INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRORROGAÇÃO DO PRAZO DO PERÍODO DE CESSÃO
IMPULSO PROCESSUAL
Sumário


I - Até à alteração que foi promovida pela Lei nº9/2022, de 11/01, o C.I.R.E. não continha qualquer preceito legal permitisse a prorrogação do período de cessão.
II - Tal possibilidade foi legalmente consagrada pela alteração decorrente da Lei nº9/2022, que aditou ao C.I.R.E., o art. 242ºA, sob a epígrafe «prorrogação do período cessão.
III - Resulta dos nºs.1 e 2 deste normativo que o incidente de prorrogação do período de cessão está sujeito ao impulso processual do devedor (insolvente), dos credores, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções), ou do fiduciário (caso este tenha sido incumbido pela assembleia de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor), os quais devem iniciar este incidente através da apresentação de «requerimento fundamentado», donde resulta que não pode ser oficiosamente promovido pelo Juiz (mesmo apesar de ser a este que compete a decisão de prorrogar ou não o período de cessão). Portanto, o Legislador consagrou aqui um regime de impulso processual idêntico ao do incidente (procedimento) de cessação antecipada da exoneração do passivo restante (art. 243º/1 do C.I.R.E.).
IV - O Tribunal não tem legitimidade para, oficiosamente, proferir uma decisão de prorrogação do período de cessão, nos termos do nº1 do art. 242ºA do C.I.R.E., pelo que, caso o faça, viola o princípio do dispositivo e a respectiva decisão é ilegal.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,

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1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada
     

Por sentença proferida em 07/05/2015, a Requerente AA foi declarada insolvente.
Na data 24/04/2017, foi proferido o seguinte despacho (que aqui se transcreve parcialmente):
“…, nos termos do art. 239º do CIRE, o Tribunal determina que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente – AA – que venha a auferir, i.e., todos os rendimentos que advenham à insolvente, com exclusão dos previstos nas al.s a) e b) do n.°3 do art. 239.°, se considera cedido ao Sr. Administrador de Insolvência destes autos, na qualidade de fiduciário, durante o período de cessão - os referidos cinco anos após o encerramento do processo-, ficando a insolvente obrigado a observar as imposições previstas no n.° 4 do art. 239.° do CIRE.
Atendendo às condições familiares e sociais alegadas e que não foram contraditadas por qualquer credor, sendo que a insolvente é solteira, não tem filhos a cargo, não paga renda de casa, fixa-se à insolvente o rendimento disponível todo aquele que exceder o valor de um salário mínimo nacional, multiplicado por doze meses, iniciando-se com a decisão do encerramento do processo…”.
Na data 26/02/2019, foi proferido o seguinte despacho:
“Fls 5,94 e ss e 117: A insolvente AA foi notificada pelo senhor fiduciário para lhe entregar em vinte dias toda a documentação necessária à elaboração do relatório a que se reporta o artigo 240º, nº2 CIRE, sob pena de lhe ser cessado antecipadamente o benefício da exoneração do passivo restante. Nada disse.
Posteriormente, foi por nós ordenada a notificação da insolvente, do fiduciário e dos credores para se pronunciarem sobre a cessação antecipada do benefício da exoneração do passivo restante à insolvente. A insolvente mais uma vez nada disse.
Cumpre decidir.
Efetivamente, a insolvente não só não prestou quaisquer informações ao fiduciário, nem ao tribunal como nada veio dizer aos autos.
Nos termos do artigo 239º, nº4, alínea c) CIRE durante o período de cessão o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Por sua vez o artigo 243º, nº1, alínea a) CIRE dispõe que antes ainda de terminado o período de cessão deve o juiz recusar a exoneração a pedido fundamentado de um dos credores quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Ora, no caso em apreço, a insolvente foi notificado para fornecer ao senhor fiduciário a quantia a ceder e cópia dos seus recibos de vencimento desde julho de 2017 até aquela data, cópia das declarações de IRS dos anos de 2016 e 2017 e cópia da nota de liquidação de IRS referente aos anos de 2016 e 2017 em cinco dias.
Não o fez no prazo concedido, nem posteriormente, nada vindo dizer ao tribunal, pondo assim em risco a vigilância do tribunal sobre os montantes a ceder, que seriam depois distribuídos pelos credores. Agiu, assim, de forma gravemente negligente.
Desta forma, verificando-se os pressupostos acima elencados, declaro antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante à insolvente AA”.

