QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DEVEDOR SINGULAR
REQUISITOS
Sumário


I A alínea d) do nº. 2 do artº. 186º do CIRE aplica-se ao insolvente/devedor que seja pessoa singular, por força do nº. 4 do mesmo artigo.
II Estando aí consagradas presunções inilidíveis de culpa, e também da existência da causalidade entre a atuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência para os fins previstos no nº 1 do art. 186º, verificada a conduta tipificada no período legal definido, é irrelevante a tentativa de prova do afastamento do elemento subjetivo.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

Por sentença datada de 23/5/2022 foi declarado insolvente AA, na sequência do requerimento apresentado em juízo em 9/10/2019.  
Foi declarado aberto o incidente por despacho datado de 28/07/2022.
No seu parecer, o Sr. A.I. alegou que, o insolvente AA através das duas doações realizadas em 22 de março de 2018, dispôs, de forma gratuita e sem qualquer tipo de contrapartida, do seu património (24 bens imóveis) a favor de entidades especialmente relacionadas consigo e, com isso, fez frustrar a possibilidade de os seus credores poderem dispor de tal património para, ainda que parcialmente, verem satisfeitos os seus créditos. É, assim, clara a intenção do insolvente de afastar da sua esfera pessoal o património de que era titular.
Assim, concluiu pelo preenchimento da previsão da norma prevista no nº 2, d), do artº. 186º do CIRE, devendo ser qualificada a sua insolvência como culposa.
O MP concluiu que a insolvência dos autos deve ser qualificada como culposa, devendo a referida qualificação afetar AA, com as consequências previstas no artº. 189º, nºs. 2 a 4, do CIRE.
O requerido deduziu oposição, impugnando os fundamentos anteriores, visto que as dívidas em causa resultam de reversões fiscais de sociedades onde, apesar de figurar como Administrador das referidas sociedades, o Opoente, nunca exerceu qualquer tipo de funções nestas, a final, concluindo pela qualificação como fortuita desta insolvência. Mais alega um o enquadramento pessoal para os atos relativos à disposição do seu património.

*
Foi fixado ao incidente o valor de € 30.000,01.
Foi proferido despacho saneador; procedeu-se à identificação dos temas da prova, que não foi objeto de reclamação.
Foi realizada perícia incidindo sobre o valor das verbas adjudicadas à filha do insolvente em execução.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido então proferida decisão que decidiu nestes termos:
“Qualifica-se a presente insolvência como culposa.
- Declara-se o insolvente AA, pelo período de 4 anos, inibido para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
- Condena-se o insolvente a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal.
- Determino a perda de quaisquer créditos detidos sobre a insolvência e/ou a massa insolvente pelo insolvente, bem como condeno o mesmo na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
- Condena-se ainda nos termos da al. e) do art. 189º do CIRE numa indemnização aos credores em montante que se fixa em € 118.102,44.
Custas pela massa insolvente.
Registe e Notifique.
Remeta certidão à Conservatória do Registo Civil competente, nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º nº3 do CIRE e art. 1º, nº1 al. m) do Código de Registo Civil.”
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Inconformado, o requerido AA apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1. O presente recurso, a revogação da sentença proferida pelo Mmo. Juiz a quo que qualificou a insolvência do R. como culposa, declarou o insolvente inibido de administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, condenou o insolvente a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal,
Determinou a perda de quaisquer créditos detidos sobre a insolvência e/ou a massa insolvente pelo insolvente, bem como condenou o mesmo na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e condenou o insolvente nos termos da al. e) do art. 189º do CIRE numa indemnização aos credores em montante que se fixa em € 118.102,44;
2. É fundamento do presente recurso a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, da existência de ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível e omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, als. c) e d), 1ª parte do CPC, bem como, a errónea apreciação da matéria de facto e de direito, pelo que pretende a recorrente, nos termos do disposto no artigo 662.º, do C.P. Civil, que a decisão sobre a matéria de facto seja alterada, tendo por objecto a reapreciação da prova gravada, bem como a matéria de direito;

– DA NULIDADE DA SENTENÇA (615º, nº 1, al- c) do CPC) –
3. Na motivação da sentença a quo defende-se a indemnização como efeito imperativo previsto no art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE e, em respeito pelo princípio da proporcionalidade previsto no nº 4 do mesmo preceito legal, que o valor da indemnização “é desde já quantificável atento o facto provado em P) em € 118.102,44” e o dispositivo do mesmo aresto vem a condenar o recorrente a indemnizar os credores até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal e, ainda nos termos da al. e) do art. 189º do CIRE numa indemnização aos credores em montante que se fixa em € 118.102,44.”
4. A aparente duplicidade de condenação em indemnização aos credores, fixada no dispositivo da sentença a quo não é consentânea com a motivação/fundamentação do mesmo aresto e não respeita o disposto no artigo 189º do CIRE e torna a decisão ambígua, obscura e ininteligível;
5. Há manifesta contradição entre o fundamento referido e o dispositivo da sentença em crise!
6. Padece a sentença em crise do vício de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. c) do CPC.
7. Nulidade que, desde já, se invoca, para os devidos efeitos legais!

– DA NULIDADE DA SENTENÇA (615º, nº 1, d), 1ª parte do CPC) –
8. O tribunal a quo não apreciou em toda a sua extensão e não exerceu pronúncia sobre os factos alegados em 10 a 16 e 21, in fine do articulado de oposição ao incidente de qualificação de insolvência de fls… dos autos, sobre os quais foi produzida prova testemunhal, capaz de afastar a culpa em que se funda a sentença em crise!
9. Tal constitui a violação do dever imposto pelo n.º 2 do artigo 608.º do CPC, nos termos do qual, o que importa a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, como dispõe a al. d), do nº1, do artigo 615º, do CPC, na sentença em crise!
10. Nulidade que, desde já, se invoca, para os devidos efeitos legais!

