CASO JULGADO FORMAL
CRIME DE USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
ASSISTENTE
Sumário

I - A circunstância de ter sido proferido um despacho liminar e genérico de constituição de assistente e, posteriormente, de abertura de instrução por este requerida não impede que a final seja proferida decisão instrutória em que se reconheça a inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução por ilegitimidade do requerente para assumir a qualidade de assistente, pois aquelas declarações anteriores não fazem caso julgado formal sobre a questão, que não foi concretamente analisada.
II - No crime de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa perante quem o agente se arroga a qualidade de advogado, que não possui, e pratica atos próprios dessa profissão.

Texto Integral

Proc. n.º 7537/17.0T9PRT.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 4

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 7537/17.0T9PRT, previamente à acusação deduzida contra AA, pela prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358.º, n.º 1, al. b), do CPenal, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho de arquivamento (transcrição):
«Na denúncia que apresentou nos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais e devidos efeitos, BB imputa a CC e DD, a prática de factos que em seu entender são susceptíveis de integrar ilícitos criminais.
Sucede que finda a investigação e efectuadas todas as diligências tidas por pertinentes resulta que ambos os denunciados revestem a qualidade profissional de advogado e, à data dos factos, tinham a sua inscrição na Ordem dos Advogados em vigor, conforme resulta da informação de fls. 397.
Face ao exposto, considerando que os denunciados estavam inscritos na Ordem dos Advogados, não poderiam preencher os elementos objectivos do tipo legal de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º do Código Penal.
Não resultam indícios suficientes de que os denunciados tenham praticado qualquer outro facto subsumível a ilícito criminal.
Pelas razões aduzidas determino, nesta parte, o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.º 1 do Código».

