CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
EXTINÇÃO DA PENA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I - Vem sendo decidido uniformemente pelo STJ, que não existe obstáculo a que se proceda a cúmulo jurídico entre penas de prisão efetiva e penas de prisão que foram substituídas por outras, v.g. por PTFC ou suspensão da execução da pena de prisão, que ainda não estão cumpridas, nem extintas (como sucede neste caso).
II - Podemos dizer (como a jurisprudência maioritária do STJ) que não se forma caso julgado sobre a pena de substituição (seja sobre a PTFC, seja, por exemplo, sobre a suspensão da execução da pena), mas antes sobre a medida da pena, sendo a substituição da pena de caráter provisório e, portanto, enquanto que não se extingue, está sujeita à clausula rebus sic stantibus. Ou seja, o caso julgado relativo ao conhecimento superveniente tem um valor rebus sic stantibus, o que significa, que “o caso julgado fica sem efeito e as penas parcelares adquirem toda a sua autonomia para a determinação da nova moldura do concurso.”
III - O argumento da revogação das penas suspensas é irrelevante, nem interessa para determinar se o tribunal é ou não competente para realizar o cúmulo jurídico, em caso de concurso superveniente de penas.
IV - Diferente já é, após a determinação do tribunal competente, no caso das penas de substituição, apurar se as mesmas estão prescritas ou extintas, uma vez que sendo a resposta afirmativa, não podem ser englobadas no cúmulo jurídico a efetuar.
V - Daí que (atentas as caraterísticas, natureza e finalidade da pena de substituição em causa), seja essencial apurar do estado da pena de substituição (no caso suspensão da execução) da pena de prisão aplicada nos processos A e B, para apurar se podem ou não ser incluídas no concurso de penas. Sem se saber se as respetivas penas aplicadas naqueles processos foram ou não declaradas extintas pelo cumprimento ou declaradas prescritas, era temerário englobá-las no cúmulo jurídico.
VI - Há, assim, uma omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP), na medida em que ao não indagar do estado daquelas penas de prisão suspensas (que podiam eventualmente estar extintas e, nessa medida, não podiam ser englobadas no cúmulo jurídico efetuado), não foram feitas todas as diligências essenciais para o Coletivo poder realizar o acórdão de cúmulo jurídico.
VII - Verifica-se, pois, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia (que não podemos suprir), ficando prejudicado o conhecimento da segunda questão colocada pelo recorrente (relativa à alegada pena única excessiva e desproporcionada), impondo-se remeter os autos à 1ª instância para o mesmo tribunal suprir a nulidade apontada e, consoante as informações obtidas, ou seja, estando ou não extintas as respetivas penas acima indicadas, proferir nova decisão, em conformidade, excluindo ou incluindo-as no cúmulo jurídico das penas de prisão em concurso.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório


1. No processo comum (tribunal coletivo) nº 2773/20.0T8STB do Juízo Central Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., após realização da audiência a que alude o artigo 472.º do CPP, por acórdão proferido em 6.02.2023, foi efetuado o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido AA nos processos n.º 85/17...., n.º 1016/14...., n.º 1003/17.... e n.º 278/17...., sendo condenado na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.


2. Inconformado com essa decisão, o arguido AA interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Foi incluído no cúmulo o processo n.º 1003/17...., do Juízo Central Criminal ... em que o arguido foi condenado na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, transitada em julgado em 29/06/2020.

2.ª Ora tal pena foi declarada extinta nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do C. Penal pelo que não poderia ter sido englobada no cúmulo.

3.ª Finalidades de prevenção – nunca finalidades absolutas de retribuição e expiação – podem justificar e legitimar a pena, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

4.ª Tal interpretação decorre do chamado princípio da referência constitucional ou princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem dos bens jurídicos (Prof. Figueiredo Dias, As Consequências jurídicas do Crime, pp. 72-73).

5.ª Esse princípio da culpa significa não só que não há pena sem culpa, mas que a culpa decide na medida da pena, ou seja a culpa não constitui apenas o pressuposto fundamento da validade da pena, mas a medida da culpa afirma-se como limite máximo da mesma pena.

6.ª Ao depararmo-nos com o disposto no art.º 71.º, n.º 2 do CP, percebemos facilmente que era intenção do legislador que ao determinar-se a pena, deveria o julgador em primeiro lugar escolher os fins das penas, pois só a partir deles se podem ajuizar os factos do caso concreto relevantes para a determinação da pena e a valoração que lhes deve ser dada.

7.ª Dispõe o art.º 40.º, n.º 1 do CP, sobre as finalidades da punição, que são a protecção dos bens jurídicos mas também, e não num plano de subalternidade a protecção e reintegração do arguido na sociedade.