Na data de 17/02/2022, a Insolvente apresentou requerimento no qual consignou (para além do mais):
“a) Estão reunidas condições para se reconhecer que o Advogado BB, a apesar da procuração forense que lhe foi outorgada, agiu sem poderes de representação ou, pelo menos, em abuso desses poderes – é o que deve decretar-se.
b) Consequentemente, a actuação – por actos e omissões – do Advogado BB nos autos não vincula a Requerente, já que esses actos e omissões são ineficazes e, no caso vertente, de nenhum efeito – é o que deve decretar-se.
c) Por via disso, toda a tramitação que se desenvolveu depois da prolação do despacho de 24/4/2017, expressando um encadeado de actos que têm como pressuposto a inobservância do que foi determinado naquele despacho, deve ser dada sem efeito, precisamente porque tudo é consequência directa da actuação do Advogado BB, mandatário apenas aparente – é o que deve decretar-se.
d) Reconhecido o que antecede, e estando agora a Requerente devidamente patrocinada, deverá a mesma ser notificada do despacho de 24/4/2017, de modo que possa agir em conformidade – é o que deve decretar-se.
e) Dado que a Requerente se declara em condições de cumprir perante o fiduciário tudo quanto foi determinado no despacho de 24/4/2017 – e só não foi cumprido em tempo por razões exclusivamente imputáveis à actuação do Advogado BB –, deverá ser assinalado à Requerente um prazo para o efeito – é o que deve decretar-se.
f) Em face desse cumprimento da Requerente, a situação dos autos passará a ser a que teríamos hoje, se o Advogado BB não tivesse tido a actuação acima apurada – é o que deve proporcionar-se.
g) Daqui em diante, restará à Requerente continuar a dar cumprimento ao despacho de 24/4/2017, até ao momento em que deva ser proferido o despacho previsto no art. 244º do CIRE – é o que deve proporcionar-se…”.
Na data 28/02/2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Req 17-2: Não se vislumbra qualquer fundamento legal para dar sem efeito tramitação dos autos, nomeadamente a ausência de poderes de representação.
Contudo, notifique os credores e o fiduciário do requerido para se pronunciarem, querendo”.
Notificados, nenhum dos credores se pronunciou.
Notificado, através de requerimento datado de 05/04/2022, o Fiduciário informou:
“… que nada tem a opor à reversão do despacho que encerrou o processo de exoneração do passivo restante e extinguiu o benefício legal atribuído à insolvente.
Esta posição do administrador fundamenta-se na apreciação pessoal que nutre pela insolvente, que pretende pagar de imediato os valores em dívida, e na óbvia consideração dos interesses dos credores que, desta forma, vêem aumentado o valor disponível para rateio…”.
Na data 25/05/2022, foi proferido o seguinte despacho: “Perante a posição manifestada pelo fiduciário por requerimento de 5-4, e a não oposição dos credores, notifique o fiduciário para informar os autos qual seria o rendimento de cessão a ceder pela insolvente nos três anos de cessão em causa”.
Notificado, através de requerimento datado de 22/06/2022, o Fiduciário informou que “… de acordo com a documentação enviada pela fiduciada, que se anexa, o montante total é de 59.670,06 euros, conforme tabela que se seguir se apresenta:
…”.
Na data de 29/06/2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Perante a não oposição dos credores e do fiduciário e de forma a dar uma última oportunidade à insolvente, que manifesta agora vontade de cumprir com as suas obrigações, dou sem efeito a cessação do incidente de exoneração e renovo por mais três anos o período de cessão, durante o qual a insolvente terá de entregar não só o montante em falta à fidúcia como os que se vierem a vencer consoante o seu rendimento mensal pois mantêm-se todas as obrigações que sobre si impendem durante o período de cessão”.
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1.2. Do Recurso da Insolvente

Inconformada com este despacho, a Insolvente interpôs recurso de apelação, pedindo que «seja reformulado o despacho recorrido», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“1. O presente recurso tem por objecto o despacho proferido em 29/6/2022, na parte em que, do mesmo passo, declara a renovação do período de cessão por três anos, determina a entrega do montante em falta à fidúcia e mais determina a entrega dos montantes que se vierem a vencer.
2. O referido despacho de 29/6/2022 tem uma vertente decisória nuclear que consiste em dar sem efeito a cessação do incidente de exoneração.
3. Nessa parte, o referido despacho reverteu aquilo que fora preteritamente decretado por despacho de 26/2/2019.
4. A partir da referida vertente decisória, impunha-se que o Tribunal fixasse as consequências inerentes, tendo ao seu dispor duas possibilidades.
5. A primeira possibilidade seria a de repristinar o regime que se iniciou pelo despacho previsto no art. 239º do CIRE, proferido em 24/4/2017, caso em que a solução seria determinar que a ora Recorrente entregasse ao fiduciário o valor já calculado nos autos.