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Irresignada com esta decisão, veio a denunciante, já na qualidade de assistente, que lhe foi anteriormente (por despacho de 10-12-2019) reconhecida, por requerimento entrado em juízo a 27-02-2020, solicitar a abertura da instrução contra a denunciada CC, a constituição da mesma como arguida e a prolação de despacho de pronúncia contra a mesma pela prática, como co-autora, ou como cúmplice, de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358.º, n.º 1, al. b), do CPenal.
Solicitou também produção de prova.
Remetido o processo para distribuição como instrução ao Juízo de Instrução Criminal do Porto a 11-03-2020, foi inicialmente proferido despacho, datado de 09-06-2020, de rejeição do requerimento para abertura da instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, no essencial, por a denunciada não ter sido anteriormente constituída como arguida e ouvida nessa qualidade.
Desta decisão interpôs a assistente recurso, que foi admitido. Todavia, por despachos de 03-11-2020, 03-12-2020 e, por fim, 16-12-2020 foi reparado o despacho recorrido e determinada a abertura da fase da instrução, onde foi produzida prova e, a final, realizado debate instrutório e proferida a seguinte decisão instrutória (transcrição[1]):
«DECISÃO INSTRUTÓRIA
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Relatório.
Finda a fase do inquérito, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 674 e seguintes, veio a assistente BB requerer a abertura da instrução (cfr. fls. 699 e seguintes), no sentido de ser proferido despacho de pronúncia da arguida CC, a quem imputa a prática de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º do Código Penal.
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Questões a decidir.
Importa previamente aferir da legitimidade da requerente para intervir nos autos na qualidade de assistente.
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Do âmbito e objectivo da fase da instrução.
Começando, por uma questão de lógica interpretativa da presente decisão, por delimitar o âmbito da fase da instrução, importa referir que esta fase processual visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, segue-se Castanheira Neves[3], quando perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final» apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
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Da legitimidade da requerente para se constituir assistente nos autos e, consequentemente, requerer a abertura da instrução.
Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, a abertura da instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
São, assim, condições para que o assistente possa requerer a abertura da instrução:
- O procedimento não depender de acusação particular; e,
- O requerimento versar sobre factos relativamente aos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação.
Porém, e antes de mais, necessário é que o sujeito processual assuma a posição de assistente.
De acordo com o disposto no artigo 68.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
Tal como referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 10/2010[4], da alínea a) supra transcrita resulta a restrição do «estatuto de ofendido ao titular do interesse especialmente protegido pelo tipo legal de crime.
É certo que a alínea e) admite, nos crimes aí referidos, a constituição como assistente de “qualquer pessoa”, independentemente da averiguação do “interesse” que ela possa ter na perseguição da infracção. Trata-se, obviamente, de uma ampliação, mas não do conceito de ofendido, antes do âmbito da legitimidade, que é alargada a não ofendidos, o que tem a ver com opções político-legislativas de outra natureza, concretamente com a preocupação de incentivar a participação e a “vigilância” cívicas na perseguição daquelas infracções.
A definição de “ofendido” mantém-se a da alínea a), estando assim circunscrito ao titular do bem juridicamente protegido. Esta a conclusão inexorável imposta pela lei.
O conceito legal de ofendido é, pois, restrito ou, mais rigorosamente, estrito.
Não é de somenos importância esta conclusão, pois a aceitação de um conceito amplo de ofendido poderia envolver consequências desastrosas para o processo, pois abriria eventualmente as portas à manipulação ou instrumentalização da figura do assistente, pondo-a ao serviço de outros interesses que não o da colaboração com o Ministério Público na prossecução da acção penal.
A aceitação de um conceito estrito de ofendido não desprezará, porém, os interesses da “vítima”, quando forem efectivamente relevantes, melhor, quando ela for portadora de um interesse protegido pelo tipo legal.
Tudo dependerá do entendimento em torno do conceito de “bem jurídico”».
A propósito deste conceito de bem jurídico escreveu-se no mesmo acórdão que «o conceito teleológico-normativo, tradicionalmente seguido, conduz à fixação do bem jurídico a partir da identificação dos “valores” ínsitos ou promovidos pela norma penal. O interesse público ou comunitário apresenta-se sempre como prioritário ou prevalecente. Daí que os interesses corporizados nas pessoas apareçam normalmente subalternizados, a não ser nos crimes contra os bens eminentemente pessoais.
Consequentemente, “ofendido”, em bom rigor, só poderia haver nesses crimes, ou, quando muito, nos crimes contra a propriedade. Mas já não nos crimes contra o Estado e contra a sociedade, em que o carácter público ou supra-individual dos valores consubstanciados nas respectivas normas relegaria os interesses particulares ou privados abrangidos pela tutela da incriminação para a categoria de meramente reflexos ou derivados, e, como tal, indignos de protecção penal directa, não tendo, pois, os seus titulares direito a arrogar-se um interesse especialmente protegido.
Esta concepção idealista, formal e “monolítica” de bem jurídico mostra-se, porém, incapaz de compreender a complexidade de uma grande parte das incriminações e a pluralidade de interesses que elas podem abranger no seu âmbito de protecção. Estes não podem ser “deduzidos” por uma interpretação teleológica dos tipos legais, sem referência com a realidade dos interesses concretos, corporizados nas pessoas efectivamente ofendidas pela prática do crime.
Tal não significa que todos os interesses lesados devem ser promovidos a bens jurídicos. Mas apenas que as incriminações podem eventualmente proteger vários interesses, todos eles se revelando suficientemente dignos da tutela da lei, ainda que algum dele se mostre mais “cintilante”. É esta complexidade ou pluralidade de bens jurídicos que aquela concepção idealista é incapaz de apreender, no seu conceptualismo desligado da realidade.
Assim, a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu “nome”, elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos.
Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem “esconder” algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer protecção directa. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objectivo primeiro deste tipo de crimes. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando-se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica.
A própria oposição público/privado se apresenta por vezes incapaz de caracterizar com precisão a natureza de interesses complexos que recebem a tutela penal.
Em síntese: sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas “expectativas comunitárias”), estaremos perante um bem jurídico protegido.
Assim, só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares».
Resulta do exposto, tal como, aliás, é referido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência que temos vindo a aludir, que «só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares».
No caso dos autos, a requerente da instrução pretende, com a realização dessa fase processual, a submissão da arguida a julgamento, por no seu entender estar suficientemente indiciada a prática de um crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358.º do Código Penal.
É, pois, à luz do alegado no requerimento de abertura da instrução, que fixa o objecto do processo para a pretendida fase de instrução, que deve também ser aferida a especial qualidade de ofendida da requerente, indispensável à sua admissão nos autos como assistente.
Conforme referimos supra, a constituição da qualidade de assistente, no nosso ordenamento processual penal, ou resulta da atribuição expressa dessa mesma possibilidade por via de lei especial ou decorre dessa possibilidade se incluir numa das situações contempladas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 68.º supra citado.
Não constando o crime de usurpação de funções do catálogo de infracções penais constante da alínea e) daquele mesmo normativo e não indicando a requerente qualquer disposição especial que a tanto a habilite, só por via da sua consideração como «ofendido», nos termos da correspondente alínea a), aquela pretensão se legitimaria.
Assim, e tendo presente as considerações supra explanadas a propósito do conceito de ofendido para efeito da disposição legal em causa, sempre diremos que a circunstância de a requerente eventualmente até poder ter ficado prejudicada ou lesada pela actuação que imputa à arguida, tal não é aqui determinante.
Sublinha-se que o ofendido não é qualquer pessoa prejudicada com o crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.
Ora, o crime de usurpação de funções insere-se no Capítulo II, que se ocupa «Dos crimes contra a autoridade pública», por sua vez incluído no Título V, «Dos crimes contra o Estado».
Como se afigura consensualizado, o bem jurídico protegido pela respectiva incriminação é o interesse do Estado no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício. Ou se se quiser, «o bem jurídico protegido pelo tipo legal referido consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público» - Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 441.
Existe também largo consenso, cremos, em como o titular do respectivo bem jurídico protegido é o próprio Estado.
É o que expressamente consigna, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de de 24/04/2013, no processo n.º 1066/12.6TALRA.C1:
«Assim, uma vez que o bem jurídico especialmente protegido pela norma incriminadora é um interesse público, um interesse do Estado e só por este titulado, o recorrente carece de legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos.».
Assim, no conceito estrito de ofendido consagrado na nossa lei não cabem o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais, os quais podem eventualmente ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais como partes civis, mas não constituir-se assistentes.
Por conseguinte, porque o bem jurídico especialmente protegido pela norma incriminadora em apreço é um interesse público, um interesse do Estado e só por este titulado, não tem a requerente legitimidade para intervir nos autos enquanto assistente.
Dito de outra forma, tendo por pressuposto os factos alegados no requerimento de abertura da instrução constata-se que a requerente não é titular do interesse que a lei visa proteger com o crime de usurpação de funções e, por isso mesmo, não beneficia da legitimidade atribuída pelo artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, nem tão pouco por qualquer outra das alíneas deste normativo (nomeadamente da alínea e), por nela não ser feita qualquer referência expressa ao crime em questão) ou ainda por qualquer norma especial.
Referira-se que, os factos descritos no requerimento de abertura da instrução não permitem sequer a subsunção em qualquer outro tipo legal de crime que não o referido crime de usurpação de funções.
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Sucede, porém, que a requerente foi admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Quid iuris?
Apesar desse despacho judicial, não impugnado por via de recurso, entendemos que não só a constituição como assistente deve ser aferida de acordo com os crimes em questão, e por isso crime a crime, como também que tal despacho judicial, por genérico que é, não constitui caso julgado.
Trata-se de despacho tabelar onde concretamente não se aborda de fundo a legitimidade do(a) requerente. E nesta matéria prevalece o «favor rei» sobre a estabilidade da instância.
Refere a propósito José António Barreiros[6], que «contrariamente com o que se passa com o estatuto do arguido, o do assistente é caracteristicamente dinâmico e reversível. Daí que possa acontecer que um indivíduo seja admitido como tal e em momento subsequente a essa admissão ver revogada essa qualidade por verificação da não existência de requisitos formais para tanto. Tal despacho apenas faz caso julgado rebus sic stantibus.».
O julgamento sobre a legitimidade do(a) requerente para intervir como assistente só garante o exercício formal dos poderes e direitos que lhe são cometidos por tal qualidade, mas não dispensa ou impossibilita julgamentos posteriores, designadamente no momento em que, como no caso dos autos, se requereu a abertura da instrução.
Assim como a legitimidade para intervir como assistente se afere inicialmente pelo teor da denúncia, a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza do crime a que se refere a acusação ou o requerimento para a instrução ou a decisão recorrida.
No caso, tendo por referência as considerações supra vertidas, entendemos que não pode a requerente intervir nos autos como assistente.
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Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a abertura da instrução pode (só pode) ser requerida pelo arguido ou pelo assistente (cfr. alíneas a) e b) do referido n.º 1).
É, assim, pressuposto para que se possa requerer a abertura da instrução assumir a posição processual de arguido ou de assistente.
No que ao caso em apreço diz respeito, para que a requerente pudesse requerer a abertura da instrução e para que o Tribunal pudesse conhecer do mérito do mesmo, tornava-se necessário que aquela tivesse a posição processual de assistente, o que, como vimos, não sucede (ou pelo menos não pode suceder).
Por conseguinte, sendo a qualidade de assistente pressuposto essencial para que a requerente possa ver deferida a sua pretensão, pois que apenas o sujeito processual investido nessa qualidade pode requerer a abertura da instrução – artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal –, e não podendo beneficiar de tal posição processual, tendo por referência o alegado no requerimento de abertura da instrução, é a instrução legalmente inadmissível e, em consequência, deveria o requerimento de abertura da instrução ser rejeitado – artigo 287.º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal – o que equivale agora a dizer que não este Tribunal conhecer do mérito do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente.
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Decisão.
Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido julgar verificada a ilegitimidade da requerente BB para intervir nos autos como assistente, tendo por referência o alegado no requerimento de abertura da instrução, e, em consequência, não pronuncio a arguida CC pela prática do crime que ali lhe vinha imputado.»
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Inconformada com esta decisão, a denunciante BB interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere legítima a sua intervenção como assistente.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«A. Não andou bem o Tribunal a quo ao não pronunciar a arguida, com fundamento na prévia aferição da ilegitimidade da recorrente para intervir nos autos como assistente,
B. Atribuindo tal decisão a motivos de ordem processual, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual,
C. E concluindo pela ilegitimidade da requerente para, consequentemente, requerer a abertura da instrução.
D. Pois que a tal decisão viola o caso julgado formal e material consubstanciado em decisões que lhe são anteriores.
E. Com a denuncia criminal a denunciante requereu de imediato a sua constituição de assistente tendo sido admitida a intervir, por decisão fundamentada (Por estar em tempo, ter para o efeito legitimidade, estar representada por advogado e mostrar-se efectuado o pagamento da taxa de justiça prevista), notificada a todos os intervenientes processuais que a não impugnaram tendo transitado em julgado;
F. O inquérito foi arquivado em relação à arguida, tendo a ali assistente requerido abertura de instrução, que num 1º momento, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, foi rejeitado,
G. Desse despacho foi interposto recurso, que resultou, contudo, em novo despacho em que o tribunal assumiu inequívoca e fundamentadamente posição de admissibilidade do RAI, reformando a sua decisão, sem que esta fosse objecto de reclamação ou recurso, confirmando quer a qualidade de assistente quer a admissibilidade do ato processual, por decisão transitada em julgado;
H. Nessa sequência foi proferido despacho no qual o Tribunal se julgou competente, e se decidiu, "Por ser legal, ter sido requerida por quem tem legitimidade para o efeito e estar em tempo, declaro aberta a instrução requerida pela assistente BB não impugnado e por isso transitado em julgado;
I. Foram realizadas, sob direcção do Sr. JIC, várias diligências instrutórias;
J. Os despachos proferidos e não impugnados, seja através de reclamação ou de recurso, pelos arguidos ou pelo MP, têm de produzis os seus efeitos, nos termos da lei.
K. A decisão instrutória, proferida oralmente a 19 de outubro, tão só a 26 do mesmo mês foi disponibilizada em texto integral por forma a poder ser sindicada em pleno;
L. Não podendo ser proferida nova decisão, sobre a mesma matéria e no domínio da mesma legislação, contrária à já proferida, fundamentada e assumida nos autos,
M. Pois que tendo aquelas decisões quer de admissão a intervir como assistente, quer a admitir o RAI, transitaram em julgado, está esgotado o poder jurisdicional do Tribunal,
N. Tendo sido violado quer o caso julgado formal quando não o caso julgado material, violando os artigos 613, 620 e 628, CPC, todos ex vi, art 4 CPP,
O. Sob pena de se estar a violar o artigo 20.º da CRP direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
P. A assistente/recorrente, aliás, foi sobejamente notificada já nessa qualidade para prática de diversos atos, seja para junção de prova seja para realização de diligências perante o JIC, sem nunca ter sido posta em causa a sua qualidade, estando já o processo na posse de todos os elementos e dados necessários;
Q. E, contrariamente ao fundamentado na decisão de que se recorre, não estando, como refere, impossibilitado o JIC de julgar da admissibilidade de tal qualidade aquando do RAI, certo é que, no presente caso o não fez, antes tendo, no momento certo, perante a impugnação então apresentada, reforçado, admitindo-o, quer a constituição de assistente quer a abertura de instrução;
R. Acresce que nenhum deste despachos, que agora se pretendem "revogar" com nova decisão proferida pelo mesmo tribunal, é tabelar, antes foi o resultada de uma analisada, contraditada e fundamentada decisão, sob escrutínio de um juiz e plasmada como decisão emanada de um órgão jurisdicional,
S. Pelo que se devem manter quer a qualidade de assistente, quer a declarada abertura de instrução, devendo prosseguir os autos para análise dos factos indiciários conducentes ou não à pronúncia da arguida.
T. Sem prescindir, caso assim se não entendesse, no que não se concede, sempre tal decisão teria de se ver reportada ao momento anterior em que foi conferida, pois que condicionou a subsequente prática de atos em face das decisões tomadas e tidas como “boas” impedindo e violando grosseiramente uma vez mais o cumprimento do disposto no art 20.º da CRP,
U. Anulando-se tudo o que, depois das mesmas, foi realizada no que tange a arguida que não se pronunciou;
V. Caso se entendesse estar perante uma nulidade, esta teria de ser requerida, no prazo legal de 8 dias, pelos interessados (MP e /ou arguidos) o que não ocorreu, pelo que tem de se considerar sanada.
W. Ainda sem prescindir, por mera cautela de patrocínio, entende também a recorrente que a decisão proferida, viola o disposto no art. 68.º, 1 a), CPP, conciliado com os artigos 7, nº 3 Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto e 358 CP;
X. Pois que estando em causa a ajuda por advogada na procuradoria ilícita levada a cabo pelo arguido, suspenso no exercício da sua qualidade de advogado, está em causa a prática de atos próprios do exercício da advocacia,
Y. Crime que depende de queixa, que está numa relação de especialidade (concurso aparente) com o crime de usurpação de funções, sendo que este o consome, para nele se integrar um maior número de situações, nomeadamente, de ordens profissionais que reclamem, também, a defesa de um interesse público e colectivo, de todos quantos compõem esse colectivo,
Z. Mas que não retira, do seu âmbito de aplicação, a possibilidade legal de constituição de assistente, que como ofendida e/ou lesada a ora recorrente está neste processo.
AA. Sempre teria de se reconhecer legitimidade para a constituição de assistente da ora recorrente, pois que a Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, no seu art.º 7 nº 3, quando se refere “Além do lesado, são titulares do direito de queixa a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores”, conjugado com o disposto também na lei, no numero 4 permite confirmar tal possibilidade e assim expressamente o dita,
BB. Verificados os seus pressupostos e cumprindo o exigido pelo art.º 68 / 1 e a al. a) quando exige que possam “constituir-se assistentes no processo penal, além de pessoas[...] a quem leis especiais confiram esse direito”, bem como os “ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especial quis proteger com a incriminação”,
CC. Os factos consubstanciadores do crime de usurpação praticado, que consome desde logo o de procuradoria ilícita, para nele abarcar mais interessados e não menos, não pode impedir as mesmas prorrogativas processuais e substantivas ao ofendido / lesado;
DD. Esta a "ratio" das normas em causa e da sua conjugação, com expressa referência legal,
EE. Sendo que a assistente é a ofendida e é lesada com a situação criada quer pelo arguido quer pela arguida, em colaboração com aquele (seja na hipótese de se qualificar como crime de usurpação de funções quer na hipótese de se qualificar como procuradoria ilícita),