8.ª A prevenção está ligada à necessidade comunitária de punição do caso concreto sendo que só se torna justificável a aplicação de uma pena se esta for realmente necessária, e quando necessária, esta deverá ser sempre aplicada na medida exata da sua necessidade e sempre subordinada a uma proibição do excesso.

9.ª Quando estamos perante uma pena excessiva, ainda que tenha sido considerada necessária, que ultrapasse o juízo de censura que o agente causador do crime mereça, essa pena é injusta.

10.ª Neste caso, entende o recorrente que o Tribunal recorrido teve principalmente em conta a função retributiva da pena, olvidando-se da função ressocializadora da mesma que tenderia a considerar que as finalidades da punição deverão ser executadas com o sentido pedagógico e ressocializador.

11.ª Sr. Procurador-Geral-Adjunto Dr. Eduardo Maia Costa referiu no seu artigo “ressocialização de delinquente: Evolução e Destino” em que defende uma visão liberal e humanista, alicerçada na acentuação das medidas alternativas à prisão e na reinserção social dos delinquentes, no pressuposto, enunciado oficialmente, de que não é a gravidade das penas que constitui o antídoto eficaz ao alastramento do crime.

12.ª O STJ tem vindo a considerar impor-se um dever especial de fundamentação na elaboração da pena conjunta, não se podendo fixar a decisão cumulatória pelo emprego de fórmulas genéricas, tabelares ou conclusivas, sem reporte a uma efetiva ponderação abrangente da situação global e relacionação das condutas apuradas com a personalidade do agente, seu autor.

13.ª O critério especial fornecido pelo art.º 77.º, n.º 1, do CP, significa que este específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global.

14.ª O respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta (Ac. STJ de 18-01-2012).

15.ª Como se refere no Ac. do STJ de 10-09-2009, Proc. n.º 26/05.8SOLSB-A.S1 – 5.ª, - a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito expansivo sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito repulsivo que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas.

16.ª Ora, esse efeito repulsivo prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.

17.ª Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fração menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta.

16.ª Ora, as penas parcelares que integram o cúmulo são todas muito semelhantes, sendo a mais alta de 5 anos e a mais baixa de 6 meses de prisão.

17.ª As condutas do arguido inscrevem-se quase todas dentro do mesmo campo de actuação (crimes contra o património, crimes de burla).

18.ª Os montantes de que apoderou não foram expressivos.

19.ª Consta no relatório social, que o condenado goza de apoio familiar, quer da sua companheira quer da família alargada.

20.ª O condenado tem 32 anos de idade, sendo pai de 1 filho que nasceu já com o recorrente preso.

21.ª O instituto do cúmulo jurídico, por oposição ao do cúmulo material, é um instituto cuja aplicação tem, entre outras, finalidades que favorecem o condenado, pois a pena aplicada será sempre menor do que o somatório das penas parcelares.

22.ªAcontece que, se não fosse realizado o cúmulo jurídico superveniente, o recorrente tinha a cumprir uma pena de prisão efectiva de 8 anos e 4 meses de prisão (P.º 85/17....).

23.ª Todas as outras penas que entraram no cúmulo eram penas suspensas que não foram revogadas.

24.ª A pena aplicada na decisão cumulatória, de 14 anos de prisão quase que se fixa no limite máximo do somatório das penas sucessivas, pondo em causa os princípios que norteiam a opção do cúmulo jurídico em detrimento do cúmulo material.

25.ª Entende o condenado que o tribunal recorrido, não poderia deixar de ter em conta esta situação na determinação da pena única aplicada na decisão cumulatória.

26.ª A pena única de 14 (catorze) anos de prisão aplicada ao condenado é claramente exagerada e desproporcional à gravidade dos factos, pois a grande maioria dos crimes trata-se de crimes contra o património, em que estão em causa quantias pequenas. Com o devido respeito, Meritíssimos Juízes Conselheiros, são aplicadas a homicidas e a traficantes penas substancialmente menores.

27.ª Como é que uma pena destas pode levar um jovem a acreditar na justiça e motivar-se para a sua reinserção social.

28.ª Quando o recorrente no estabelecimento prisional refere perante os outros reclusos a pena em que foi condenado, estes ficam estupefactos e perguntam-lhe logo se matou alguém.

29.ª A pena mais grave que integra o concurso é de 5 anos de prisão.

30.ª A actividade criminosa do arguido deve ser enquadrada numa média/pequena criminalidade, muito longe da grande criminalidade, violenta e organizada.

31.ª Neste caso, entende o recorrente que o Tribunal recorrido teve principalmente em conta a função retributiva da pena, olvidando-se da função ressocializadora da mesma que tenderia a considerar que as finalidades da punição deverão ser executadas com o sentido pedagógico e ressocializador.