6. A segunda possibilidade seria a de reconduzir o segmento não impugnado do despacho sob recurso a um (novo) início do procedimento de exoneração, caso em que deteria ser imposta à Recorrente a cessão do rendimento disponível por 3 anos, com início no mês subsequente ao despacho recorrido.
7. Apesar disso, embora sem qualquer fundamentação em abono dessa via, o Tribunal optou por uma solução que tanto repristina os efeitos correspondentes à primeira possibilidade como também aplica os efeitos relativos à segunda possibilidade.
8. É incompreensível aquilo que parece resultar do mero teor literal dos segmentos impugnados do despacho em apreço.
9. O despacho em apreço padece de total falta de fundamentação jurídica, o que é fonte de nulidade do mesmo despacho, nos termos do disposto na al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC, aplicável ex vi nº 3 do art. 613º do CPC.
10. O despacho em apreço padece de ambiguidade e mesmo de obscuridade, levando a que não consiga perceber-se o sentido exacto daquilo que o Tribunal determina, o que é fonte de nulidade do mesmo, nos termos do disposto na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, aplicável ex vi nº 3 do art. 613º do CPC.
11. Se o entendimento do Tribunal sobre a questão é mesmo o de sujeitar a ora Recorrente a um período de 8 anos de cessão do rendimento disponível, impondo que esta entregue os valores vencidos durante 5 anos contados desde o despacho proferido em 24/4/2017 e os valores vincendos durante 3 anos contados desde o despacho recorrido, proferido em 29/6/2022, estamos perante um despacho ilegal, porque proferido contra legem, proferido sem qualquer suporte legal.
12. A boa fé processual e a lealdade para com os credores levam a reconhecer que, em termos de efeitos, a solução mais adequada e justa é a que corresponde à primeira possibilidade acima enunciada.
13. O despacho sob recurso deverá ser reformulado em termos de passar a ter seguinte redacção: “Perante a não oposição dos credores e do fiduciário e de forma a dar uma última oportunidade à insolvente, que manifesta agora vontade de cumprir com as suas obrigações, dou sem efeito a cessação do incidente da exoneração e determino que a insolvente entregue à fidúcia o valor já calculado de 59.670,06 euros, correspondente ao rendimento de cessão no período de cinco anos decorrido após a prolação do despacho de
24/4/2017”.
14. Mostra-se violado o disposto no art. 239º do CIRE, em qualquer das suas versões”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso interposto pela Insolvente, são duas as questões a apreciar e a decidir:
1) Se a decisão recorrida padece de nulidade processual em razão de «falta de fundamentação de direito» e/ou de «ambiguidade e obscuridade»;
2) E se, tendo determinado a “repristinação” do despacho inicial de exoneração, o Tribunal a quo podia fazer acrescer, ao período inicial de cessão de 5 anos, uma “prorrogação” por mais 3 anos desse período.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Nulidade do Despacho Recorrido
Importa ter presente que as nulidades da decisão (sentença, ou, como no caso em apreço, despacho) constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respectiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo, ou nem mesmo com as nulidades de processo (art. 195º do C.P.Civil de 2013).
Como se explica no Ac. desta RG de 17/12/2018[3], “Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronúncia ultra petitum. Trata-se de vícios que «afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)» (Abílio Neto,… Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001…”.
Prescreve o art. 615º do C.P.Civil de 2013[4] (relativamente à sentença mas que também é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal):“1 - É nula a sentença quando:… b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;…”.
A causa de nulidade prevista na alínea b) está directamente conexionada com a obrigação de fundamentação especificamente imposta no nº3 do art. 607º (“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”) e com a obrigação geral de fundamentação imposta no nº1 do art. 154º (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”), ambos do C.P.Civil de 2013.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui mesmo uma condição da sua própria legitimação (estatui o art. 205º/1 da C.R.Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”) e da verificação de um processo equitativo (exigência esta que decorre, no plano do direito fundamental internacional, do disposto no art. 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, e no art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, a nível constitucional, do estipulado no art. 20º/4 da C.R.Portuguesa).

Explicava Alberto dos Reis[5] que “A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser. Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça. A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge”.