FF. Este o entendimento para quem auxilia, como a p.p. lei e o seu texto, no seu art.7, nº 1 ai b (“b) Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores;”) refere explícita e expressamente.
GG. A interpretação e aplicação do artigo 68/ nº 1 e alínea a) CPP, no sentido de impedir a constituição de assistente, subsequentemente, a admissibilidade do RAI, da ora recorrente, pois que conjugado com o artigo 7º, nº 3 e a contrario 4, da Lei dos Atas PP de Advogados e artigo 358.º do CP, é inconstitucional pois viola o direito de acesso ao direito e à tutela efectiva, protegido através do artigo 20 da CRP, o que se invoca;
HH. Sem prescindir, ainda, o tribunal deve reconhecer tal legitimidade para a constituição de assistente por força da aplicação conjugada, dos nºs 5 e 1 do artigo 303.º, CPP, sob pena de violação de tais dispositivos legais,
II. Sendo que, perante a factualidade em causa, juiz deve, oficiosamente, alterar a qualificação jurídica dos factos descritos RAI, nos termos da lei, qualificando-os como crime de procuradoria ilícita, na medida em que essa mesma factualidade se subsume à norma prevista do art.º 7º n.º 1 aI. b) da Lei dos Atos p.p. de Advogado
JJ. Tornando a referida factualidade ilegal qualificável como mero crime de procuradoria ilícita, a ele se subsumindo, restrito para quem exerce a profissão de advogado e, assim, admitindo-se a constituição como assistente e o RAl;
KK. Ademais, não se verificando a extemporaneidade do RAI, nem a incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução, o Tribunal a quo não podia ter decidido, como decidiu, pois tal consubstanciaria uma nulidade insanável expressamente prevista na alínea d) do art. 119º do C.P.Penal.
LL. Devia, ainda, sem prescindir, tomando como pressuposto que admitida está a intervir como assistente e bem assim admitido que foi o seu RAI, não se verificando a extemporaneidade deste, deveria o JIC dar cumprimento, ao disposto no artigo 308.º, decidindo-se quanto aos indícios ou não da pratica co crime;
MM. Sendo que, segunda a lei, são “suficientes os indicias sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”, o que não fez.
NN. Ainda, sem prescindir, no que não se concede, se se mantivesse esta “revogação” do que anteriormente foi decidido, a decisão quanto a custas deveria ter sido outra, sem qualquer tributação a cargo da assistente/recorrente, pois que não lhe deu causa, devendo delas ser absolvida
OO. Assim, como, tendo ficado integralmente disponível o conteúdo da decisão proferida de que se recorre tão só no dia 26, dever-se ia considerar o ato de interposição de recurso e alegações interposto no prazo legal de 30 dias, sem necessidade de pagamento de multa de 3º dia que, por isso, deveria ser devolvida.
PP. Deve ser revogada a decisão proferida e prosseguir o Tribunal com a aferição da verificação ou não de indícios susceptíveis de pronunciar ou não a arguida.
QQ. Foram violados os artigos 519/1, CPP, 8/1 RCP, 287/3, 57/1 b), CPP, 613, 610 e 628 CPC, ex vi art. 4 CPP, 68/1 ai a), CPP, 7º /1, b, 3 e 4, da Lei 49/2004, 358 CP, 20 CRP, 303/1 e 5, 119, a), 308/1 e 2, 283/2 e 309/ 1 e 2, do CPP,
RR. Pois que a decisão interpretou as normas supra referidas no sentido de julgar verificada a ilegitimidade da recorrente para intervir nos autos como assistente, por entender que o p.p. RAI não era admissível, não pronunciando a arguida; “pois que apenas o sujeito processual investido nessa qualidade pode requerer a abertura da instrução - artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal-, e não podendo beneficiar de tal posição processual, tendo por referência o alegado no requerimento de abertura do instrução, é o instrução legalmente inadmissível e, em consequência, deveria o requerimento de abertura da instrução ser rejeitado - artigo 287.º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal – o que equivale agora a dizer que não este Tribunal conhecer do mérito do requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente”,
SS. Sendo que, as referidas normas deveriam, sim, ter sido interpretadas no sentido supra exposto da decisão julgar verificada a legitimidade da recorrente para intervir nos autos como assistente, nessa qualidade podendo requerer a abertura da instrução assim admitida, tendo por referência os factos alegados neste enquadrados na melhor e mais apropriada qualificação jurídica e, em consequência, decidir sobre a pronúncia ou não pronunciou da arguida»
*
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões:
«1- Vem a queixosa interpor recurso do despacho judicial de não pronuncia da arguida CC, por ter sido considerado pelo Exmo. JIC que a denunciante não tinha legitimidade, relativamente ao crime de usurpação de funções, para intervir nos autos na qualidade de Assistente na fase de lnstrução, decidindo a sim pela não prenuncia da arguida.
2- A recorrente, apresentou nas suas conclusões, essencialmente, discordância face a tal despacho judicial por, no seu entender, 1) existir violação do caso julgado formal e material consubstanciado em decisões anteriores no presente processo, já que desde que apresentou a denuncia criminal e foi aceite a sua constituição como Assistente a mesma foi notificada a todos os sujeitos processuais e assim, transitou em julgado tal condição; 2) por ter sido aceite o presente RAI, também ele transitado em julgado, pelo que não poderia analisar-se novamente os seus pressupostos; 3) por entender que mesmo que se tivesse tais entendimentos jurídicos, por se tratar de uma eventual nulidade, a mesma teria de ser requerida pelos interessados; 4) porque, no seu entender, a decisão proferida violará também o artigo 68° nº 1 a) do C.P.P, conciliado com o artigos 7º nº 3 da Lei 49/2004 e 358 do Código Penal, pois, por via destes. a mesma dever considerar-se ofendida pelo crime de usurpação de funções e, finalmente, 5) caso assim não se entendesse, deveria o Exmo. JIC, nos termos do artigo 303º nº 1 e 5 do Código de Processo Penal alterar a qualificação jurídica dos factos para o crime de procuradoria ilícita, nos termos do artigo 7º nº 1 b) da Lei 49/2004, permitindo desta forma que a mesma se considerasse ofendida e com legitimidade para Assistente relativamente a este crime.
3- O Ministério Público não concorda com a posição do recorrente.
4- Por uma questão de estrutura lógica de argumentação, irá o Ministério Público primeiramente pronunciar- e quanto às questões acima referidas nos pontos 4) e 5) e, posteriormente, quanto às seguintes.
5- O bem jurídico protegido pelo crime de usurpação de funções consiste na integridade ou intangibilidade do si tema oficial de provimento em funções publicas ou em profissões de especial interesse publico. O Estado protege interesses seus, inerente ao próprio sistema que melhor parece garantir a seriedade dos serviços prestados. Assim, o titular dos interesses protegido pela disposição legal citada, é o Estado que visa acautelar e proteger o seu próprio interesse no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou o preenchimento de certas condições para esse exercício.
6- Este tipo crime não pretende acautelar interesses corporativos de certas classes ou ordens profissionais, nem os seus concretos profissionais, – como seria a ofendida dos presentes autos - mas sim um interesse público.
7- Ou seja, não sendo a recorrente ofendida pela norma penal concreta do crime do artigo 358º do Código Penal, não poderia ter-se constituído Assistente unicamente quanto a este concreto crime.
8- Nem sequer, como referiu em 5) podia considerar-se assim relativamente a um eventual crime de procuradoria ilícita como agora referiu no recurso.
9- Primeiro, porque relativamente a este crime a lei é clara quando refere no artigo 7º nº 4 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, que apenas a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores se podem constituir Assistentes (o que não aconteceu. mantendo-se assim a ilegitimidade da recorrente para a abertura da Instrução) como,
10- Em segundo lugar, sendo o RAI uma “acusação alternativa” elaborada pela Assistente, era a esta, em exclusivo. que cumpria a exacta e pretendida qualificação dos crimes que pretendesse, o que não fez quanto à qualificação do crime de procuradoria ilícita, não cabendo ao JIC essa eventual alteração. Isto porque, sendo um dos efeitos primordiais da pronúncia fixar o objecto do processo, é ela que tem de conter toda a factualidade necessária a esse fim, não podendo ser “completada” com outros factos “exteriores” à mesma. A falta de qualquer destes elementos não pode ser suprida em julgamento com recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal (ver o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça), pelo que não pode ser aceite o RAI que não inclua o correcto crime pelo qual se pretende ver a condenação dos arguidos.
11- Pelo exposto, concluímos. tal como concluiu o Exmo. JIC a quo, que a ofendida não se poderia ter constituído como Assistente unicamente quanto ao crime de usurpação de funções, nem relativamente a um hipotético crime de procuradoria ilícita (este último que nem foi por si qualificado no RAI).
12- Sucede que, de facto, a ofendida foi inicialmente aceite nessa condição – de Assistente - o que nos coloca a questão seguinte, relativamente ao referido no ponto 1). Será que, como alega a recorrente, existirá violação do caso julgado formal e material consubstanciado em decisões anteriores no presente processo por se ter aceitado a sua constituição anterior como Assistente que foi notificada a todo os sujeitos processuais e assim, esta condição, transitou em julgado?
13- Cremos que não, pelas razoes que apontaremos.
14- A ofendida foi aceite nos autos como Assistente, fls. 606. antes de proferido despacho de arquivamento quando ainda estavam em causa outros ilícitos denunciados, como eventuais crimes de falsificação de documentos, ilícitos esses que também foram arquivados a 27/1/2020, conjuntamente com o despacho que procedeu à acusação do arguido AA pelo crime de usurpação de funções p. e p. pelo artigo 358º do Código Penal.
15- Ou seja, a situação em que a ofendida foi declarada Assistente no processo - previamente ao arquivamento e a condição de Assistente em que reagiu a esse despacho final - unicamente quanto a um eventual crime de usurpação de funções - não é processualmente a mesma.
16- Quando a recorrente elaborou o RA I estava somente um crime em causa, já tendo os outros delitos (e mesmo esse) sido alvo de apreciação no despacho final do Ministério Público, pelo que, entendemos, também a sua situação como Assistente poderia ser novamente analisada.
17- A este propósito, o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18/11/2020, disponível em www.dgsi.pt, relator Horácio Correia Pinto, referiu: “A decisão de admissão do Assistente tem o valor de caso julgado formal subordinado à cláusula “rebus sic stantibus”; ou seja, alterado o objeto da lide por efeito da acusação (ou do arquivamento dos autos), se a relação processual de quem , até então, interviera como Assistente for afetada, a sua posição processual deve ser reapreciada em conformidade com a nova situação. II - Para efeito da constituição como Assistente, não pode ser considerada ofendida qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui objeto imediato do crime.”
18- Diremos assim, na senda da referida jurisprudência, que tendo sido arquivados crimes pelos quais, em abstrato, a recorrente poderia (inicialmente) constituir-se Assistente, mas tendo esta requerido a abertura de Instrução quanto a um único crime, como se referiu acima, pelo qual essa legitimidade processual já não é justificável, deve considerar- e – como se considerou - que se alteraram os pressupostos em que aquela qualidade de Assistente se sustentou.
19- Ou seja, entendemos que foi processualmente legitimo ao Exmo. JIC considerar, nesta fase, a ilegitimidade da recorrente para se considerar Assistente estando unicamente em avaliação a eventual prática de um crime de usurpação de funções p. e p. pelo artigo 358º do Código Penal.
20- Neste sentido, entendemos até, deveria ter sido desde logo recusado o RAI, no termos do artigo 287º nº 3 do Código de Processo Penal, em face da ilegitimidade da requerente, por inadmissibilidade legal.
21- Sucede que, nos presentes autos, tal não aconteceu e foi aceite o RAI de quem – cremos – não tinha legitimidade para o efeito, o que levanta novas questões processuais sobre as quais o recurso também se pronunciou.
22- Será que dessa forma, como diz a recorrente, 2) por já ter sido aceite o presente RAI por despacho anterior, também ele transitado em julgado, não poderia posteriormente o Exmo. JIC analisar novamente a questão? E, como sustenta a recorrente, 3) por entender que mesmo que se tivesse tais entendimentos jurídicos, por se tratar de uma eventual nulidade, a mesma teria de ser requerida pelos interessados?
23- Mais uma vez, considerámos que andou bem o Exmo. JIC, quanto a estas duas questões ora suscitadas em sede de recurso, pelas razões que descreveremos.
24- Cremos que a aceitação inicial do presente RAI em nada obsta a posição posterior que se teve.
25- Isto porque, como diz resumidamente o Professor Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário a Código de Processo Penal anotação ao artigo 286º, página 751: “Não há lugar a instrução se não estiverem reunidos os pressupostos processuais (acórdão do TRL, de 12-7-1995, in CJ, XX, 4, 140). A falta dos pressupostos processuais pode ser logo conhecida pelo juiz de instrução no despacho inicial da instrução, como o pode ser a qualquer momento do processo, sem prejuízo das regras especiais de preclusão fixadas no CPP (ver a anotação ao artigo 277.º).”
26- O caso dos autos, após apresentação do RAI, foi declarada aberta a instrução, foram determinados e praticados actos destinados ao prosseguimento desta fase processual, tendo em vista o seu termo, e foi proferida uma decisão instrutória que, previamente, analisou requisitos formais respeitantes a esta fase processual.
27- Após a admissão do RAI e de diligencias instrutórias, realizou-se como exigido debate instrutório, tendo o mesmo, mais tarde, proferido decisão de não pronuncia em face da apreciação das questões prévia e incidentais que ocorriam nos autos - artigos 308º º 3 do Código de Processo Penal – nomeadamente as que temos descrito acima.
28- O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, relator José Lúcio, de 23/2/2010, disponível em www.dgsi.pt, explicita bem os termos desta apreciação prévia que cumpre ao JIC efetuar em sede de decisão instrutória: “Como se constata, o nº 3 do art. 308.º do CPP estabelece expressamente que “no despacho referido no n.º 1, o juiz começa por decidir das nulidades e outra questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.” As nulidades a que se refere esta disposição legal podem ser, certamente, as que foram suscitadas no requerimento de abertura de instrução ou as que poderão ter decorrido no decurso da instrução, visto que a lei não distingue. Da estatuição referida resulta claro, portanto, que na decisão instrutória o juiz de instrução tem de conhecer das nulidades ou de outras questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução, sendo mesmo esse saneamento tarefa prévia a qualquer apreciação de fundo da causa (entenda-se decisão de pronúncia ou de não pronúncia). Como refere Maia Gonçalves no Código de Processo Penal, 9.ª edição, pág. 562, em anotação ao artigo 308.º, as questões prévias que o juiz deve apreciar em primeiro lugar, como se preceitua no nº 3, são todas aquelas que obstem ao conhecimento do mérito, ou seja que obstem a que o juiz pronuncie ou não pronuncie o arguido. No mesmo sentido, Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, citado naquele código, o qual refere a propósito o seguinte: “O CPP estipula também que antes de proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia o juiz decida todas as questões prévias ou incidentais de que possa conhecer (art. 308.º, n.º 3). Nesse saneamento preliminar se abordarão antes do mais os pressupostos processuais, a começar pela competência do tribunal. Conhecer-se-ão aí as nulidades ou eventuais questões prévias incidentais. Se nada obstar ao conhecimento do mérito da causa, decidirá o JIC a pronúncia ou a não pronúncia. (…)”. Temos assim que na decisão instrutória que o juiz de instrução tem obrigatoriamente de conhecer das nulidades arguidas em sede de requerimento de abertura de instrução, antes de pronunciar ou não pronunciar o arguido pelos factos e disposições legais descritos na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (sendo caso disso, o que implica não ter encontrado nulidade, excepção, questão prévia ou incidental que a tal obstasse).”
29- Esta apreciação prévia à decisão instrutória sobre a ilegitimidade da ofendida, por tudo o que já se referiu, é um poder do Exmo. JIC em fase de decisão.
30- Considerando que a ilegitimidade da requerente inquinava toda a possibilidade existente de se manter a fase Instrutória, bem andou o Exmo. JIC, no devido tempo processual, em tomar posição sobre esta questão prévia, decidindo ainda em tempo: “Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido julgar verificada a ilegitimidade da requerente BB para intervir nos autos como assistente, tendo por referência o alegado no requerimento de abertura da instrução, e, em consequência, não pronúncio a arguida CC pela prática do crime que ali lhe vinha imputado.”
31- Decisão com que se concorda e que, de resto, se promoveu em sede de debate instrutório.
32- Tratando-se a questão da legitimidade do requerente da Instrução de uma questão formal – prévia – à decisão instrutória, nos termos do artigo 308º nº 3 do Código de Processo Penal, e ao contrario do que refere a recorrente – que entende que a mesma teria de ser requerida pelos interessados – bem andou o Exmo. JIC ao equacioná-la em sede de decisão, por ser sua obrigação legal decidir das questões prévias e incidentais que possa conhecer.
33- Por tudo exposto, termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto e ser mantido o douto despacho recorrido.
Assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!»
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A arguida e recorrida, CC, respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção do despacho recorrido.
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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido, emitiu parecer do sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[7].
As questões cuja apreciação a recorrente suscita nas suas conclusões são as seguintes:
- Violação do caso julgado formal e material da qualidade de assistente consubstanciado em decisões anteriores à declaração da ilegitimidade da denunciante para requerer a abertura da instrução (arts. 613.º, 620.º e 628.º, todos do CPCivil, ex vi art. 4.º do CPPenal, e art. 20.º da CRP) ou, subsidiariamente, verificação da sanação da nulidade em causa por falta de arguição da mesma;
- Verificação das condições necessárias ao reconhecimento à recorrente da qualidade de assistente.
*
Vejamos.
A recorrente inicia o seu recurso sustentando a posição de que uma vez reconhecida a qualidade de assistente por decisão transitada em julgado não a podia perder, sob pena de violação do caso julgado formal e até material, quer respeitante a essa mesma decisão, quer respeitante a despachos posteriores onde é reconhecida essa qualidade, incluindo para reparação de recurso interposto de despacho que inicialmente rejeitou a abertura da instrução, como sejam os despachos de 03-11-2020 e 15-12-2020[8], onde é reconhecida à denunciante a qualidade para requerer a abertura da instrução, e é efectivamente declarada aberta a fase de instrução, sendo posteriormente produzida prova e realizado debate instrutório.
Porém, não tem a recorrente razão.
Com efeito, apesar de, quer no despacho que reconhece à denunciante a qualidade de assistente, quer nos despachos posteriores que foram invocados neste segmento do recurso[9], estar pressuposta e declarada a legitimidade da aqui recorrente para se constituir assistente nestes autos, esse pressuposto processual não é efectivamente apreciado em termos de mérito, estando em causa em todas as referidas situações um mero despacho tabelar, liminar e genérico quanto aos pressupostos da tempestividade, legitimidade e admissibilidade legal da constituição de assistente ou da instrução, que por tal razão não fazem caso julgado formal[10] (e muito menos material) sobre tais questões, que não foram concretamente analisadas, pois «só a decisão que conheça de questões concretas produz o efeito de caso julgado formal e já não aquela que se limita a declarar, genericamente, a verificação dos pressupostos processuais e a regularidade da instância»[11].
Desta forma, quanto a estas matérias, não estaria o Senhor Juiz de Instrução impedido de, no final da instrução, proferir decisão em que reconhecesse a ausência de algum daqueles pressupostos[12], uma vez que no despacho de pronúncia ou não pronúncia o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer – art. 308.º, n.º 3, do CPPenal.
No caso em apreço, os despachos em causa declararam a legitimidade da denunciante para se constituir assistente e requerer, nessa qualidade, a abertura da instrução, mas não se pronunciaram concretamente sobre esse pressuposto, tal como depois veio a ser analisado na decisão instrutória.
É certo que, em face da decisão que veio a ser prolatada no final da instrução, podia, ao abrigo do art. 287.º, n.º 3, do CPPenal, ter sido inicialmente proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução, por ilegitimidade da requerente.
Mas não tendo sido essa a tramitação realizada – e talvez não seja aqui irrelevante o facto de ter sido diferente magistrado judicial a proferir a decisão instrutória – e não tendo sido, efectivamente, realizada anteriormente qualquer concreta apreciação sobre a viabilidade da instrução na perspectiva que veio a constar do despacho instrutório, nada impedia o Senhor Juiz de Instrução de o proferir no momento e nos termos em que o fez, estando mesmo obrigado a apreciar as nulidades e as questões prévias ou incidentais de que pudesse conhecer – art. 308.º, n.º 1, do CPPenal.
Solução diversa, designadamente o entendimento de que ocorreu caso julgado formal quanto a um juízo de admissibilidade da instrução, levar-nos-ia a uma situação de iniquidade processual.