32.ª Devendo em consequência a pena única aplicada ao recorrente em cúmulo jurídico superveniente ser reformulada e fixada em montante que V. Ex.ªs, Venerandos Juízes Conselheiros, doutamente fixarão, mas nunca superior a 10 (dez) anos de prisão.

33.ª Houve por parte do tribunal recorrido errada aplicação dos art.ºs 40.º, n.ºs 1 e 2 e 71.º, 77.º e 78.º todos do C.P.

Indica como normas violadas os Art. 40.º, n.ºs 1 e 2 e art. 71.º 77.º e 78.º do CP.

Termina a pedir o provimento do recurso e, em consequência, que a pena única aplicada em cúmulo jurídico superveniente seja reformulada e fixada em montante nunca superior a 10 (dez) anos de prisão.


3. Na 1ª instância o Ministério Público respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1ª – Segundo a jurisprudência que se crê praticamente unânime dos nossos tribunais superiores – com a qual se concorda –, não podem ser objecto de cúmulo jurídico as penas de prisão suspensas na execução cujo período de suspensão já tenha decorrido sem que tenha havido decisão sobre a extinção da pena, a revogação da suspensão ou a prorrogação do prazo de suspensão;

2ª – De acordo com a mesma jurisprudência, o tribunal que englobe em cúmulo jurídico penas de prisão cujo período de suspensão da execução já se mostra esgotado, sem averiguar junto dos processos em que foram aplicadas sobre a respectiva extinção, prorrogação do prazo de suspensão ou revogação da suspensão, incorre em nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P.;

3ª – Assim, ao incluir no cúmulo jurídico a pena única aplicada no Procº nº 1016/14.... e a pena cominada no Procº nº 1003/17.... (cujos prazos de suspensão da execução já haviam decorrido) sem indagar previamente junto dos dois processos em causa da existência de decisão sobre o desfecho das respectivas penas (que ao tempo se desconhecia e ainda hoje se desconhece), o acórdão recorrido está ferido da nulidade apontada;

4ª – A verificação de tal nulidade obsta à apreciação da justeza da pena única de catorze anos de prisão concretamente aplicada.

Termina a pedir que seja concedido parcial provimento ao recurso interposto e, em consequência, seja declarada a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (art. 379.º n.º 1, al. c), do CPP) e, determinada a remessa dos autos à 1ª instância, a fim de ser indagada junto dos Processos n.º 1016/14.... e n.º 1003/17.... da existência de decisão sobre o desfecho das respetivas penas suspensas e, depois, ser proferida nova decisão.


4. Subiram os autos a este Tribunal e, o Sr. PGA, além de considerar que deveriam ter sido realizado dois cúmulos sucessivos (sendo o segundo cúmulo com as penas do crime de burla cometido em 13.01.2018 do processo 85/17.... e a pena do crime de arma proibida cometido em 8.02.2018 do processo 1003/17...., por terem sido erradamente englobadas no cúmulo efetuado no acórdão impugnado), acompanhou as considerações vertidas na resposta do senhor Procurador da República na 1.ª instância, emitindo parecer em ordem à declaração de nulidade do acórdão recorrido nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, ficando, desse modo, prejudicada a discussão, também colocada, relativa ao quantum da pena única (artigos 608.º, n.º 2, do CPC e 4.º do CPP).


5. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.


II. Fundamentação


6. Com interesse para a decisão deste recurso consta do acórdão impugnado, o seguinte:

1. Foi julgado no Pº 85/17.... que correu os seus termos pelo Juízo Central Criminal ..., J... pela prática, entre 13.1.2017 e 13.1.2018, de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos artigos 210º/2-a) e b) e 204º/1-a) do Código Penal, na pena parcelar de 5 anos de prisão; de três crimes de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210º/1 do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão por cada um; de dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º/1 e 218º/2-c) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão; de 3 crimes de burla qualificada  p. e p. pelos artigos 217º/1 e 218º/2-c) do Código Penal, na pena especialmente atenuada, de 1 ano de prisão por cada um, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º/1-d) da Lei 5/2006, na pena de 9 meses de prisão e pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º/1 e 155º/1-a) do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão e, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão.

O acórdão condenatório transitou em julgado a 1.10.2020 – cfr. certidão a fls. 186.