Esta causa de nulidade da sentença, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, como tem sido unanimemente defendido pela Doutrina. Entre outros:
 - explicam A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil[6] que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”;
- ensinava Alberto os Reis[7] que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”;
- referia Rodrigues Bastos[8] que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”
- afirma Teixeira de Sousa[9] que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciaiso dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo…  e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão… a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”;
- e concretiza Tomé Gomes[10] que “a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores têm considerado, de forma unânime, que esta nulidade apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta: entre outros, refere-se o Ac. do STJ de 15/05/2019[11] (“Para que se verifique a nulidade de falta de fundamentação prescrita no art. 615, nº 1, al, b), do CPC, não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”), o Ac. do STJ de 02/03/2021[12] (“Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”) e o Ac. desta RG de 17/11/2004[13] (no qual se refere “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art. 668º nº1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso… Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito”).
Em resumo: uma situação é a sentença, não estar motivada ou fundamentada e outra é essa motivação ou fundamentação ser deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente, sendo que a primeira configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 e a segunda (“apenas”) configura uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito (não produzindo qualquer nulidade da sentença, somente “enfraquecendo” o seu valor doutrinal e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou modificada em sede recurso). E podemos deixar assente ser esta a única interpretação legalmente admissível do normativo em causa.
Tal interpretação tem, aliás, inteira aplicação aos despachos: como se decidiu no Ac. desta RG de 21/05/2015[14], “É nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido”.
Já a causa de nulidade prevista na 2ªparte na alínea c) verifica-se quando a decisão revela obscuridade (isto é, quando contém algum segmento, passo ou percurso cujo sentido não seja compreensível, entendível ou atingível), ou quando se mostra ambígua (ou seja, quando algum segmento ou passagem provoque interpretações de sentido distinto).
Como resulta dos ensinamentos de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[15], esta causa de nulidade verificar-se-á “sempre que algum trecho essencial da sentença seja obscuro (por ser ininteligível o pensamento do julgador) ou ambíguo (por comportar dois ou mais sentidos distintos)”.
Já Remédio Marques[16] realça que “a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”, e que “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”.
Atente-se que, como se explica no Ac. do STJ de 20/05/2021[17], «A ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível «quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar»” (o sublinhado é nosso).
Em sede de recurso, a Insolvente/Recorrente defende que «o despacho em apreço padece de total falta de fundamentação jurídica e padece de ambiguidade e mesmo de obscuridade, levando a que não consiga perceber-se o sentido exacto daquilo que o Tribunal determina» (cfr. conclusões 9ª e 10ª).
Após este Tribunal ad quem ter determinado a baixa dos autos à 1ªinstância para ser dado cumprimento ao disposto no art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013, o Tribunal a quo pronunciou-se no sentido de que “…não vislumbramos, nomeadamente a nulidade por falta de fundamentação e a ambiguidade e obscuridade do despacho, sendo certo que o despacho recorrido visou apenas dar uma oportunidade à insolvente de cumprir com as suas obrigações entregando à fidúcia a quantia em falta de € 59.670,06- apesar de nada ter entregue durante o período de cessão decorrido- usando da prerrogativa do artigo 242º-A CIRE pelo pelo período máximo possível de forma a permitir a entrega do elevado montante em falta”.
Importa começar por frisar que, atento o disposto no nº4 do mesmo art. 615º (“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”), dúvidas não existem que, cabendo recurso do despacho ora impugnado, tais nulidades deviam e tinham que ser invocadas em sede de recurso. 
Quanto à arguição da nulidade prevista na alínea b).
Decorre da mera análise da decisão recorrida que a mesma não contém a indicação de qualquer norma jurídica para se sustentar. Mas tal não implica, automaticamente, a sua nulidade.
Importa ter presente que a decisão recorrida apreciou e decidiu a pretensão formulada pela Insolvente, no seu requerimento de 17/02/2022, na parte que consiste em «e) Dado que a Requerente se declara em condições de cumprir perante o fiduciário tudo quanto foi determinado no despacho de 24/4/2017 – e só não foi cumprido em tempo por razões exclusivamente imputáveis à actuação do Advogado BB –, deverá ser assinalado à Requerente um prazo para o efeito – é o que deve decretar-se. f) Em face desse cumprimento da Requerente, a situação dos autos passará a ser a que teríamos hoje, se o Advogado BB não tivesse tido a actuação acima apurada – é o que deve proporcionar-se. g) Daqui em diante, restará à Requerente continuar a dar cumprimento ao despacho de 24/4/2017, até ao momento em que deva ser proferido o despacho previsto no art. 244º do CIRE – é o que deve proporcionar-se».
Portanto, na sequência do despacho datado de 26/02/2019 que declarou «antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante», a Insolvente veio alegar que o incumprimento das suas obrigações durante o período de cessão foi da exclusiva responsabilidade do seu anterior mandatário e não lhe é imputável e, com base nisso, requereu concreta e especificamente a possibilidade de cumprir agora as obrigações perante o fiduciário e que se continue a dar cumprimento ao incidente de exoneração do passivo restante, nomeadamente, à vigência do período de cessão até ao momento em que deverá ser proferida a decisão final da exoneração.