Diferentemente do que se expôs, a própria decisão de declarar aberta a instrução marca o início de uma sequência processual que há-de culminar com a decisão instrutória. E o início dessa etapa, uma vez determinado, não pode voltar atrás, salvo se for declarada a nulidade do processado respectivo. Assim, quanto a essa decisão forma-se caso julgado formal.
Nesta perspectiva, que é a que se tem por correcta, depois de declarada a aberta a fase de instrução estava o Senhor Juiz de Instrução obrigado a realizar debate instrutório, mas na decisão instrutória, que obrigatoriamente tinha de proferir, não estava impedido de analisar qualquer pressuposto processual indispensável à realização da instrução que anteriormente apenas tenha sido enunciado de forma tabelar, liminar e genérica.
E esta posição em nada interfere com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva a que se reporta o art. 20.º da Constituição da República Portuguesa – e a recorrente também não concretiza em que medida estes direitos são violados –, posto que uma tal decisão apenas reflecte uma situação jurídica que, a confirmar-se, sempre existiu, simplesmente não foi anteriormente retratada devidamente em termos processuais.
E como bem se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2019[13] para fixação de jurisprudência:
«O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.
O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade – a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito – v. g., a prescrição.
Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado – a realização da justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes – deixa de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.»

Por outro lado, não estando em causa qualquer nulidade, mas antes uma análise mais cuidada dos pressupostos processuais da instrução, e não meramente perfunctória, não ocorreu qualquer sanação de nulidade que impedisse a solução encontrada.
Nada impedia, pois, o Senhor Juiz de instrução de apreciar a legitimidade da denunciante, aqui recorrente, para se constituir assistente e, consequentemente, para requerer a abertura da instrução.
*
Cabe agora, num segundo momento, ultrapassadas as questões formais colocadas, avaliar se a decisão recorrida, que considerou que à recorrente não assiste legitimidade para se constituir assistente, se mostra correcta, sendo de manter, ou, pelo contrário, incorrecta, devendo ser revogada.