Sem prescindir,
- DA MATÉRIA DE FACTO -

11. O recorrente impugna a matéria de facto consubstanciada nos FACTOS NÃO PROVADOS da sentença, nos termos do artigo 640.º do CPC e pugna que a mesma deve passar a constar do elenco dos FACTOS PROVADOS!
12. Serve à sustentação da pretendida alteração da resposta dada à matéria de facto dada por não provada, as declarações da testemunha Dr. BB, produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento do dia 14 de fevereiro de 2023, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, em uso no Tribunal a quo, Ficheiro: 20230214095833_6077044_2870542, com início às 09:58:33 e fim às 10:09:46, do minuto 00:13:02 ao minuto 00:14.28;
13. O referido depoimento da testemunha Dr. BB não mereceu descrédito do Tribunal e demonstra da razão das doações a que respeita a alínea D) dos factos provados, i.é, que tais doações tiveram por causa o facto dado por provado em V) dos Factos Provados: a substancial diferença de idades entre o recorrente e a namorada “gerou na família um grande desconforto e até desconfiança, relativamente às intenções daquela”;
Ainda,
14. O depoimento das testemunhas CC, prestado em sede de audiência de discussão e julgamento do dia 24 de janeiro de 2023, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, em uso no Tribunal a quo, Ficheiro 20230124143913_6077044_2870542, com início às 14:39:13 e fim às14:57:56, do minuto 00:03:26 ao minuto 00:06:33 e do minuto 00:07:08 ao minuto 00:07:56; da testemunha DD, prestado em sede de audiência de discussão e julgamento do dia 24 de janeiro de 2023, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, em uso no Tribunal a quo, Ficheiro 20230124145831_6077044_2870542, com início às 14:58:32 e fim às 15:09:30, do minuto 00:02:22 ao minuto 00:08:01 e da testemunha e Dr. BB, produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento do dia 14 de fevereiro de 2023, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, em uso no Tribunal a quo, Ficheiro 20230214095833_6077044_2870542, com início às 09:58:33 e fim às 10:09:46, do minuto 00:11:47 ao minuto 00:12:52 provam que da atuação do recorrente enquanto administrador das sociedades S..., Lda. e K..., Lda., não advêm atos de gerência efectiva do recorrente e muito menos de atos de gestão do corrente causa de insuficiência do património das sociedades originariamente devedoras.
15. Atestam e provam tais depoimentos que o recorrente, como administrador das referidas sociedade e no período assente em H E I, da matéria de facto dada por provada na sentença a quo, não praticou qualquer ato de administração efetiva, nem controlou ou ditou os destinos destas, limitando-se apenas a ser um mero gerente de direito, como, aliás, é dado por provado em S da matéria de facto dada por provada na sentença em crise!
16. Impunha-se resposta positiva à matéria dos factos alegados em 10 a 16 e 21 in fine, em sede da Oposição ao Incidente da Qualificação da Insolvência, carreando tal matéria para o elenco dos FACTOS PROVADOS na sentença em crise!
17. Pugna o recorrente que a matéria, alegada em 10 a 16 e 21 in fine, em sede da Oposição ao Incidente da Qualificação da Insolvência, seja dada como PROVADA!

- DA MATÉRIA DE DIREITO –
18. Três requisitos, a falta de gerência efectiva, a falta de culpa sua pela insuficiência do património (art. 1º do CPPT), a qualificação da insolvência como fortuita das sociedades em causa nos presentes autos, afastam a responsabilidade subsidiária do insolvente, aqui recorrente, em relação às dívidas, ora, causa dos autos de insolvência relativamente ao período de gerência/administração das sociedades S..., Lda. e K..., Lda.;
19. Constitui jurisprudência dos Tribunais Superiores que para integrar o conceito de “gerência de facto ou efetiva” cabe à Administração Tributária provar, para além da gerência de direito assente na nomeação para o cargo, de que o mesmo gerente tenha praticado, em nome e por conta da pessoa coletiva, atos concretos de gerência, vinculando-a com a sua intervenção, sendo de julgar a oposição procedente quando nenhuns são provados, neste sentido, veja-se Ac. do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do proc. n.º 01132/06, de 28/02/2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
20. A gerência de direito implica a presunção iuris tantum de uma gerência de facto ou efectiva, i. é, ainda que se se mostre provada a gerência de direito, cabia, in casu, ao Ministério Público provar que à designação correspondeu um efetivo exercício da função, uma vez que a lei não se basta com a mera designação, desacompanhada de qualquer verificação do concreto exercício dos poderes de gerência (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e artigo 74.º, n.º1 da LGT);
21. Da prova produzida nos autos resulta que o insolvente, ora, recorrente, era um mero administrador formal, de direito (Veja-se o ponto S dos Factos Provados e os depoimentos supra
transcritos);
22. “Para responsabilizar subsidiariamente o gerente pelas dívidas tributárias da sociedade, não basta a outorga de poderes «nominais» de gerência, exige-se precisamente o exercício dessas funções, o exercício efectivo dos poderes que recebe, e não apenas a aparência do seu exercício.” Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 10.11.2016, in www.dgsi.pt.
23. “A responsabilização subsidiária pressupõe o poder de controlar e determinar a vontade social, definindo o seu rumo e estratégia e tudo o que se relaciona com a sua estabilidade, progresso ou sobrevivência, exteriorizando as suas opções, incluindo as de pagar, ou não pagar, as dívidas tributárias.” Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 10.11.2016, in www.dgsi.pt.;
24. “A distinção entre o mero gerente nominal do gerente efectivo reside no poder subjacente à realização dos actos.” Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte de 10.11.2016, in www.dgsi.pt.;
25. Ainda que o gerente nominal, ou «meramente de direito», possa praticar atos aparentes de gerência/administração, fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes;
Diga-se, ainda, que ,
26. efeitos do CIRE é considerado administrador “- pessoa que tem a seu cargo a condução geral de um determinado património; pessoa que administra, governa, dirige um organismo ou empresa, gere bens ou negócios –“ in TRC de 28-06-2016 in www.dgsi.pt., assentando a responsabilidade do gerente/administrador na culpa funcional do gerente/administração;
27. Impõe-se concluir, pois que, os factos carreados para os autos, impunham a alteração da matéria de facto dada por não provada, passando-a para o elenco das factos provados, bem como resposta positiva á matéria dos artigos 10 a 16 e 21 in fine do articulado de oposição ao incidente da qualificação de insolvência, em conjunto com a matéria dada por provada em S dos factos provados, negam a culpa do recorrente na insuficiência do património das sociedades S..., Lda. e K..., Lda., e a sua responsabilidade pessoal por dívidas daquelas, pois que o recorrente, ocupa naquelas uma posição de mero administrador formal ou de direito, em absoluto, desconhecedor da vida e situação económico-financeira das referidas sociedades!
Por sua vez,
28. A qualificação da insolvência como culposa importa uma conduta ilícita e culposa do devedor, sendo que a ilicitude se reparte “por elementos objectivos e subjectivos” e a culpa “ decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura (…) “, sendo que a “censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, (…) nas circunstâncias concretas em que actuou, podia, diga-se, em conformidade com ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente.”;
29. Uma correta apreciação da prova produzida nos autos, conforme ao alegado supra, no item da matéria de facto, nega qualquer atuação consciente e dolosa e/ ou com culpa por parte do, ora recorrente, sendo que a doação que constitui os factos D) e E) dos Factos Provados em sentença não teve por motivação ou intuito de afastar tais bens da esfera pessoal do recorrente, para “fugir” aos credores, os quais o recorrente desconhecia existir;
30. Não podia o Mmo. Juiz a quo concluir que, não obstante a citação da reversão ser posterior às doações, porque figurava o recorrente como administrador, tal qualidade obrigava-o a conhecer a situação financeira das sociedades, negando, assim e ostensivamente as disposições legais, mormente o art. 24º da LGT, que nega da legitimidade do mero administrador/gerente de direito para efeitos de reversão e responsabilidade das dívidas da sociedade, donde derivam as dívidas que suportam a declaração da insolvência do recorrente;
31. Ilegitimidade que, sendo do conhecimento oficioso, se impunha, ser decretada pelo Mmo. Juiz a quo (arts. 577º. al. e) e 578º, ambos do CPC);
32. A falta do elemento subjetivo, fundamento da verificação dos pressupostos previstos no artigo 186.º, nºs 1 e 2, al. d), do CIRE, nega razão que sustente a sentença a quo e, bem assim, a qualificação da insolvência como culposa e o demais em que vem condenado o recorrente;
33. A matéria factual dada como não provada e omissa na sentença, sub apreciação, não resulta de uma análise atenta, crítica e objetiva por parte do Mmo. Juiz a quo dos elementos carreados para os autos, incluindo os depoimentos das testemunhas referidos supra, bem como os demais elementos documentais probatórios carreados para os autos;
34. A análise atenta, crítica e objetiva por parte do Mmo. Juiz a quo dos elementos carreados para os autos e da prova produzida importaria, necessariamente a conclusão na sentença a quo da inexistência de culpa do, ora, recorrente quer na insolvência pessoal, quer na insolvência das
sociedade devedoras originárias, as quais foram, aliás, consideradas fortuitas;
35. Impunham os elementos dos autos uma declaração de insolvência do recorrente como fortuita, porque o recorrente um mero administrador de direito, um administrador de favor, alheio e completamente estranho a toda a gestão das sociedades em apreço nos autos!
36. Andou mal, o Mmo. Juiz a quo ao decidir na sentença sub recurso ao sufragar a tese do Ministério Público, ora, recorrido!
37. Há, pois, na sentença sub recurso erro na apreciação das provas e, por isso, erro de julgamento, por ausência de valoração racional, integrada, perceção e análise dos depoimentos testemunhais e documentais dos autos.
38. Padece, assim, a sentença sub judicie de ilegalidade e vício!
39. Impõe-se, por justiça e em nome da verdade material, a reapreciação da prova gravada e a revogação da sentença sub recurso, substituindo-a por outra que declare a insolvência do recorrente como fortuita, com as legais consequências, absolvendo-se o recorrente do demais em que vem condenado na sentença em crise;
40. Ao decidir como decidiu, violou, pois, a sentença em crise o disposto nos arts. 1ºe 13º, do CPPT, 24º, nº 1 e 74, nº 2 da LGT, art. 342º, nº 1 do CC. e art. 640º do CPC;
41. A douta sentença recorrida violou, ainda, por incorreta aplicação, o disposto nos arts. 577º. al. e) e 578º, ambos do CPC,185º, 186º nº 1 e nº 2º, al. d) e 189º, als. b), c), d) e e), todos do CIRE;”
Pede que seja concedido provimento ao presente recurso e, em consequência revogar-se a sentença recorrida, em conformidade com as conclusões supra expostas.
*
O M.P. apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