[os factos que ditaram as anteditas condenações, fundaram-se;

a) - Quanto ao crime de roubo agravado, na circunstância de o arguido, no dia 11.4.2017, ter abordado a ofendida, que à data tinha 81 anos de idade, fazendo-se passar por seu conhecido, conseguindo convencê-la a ceder-lhe alianças em ouro que usava, e simulando um exame ao contraste dos anéis, pulverizar-lhe os olhos com substância desconhecida, atordoando-a, retirando-lhe através de puxões, 4 anéis que a mesma usava, uma gargantilha e uma bolsa que trazia, objectos no valor global de € 9 700,00, tendo-a arrastado quando a mesma tentou alcança-los, causando-lhe ferimentos que determinaram tratamento médico, bem como os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude; 

b) - Quanto a três  dos crimes de roubo simples, na circunstância de o arguido, no dia 3.4.2017 ter interpelado ofendida à data com 91 anos de idade, fazendo-se passar por seu conhecido, conseguindo convencê-la a exibir os anéis em ouro que usava, e aproximando-se, pulverizar-lhe os olhos com substância desconhecida, atordoando-a, retirando-lhe através de força física, os ditos anéis, que tinham um valor não inferior a € 5 000,00, no dia 1.5.2017, ter-se aproximado da ofendida, à data com 70 anos de idade, agarrando-a pela mão e torcendo-lhe um dedo, puxando um anel em ouro que a mesma usava, que valia não menos que € 600,00; e no dia 3.8.2017, ter abordado ofendida à data com 83 anos de idade, convencendo-a a estender a mão para mostrar os anéis que trazia, e puxando-lhe um anel em ouro de valor não apurado, que a mesma trazia no dedo, em todas as situações se demonstrando os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude; 

c) – Quanto aos dois crimes de burla qualificada, na circunstância de o arguido no dia 23.12.2016, ter abordado ofendida, à data com 75 anos de idade, com a qual dialogou, oferecendo-lhe um presente, e fazendo-se passar por funcionário de estabelecimento comercial, exibir-lhe o “router” que inicialmente lhe disse ser oferta, solicitando-lhe quantia monetária, induzindo-a a dirigir-se a um terminal ATM, e a levantar primeiro € 200,00, e depois, mais € 50,00 e por fim, € 100,00, montantes que o arguido fez seus, e no dia 16.5.2017, ter abordado ofendida, à data com 84 anos de idade, fazendo-se passar por um conhecido seu, dizendo-lhe que ia abrir uma ourivesaria e que queria convidá-la para a inauguração, dizendo-lhe pretender usar os anéis em ouro que a mesma trazia, que valiam não menos do que € 2 100,00, como modelo para os que pretendia comercializar, convencendo-a a entregar-lhos, acabando por fazê-los seus, em ambas as situações se demonstrando os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude;

d) - Quanto aos 3 crimes de burla qualificada, com pena especialmente atenuada, na circunstância de o arguido, no dia 18.9.2017, ter abordado ofendida, à data com 78 anos de idade, convencendo-a ser funcionária de estabelecimento comercial, e a adquirir um televisor de alta qualidade por um valor promocional, induzindo-a a deslocar-se a uma caixa ATM, e a levantar e entregar ao arguido a quantia de € 200,00, que este fez sua; no dia 14.4.2017, ter abordado ofendida, à data com 76 anos de idade, fazendo-se passar por funcionário de estabelecimento comercial, propondo-lhe vender artigos electrónicos que tinha no interior de um saco com o logotipo do dito estabelecimento, pelo preço promocional de € 100,00, levando-a a aceitar comprá-los, entregando-lhe € 100,00 em dinheiro, tendo-lhe entregado o arguido a caixa vazia de um televisor, e feito sua aquela quantia; no dia 13.1.2018, ter abordado ofendido à data com 76 anos de idade, fazendo-se passar por um conhecido seu, identificando-se como gerente de estabelecimento comercial, aliciando-o com a oferta de dois “tablet” e exibindo-lhe um “router” que disse tratar-se de uma box de TV e valer € 1000,00, oferecer-se para lho vender por € 400,00, induzindo-o a ir a um terminal ATM, e efectuar dois levantamentos, de €200,00 e de €100,00, respectivamente, entregando tais quantias ao arguido, que em troca lhe deu dois “tablet” avariados e um “router” com um valor inferior a € 10,00, em todas as situações se demonstrando os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude; 

e) – Quanto ao crime de detenção de arma proibida, na circunstância de o arguido, no dia 1.7.2017, trazer no interior da viatura em que se fazia transportar, uma faca com cerca de 30 cm de comprimento, com a qual avançou em direcção de terceiro, que no entretanto fugiu, e bem assim, os elementos respeitantes ao dolo e à consciência da ilicitude].

2. No Pº 1016/14...., do Juízo Local Criminal ..., foi julgado pela prática, a 19.07.2014, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º/2-c) do Código Penal, e de um crime de furto simples, p.e p. pelo artigo 203º/1 do Código Penal, respectivamente, nas penas parcelares de 2 anos e 6 meses de prisão, e de 14 meses de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita à condição de pagamento de quantia a ofendida.

A sentença condenatória transitou em julgado a 16.11.2017 – cfr. certidão de fls. 34.