Certo é que, embora não tenha indicado qualquer norma jurídica, na decisão recorrida, o Tribunal a quo acabou por indicar um mínimo de fundamentação, com natureza jurídica, para deferir a pretensão da Insolvente: “Perante a não oposição dos credores e do fiduciário e de forma a dar uma última oportunidade à insolvente, que manifesta agora vontade de cumprir com as suas obrigações”. Ou seja, o Tribunal a quo sustentou a sua decisão de «dar sem efeito o despacho que declara a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante» numa razão jurídica consistente na «falta de oposição à pretensão» e noutra razão jurídica consistente na «nova oportunidade da insolvente cumprir as obrigações legais que sobre si impendem durante o período de cessão».
Se estes fundamentos, de caracter jurídico, são ou não insuficientes, deficientes e/ou incorrectos, configura uma questão que respeita apenas ao mérito do julgamento (à existência ou não erro de julgamento), sendo que a “presença” de tais fundamentos impede e inviabiliza, por si só, a verificação de uma situação «ausência absoluta de fundamentação», sendo que apenas esta “situação” constitui a causa de nulidade em apreço.
Frise que os aludidos fundamentos (independentemente da sua suficiência, deficiência e/ou correcção) reportam-se e sustentam também à decisão recorrida na parte em que determina a «renovação por mais três anos o período de cessão» e «a entregar não só o montante em falta à fidúcia como os que se vierem a vencer», porque se enquadram na razão jurídica da «nova oportunidade da insolvente cumprir as obrigações legais» (como refere o Tribunal a quo no despacho proferido nos termos do art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013, embora neste despacho aquele Tribunal tenha vindo indicar/acrescentar uma norma jurídica que não consta na decisão recorrida).
Por último, refere-se que a arguição da presente causa de nulidade foi deduzida em termos absolutamente genéricos e sem um mínimo de concretização (alega-se apenas e tão só que «há uma total falta de fundamentação jurídica que possa servir de guião»), acrescendo que a própria insolvente (no seu requerimento de 17/02/2022) também não indicou nenhuma norma jurídica para fundamentar esta parte da sua pretensão, pelo que, tendo a pretensão sido deferida (pelo menos, na parte da “eliminação” da cessação antecipada da exoneração e na parte de serem agora cumpridas as obrigações), nem se vislumbra nem se compreende qual a efectiva e consistente razão para a arguição da presente causa de nulidade.
Nestas circunstâncias, inexiste o vício de falta de fundamentação previsto na alínea b) do nº1 do art. 615º.
E diga-se, desde já, que também se mostra infundada a arguição da nulidade prevista na 2ª parte da alínea c).
Na verdade, independentemente da questão de se saber se, após «dar sem efeito o despacho que declara a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante», o Tribunal a quo podia determinar, em simultâneo, a entrega do rendimento disponível durante o período de cessão (5 anos) e a renovação do por mais 3 anos desse período, questão que se reporta exclusivamente ao mérito do julgamento, não existe qualquer impossibilidade de compreensão da parte decisória do despacho recorrido: deu-se sem efeito cessação antecipada do incidente de exoneração, pelo que continuou a vigorar o período inicial de cessão de 5 anos e prorrogou-se por 3 anos (“renovou-se por mais três anos”) tal período de cessão, devendo a insolvente entregar o rendimento disponível ao fiduciário, quer relativamente ao período de tempo já decorrido quer ao período de tempo que a decorrer no futuro. 
É inequivocamente este o pensamento do Tribunal a quo expresso na decisão recorrido (pelo que inexiste qualquer obscuridade), não sendo o mesmo sucesptível de comportar outro sentido (pelo que inexiste qualquer ambiguidade).
E sempre se saliente que, como decorre quer das suas alegações quer das suas conclusões, a Insolvente/Recorrente compreendeu integralmente o sentido da decisão recorrida, sendo que a sua discordância quanto à mesma baseia-se na circunstância de, no seu entendimento, o Tribunal a quo só poder ter uma de duas possibilidades («repristinar o regime que se iniciou pelo despacho previsto no art. 239º do CIRE, proferido em 24/4/2017, caso em que a solução seria determinar que a ora Recorrente entregasse ao fiduciário o valor já calculado nos autos» ou «um (novo) início do procedimento de exoneração, caso em que teria ser imposta à Recorrente a cessão do rendimento disponível por 3 anos, com início no mês subsequente ao despacho recorrido»), e não poder determinar ambos os efeitos (cfr. conclusões 5ª a 7º). Ora, esta argumentação consubstancia a alegação de um erro de julgamento, e não a invocação de qualquer obscuridade ou ambiguidade.