Pugna pela improcedência do recurso, mantendo-se a Sentença recorrida na íntegra e nos seus termos.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
O Tribunal a quo não proferiu o despacho previsto no artº. 617º, nº. 1, do C.P.C., mas não se considera tal pronuncia indispensável pelo que não se determina a baixa dos autos para o efeito (cfr. o nº. 5).
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.
  
Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:

-se a sentença é nula ao abrigo do artº. 615º, nº. 1, c) e/ou d), do C.P.C.;
-deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, passando a não provada a provada, e acrescentando-se a esse elenco o alegado em 10 a 16 e 21 in fine da oposição;
-se os factos apurados integram os pressupostos do conceito de insolvência culposa, ou seja, com base na alteração ou independentemente da mesma, se está verificado o preenchimento da situação prevista no artº. 186º, nº. 2, d), do CIRE, ou outra.
***
III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria (decisão que se reproduz, corrigindo o elenco das alíneas relativas à descrição dos prédios, colocando-as no local próprio):
“Factos Provados.

A) O insolvente era proprietário dos seguintes 27 bens imóveis:
a) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...52 - ... e inscrito com o artigo ...92º da UF ... e ...;
b) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...55 - ... e inscrito com o artigo ...80º da UF ... e ...;
c) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...56 - ... e inscrito com o artigo ...82º da UF ... e ...;
d) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...58 - ... e inscrito com o artigo ...12º da UF ... e ...;
e) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...61 - ... e inscrito com o artigo ...78º da UF ... e ...;
f) Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...15 - ... e inscrito com o artigo ...24º - U - ... e ...;
g) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 - ... e inscrito com o artigo ...76º da UF ... e ...;
h) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...20 - ... e inscrito com o artigo ...90º da UF ... e ...;
i) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...21 -... e inscrito com o artigo ...94º da UF ... e ...;
j) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...22 -... e inscrito com o artigo ...96º da UF ... e ...;
k) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...23 -... e inscrito com o artigo ...14º da UF ... e ...;
l) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...24 -... e inscrito com o artigo ...16º da UF ... e ...;
m) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...25 -... e inscrito com o artigo ...18º da UF ... e ...;
n) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...98 -... e inscrito com o artigo ...84º da UF ... e ...;
o) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 1799... e inscrito com o artigo ...86º da UF ... e ...;
p) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...00 ... e inscrito com o artigo ...88º da UF ... e ...;
q) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...01 -... e inscrito com o artigo ...98º da UF ... e ...;
r) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...02 -... e inscrito com o artigo ...00º da UF ... e ...;
s) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...03 -... e inscrito com o artigo ...02º da UF ... e ...;
t) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...04 -... e inscrito com o artigo ...04º da UF ... e ...;
u) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...05 - ... e inscrito com o artigo ...06º da UF ... e ...;
v) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...06 - ... e inscrito com o artigo ...08º da UF ... e ...;
w) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...07 - ... e inscrito com o artigo ...10º da UF ... e ...;
x) Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19 - ... e inscrito com o artigo ...72º da UF ... e ...;
y) Direito de ¼ sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...43 - ... e inscrito com o artigo ...44º da UF ... e ...;
z) Direito de ¼ sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...44 - ... e inscrito com o artigo ...99º da UF ... e ...;
aa) Direito de ¼ sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...45 - ... e inscrito com o artigo ...74º da UF ... e ...;
B) Os primeiros 24 bens imóveis aqui descritos foram adjudicados ao insolvente no âmbito da partilha que o mesmo fez com a sua ex-mulher; esta partilha encontra-se registada junto da competente conservatória do registo predial através da AP. ...86 de 2017/05/03 que abrange os primeiros 23 imóveis descritos (alíneas a) a w)) e da AP. ...99 de 2017/07/17 para o imóvel descrito sob a alínea x)
C) Em 8 de Janeiro de 2021, no âmbito do Processo de Execução nº 4342/18.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., os bens indicados nas alíneas y), z) e aa) foram adjudicados pelo valor total de Euros 2.450,65, à exequente. É exequente deste processo de execução a filha do devedor, EE, sendo que o insolvente foi citado do mesmo em 14 de Dezembro de 2018.
D) Já quanto aos restantes bens atrás referenciados, o insolvente, em 22 de Março de 2018, doou-os a terceiros, a saber:
a) Os bens identificados nas alíneas b), c), e), f), h), l), n), p) foram doados à sociedade “C..., Lda.”, conforme cópia da respectiva escritura que se junta no Anexo A;
b) Os bens identificados nas alíneas a), d), g), i), j), k), m), o), q), r) s), t), u), v), w) e x), foram doados conjuntamente aos seus três filhos EE, FF e GG, tendo sido constituída reserva de direito de uso e habitação sobre o prédio descrito na alínea a), conforme cópia da respectiva escritura que se junta no Anexo B.
E) Quanto à sociedade “C..., Lda.”, tem como sócios, HH, II, JJ e KK. Apurou-se ainda, em relação a estes sócios, que:
a) Na data da doação, a sócia HH era casada com o filho do insolvente, GG, sendo assim, nora do insolvente;
b) II, JJ e KK são filhos de HH e GG, logo, netos do insolvente.
F) O insolvente foi administrador das seguintes sociedades comerciais:
a) “K..., S.A.”, NIPC ...: foi administrador desta sociedade entre Dezembro de 2013 e 25 de Outubro de 2018;
b) “S... S.A.”, NIPC ...: foi administrador desta sociedade entre 26 de Maio de 2016 e 25 de Outubro de 2018; Estas duas sociedades comerciais foram declaradas em situação de insolvência:
a) “K..., S.A.”: foi declarada insolvente em 25 de Junho de 2019 no âmbito do processo nº 2603/19...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... - Juiz ... de ....
b) “S... S.A.”: foi declarada insolvente em 3 de Outubro de 2019 no âmbito do processo nº 2981/19...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... - Juiz ... de ....
G) Pela análise das reclamações de créditos apresentadas pelos credores “Instituto da Segurança Social, I.P.” (cuja cópia está junta no Anexo C) e “Autoridade Tributária” (cuja cópia está junta no Anexo D), constata-se que os créditos destes resultam da reversão contra o aqui insolvente, derivado da sua qualidade de administrador daquelas suas sociedades:
H) No caso do crédito do “Instituto da Segurança Social, I.P.” – Euros 3.851.882,06 – resulta exclusivamente da reversão da dívida da sociedade “K..., Lda.” relativamente a contribuições compreendidas entre Fevereiro de 2015 e Outubro de 2018;
I) No caso do crédito da “Autoridade Tributária” – Euros 805.215,07 –, diz respeito à reversão de dívidas daquelas duas sociedades de IRS, IVA e IRC dos anos de 2017 e 2018.
J) Com o avolumar das dívidas por créditos tributárias destas duas sociedades a partir do ano de 2015, era uma questão de tempo a que a Autoridade Tributária e o Instituto da Segurança Social iniciassem os respectivos procedimentos de reversão contra o devedor:
a) “K..., S.A.”:
a. Perante o Instituto da Segurança Social, o insolvente é citado da reversão:
L) Em 28 de Maio de 2019 no âmbito dos processos nº ...42 e apensos (Euros 3.403.060,10) e nº ...65 e apensos (Euros 1.013,03);
ii. Em 28 de Abril de 2022 é o devedor citado da reversão no âmbito do processo nº ...83 e apensos (Euros 91.514,21).
b. Perante a Autoridade Tributária, o insolvente é citado da reversão em 30 de Janeiro de 2019 no âmbito do processo com o nº ...41 e apensos (Euros 105.909,78).
b) “S... S.A.”:
a. Perante a Autoridade Tributária, o insolvente é citado da reversão em 10 de Abril de 2019 no âmbito dos seguintes processos:
i. Processo nº ...16 e apensos, pelo valor de Euros 196.352,73;
ii. Processo nº ...03 e apensos, pelo valor de Euros 203.372,23;
iii. Processo nº ...92 e apensos, pelo valor de Euros 173.936,45.
M) Através das duas doações realizadas em 22 de Março de 2018 o insolvente dispôs, de forma gratuita e sem qualquer tipo de contrapartida, do seu património (24 bens imóveis) a favor de entidades especialmente relacionadas consigo.
N) O único credor que viu satisfeito o seu crédito foi a sua filha EE, no âmbito do processo de execução nº 4342/18.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ... - Juiz ..., e no qual lhe foram adjudicados, em 8 de Janeiro de 2021, os bens imóveis acima descritos nas alíneas y), z) e aa).
O) Tais imóveis, apesar de estarem inscritos na respectiva matriz, não estavam descritos na conservatória do registo predial. Através das respectivas certidões permanentes destes três imóveis não se consegue aferir em que data é que os mesmos se tornaram propriedade do insolvente, uma vez que o primeiro registo que existe em cada um deles corresponde ao da penhora no âmbito do referido processo de execução, efectuado em 18 de Fevereiro de 2019.
P) O prejuízo causado aos credores pelo insolvente, através destas duas doações pode ser quantificado, em pelo menos, Euros 118.102,44, que corresponde à soma dos valores atribuídos aos 24 imóveis objecto das duas doações.
Q) O Insolvente, ora Opoente, encontra-se atualmente reformado e exerceu até à atribuição da sua reforma, funções como militar da Força Aérea.
R) É pessoa de 77 anos de idade,
S) É pai de GG – este o Administrador de facto das referidas sociedade – e, assumiu formalmente a qualidade de Administrador para cumprimento de requisitos formais societários.
T) O insolvente é divorciado, e em 2017, iniciou um relacionamento amoroso e passou a viver numa situação de união de facto.
U) Transmitiu à família que pretendia casar.
V) Tal, atento a substancial diferença de idades entre si e a namorada, gerou na família um grande desconforto e até desconfiança, relativamente às intenções daquela.
AA) O insolvente procedeu à emissão de uma letra no valor de € 100.000,00, que, por divergências e conflitos familiares que se prenderam com a nova namorada do ora opoente, veio a ser dada à execução, que deu origem ao processo de execução n.º 4342/18...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Execução ..., Juiz ....
BB) O crédito da Fazenda Nacional foi reconhecido pelo Sr. A.I. com a natureza de crédito privilegiado não tendo o mesmo sido impugnado.

Factos Não provados.
- Que as doações referidas tenham unicamente como causa o referido sob V).”
***
IV   MÉRITO DO RECURSO.

-NULIDADE DE SENTENÇA.

O recorrente sustenta a nulidade da decisão recorrida com base nas alíneas c) e d), do n.º 1, do artº. 615º, do C.P.C.. E invoca as seguintes razões:

- na motivação da sentença a quo defende-se a indemnização como efeito imperativo previsto no art. 189º, nº 2, al. e) do CIRE e, em respeito pelo princípio da proporcionalidade previsto no nº 4 do mesmo preceito legal, que o valor da indemnização “é desde já quantificável atento o facto provado em P) em € 118.102,44” e o dispositivo do mesmo aresto vem a condenar o recorrente a indemnizar os credores até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal e, ainda nos termos da al. e) do art. 189º do CIRE numa indemnização aos credores em montante que se fixa em € 118.102,44.”;
- o tribunal a quo não apreciou em toda a sua extensão e não exerceu pronúncia sobre os factos alegados em 10 a 16 e 21, in fine do articulado de oposição ao incidente de qualificação de insolvência de fls… dos autos, sobre os quais foi produzida prova testemunhal, capaz de afastar a culpa em que se funda a sentença em crise.
*
Enunciemos o regime aplicável.