[os factos que ditaram a antedita condenação, fundam-se na circunstância de o arguido, na assinalada data, ter avistado ofendida, à data com 83 anos de idade, a entrar no seu prédio, tendo-a chamado, e dizendo ser primo seu, insistir em oferecer-lhe uma prenda que disse trazer num embrulho fazendo com que esta acedesse a que o arguido entrasse na sua casa, no interior da qual lhe mostrou um jogo de lençóis, tendo verificado que a mesma tinha à vista uma pulseira de ouro comprada por 500 escudos, há 50 anos atrás, e um anel em ouro em valor não inferior a € 700,00, e convencendo-a que ia abrir uma loja, e carecia de dinheiro, persuadi-a a entregar-lhe € 300,00, convencendo-a de que sairia por um instante para acertar uma conta na dita loja, tendo saído com esse dinheiro que fez seu, e com os objectos em ouro, que retirou do local onde estavam, num momento de distracção daquela, mais se tendo demonstrado os elementos respeitantes ao dolo e à consciência da ilicitude].

3. No Pº 1003/17...., do Juízo Central Criminal ..., foi julgado, pela prática, no dia 8 de Fevereiro de 2018, como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º/1-c) da Lei 5/2006, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

O acórdão condenatório transitou em julgado a 29.6.2020 – cfr. certidão de fls. 139.

[os factos que ditaram a antedita condenação, fundam-se na circunstância de o arguido, no dia 8.2.2018, deter no interior da sua residência, uma pistola de fogo curta, alma lisa, semiautomática, de marca Star, calibre 6.35mm, com carregador municiado com sete munições do mesmo calibre, e no interior de uma bolsa, 18 munições de calibre 6.35 mm, marca Browning, sem que fosse titular de licença para tal efeito, mais se demonstrando os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude]. 

4. No Pº 278/17...., que correu os seus termos pelo Juízo Local Criminal ..., o arguido foi condenado pela prática, no dia 27.6.2017 de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º/1, e 218º/2-b) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.

A sentença condenatória transitou em julgado a 2.6.2021 – cfr. certidões a fls. 153 e 3 e ss.

[os factos que ditaram a antedita condenação, fundam-se na circunstância de o arguido, na assinalada data, ter abordado ofendido, dizendo-lhe ser funcionário de um estabelecimento comercial, e ter uns perfumes para lhe oferecer, e indo buscar um “router”, solicitou-lhe que lho comprasse por € 400,00, porque se o fizesse lhe daria outro, só para se livrar da mercadoria (valendo os routers que o arguido tinha, € 10,00 cada um), induzindo o ofendido a ir a um ATM, levantar dinheiro, o que o mesmo fez, acabando o arguido por retirar os € 200,00 que foram dispensados pela máquina em causa, mais se tendo demonstrado os elementos atinentes ao dolo e à consciência da ilicitude].


*


O processo mostra-se adequadamente instruído, com certidão das decisões condenatórias proferidas nos processos e tribunais aludidos, e nota de trânsito em julgado e com o CRC do arguido.

*


Realizou-se a audiência a que alude o artº 472º do CPP, a qual decorreu na ausência do arguido, com respeito pelo legal formalismo, tal como da acta consta.

II. Fundamentação

A) - Das condenações sofridas pelo arguido:

Conforme se extrai da instrução do processo vertente, correspondem às que acima foram aludidas e resultam da leitura dos autos e das certidões juntas aos mesmos (“supra” identificadas em folhas respectivas).

B) - Das condições pessoais e sociais do arguido

O arguido encontra-se em cumprimento de pena no EP. de ....

Do seu relatório social, junto aos autos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, consta com relevo:

“(…) A socialização primária de AA decorreu segundo a cultura ... numa família constituída pelos pais e irmãos, sendo o arguido o elemento mais velho da fratria, referindo um ambiente gratificante do ponto de vista afetivo entre todos os elementos. Em termos socioeconómicos afere-se uma dinâmica organizada, mas carenciada, uma vez que os rendimentos do agregado familiar provinham exclusivamente dos obtidos como feirantes em feiras e mercados.

Após a invalidez da figura paterna devido a problemas de saúde, a mãe do arguido passou a exercer a atividade profissional como doméstica em casas particulares. Em termos escolares afere-se um percurso desinvestido e com absentismo elevado, tendo concluído o 1.º ciclo com 11 anos e abandonado definitivamente a sua formação escolar.

Ao nível profissional iniciou, ainda que em contexto familiar, a venda ambulante em feiras e mercados, numa primeira fase junto dos pais, e a partir dos 19 anos com a companheira. Em termos afetivos mantém a relação com (…), de quem tem um filho, atualmente com 18 meses, avaliada como gratificante do ponto de vista dos afetos e da cooperação conjugal, sendo que passou a conviver mais com a família da companheira do que com o seu núcleo de origem.