Nestas circunstâncias, igualmente inexiste o vício de ininteligibilidade da decisão por ocorrência de ambiguidade ou obscuridade prevista na 2ªparte da alínea c) do nº1 do art. 615º.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a decisão recorrida não padece de qualquer das causas de nulidade invocadas e, por via disso, o recurso tem de improceder quanto a esta questão.
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4.2. Da “repristinação” do despacho inicial de exoneração e da “prorrogação” do período de cessão
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, como decorre do preceituado no art. 1º do C.I.R.E.
Entre outras medidas excepcionais de protecção do devedor singular, o C.I.R.E., aprovado pelo Dec.-Lei nº53/04, de 18/03, introduziu na nossa legislação o instituto da exoneração do passivo restante: como se refere no respectivo preâmbulo, “No tratamento dispensado às pessoas singulares, destacam-se os regimes da exoneração do passivo restante… O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante»”.
Como é consabido, mesmo quando o produto da liquidação do património (garantia geral dos credores - cfr. art. 601º do C.Civil) não se mostra suficiente para o cumprimento integral das obrigações do devedor, os credores não ficam definitivamente impedidos de exercer o seu direito: em caso de obtenção de novo património, poderão sempre voltar a accionar o devedor (mesmo que tenha sido declarado insolvente), porque este continua vinculado até ao limite do prazo ordinário de prescrição de 20 anos (cfr. art. 309º do C.Civil).
A introdução no nosso ordenamento jurídico deste instituto visou precisamente evitar que a pessoa singular declarada insolvente fique vinculada ao pagamento de tais obrigações até ao limite daquele prazo de prescrição de 20 anos, procurando evitar-se uma situação de inviabilidade da sua recuperação económica, assumindo efectiva relevância razões relacionadas com a dignidade da pessoa humana e com o interesse no desenvolvimento da economia (desenvolvimento que será «melhor» quanto maior número for o número de elementos financeiramente saudáveis a contribuir), explicando Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade[18] que “o sobre-endividamento é um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado de crédito - o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobre-endividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo”.
A tramitação/regulamentação deste incidente mostra-se contemplada no capítulo I, do Título XII (Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares) nos arts. 235º a 248º do C.I.R.E.
Prescreve o art. 235º: “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”. Por força da Lei nº9/2022, de 11/01, e que entrou em vigor a 1/04/2022 (cfr. art. 12º da referida Lei), foi alterado aquele período de «cinco anos» para «três anos», embora possa ser prorrogado por um período máximo de três anos, conforme decorre do novo art. 242ºA, aditado pela referida Lei.
Consagra-se, neste preceito, o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco (agora três) anos posteriores ao encerramento deste (cfr. preâmbulo do Dec.-Lei nº53/04, de 18/03).
Daqui decorre que após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso do prazo de cinco anos (agora três) posteriores ao encerramento do processo, o devedor singular tem a possibilidade de um “fresh start”, podendo recomeçar uma nova vida e/ou uma nova actividade económica, sem estar sujeito ao peso das obrigações que permaneceram por solver no processo de insolvência, pelo que o objectivo é liberar definitivamente o devedor singular do passivo que não seja pago integralmente por forma a permitir a sua reabilitação económica. Como explica Assunção Cristas[19], “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objetivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações”. E nas palavras de Menezes Leitão[20], “Efectivamente, a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como as perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes, desempenhando muitas vezes os hábitos de consumo desenfreados também um papel, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de começar de novo”.
Mas, como se explica no respectivo preâmbulo, a efectiva obtenção de tal benefício pressupõe que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor singular permaneça por um período de cinco (agora três) anos (período de cessão) ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos, sendo que, durante esse período, o devedor assume, entre outras, a obrigação de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores: “No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Este instituto impõe, portanto, uma conciliação dos interesses em confronto: o do prejuízo que a lei impõe aos credores, com a extinção dos seus créditos no final do período da cessão, apesar de tais créditos não terem sido satisfeitos; e o do sacrifício do insolvente/devedor singular, por forma a que no período de cessão contribua com parte do seu rendimento (que não seja indispensável à sua subsistência condigna) na satisfação das dívidas.
E esta “segunda oportunidade”, concedido pela exoneração do passivo restante, só pode ser concedida ao devedor que efectivamente a merecer, como se explica no Ac. do STJ de 21/01/2012[21], “A lei exige uma atuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por atuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual querendo a exoneração”.