Dispõe o art. 615º, nº 1, C.P.C. que é nula a sentença quando (destaque a negrito nosso):
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal “supra” citado; designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito –cfr. acórdãos desta Relação de 4/10/2018, relatoras Eugénia Cunha e Maria João Matos, respetivamente, publicados em www.dgsi.pt (como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte).
*
Disse Alberto dos Reis que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz” (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pag. 151). Já Remédio Marques quanto à ambiguidade da sentença diz que esta “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”. Quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença” (“Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3ª. edição, pag. 667).
Sintetizando, “obscuro” é o que não é compreensível; “ambíguo” é o que é suscetível de diferentes interpretações, que podem inclusive ter sentidos opostos.
“Em qualquer caso, fica o destinatário da decisão sem saber ao certo o que efetivamente se decidiu, ou quis decidir. Mas não é qualquer obscuridade, ou ambiguidade, que é sancionada com a nulidade do acórdão, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível” –cfr. Ac. desta Relação da Exmª Srª Desembargadora Drª Rosália Cunha, no processo 324/19.3T8BRG.G1.
A oposição ente os fundamentos e a decisão reporta-se a uma contradição lógica. Ou seja, toda a argumentação vai num sentido e a conclusão é oposta ou divergente deste. A oposição entre os fundamentos e a decisão consubstancia um vício da estrutura da decisão, o qual se manifesta na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso –cfr. o Ac. do STJ de 02/06/2016 (relatora Fernanda Isabel Pereira). Ocorre tal nulidade quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente –cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pags. 737 e 738, e Ac. da Rel. do Porto de 2/5/2016 (relator Correia Pinto).
Esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos artº. 154º e 607º, nºs. 3 e 4, C.P.C.; e, por outro lado, pelo facto da sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor), não ocorrendo essa nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se errou na indagação de tal norma ou da sua interpretação. –cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 9/7/2014 (relator Pedro Brighton).
Aplicando ao caso, tem razão o recorrente quando refere a incongruência verificada entre a motivação da decisão e o seu dispositivo, a primeira conduzindo na ponderação da culpa e da ilicitude com o dano, e numa razão de proporcionalidade, para efeitos da determinação do valor (concreto e já não genérico e no valor dos créditos não satisfeitos) referido na alínea e) do nº. 2 do artº. 189º, e condenando depois o insolvente a indemnizar os credores no valor de € 188.102,44; mas também constando do dispositivo “Condena-se o insolvente a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal.”, o que é incompatível e ilógico com tudo isso.
Ora, interpretando porém a condenação/dispositivo no seu contexto que resulta da dita motivação, só podemos concluir que esta menção a indemnizar os credores até ao montante dos créditos não satisfeitos, trata-se de um lapso de escrita, que não tinha nem se queria fazer constar.
Nessa medida, e embora careça de ser eliminada, o que se fará, não se declara a nulidade da decisão, por não ser isso que está em causa mas apenas um erro involuntário, facilmente ultrapassável.
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O vício da sentença decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º do C.P.C., designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença/acórdão.
Da conjugação das normas decorre que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras (cfr. Ac. desta Relação de 5/4/2018 (relatora Vera Sottomayor).
Porém questões não são factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9/2/2012 (relator Oliveira Mendes), segundo o qual “A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”
Dúvidas não há porém que o tribunal só pode apreciar questões que lhe forem suscitadas pelas partes (salvo as que forem de conhecimento oficioso e que o Tribunal entenda suscitar –cfr. Ac. do STJ de 20/3/2014, relatora Maria dos Prazeres Beleza) sob pena de, assim não sendo, cometer a nulidade no segmento inverso, ou seja, conhece de questões que não foram suscitadas.
Nesse sentido, o Tribunal tem de conhecer de “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º, 2ª edição, pág. 704).
Precisamente por isso, a falta de menção no elenco dos factos (provados) a matéria alegada e suposta ou alegadamente determinante ou influenciadora da decisão a proferir, não integra uma nulidade de sentença, mas antes um erro de julgamento suprível se for o caso com recurso ao disposto no artº. 640º, ou ao artº. 662º, nº. 2, c) do C.P.C..
Assim sendo, improcede a argumentação relativa à nulidade de sentença.
*
-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Cumpre começar por analisar se o recorrente cumpriu os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, nomeadamente se indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especifica na motivação os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indica na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressa na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156. 
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019, podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
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Mais uma vez aplicando ao caso, temos por adquirido pela leitura das conclusões de recurso que o recorrente pretende:
-se considere o facto considerado como não provado, ao invés, como provado;
-se inclua na matéria de facto provada o alegado nos artigos 10 a 16 e 21 in fine da sua oposição;

Mais motivou a sua pretensão, no primeiro caso com recurso ao depoimento de BB, no segmento que identifica; no segundo caso nos depoimentos de CC, DD, e de novo BB, destacando/localizando os respetivos trechos.
Nesse medida cumpriu formalmente os ónus processuais.
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Cabe enunciar os princípios a que, na nossa perspetiva, deve obedecer a reapreciação a fazer em sede de recurso.
A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº. 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do nº. 5 do artº. 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pag. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E a pags. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.  
Sintetizando a nossa posição, o Tribunal da Relação nesta sua função de reapreciação da decisão de facto não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal “a quo” encetado caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal “ad quem” não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O Ac. desta Relação de 29-10-2020 (relator Alcides Rodrigues) sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, recorrendo à doutrina -Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469- e jurisprudência -Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.- desta forma:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de apreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção -obtida com benefício da imediação e oralidade- apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Voltando ao artº. 607º, nº. 1, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
A prova visa o convencimento do juiz sobre a realidade dos factos –artº. 341º do C.C..

