membros do espaço da União Europeia são serviços com poderes para serem notificados de quaisquer procedimentos judiciais que possam conduzir ao pagamento de indemnizações decorrentes de acidentes como o dos autos.

Como está adquirido nos autos, o veículo de matrícula estrangeira implicado encontra-se seguro na companhia de seguros A... (a Ré) e esta é representada em Portugal pela “B...”.

(A jurisprudência referenciada pela Recorrente, maioritária, vai no sentido da legitimidade processual passiva alternativa, tendo na base a legitimidade da seguradora, representada pelo GPCV ou por outro gestor de sinistros com poderes.)


*

Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se o prosseguimento dos autos.

Custas pela Recorrida (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil), tida por vencida.

            Coimbra, 2023-05-02


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Rui Moura)