Neste mesmo sentido, concretiza-se, de forma pormenorizada e com a invocação de diversa doutrina, no Ac. da RG de 07/10/2021[22]: “Compreende-se, por isso, que se afirme que não «se pense (…) que o CIRE contém um regime que é um brinde ao incumpridor» (Alexandre de Soveral Martins…), já que se está perante um instituto que, simultaneamente, tem subjacente quer o interesse do devedor (que poderá ficar, definitivamente, exonerado do seu passivo restante - face ao termo do processo de insolvência), quer os interesses dos seus credores (que aqui encontram uma «dupla oportunidade» de satisfação dos seus créditos). Por outras palavras, «após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual (I. V.) pelos devedores, ainda se efectua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos, com a função de o repartir pelos credores (art. 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (S. V.) durante um longo período igualmente afecto à satisfação dos seus credores» (CC…). O benefício final pretendido pelo insolvente (isto é, a concessão efectiva da exoneração do seu passivo restante) depende ainda do preenchimento inicial de determinados requisitos, e fica subordinado ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que o despacho inicial «só promete conceder a exoneração efectiva», e não a garante (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda…). Por fim, do prazo fixo de cinco anos do período de cessão, se retira igualmente o ser «manifestamente estabelecido em benefício dos credores», constituindo «o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos. Em favor deste entendimento militam o nº 2 do art. 243º e o nº 1 do artº 244º dos quais decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração, quando não fundada em situações relativas ao devedor, só se verifica se se mostrarem totalmente satisfeitos os créditos sobre a insolvência», «satisfazendo-se, assim, o fim que preside ao instituto», ocorrendo então «uma situação equivalente à inutilidade superveniente da lide» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda…). Dir-se-á, deste modo, que no instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor (recuperação da sua liberdade económica, produtividade, bem-estar), desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor (DD…). O interesse dos credores é ainda atendido pelo facto do insolvente, enquanto devedor não exonerado, ter o seu acesso ao crédito limitado, o que deixará de suceder após alcançar aquele benefício. Deste modo, incentiva-se a inclusão socioeconómica do devedor e propicia-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia (EE…)”.
De acordo com o disposto nos arts. 237º, 238º, 239º, 244º e 245º do C.I.R.E., a efectiva concessão da exoneração do passivo restante resulta de dois despachos: inexistindo fundamento legal para o respectivo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, é proferido (primeiro) o despacho inicial que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo de insolvência (o rendimento disponível  devedor singular venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário e destina-se ao pagamento das custas do processo ainda em dívida, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por último, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência); e no final do período da cessão será proferido (segundo) despacho que decide sobre se é ou não efectivamente concedida a exoneração do passivo restante, sendo que, em caso de ser concedida, tal decisão determinará a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Em consequência do despacho inicial da exoneração, e para além da referida a obrigação de cessão do rendimento disponível (cfr. nº2 do art. 239º do C.I.R.E.), o insolvente/devedor fica ainda sujeito ao cumprimento das obrigações elencadas no nº4 do art. 239º do C.I.R.E., sendo que a violação, dolosa ou com grave negligência, de uma destas obrigações pode determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
Deste modo, o despacho inicial não configura qualquer decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante, significando tão só o início de uma nova fase processual, denominada «período de cessão», no âmbito da qual o devedor está vinculado ao cumprimento de um conjunto de exigências durante cinco anos. Findo este «período de cessão» (antes 5 anos, e agora 3 anos), perante o «parecer» que os credores e o fiduciário exprimirem sobre o comportamento do devedor/insolvente e perante a ponderação objectiva dos elementos probatórios constantes dos autos, o Juiz tomará a decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante, devendo esta ser recusada “pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente” - art. 244º/1 e 2 C.I.R.E.
Como refere Maria do Rosário Epifânio[23], “o despacho inicial determina a abertura nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo, do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível, e da imposição de um conjunto de obrigações”.
E, como explica Luís Menezes Leitão[24], pode ser determinada a cessação antecipada do procedimento de exoneração sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
Efectivamente, durante o «período de cessão», o legislador consagrou a possibilidade de cessação antecipada da exoneração. Prescreve o art. 243º do C.I.R.E.:
“1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência”.