Essa prova não é, não tem de ser, a prova absoluta.
O tribunal aprecia livremente os meios de prova e o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. artºs. 346.º do C.C. e 414º do C.P.C.).
Diz-nos Luís Filipe Pires de Sousa (“Prova testemunhal”, 2014, pag. 384) que “O standard de prova deve operar como uma pauta móvel que tem de ser permanentemente concretizada ao ser aplicada ao caso concreto. Cremos que no nosso ordenamento jurídico será, pois, de aplicar, o standard da probabilidade prevalecente…Assim, no vulgar caso de cobrança de um crédito decorrente de compra e venda, na ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação ou na ação em que se discuta o cumprimento de um contrato de empreitada operará o standard da probabilidade lógica prevalecente desde que seja ultrapassado o limite mínimo de probabilidade(> ou = 0,51)…”.
Temos para nós que, como já decidimos no processo nº. 2568/18.... (ac. de 3/12/2020) e no processo nº. 967/19.... (ac. de 8/10/2020) “O grau de probabilidade exigido para que se dê como verificada determinada realidade de facto é de elevada probabilidade.”
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Antes de iniciarmos a análise da prova, centrem-nos na linha de raciocínio do recorrente: pretende este demonstrar que era alheio à administração das sociedades donde são originárias as dívidas da AT e da S.S. por via de reversão (independentemente da discussão que se mantém em torno da segunda), por isso desconhecia a sua existência à data das doações, as quais tiveram como motivação uma circunstância da sua vida pessoal.
Para efeitos de demonstração daquele alheamento pretende provar a sua postura omissiva nas sociedades, com base numa situação de “administração de favor”.
A matéria não provada (cujo sentido pretende alterar) consiste no seguinte: “- Que as doações referidas tenham unicamente como causa o referido sob V)”, ou seja (sendo o insolvente divorciado, e em 2017 tendo iniciado um relacionamento amoroso e passado a viver numa situação de união de facto, transmitiu à família que pretendia casar e) tal, atento a substancial diferença de idades entre si e a namorada, gerou na família um grande desconforto e até desconfiança, relativamente às intenções daquela.
Situamo-nos essencialmente ao nível da aferição da intenção do insolvente quando procuramos a causa (a sua motivação para) determinada atuação, matéria que não podendo ser objeto de prova direta, terá de ser revelada pelo contexto e factos apurados, permitindo a extração da respetiva ilação, o que mais não é do que a prova por presunção.
O artº. 349º do C.C. diz que “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”, e diz o artº. 351º do mesmo que “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”.
Conforme se precisou e considerou no Ac. da Rel. do Porto de 13/5/2021 (relator Joaquim Correia Gomes), com apelo à jurisprudência do STJ, não dizendo a lei como é que de um facto conhecido se pode extrair um facto desconhecido, e conforme (além de outros) do Ac. STJ de 10/1/2017 (relator António Joaquim Piçarra) “O uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos) (IV), precisando que “A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil) (V).”. De modo a precisar melhor este juízo de indução podemos estabelecer como seus critérios operativos consistentes a existência de uma carga forte, precisa, direta e concordante entre o facto conhecido (facto base) e o facto desconhecido (facto presumido). Para o efeito o facto conhecido deve ser suficientemente forte, apresentando-se verosímil e credível, sendo insuscetível de objeção, preciso, plenamente definido e concreto, não sendo suscetível de múltiplas interpretações, estando ambos os factos numa relação direta ou de proximidade, sendo ainda concordantes, ou seja, reciprocamente contíguos, não sendo desalinhados e muito menos contraditórios.
O Tribunal recorrido a propósito desta matéria disse: “Todavia e até pelo que se disse anteriormente, não é possível convergir na asserção de que apenas questões familiares influenciaram a decisão de doar os imóveis. Pois como se disse, o insolvente sabia ou deveria saber a situação financeira das sociedades das quais era também administrador, e das responsabilidades potenciais que sobre si poderiam recair.”
Significa isto que aquele juízo mostra-se “interrompido” por outros fatores relevantes, que lhe retiram aquelas características.
Podemos ainda discutir se estas premissas do Tribunal recorrido se mostram corretas.
E a nosso ver assim é. É verdade que temos a considerar a alínea S) da matéria assente e que não foi posta em causa, como realçado pelo recorrente: é pai de GG – este o Administrador de facto das referidas sociedade – e, assumiu formalmente a qualidade de Administrador para cumprimento de requisitos formais societários.
Todavia, não é pelo facto de ter assumido a função por uma questão “formal” que tal revela que desconhecesse ou fosse alheio e indiferente à vida societária. Igualmente nada nos diz que fosse pessoa “desinformada” (foi um militar da Força Aérea, dono de 27 prédios), em concreto e em geral.
Significa isto, que intercedendo contra aquela hipotética presunção outros fatores, ela não resulta dos factos apurados.
E portanto, não pode de forma alguma afirmar-se que as doações tiveram apenas aquele fito, ou mesmo que o tiveram, face ao que se dirá quanto á fragilidade da prova a esse propósito; muito pelo contrário, tudo indica que tiveram outra razão, nomeadamente os indicadores temporais como resulta dos factos e da motivação da sentença recorrida, e que se prendem não com as datas das citações para os processos mas as datas das dívidas das sociedades, precisamente porque o conhecimento deriva da sua posição na sociedade.
Ouvida a testemunha BB, com todo o respeito, não convence quando afirma o total e absoluto alheamento do recorrente relativamente à vida e às dívidas da sociedade, assinando de cruz, e inclusivamente dizendo que era tanta a confiança entre pai e filho (administrador de facto) que este lhe quis esconder os problemas da empresa (os quais desconhecia e dos quais não tinha consciência), o que para nós não é lógico. Queriam proteger…mas levam-no a assumir função com responsabilidade, funções essas de favor.
Já relativamente ao que em específico aqui está em causa, a testemunha situa a intenção de “passar” os bens para filhos e netos em 2010, mas refere que tal possibilidade só se dá com a partilha concretizada com a ex-mulher, a qual já não situou no tempo. Quanto ao relacionamento do recorrente, não sabe quando se iniciou, mas situa o seu conhecimento por parte da família em 2018, e afirma também que as transmissões se dão antes do recorrente saber dos problemas da sociedade (que aliás na sua visão nunca chegou a conhecer). Mais uma vez não logra convencer, pelos motivos já adiantados,

Daqui partimos então para a matéria alegada que se pretende aditar e que consiste no seguinte:

“10. Sucede que, apesar de figurar como Administrador das referidas sociedades nos períodos “supra” referidos, o Opoente, nunca exerceu qualquer tipo de funções nestas,
11. nunca auferiu qualquer salário, nem recebeu qualquer montante das referidas sociedades,
12. não contratou empregados,
13. não estabeleceu qualquer contacto com os clientes das referidas sociedades clientes,
14. nem praticou qualquer ato de gerência/administração das mesmas,
15. nunca apôs a sua assinatura em cheques, declarações de rendimentos ou documento que de qualquer forma vinculasse a sociedade executada principal.
16. Desconhecendo, assim, por completo, a situação das referidas sociedades e, como tal, da existência de passivos e incumprimento de responsabilidades.
21. in fine “…sendo o Insolvente totalmente alheio às práticas e vida societárias.”