(…)

No lapso temporal que constitui referência à factualidade considerada para efeitos do presente cúmulo jurídico, AA vivia em união de facto com (…) na Cidade .... Exerciam a atividade de vendedores ambulantes em parceria com outros familiares, sem que fossem detentores de quaisquer licenças para o efeito.

Ao longo da reclusão tem contado com o apoio financeiro da família de origem e da companheira, familiares com quem mantém contactos telefónicos regulares. Projeta no futuro residir com a companheira e filho de ambos, uma vez que avalia a relação afetiva como fundamental para o seu equilíbrio psicoemocional. Ao nível da empregabilidade, AA equaciona retomar a atividade de vendedor ambulante com a companheira e outros familiares.

O projeto de vida futuro de AA não difere do mantido até à data da reclusão e o sucesso do mesmo dependerá essencialmente das capacidades para reconhecer as suas fragilidades pessoais, tentando corresponder ao esperado e desejável socialmente, aspetos que avaliamos nesta fase de forma ainda muito reservada, atendendo assinalarem-se défices ao nível da interiorização dos princípios e regras de conduta convencional, o que remete para fragilidades intrínsecas.

(…)

AA cumpre pela primeira vez pena em regime penitenciário (…). Relativamente às reações penais aplicadas, o arguido assume uma postura pouco crítica e fraca consciência quanto às consequências da sua conduta criminal, minimizando a sua responsabilidade. Constata-se distanciamento quando aos danos causados às vítimas e impacto na sociedade em geral, bem como dificuldades em reconhecer os bens jurídicos protegidos, apesar de possuir competências para destrinçar condutas associais e pró-sociais.

Pelo que é dado a observar e, atendendo ao seu percurso de vida, designadamente no que respeita ao contacto com o Sistema da Justiça, mantém na atualidade a tendência para isentar-se da reflexão sobre os seus padrões comportamentais desfavoráveis às convenções sociais. Ao nível pessoal surge-nos como um indivíduo com competências para a interação social, evidenciando uma postura adequada e colaborante, ainda que sedutora/apelativa.

Pelo discurso apresentado, demonstra necessidades de intervenção no sentido da minoração de fatores com potencial de desvio sociojurídico, com especial realce para os de ordem pessoal – atitudes minimizadoras da ilicitude criminal, défices nas competências de pensamento consequencial/alternativo, de descentração e de responsabilização. A execução da pena privativa tem-se caracterizado, maioritariamente, pela capacidade de adequação comportamental aos normativos institucionais a que está sujeito. A última medida disciplinar foi averbada em novembro de 2022 - 5 dias de permanência obrigatória no alojamento.

O arguido frequenta desde outubro de 2022 curso de dupla certificação EFA B3 na área da eletromecânica e verbaliza interesse para investir na aquisição de competências pessoais e profissionais. Até ao momento da frequência escolar, a sua envolvência nas atividades existentes nos estabelecimentos prisionais foi maioritariamente direcionada para a prática desportiva. Ainda não iniciou as medidas de flexibilização da pena de prisão. Em termos familiares, a sua reclusão parece não ter acarretado outros impactos para além dos de natureza emocional (…)”.


7. O Direito

A questão que o recorrente coloca no recurso prende-se com o facto de, por um lado, ter sido incluída no cúmulo jurídico a pena aplicada no processo n.º 1003/17.... que, na sua perspetiva, já tinha sido declarada extinta e, por isso, não podia ser nele englobada e, por outro lado, com a pena única aplicada de 14 anos de prisão, que considera excessiva e desproporcionada em relação à gravidade dos factos (na sua perspetiva a grande maioria dos factos reporta-se a crimes contra o património, em que estão em causa pequenas quantias, devendo a sua atividade ser enquadrada na média/pequena criminalidade, muito longe da grande criminalidade, violenta e organizada), e, nessa medida, injusta, considerando que o tribunal a quo teve principalmente em conta a função retributiva da pena, olvidando-se da sua função ressocializadora e das finalidades da punição, com o seu sentido igualmente pedagógico, sustentando que, face às suas condições pessoais de vida e apoio familiar de que goza, deveria ser a mesma reduzida para uma pena de prisão não superior a 10 anos.

De notar que o Ministério Público não recorreu, apenas respondeu ao recurso.

Com interesse para este recurso, escreveu-se ainda na decisão impugnada o seguinte:

III. Dos pressupostos do cúmulo jurídico.

“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar e julgado a condenação por qualquer deles, e condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – artº 77º/1 do C. Penal.

E;

“Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior – artº 78º/1, “idem”.

Por seu turno, diz-nos o nº 2 deste preceito normativo:

“O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido objecto separadamente de condenações transitadas em julgado.”