Lida atentamente a decisão recorrida, que cita largamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência, n.º 10/2010[14], de 17-11-2010, pareceria, num primeiro momento, no seguimento das ideias que inspiram a solução daquele aresto – de permitir a constituição de assistente, em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, ao requerente da providência – que a solução encontrada no caso concreto seguiria a mesma orientação.
Porém, ao reverter tais ensinamentos para o caso dos autos, o Tribunal a quo bastou-se com a indicação de que o bem jurídico protegido é de natureza pública, concretizado «no interesse do Estado no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício. Ou se se quiser, «o bem jurídico protegido pelo tipo legal referido consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público» – Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 441.»
Não cuidou, contudo, de apurar se poderia antever-se na norma que tipifica o crime de usurpação de funções (art. 358.º do CPenal) outro interesse a proteger que pudesse ser individualizado, isto é, que tivesse uma dimensão individual, concretizada numa determinada pessoa.
Com efeito, perscrutado o art. 68.º do CPPenal, no qual, entre o mais, se define quem pode assumir a qualidade de assistente, vemo-nos reduzidos, por ora, à análise da alínea a) do n.º 1 desse preceito - podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) [o]s ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos –, posto que, aparentemente, a posição da recorrente não se reconduz às outras alíneas e não está em causa crime elencado na al. e) do referido preceito e número, sendo certo que esta delimitação corresponde ao objecto do despacho recorrido.
A análise deste segmento (art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPPenal) esteve igualmente na base das decisões respeitantes a três acórdãos para fixação de jurisprudência com relevância para a solução do caso concreto.
São eles:
- Acórdão n.º 1/2003[15], de 16-01-2003, onde se decidiu que «[n]o procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente»;
- Acórdão n.º 8/2006[16], de 12-10-2006, onde se decidiu que «[n]o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador»; e
- Acórdão n.º 10/2010[17], de 17-11-2010, a que nos vimos referindo, onde se decidiu que «[e]m processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente».