Se aquela testemunha não convenceu no que ficou dito, ouviu-se a restante prova produzida, de maneira a verificar se a mesma foi confirmatória, e nomeadamente se dá sustento à restante factualidade aqui em causa.
Frisando as testemunhas CC e DD, aludidas pelo recorrente, mas tendo-se ouvido também a testemunha LL, de notar que apenas esta última aludiu à intenção já anterior de dividir os bens pelos filhos, situação impedida pelo divórcio e antecedentes da partilha, mas nenhuma testemunha fez alusão ao suposto relacionamento do recorrente que teria despoletado as doações, pelo contrário, esta última testemunha mencionou outra(s) motivação.
Por outro lado, as duas primeiras procuraram também transmitir um total alheamento do recorrente relativamente a tudo que dissesse respeito às sociedades, mas a presença do recorrente era um facto, já que, sendo ambos contabilistas das empresas, conheciam e lidavam com o recorrente, a quem davam documentos para assinar; aliás, disse o segundo que o recorrente até aparecia por lá para almoçar; disse o primeiro que não aparecia, não fazia nada, não tinha conhecimento das contas ou das dificuldades, não tem noção nenhuma. Nunca perguntava nada, confiava no filho, não tomou conhecimento das insolvências, disse mesmo o primeiro que ainda hoje não deve saber; disse o segundo que em algum momento deve ter sabido; mais uma vez o primeiro disse que acha que ele nem as cartas recebia. Nada sabiam das doações.
Ora, nada disto é coerente com juízos de experiência comum. Para além das testemunhas não poderem saber o que se passava ou conversava entre pai e filho ou até entre a família, é contraditório afiançar uma confiança “cega” do pai no filho, e tudo se ter passado sem que o recorrente estivesse ou fosse posto ao corrente, sendo mesmo praticamente “enganado” sobre o estado das ditas sociedades. Não é verosímil que uma pessoa, e nomeadamente o recorrente, não saiba as responsabilidades que implica a gerência ou administração. Não é coerente que que pessoa tão desinformada como querem fazer passar, tivesse o discernimento (vontade e ação) de doar os prédios para salvaguardar de um suposto novo relacionamento, como através da testemunha BB se pretendeu passar. E se quanto ao desconhecimento da situação não lograram convencer, quando ao tipo ou modo de participação do recorrente na vida das sociedades muito menos, já que se na sua função de contabilistas lhe davam “papéis” para assinar, não podem afiançar porque certamente desconhecem se isso também sucedida noutras matérias, que tipo de participação era solicitada ao recorrente, que tipo de disposição exercia.
Ouviu-se ainda o AI que explicou o sentido do seu parecer. Basicamente ele parte do princípio de que um administrador é conhecedor do estado das sociedades respetivas, pelo que, reconhecendo que as citações nos processos de reversão ocorreram após as doações, entendeu que a insolvência deve ser qualificada de culposa. Não averiguou se esse conhecimento existia ou não existia. Relativamente à suposta motivação do ato, referiu que em Assembleia de credores foi-lhe dada a explicação relativa ao novo relacionamento do devedor.
O ónus da prova desta matéria cabia ao recorrente de acordo com o artº. 342º, nº. 2, do C.C., e face ao exposto entendemos que não logrou alcançar, de acordo com um juízo até de mera probabilidade (que não seria o bastante), tal desiderato. 
Mantemo-nos portanto na ignorância sobre as reais intenções e posições de pai e filho nas mesmas sociedades.
O administrador de uma sociedade não pode resguardar-se no administrador de facto para alegar desconhecimento da vida da sociedade (salvo casos de erro/engano alegado e provado de forma inequívoca) ou se eximir das consequências que advêm dessa posição. É algo inerente à posição de gerente de direito a condução de um determinado património, a direção ou governo da empresa, a gestão dos seus bens ou negócios, em sede fatual caberia a esse administrador alegar e provar algo de “estranho” a essa relação que levasse a diferente conjetura. Não estamos aqui a aplicar um juízo presuntivo, mas uma regra decorrente da normalidade das coisas e de juízos de experiência comum.
De qualquer modo nesta sede não estamos em contencioso tributário em que, para exercício do direito de reversão, cabe à entidade em causa o ónus da prova da “gerência de facto” para além de direito (cfr. Acs. do Trib. Central Administrativo Norte de 10/11/2016, e do Sul de 9/7/2020, de 3/12/2020, de 15/12/2021, de 26/5/2022, 11/1/2023, entre outros). Nessas situações a exigência será outra.
Também não estamos a apreciar a conduta do recorrente –pessoa singular declarada insolvente- enquanto administrador de direito de sociedades declaradas insolventes. Se assim fosse, bastaria a qualidade de administrador de direito (cfr. por todos Acs. da Rel. do Porto de de 6/9/2021 (relatora Eugénia Cunha), e desta Rel. de 21/5/2020 (relatado por Anizabel Sousa Pereira e em que a aqui relatora teve intervenção como segunda adjunta).
O que teremos de verificar é se a alínea d) do artº. 186º, nº. 2, CIRE, que foi a justificadora da qualificação da insolvência como culposa neste caso, se aplica a pessoa singular –cfr. o nº. 4. E nesse caso se a conduta está verificada.
Estamos em sede de incidente de qualificação, em que, para além da situação prevista no artº. 186º, nº. 1 que exige a prova efetiva dos pressupostos previstos, a lei tipifica determinadas condutas e, verificadas, cabe ao visado/requerido afastar a presunção de culpa, mas também, caso se trate de conduta prevista no nº. 2 do artº. 186º, da existência da causalidade entre a atuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, como melhor desenvolveremos em sede de aplicação do direito, e se tal fosse possível –o que remete para a natureza das presunções legais.
Como veremos, no caso da conduta integrar uma das previstas no artº. 186º, nº. 2, a presunção -de culpa e da existência da causalidade entre a atuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência- é inilidível, pelo que no caso concreto seria de facto inútil a tentativa de qualquer prova desta matéria, incluindo a matéria considerada não provada na sentença –só interessaria para efeitos de consideração/aplicação do nº. 1, mas teríamos de ter antes de mais factos donde decorresse a prova da culpa, pela positiva; ou caso se entendesse que a presunção era, ao invés, ilidível, posição cuja defesa desconhecemos.
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Pelo exposto o resultado da impugnação da matéria de facto é a sua improcedência.
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-DECISÃO DE DIREITO.

Neste como noutros casos, e porque se justifica face á apreciação que se impõe, iremos iniciar a abordagem reproduzindo a parte introdutória que consta do Acórdão proferido no processo 5474/17.8T8VNF-B.G1 (mesma relatora), e atendendo a que entretanto o regime foi alterado pela Lei nº. 9/2022 de 11/1, atualizando o que então dissemos. Repetiremos também o que já abordamos supra no que respeita às presunções legais, agora de forma enquadrada.
O incidente de qualificação da insolvência que, como resulta do artº. 185º, do CIRE, pode ser qualificada como culposa ou fortuita, seguindo de perto o Ac. desta Relação de 5/3/2020 (wwwdgsi.pt).
Este incidente constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor (Ac. da Rel. do Porto de 23/4/2018, relator Miguel Baldaia de Morais, www.dgsi.pt).
O artº. 186º do CIRE define os casos de insolvência culposa, pelo que a noção de insolvência fortuita vai resultar por exclusão de partes: é fortuita a insolvência que não se possa qualificar como culposa à luz dos critérios definidos no artº. 186º, do CIRE.

A redação atual deste artigo é a seguinte:

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação economia do insolvente.
Resulta assim do nº. 1 do artigo a definição de insolvência culposa (que se aplica quer à pessoa coletiva, quer á pessoa singular); os seus requisitos –cumulativos- são:
1) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Nas alíneas a) a i), do seu nº. 2, tipificam-se taxativamente um conjunto de situações que quando se verifiquem integram uma presunção iuris et de iure (absolutas) de que a insolvência é culposa. Aplicam-se a pessoas singulares, na hipótese ou situação do nº. 4.