É o caso dos autos, em que se verifica, uma situação de cúmulo entre as penas em que o arguido foi condenado, nos processos elencados de 1. a 4., acima melhor identificados, sendo os últimos (278/17....), os competentes para a respectiva elaboração, por neles ter sido proferida a última decisão condenatória transitada em julgado, tendo havido lugar a distribuição autónoma, como processo de cúmulo jurídico, por a moldura penal abstracta das penas a cumular, ultrapassar a alçada do tribunal que proferiu aquela decisão (ditando a sua distribuição, sob com o nº 2773/22...., a este Juízo Central Criminal).

IV. Da determinação da pena unitária a aplicar

Nos termos previstos pelo artº 77º/2 do C. Penal;

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Nos autos;

O limite mínimo a ponderar é de 5 anos de prisão, e o limite máximo de 25 anos (por se tratar do máximo legalmente previsto, posto que a acumulação material das penas perfaria 30 anos e 3 meses de prisão).

Na determinação em concreto da pena única, pondera-se;

Desde logo, que o princípio da proibição da dupla valoração impede que se considerem novamente como factores agravantes ou atenuantes, as circunstâncias que anteriormente alcançaram o mesmo desiderato na fixação das penas parcelares.

Na fixação da pena única dentro dos limites definidos na Lei O STJ tem vindo a entender, com Figueiredo Dias, “Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 291”, que “na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante”.

Dos elementos constantes dos autos, resulta que os factos praticados pelo arguido ocorreram num lapso de tempo significativo (entre 19.7.2014 a 8.2.2018) com evidente multiplicidade, em tudo demonstrativa não apenas de uma tendência, mas antes, de uma verdadeira “carreira” criminosa.

Com efeito, o número de crimes de roubo e de burla praticados, não nos pode levar a crer senão em que o arguido fez da prática desses ilícitos penais, no decurso desse período, modo de vida (a eles acrescendo um crime de furto simples, e dois crimes de detenção proibida de arma), aproveitando-se da fragilidade de pessoas idosas que abordava (como resulta da leitura dos acórdãos), para aceder ao património destas, fazendo-o seu.

O prejuízo causado com a sua conduta (que, contas feitas, ascendeu a um montante global não inferior a € 19. 540,00) espelha a grandeza da sua actividade criminosa, pois que ninguém negará tratar-se de montante assinalável (para além, como é óbvio, no que tange aos crimes de roubo, o susto, e em duas situações, as dores causadas).

Patenteia-se, por isso, a significância da gravidade das consequências da sua conduta, reclamando esta, idêntico juízo na determinação em concreto da pena.

Por fim, o seu relatório social acima parcialmente transcrito, reforça pela negativa as exigências de prevenção especial, dele se colhendo a falta de habilitações técnicas que propiciem ao arguido um sustento sólido, que o afaste do cometimento de crimes contra o património (posto que estes, como já se referiu, parecem ter sido o seu modo de vida -, a sua actividade na venda ambulante, que exercia aquando do seu cometimento, e que projecta vir a continuar, não o inibiu do respectivo cometimento, que na sua avaliação global, surge como modo de auferir ganhos financeiros), e a ausência de consciência autocrítica (minimiza a sua responsabilidade, e demonstra distanciamento quando aos danos causados às vítimas, e dificuldades em reconhecer os bens jurídicos protegidos, apesar de possuir competências para destrinçar condutas associais e pró-sociais).

Por fim, o seu percurso reclusivo parece não ter potenciado ainda, contributo de ressocialização significativo, na medida em que, sendo a sua primeira experiência quanto à vivência nessa situação, e a execução da pena de prisão se caracterizar maioritariamente (regista já, infracção disciplinar), pela capacidade de adequação comportamental aos normativos institucionais a que está sujeito, e frequentar curso de dupla certificação na área da electromecânica, verbalizando interesse em investir na aquisição de competências pessoais e profissionais, tal não anula a ausência de consciência autocrítica que se assinalou, que inculca a ideia de que o caminho de reintegração do arguido, será ainda longo.

Por isso, tem-se por adequado e proporcional fixar em 14 (catorze) anos de prisão, a pena única a aplicar ao arguido, pela prática dos crimes em relação de concurso.

Vejamos então.

É certo que o Sr. PGA no seu parecer coloca, “entre parêntesis”, a questão de haver um cúmulo por arrastamento na decisão impugnada, por se verificarem os pressupostos para haver lugar a dois cúmulos sucessivos.

Porém, o certo é que o Ministério Público não recorreu do acórdão impugnado e, por isso, não pode ser produzida decisão com consequências a nível da proibição da reformatio in pejus (art. 409.º do CPP).