Idêntica análise foi realizada no âmbito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 7/2011[18], mas aqui com referência ao art. 113.º, n.º 1, do CPenal, onde se define o conceito de ofendido para efeitos de exercício do direito de queixa nos mesmos moldes que estão definidos na al. a) do n.º 1 do art. 68.º do CPPenal - «[q]uando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

O que podemos extrair dessa análise é que nem todos os lesados são ofendidos com o sentido que é exigido pelo art. 68.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, sendo estes apenas os titulares dos interesses que lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Esta expressão remete-nos inexoravelmente para uma relação entre o bem jurídico protegido com a norma incriminadora e o titular ofendido desse bem jurídico.
Sendo inevitável balizarmo-nos nesta relação entre bem jurídico protegido e ofendido titular dos interesses que aquele protege, é possível alargarmos os horizontes do que podemos entender como interesses inerentes ao bem jurídico protegido, interpretando a utilização na norma do termo especialmente como sinónimo de particularmente e não exclusivamente como durante décadas se entendeu.
Esta abertura na interpretação da norma está em consonância com as crescentes preocupações vitimológicas, que derrogaram o modelo clássico da relação estrita entre Estado e delinquente ampliando-a para uma relação onde a vítima também encontra lugar, trazendo-a para uma posição de destaque que historicamente nunca teve.
Neste ponto, acompanhamos Pedro Soares de Albergaria[19] quando entende não ser alheia a esta evolução, antes seu reflexo, a circunstância de a Lei Constitucional n.º 1/97, 20-09, ter aditado um n.º 7 ao art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, com a epígrafe “Garantias do processo criminal”, no qual se prevê que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.
E, quanto a nós, insere-se também no âmbito deste mesmo movimento de reconhecimento de interesses individuais mesmo nos crimes em que o bem jurídico protegido é num primeiro relance assumidamente de natureza supra-individual, genericamente os crimes contra o Estado, a circunstância de na redacção inicial do CPPenal, introduzido pelo DL n.º 78/87, de 17-02, no art. 68.º, n.º 1, al. e), estar reconhecida ainda a legitimidade para se constituir assistente, independentemente da posição de ofendido, a qualquer pessoa, apenas nos crimes de corrupção e de peculato, incrementando-se este catálogo na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25-08, passando a ser reconhecida essa legitimidade a qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
Nas alterações ao CPPenal introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 veio ainda a ser acrescentado ao catálogo o crime de recebimento ou oferta indevidos de vantagem.

Conforme refere o mesmo autor[20], tal como se mostra abordado nos acórdãos para fixação de jurisprudência acima indicados, e de que se dá nota, aliás, na decisão recorrida, «cremos estar hoje estabilizado na jurisprudência comum o entendimento de que nem por o bem jurídico protegido em certa incriminação transcender o singular se poderá concluir, sem mais, que uma concreta pessoa não possa ser considerada “ofendida” por referência a crime daquela natureza. Determinante é que aquele bem supraindividual se possa encabeçar, digamos assim, numa pessoa concreta; ou dito do avesso, necessário é que se demonstre no caso concreto que a mancha de danosidade que a incriminação quer tipicamente esconjurar tenha atingido ou intendesse atingir pessoa concreta». Para além da jurisprudência citada o autor respalda o «referente dogmático» desta argumentação «em JORGE DE FIGUEIREDO DIAS/ANABELA RODRIGUES (1989, p.105 ss.) e hoje com larga aceitação na melhor doutrina - cf. AUGUSTO SILVA DIAS (2004, p. 57 ss., e 2008, p. 236 ss.), MARIA JOÃO ANTUNES (2016, p. 49 e s.), FREDERICO COSTA PINTO (2001, p. 699, n. 17), PAULO SOUSA MENDES (2015, p. 134), SUSANA AIRES DE SOUSA (2019, p. 29 ss.), neste último caso com especial interesse no âmbito dos delitos societários. Uma interpretação que, por sobre nos parecer mais acertada do ponto de vista dogmático, melhor se abre ao valor da solidariedade a que o processo penal, a respeito do ofendido/vítima, não deve ser refratário (cf. CLÁUDIA SANTOS, 2010, p. 1151 ss.)».

Assim, a circunstância de um tipo de delito se situar sistematicamente no Código Penal em título referente aos crimes contra o Estado, evidenciando óbvios interesses de natureza pública e supra-individuais, não significa que não possam ser igualmente identificados interesses adstritos a concretas pessoas, que merecem igual grau de protecção, muitas vezes expressamente revelados pelo próprio texto.
É o caso de crime de denúncia caluniosa, abordado no aludido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2006, de 12-10-2006.
E também o do crime de desobediência qualificada, apreciado no mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2010, de 17-11-2010, embora aqui não resulte simplesmente do próprio tipo a identificação de um concreto cidadão ofendido.
A lógica é igual no que concerne ao crime de falsificação de documento, analisado no indicado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, de 16-01-2003, embora a sua inserção sistemática no Código Penal seja no título dos crimes contra a vida em sociedade.

E se por vezes a letra da lei é mais evidente na demonstração da existência de interesses concretizados numa pessoa em particular (como a referência a causar prejuízo a outra pessoa no crime de falsificação de documento ou a denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime no crime de denuncia caluniosa), outras haverá em que não é tão claro esse interesse, sendo necessário nestes casos «um cuidado exercício interpretativo no sentido de perceber se é, ou é também, pessoa concreta aquela que, nas palavras lapidares de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (1974, p. 505), “segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em posto perigo”. E assim, p. ex., se no crime de impedimento, perturbação ou ultraje público (art. 252.º CP) se protege a paz pública no exercício da liberdade de culto, não menos verdade é que aí se tutela igualmente a liberdade de culto de pessoas concretas, violada pelas condutas descritas na norma; e se no crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução (art. 360.º CP) se protege o bem jurídico realização da justiça como função estadual, também é certo que as pessoas que na causa forem prejudicadas em razão da referida falsidade serão “ofendidas” para efeito desta norma. Trata-se, pois, o que vimos desenhando, do conceito de ofendido que alguma doutrina, de modo expressivo, nomeia de “restritivo alargado” (PAULO SOUSA MENDES, 2015, p. 1134): “restritivo”, porque não considera ofendidos aqueles que não forem os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação; “alargado”, porque nele se incluem aqueles que, mesmo por referência a incriminação que protege interesse supraindividual, são atingidos pela mancha de danosidade típica dela.»[21]

Como se afirma no AUJ n.º 10/2010 a que já se aludiu, «a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou o seu «nome», elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos.
Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem «esconder» algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer protecção directa. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objectivo primeiro deste tipo de crime. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando-se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica».