Conforme se disse no Ac. desta Relação de 5/3/2020 (relatora Rosália Cunha, www.dgsi.pt) “Bem se compreende que assim seja pois aí se elenca uma série de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, justificando-se, por isso, que se estabeleça uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa quando tais comportamentos se verifiquem.”
Significa isto que, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa -Acs. da Rel. de Guimarães de 29/6/2010 e 1/6/2017, e de 5/3/2020, dgsi.pt. Como se diz no segundo citado “Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil. Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência. Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE.”. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 15/2/2018 (relator José Rainho, www.dgsi.pt).
Já no caso do nº. 3 do mesmo artigo estamos perante situações de presunção iuris tantum de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas alíneas a) e b), com aplicação apenas às pessoas coletivas (salva a hipótese do nº. 4).
Estas presunções são ilidíveis mediante prova em contrário –artº. 350º, nº. 2, do C.C..
Conforme Ac. desta Relação de 29/6/2010 (relatora Rosa Tching, www.dgsi.pt) “Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente. Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. E bem se compreende, nestas situações, a necessidade de verificação deste requisito, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram. É que o administrador ou gerente pode ter atuado com culpa grave mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da situação de insolvência”.
Consagra-se aqui uma “cláusula geral aberta”, nas palavras de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pag. 508); e a mesma, exige, “para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência” -Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª edição, Almedina, 2011, pag. 283 a 284.
São por isso e em suma requisitos cumulativos da qualificação de uma insolvência como culposa: o facto inerente à atuação, por ação ou por omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; a ilicitude desse comportamento; a culpa qualificada do seu autor (dolo ou culpa grave); e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. –Ac desta Rel. de 1/2/2018, com exaustiva e cuidada análise da questão das presunções previstas (www.dgsi.pt).”.
Veja-se ainda, mais recente, sobre igual tema o Ac. desta Relação de 9/7/2020 (relator José Alberto Moreira Dias).
A introdução da expressão “unicamente” no nº. 3 do artº. 186º, alteração operada pela lei referida, veio consagrar a posição de que demos nota e que já perfilhávamos (e assumida também na sentença recorrida), de que “apenas” se presume a culpa grave, mas não o nexo causal (ou a “insolvência culposa”), pelo que a alteração legislativa neste item não interfere com a nossa decisão –cfr. Ac. da Rel. de Coimbra, de 14/6/2022 (relator Paulo Correia).
*
Incide o recurso na ausência do elemento subjetivo.
Muito embora o sucesso da sua pretensão assentasse na procedência da vertente recursória relativa à impugnação da matéria de facto, o que não se verificou, impõe-se o respetivo enquadramento.
Independentemente da ponderação das restantes situações que aqui não vêm ao caso, o Tribunal recorrido entendeu que a alínea d) do nº. 2 do artº. 186º do CIRE se aplica indubitavelmente a pessoas singulares declaradas insolventes.
Efetivamente, conforme também aí citado, é a posição defendida por Menezes Leitão “Direito da Insolvência”, pags. 287 e 288 da 9ª edição), em que só afasta da aplicação às pessoas singulares a previsão da alínea e) do nº. 2.
Face ao nº. 4 do artigo, quanto ao devedor singular, não há dúvida que se aplica a noção geral de insolvência culposa prevista no n.º 1, só se aplicando as alíneas dos n.ºs 2 e 3 do mesmo (desenhadas para pessoas coletivas e por referência a comportamentos dos seus administradores de direito ou de facto) nos termos da ressalva daquele nº. 4, ou seja, com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade de situações.
Significa isto que a qualificação da insolvência como culposa ou fortuita apenas depende da verificação de um comportamento enquadrável na noção geral contida no nº. 1 do artº. 186º e/ou das presunções do nº. 2, atendendo às circunstâncias do caso. Importa, pois, apurar se, in casu, é possível imputar ao insolvente uma atuação dolosa ou com culpa grave, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra (segundo o critério plasmado no nº. 1, do artº. 186º, do CIRE) ou, ainda, se a situação é enquadrável em alguma das alíneas do nº. 2, daquele artigo –seguimos aqui o raciocínio explanado no Ac. desta Rel. de 1/10/2013 (relatora Maria da Purificação Carvalho). Em igual sentido o Ac. da Rel. de Lisboa de 8/11/2011 (relatora Maria do Rosário Morgado).
Quanto à alínea d) do nº. 2, já nos pronunciamos sobre o seu alcance nomeadamente no processo nº. 5451/18.1T8VNF-A.G1, Ac. de 18/3/2021. Reproduzimos aqui parte da citação do Ac. desta Rel. de 9/7/2020 (relator José Alberto Moreira Dias) ali também feita.
“E relativamente à alínea d), o que aí se prevê são atos de disposição (por exemplo, venda) de bens do devedor em proveito pessoal dos administradores, de direito ou de facto, ou de terceiros.
E conforme Ac. da Rel. de Coimbra “supra” citado, “Para estes efeitos, devem considerar-se “actos de disposição” tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação de bens) como os que, não implicando necessariamente tal saída, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade deles, colocando-os na disponibilidade de outrem. Cita-se em abono desta interpretação o Acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7352/15.4T8VNG-A, publicado em www.dgsi.pt onde se escreveu: “a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos”. É certo, entretanto, que para os fins em presença só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber)”.
A exigência feita na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores (de direito ou de facto) ou de terceiros serve para excluir do alcance da norma os actos de disposição que “produzam uma perda absoluta do direito, ou seja, a extinção do direito sem que lhe corresponda qualquer aquisição” [seguimos neste aspecto o entendimento de Pedro Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, Volume II, Livraria Almedina, Coimbra 1968, página 220, a propósito do conceito de actos onerosos constante do artigo 1202º, alínea d) do Código de Processo Civil de 1961, que se presumiam celebrados de má-fé].
Interpretada com o sentido e o alcance acabados de expor, a alínea d) compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores de facto ou para um terceiro.”
Cremos que a nota que distingue a ação de ocultação no sentido jurídico da alínea a), da conduta prevista na alínea d), é a forma sub-reptícia como a transferência é feita na primeira (“camuflado” por atos jurídicos simulados), enquanto que na alínea d) haverá uma qualquer conduta “visível”, para além da questão do proveito pessoal ou de terceiros.
Relativamente à interpretação das alíneas a) e d) no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/05/2013 (www.dgsi.pt), diz-se em relação à primeira que “a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho…” E no Ac. da Rel. do Porto de 7/12/2016 (www.dgsi.pt) diz que “No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.”

Aplicando ao caso, o devedor/insolvente realizou negócios de doação relativamente aos seus prédios, já excluídos os adjudicados em execução cfr. alíneas D) e M). E fê-lo a favor de terceiros, sendo estes os seus filhos, nora e netos, beneficiados com a doação, ao invés de os manter para assegurar as suas responsabilidades, o que remete também para a consideração da alínea f) do mesmo nº. 2 (não obstante esta alínea poder inculcar a ideia de que o bem permanecerá na esfera jurídica do devedor, o que não é o caso). Fê-lo no período de 3 anos que antecede o início do processo de insolvência. Face ao valor dos prédios em questão –alínea P) dos factos- decorre o ato prejudicial para o seu património.
Cremos que a matéria fatual é esclarecedora e enquadrável pelo menos na citada alínea d), pelo que resultam verificados, sem mais, por força das presunções vigentes (incluindo portanto o elemento subjetivo), os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa.
Reiteramos que aqui não se discutem os créditos, sendo que o da AT está reconhecido. Por isso falecem os argumentos do recorrente a tal respeitantes, nomeadamente a invocada ilegitimidade do mesmo recorrente (bem como a invocada violação de artigos atinentes à legislação tributária). 
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O recorrente não coloca em crise nenhum outro segmento da sentença, nomeadamente a sua parte “condenatória”, pelo que nada mais há a apreciar –cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, do C.P.C., que delimitam o âmbito da apreciação do recurso (-diz Abrantes Geraldes na obra citada a pag.s 147 que “Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial.”; exercem por isso as conclusões a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do nº. 3 do artº. 635º). Efetivamente não basta a mera referência conclusiva à violação do artº. 189º b), c), d) e e), sem qualquer motivação, para se entender que de algum modo está a sindicar a decisão proferida a coberto dessas normas.
Improcede por isso integralmente o recurso.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do requerido AA totalmente improcedente, e em consequência, negam provimento à apelação, mantendo a sentença recorrida, eliminando-se a menção no dispositivo à “condenação do insolvente a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos uma vez que se trata de insolvência pessoal” por se tratar de lapso.
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Custas a cargo do recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 11 de maio de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)