Mas, além disso, bem ou mal, sempre houve uma decisão de conflito do TRE de 10.12.2022, transitada em julgado, que declarou expressamente, haver situação de concurso entre todas as penas individuais acima referidas e que as mesmas deveriam ser cumuladas no processo n.º 2773/22...., o que significa que a 1ª instância cumpriu, o que lhe foi determinado, na referida decisão de conflito, pelo que a questão agora levantada pelo Sr. PGA sempre tem de ser considerada ultrapassada e resolvida.

Passemos, então, a apreciar da questão colocada pelo recorrente, que é diferente e que consiste em saber se podia ser ou não realizado cúmulo jurídico sem previamente averiguar se alguma daquelas penas, cuja execução fora suspensa, estava ou não extinta pelo decurso do tempo, uma vez que já tinha decorrido o período da suspensão.

Com efeito, vem sendo decidido uniformemente pelo STJ, que não existe obstáculo a que se proceda a cúmulo jurídico entre penas de prisão efetiva e penas de prisão que foram substituídas por outras, v.g. por PTFC ou suspensão da execução da pena de prisão, que ainda não estão cumpridas, nem extintas (como sucede neste caso).

De resto, podemos dizer (como a jurisprudência maioritária do STJ) que não se forma caso julgado sobre a pena de substituição (seja sobre a PTFC, seja, por exemplo, sobre a suspensão da execução da pena), mas antes sobre a medida da pena, sendo a substituição da pena de caráter provisório e, portanto, enquanto que não se extingue, está sujeita à clausula rebus sic stantibus.

Ou seja, o caso julgado relativo ao conhecimento superveniente tem um valor rebus sic stantibus, o que significa, que “o caso julgado fica sem efeito e as penas parcelares adquirem toda a sua autonomia para a determinação da nova moldura do concurso.”[1]

O argumento da revogação das penas suspensas é irrelevante, nem interessa para determinar se o tribunal é ou não competente para realizar o cúmulo jurídico, em caso de concurso superveniente de penas.

Diferente já é, após a determinação do tribunal competente, no caso das penas de substituição, apurar se as mesmas estão prescritas ou extintas, uma vez que sendo a resposta afirmativa, não podem ser englobadas no cúmulo jurídico a efetuar.

Daí que (atentas as caraterísticas, natureza e finalidade da pena de substituição em causa), neste caso concreto, seja essencial apurar do estado da pena de substituição (no caso suspensão da execução) da pena de prisão aplicada nos processos n.º 1016/14.... e n.º 1003/17...., para apurar se podem ou não ser incluídas no concurso de penas.

Sem se saber se as respetivas penas aplicadas naqueles processos foram ou não declaradas extintas pelo cumprimento ou declaradas prescritas, era temerário englobá-las no cúmulo jurídico.

Há, assim, uma omissão de pronúncia (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP), na medida em que ao não indagar do estado daquelas penas de prisão suspensas (que podiam eventualmente estar extintas e, nessa medida, não podiam ser englobadas no cúmulo jurídico efetuado), não foram feitas todas as diligências essenciais para o Coletivo poder realizar a sentença/acórdão de cúmulo jurídico.

Verifica-se, pois, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia (que não podemos suprir), ficando prejudicado o conhecimento da segunda questão colocada pelo recorrente (relativa à alegada pena única excessiva e desproporcionada).

Assim, impõe-se remeter os autos à 1ª instância para o mesmo tribunal suprir a nulidade apontada e, consoante as informações obtidas, ou seja, estando ou não extintas as respetivas penas acima indicadas, proferir nova decisão, em conformidade, excluindo ou incluindo-as no cúmulo jurídico das penas de prisão em concurso.


III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

- declarar a nulidade do acórdão recorrido nos termos apontados;

- determinar que seja também reformulado, sendo para o efeito proferida nova decisão, pelo mesmo Tribunal, de modo a ser suprida a nulidade apontada;

- fica prejudicado o conhecimento da demais questão suscitada pelo recorrente.


*


Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP).

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 04.05.2023


Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Adjunto)

Teresa Almeida (Adjunta)

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[1] Ver, entre outros, acórdãos citados pelo Sr. PGA, de 25 de Outubro de 2012, processo 242/10.0GHCTB.S1 (Santos Carvalho), de 9 de Julho de 2020, processo 1552/19.7T9PRT.S1 (MARGARIDA BLASCO), de 15 de Julho de 2020, processo 3325/19.8T8PNF.S1, (MANUEL AUGUSTO DE MATOS) citado na resposta do Ministério Público, de 24 de Março de 2021, processo 536/16.1GAFAF.S1 (NUNO GONÇALVES), de 2 de Junho de 2021, processo 626/07.1PBCBR.S1 (ANTÓNIO GAMA), de 9 de Setembro de 2021, processo 268/21.9T8GRD.S1 (HELENA MONIZ), e de 6 de Outubro de 2021, processo 323/21.5T8PTG.S1 (PAULO FERREIRA DA CUNHA), todos acessíveis em www.stj.pt.