No caso de que nos ocupamos – crime de usurpação de funções – é pacificamente aceite, tal como se enuncia no despacho recorrido, que «o bem jurídico que ilumina este tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público.»[22]
Esta é a imagem mais visível da protecção conferida pelo art. 358.º do CPenal, até por vir inserido neste diploma legal no título dos crimes contra o Estado, concretamente no capítulo dos crimes contra a autoridade pública, onde se insere, igualmente, o crime de desobediência.
Mas haverá também interesses individuais, identificáveis com referência a um concreto cidadão, que mereçam igual ou semelhante proteção da norma em questão?
Vejamos.
Estabelece o art. 358.º do CPenal, sob a epígrafe “Usurpação de funções”, que:
«Quem:
a) Sem para tal estar autorizado, exercer funções ou praticar actos próprios de funcionário, de comando militar ou de força de segurança pública, arrogando-se, expressa ou tacitamente, essa qualidade;
b) Exercer profissão ou praticar acto próprio de uma profissão para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou não as preenche; ou
c) Continuar no exercício de funções públicas, depois de lhe ter sido oficialmente notificada demissão ou suspensão de funções;
é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.»

O caso dos autos remete-nos, inquestionavelmente, para as situações previstas na citada al. b), já que está em causa a prática de actos próprios da advocacia por quem supostamente não reunia as condições necessários para o exercício dessa actividade, pretendendo a recorrente a responsabilização criminal da arguida requerida por ter tomado parte na execução dessas condutas de terceiro, já que a própria teria condições para aquele exercício.
A pedra de toque deste tipo é a fraude, o engano, que está subjacente à conduta de quem se arroga possuir as condições para o exercício de determinada actividade quando as não tem.
Sem esse engano o crime não existe, não se perfectibiliza. É, pois, necessário que o agente se faça passar pelo profissional que não é, que não pode ser. Trata-se, como bem refere Cristina Líbano Monteiro[23], de uma falsidade funcional, aliada à prática dos actos próprios da profissão que se finge possuir.
O crime pressupõe então um interlocutor, alguém ou alguma entidade perante quem o agente se arrogue, falsamente, qualidades profissionais que não tem e que são indispensáveis ao exercício de tal actividade, praticando actos próprios dessa profissão.
Esse interlocutor é, a nosso ver, também titular do interesse que a norma quis particularmente proteger, posto que é a pessoa ou entidade que é directamente atingida pela mancha de danosidade típica dela.
Aliás, é o conjunto dos interesses pessoais que se visam acautelar que, pela sua importância, justificam o interesse supra-individual do Estado em evitar este tipo de ocorrência.
Nas palavras de Cristina Líbano Monteiro[24], «se outro se faz passar por médico, advogado, engenheiro, enfermeiro, revisor oficial de contas – para dar apenas alguns exemplos – e pratica actos próprios dessas profissões, a sua presumível incompetência representa um risco potencial para a vida, a integridade física, a segurança, o património, a liberdade, etc., dos destinatários dessas actividades. O perigo de que estamos a falar é sem dúvida um perigo abstracto e os interesses eventualmente em risco demasiado difusos para permitirem a construção de um tipo legal de crime em torno de um bem jurídico que teria de apresentar características “totalitárias”. Mas o Estado não pode desentender-se dos interesses fundamentais em jogo. Emprega então a sua autoridade e define pressupostos que lhe parecem garantir a competência no exercício das funções do Estado e de certas profissões que, pela sua importância, repercussão ou melindre, julga carecerem de formação especializada. Pressupostos que não podem deixar de ser formais. (…)
O crime de usurpação de funções apenas pode ser compreendido conjugando as duas facetas até agora abordadas: pune-se alguém que engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão não por causa desse outrem (ao menos de modo imediato), mas porque o Estado entende que deve exigir uma fidelidade inquebrantável ao sistema de reconhecimento de competências (necessariamente formal) que ele próprio instituiu. No horizonte último do legislador não podem deixar de estar tantos bens jurídicos pessoais, patrimoniais supra-individuais que devem ser acautelados. Mas a construção deste ilícito típico faz-se – o Código já a isso nos habituou – em torno de um bem jurídico-meio, que leva em certos casos a quase perder de vista os bens jurídicos-fim que o legitimam».

Esta análise, cremos, vem ao encontro da posição enunciada, no sentido de se reconhecer, a par do interesse do Estado na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público, de clara natureza supra-individual, os concretos interesses individuais de quem interagiu com o agente e por este foi enganado quanto às condições que o mesmo se arrogou possuir para o exercício da actividade profissional especial, no caso, a advocacia.

Evidentemente que esta análise, como se salienta nos diversos arestos a que se aludiu, impõe uma apreciação casuística para eventual identificação de titulares concretos de interesses que a norma também quis especialmente proteger.
Revertendo ao caso concreto, resulta na análise conjugada da acusação deduzida contra o arguido AA e do teor do RAI que a recorrente foi a interlocutora directa dos arguidos, perante quem aquele arguido e a requerida no RAI, alegadamente, fizeram crer que o primeiro reunia as condições necessárias ao exercício da advocacia, quando tal era falso, tendo aquele praticado actos próprios da profissão com a intervenção da requerida.
Neste cenário, que corresponde à realidade que a norma, em última análise, também procura evitar, não temos dúvidas de que a recorrente é titular do interesse que a norma protege, posto que pela mesma se visa que determinadas profissões, que o Estado entende dever ficarem sujeitas a específicas condições, sejam apenas praticadas por quem aquelas reúne, reforçando-se o poder regulador do Estado nesta matéria e garantindo-se ao cidadão um certo nível qualitativo (formal, é certo) no exercício de determinadas profissões.
O dano que a recorrente possa ter sofrido como decorrência da prática do crime é lateral à sua posição de ofendida, integrando antes o conceito de lesada. É antes o engano, a fraude, de que foi, alegadamente, vítima quando procurou os serviços de um advogado e foi atendida por quem não possuía as necessárias condições para o efeito, arrogando-se detê-las, e praticando actos próprios da profissão, que constitui o cerne do interesse pessoal que a norma também protege.
Como tal, devia ter sido reconhecida à denunciante, aqui recorrente, a qualidade de assistente e, consequentemente, ter sido dado seguimento à análise do demais que se impunha em termos de decisão instrutória, não se quedando a decisão pela análise do referido pressuposto processual[25].

Aliás, no caso concreto, a questão é, salvo o devido respeito por posição diversa, menos relevante do que parece.
Na verdade, dos factos em causa pode perspectivar-se a existência de um crime de procuradoria ilícita, p. e p. pelo art. 7.º da Lei n.º 49/2004, de 24-08, que se encontra numa relação de concurso aparente[26] com o crime de usurpação de funções.
O referido diploma, que efectuou a sétima alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados e a primeira alteração ao Estatuto da Câmara dos Solicitadores, tem por escopo a definição do sentido e do alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores e a tipificação do crime de procuradoria ilícita.
Dispõe o art. 7.º da referida lei que:
«1 - Quem em violação do disposto no artigo 1.º:
a) Praticar actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
b) Auxiliar ou colaborar na prática de actos próprios dos advogados e dos solicitadores;
é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - O procedimento criminal depende de queixa.
3 - Além do lesado, são titulares do direito de queixa a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores.
4 - A Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores têm legitimidade para se constituírem assistentes no procedimento criminal.»

Da leitura deste preceito, em conjugação com o texto do art. 358.º do CPenal, detectamos como distinção essencial a ausência do elemento referente ao engano, ao logro, quanto à posse das condições necessárias ao exercício da actividade de advocacia.
No fundo, quem praticar actos, ou auxiliar ou colaborar na prática de actos, próprios dos advogados, tendo em atenção os requisitos e condições descritos no art. 1º[27] do diploma e em violação do aí disposto, comete o crime de procuradoria ilícita.
O crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358.º do CPenal, também prevê, grosso modo essa factualidade, mas acresce-lhe o elemento essencial do engano, da falsidade funcional a que já aludimos, traduzida na circunstância de o agente ter de se arrogar nas qualidades profissionais que não tem e praticar os actos próprios da profissão.
Para além disso, a moldura penal aplicável corresponde ao dobro da prevista para o crime de procuradoria ilícita, sendo de pena de prisão até 2 (dois) anos ou pena de multa até 240 (duzentos e quarenta) dias.
É, por isso, pacífico que existe uma relação de concurso aparente entre os dois crimes, devendo haver condenação pela prática do crime de usurpação de funções quando, para além da mera prática de actos próprio da profissão, ainda se verificam as demais particularidades deste crime, cuja protecção é mais alargada, isto é, a moldura penal abstracta é mais elevada, conferindo maior protecção aos bens jurídicos em questão.
Ora, o crime de procuradoria ilícita, que tem necessariamente de estar subjacente à prática de um crime de usurpação de funções, depende de queixa, sendo titulares do direito de queixa, para além de outros, o lesado – n.ºs 2 e 3 do art. 7.º da Lei.
A recorrente invoca danos decorrentes da actividade levada a cabo pelos arguidos AA e CC, este requerida no RAI, apresentando factualidade nesse sentido, pelo que deve ser tida por lesada para efeitos processuais.
Como tal, tinha legitimidade para apresentar queixa pela prática de crime de procuradoria ilícita e, por via disso, legitimidade para a se constituir assistente, pois essa faculdade é-lhe conferida pelo disposto no art. 68.º, n.º 1, al. b), do CPPenal, segundo o qual, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento.
Os factos respeitantes ao crime de procuradoria ilícita permitir-lhe-iam sempre a abertura da instrução.
Essa possibilidade, revela também, que, no caso concreto, o reconhecimento da legitimidade da recorrente para se constituir assistente em processo em que se investiga a prática de crime de usurpação de funções é a solução lógica, pois mal se compreenderia que perante um crime de menor relevância penal, em que nem se exige que tenha sido enganada, apenas lesada, pudesse assumir essa condição e não lhe fosse permitida igual faculdade relativamente a processo onde cabe exactamente tudo aquilo que se refere à procuradoria ilícita, mas não só.
Também por esta via, ainda que o enquadramento jurídico pudesse vir a sofrer alterações, faculdade prevista no art. 303.º, n.º 5, do CPPenal, sempre deveria ter sido mantida a qualidade de assistente anteriormente reconhecida à recorrente.
O recurso, deve, pois, ser julgado procedente e revogado o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, reconhecendo à recorrente legitimidade para se constituir assistente, prossiga na análise das demais questões que importa apreciar na decisão instrutória.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pela assistente BB e, em consequência, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, reconhecendo à recorrente legitimidade para se constituir assistente, prossiga na análise das demais questões que importa apreciar na decisão instrutória.
Sem tributação.
Notifique.

Porto, 24 de Maio de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
_____________
[1] As notas-de-rodapé assumiram diferente numeração com a inserção do excerto do texto nesta decisão.
[2] Todos os realces (sublinhados, negritos, itálicos, letra menor, inserções entre parênteses ou travessões, etc.) são da responsabilidade do signatário da presente decisão.
[3] Em “Sumários de Processo Criminal”, págs. 38 e 39.
[4] Publicado no Diário da República n.º 242, Série I, de 16/12/2010, e que fixou jurisprudência no sentido de que “em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente”.
[5] Neste sentido, cfr., por todos, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/11/2007, proferido no âmbito do processo n.º 8112/2007-5, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Em Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 164.
[7] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[8] Em rigor, o despacho é de 16-12-2020, data que ficou registada no documento como a da sua assinatura.
[9] A reparação do recurso anteriormente interposto do despacho que inicialmente não admitiu a instrução respeitou a questão totalmente diferente, sustentada na violação do exercício de direitos de defesa da arguida.
[10] O Supremo Tribunal de Justiça, em matéria criminal, já se pronunciou sobre este conceito em dois acórdãos para fixação de jurisprudências, embora relativos a questões processualmente diversas (acórdão 2/95 de 16-05-1995, DR 135/95 Série I-A de 12-06-1995, que fixou a seguinte jurisprudência: «A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», e o acórdão n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26, que fixou a seguinte jurisprudência: «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, não adquire força de caso julgado formal»).
[11] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 5/2019, de 04-07-2019, referido na nota-de-rodapé n.º 10.
[12] Essa específica questão foi abordada pela aqui relatora no Proc. n.º 335/18.6T9GDM.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[13] De 04-07-2019 e publicado no DR 185/2019, Série I, de 2019-09-26, a que já se aludiu na nota-de-rodapé n.º 10.
[14] Relatado por Eduardo Maia Costa e publicado no DR 242, Série I, de 16-12-2010, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Jurisprudência Fixada Criminal), onde se fixou a seguinte jurisprudência: «Em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente.»
[15] Relatado por Manuel José Carrilho de Simas Santos e publicado no DR 49, Série I-A, de 27-02-2003, -02-27, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Jurisprudência fixada Criminal).
[16] Relatado por António Joaquim da Costa Mortágua e publicado no DR 229, Série I, de 28-11-2002, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Jurisprudência fixada Criminal).
[17] Relatado por Eduardo Maia Costa e publicado no DR 242, Série I, de 16-12-2010, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Jurisprudência Fixada Criminal).
[18] Relatado por Henriques Gaspar e publicado no DR 105, Série I, de 31-05-2011, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Jurisprudência Fixada Criminal), onde se fixou a seguinte jurisprudência: «[n]o crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.»
[19] In Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, reimpressão de Janeiro de 2021, art. 68.º, págs. 786 e 787.
[20] Ibidem.
[21] Idem, págs. 789 e 790.
[22] Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2011, art. 358.º, pág. 441.
[23] Idem, pág. 438.
[24] Idem, pág. 439 e 440.
[25] Contra esta solução, veja-se o acórdão do TRC de 24-04-2013, relatado por Fernando Chaves no âmbito do Proc. n.º 1066/12.6TALRA.C1, acessível in www.dgsi.pt, embora não sejam aí abordados os argumentos aqui esgrimidos e que fundamentam os AUJ a que se fez referência. No mesmo sentido, acórdão do TRL de 13-11-2018, Proc. n.º 1721/17.4T9LSB.L1-5.
[26] Neste sentido, considerando que o crime de procuradoria ilícita está numa relação de especialidade com o crime de usurpação de funções, vejam-se os acórdãos do TRP de 25-11-2020, relatado por Pedro Vaz Pato no âmbito do Proc. n.º 139/20.6T9VNG-A.P1, e do TRE de 04-06-2019, relatado por João Amaro no âmbito do Proc. n.º 599/09.6TAOLH-B.E1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
[27] Artigo 1.º
Actos próprios dos advogados e dos solicitadores
1 - Apenas os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e os solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores podem praticar os actos próprios dos advogados e dos solicitadores.
2 - Podem ainda exercer consulta jurídica juristas de reconhecido mérito e os mestres e doutores em Direito cujo grau seja reconhecido em Portugal, inscritos para o efeito na Ordem dos Advogados nos termos de um processo especial a definir no Estatuto da Ordem dos Advogados.
3 - Exceptua-se do disposto no n.º 1 a elaboração de pareceres escritos por docentes das faculdades de Direito.
4 - No âmbito da competência que resulta do artigo 173.º-C do Estatuto da Ordem dos Advogados e do artigo 77.º do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, podem ser praticados actos próprios dos advogados e dos solicitadores por quem não seja licenciado em Direito.
5 - Sem prejuízo do disposto nas leis de processo, são actos próprios dos advogados e dos solicitadores:
a) O exercício do mandato forense;
b) A consulta jurídica.
6 - São ainda actos próprios dos advogados e dos solicitadores os seguintes:
a) A elaboração de contratos e a prática dos actos preparatórios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais;
b) A negociação tendente à cobrança de créditos;
c) O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de actos administrativos ou tributários.
7 - Consideram-se actos próprios dos advogados e dos solicitadores os actos que, nos termos dos números anteriores, forem exercidos no interesse de terceiros e no âmbito de actividade profissional, sem prejuízo das competências próprias atribuídas às demais profissões ou actividades cujo acesso ou exercício é regulado por lei.
8 - Para os efeitos do disposto no número anterior, não se consideram praticados no interesse de terceiros os actos praticados pelos representantes legais, empregados, funcionários ou agentes de pessoas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, nessa qualidade, salvo se, no caso da cobrança de dívidas, esta constituir o objecto ou actividade principal destas pessoas.
9 - São também actos próprios dos advogados todos aqueles que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
10 - Nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, esta função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei.
11 - O exercício do mandato forense e da consulta jurídica pelos solicitadores está sujeito aos limites do seu estatuto e da legislação processual.