Resulta deste normativo um procedimento de extinção da exoneração do passivo restante antes da sua concessão (ou seja, de forma antecipada), no âmbito do qual a decisão de recusa da exoneração compete ao juiz mas o respectivo impulso processual incumbe aos credores do insolvente/devedor, ao administrador da insolvência (se ainda estiver em funções), ou fiduciário (caso este tenha sido incumbido pela assembleia de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor), os quais devem iniciar este procedimento mediante a apresentação de «requerimento fundamentado», isto é, “deve ser especificado o facto que justifica a cessação antecipada do procedimento de exoneração”[25], requerimento esse que terá que ser apresentado dentro de um ano a contar da data em que teve conhecimento ou em que poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que, após ter sido proferido o despacho inicial da exoneração (em 24/04/2017), ao abrigo do disposto no referido art. 243º do C.I.R.E., o Tribunal a quo declarou antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante à insolvente (despacho de 26/02/2019).
Cerca de 2 anos depois, a Insolvente veio requerer (na parte que aqui releva e para além do mais) que «e) Dado que a Requerente se declara em condições de cumprir perante o fiduciário tudo quanto foi determinado no despacho de 24/4/2017 – e só não foi cumprido em tempo por razões exclusivamente imputáveis à actuação do Advogado BB –, deverá ser assinalado à Requerente um prazo para o efeito – é o que deve decretar-se. f) Em face desse cumprimento da Requerente, a situação dos autos passará a ser a que teríamos hoje, se o Advogado BB não tivesse tido a actuação acima apurada – é o que deve proporcionar-se. g) Daqui em diante, restará à Requerente continuar a dar cumprimento ao despacho de 24/4/2017, até ao momento em que deva ser proferido o despacho previsto no art. 244º do CIRE – é o que deve proporcionar-se» (cfr. requerimento de 17/02/2022).
No seguimento, o Tribunal a quo determinou a notificação de todos os credores e do fiduciário para se pronunciarem sobre tal pretensão (despacho de 28/02/2022), não tendo nenhum dos Credores efectivado qualquer pronúncia e tendo fiduciário declarado não se opor «à reversão do despacho que encerrou o processo de exoneração do passivo restante e extinguiu o benefício legal atribuído à insolvente» (requerimento datado de 05/04/2022)
Após ter sido determinado ao fiduciário que «informasse qual seria o rendimento de cessão a ceder pela insolvente nos três anos de cessão em causa» (despacho de 25/05/2022), o que este cumpriu, informado que «o montante total é de 59.670,06 euros, relativo a 8 meses do ano de 2017, aos anos de 2018 a 2021, e a 4 meses do ano de 2022» (requerimento datado de 22/06/2022), o Tribunal a quo proferiu o despacho ora impugnado, o qual contém três segmentos decisórios distintos: 1) “dou sem efeito a cessação do incidente de exoneração”; 2) “renovo por mais três anos o período de cessão”; e 3) “durante o qual a insolvente terá de entregar não só o montante em falta à fidúcia como os que se vierem a vencer consoante o seu rendimento mensal”.
Como resulta inequivocamente do teor das conclusões formuladas (nomeadamente, da conclusão 1ª), a Insolvente, ora Recorrente, restringiu expressamente o âmbito do recurso aos referidos segundo e terceiro segmentos decisórios, pelo que este Tribunal ad quem não pode interferir na parte da decisão que ficou excluída da impugnação[26] (ou seja, no supra identificado primeiro segmento decisório, sendo que, na parte relativa a este segmento, a decisão recorrida transitou)
Mas sempre se refira que, apesar de não ter sido interposto recurso da decisão datada de 26/02/2019 (que declarou antecipadamente cessada a exoneração do passivo restante), uma vez que o segmento decisório consistente “dou sem efeito a cessação do incidente de exoneração” (e que não foi impugnado) resultou da apreciação uma pretensão que suscitou uma questão nova no processo (o aludido requerimento de 17/02/2022), pelo que se nos afigura inexistir aqui qualquer situação de caso julgado (a qual sempre poderia ser conhecida oficiosamente nos autos). 
E mais ainda se refira que mesmo que se entenda que tal segmento decisório representa uma violação da regra do esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo, jamais poderia este Tribunal ad quem alterá-lo por causa do principio da reformatio in pejus, consagrado no art. 635º/5 do C.P.Civil de 2013 (“Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo”), que significa que ao Tribunal da Relação está interdito dar ao recorrente menos do que foi concedido pela decisão recorrida ou colocar o recorrente numa situação pior do que a que resulta da decisão recorrida e que não foi impugnada.
Em sede de recurso, a Insolvente/Recorrente defende, no essencial, que: «o despacho de 29/6/2022 reverteu aquilo que fora preteritamente decretado por despacho de 26/2/2019; impunha-se que o Tribunal fixasse as consequências inerentes, tendo ao seu dispor duas possibilidades; a primeira possibilidade seria a de repristinar o regime que se iniciou pelo despacho previsto no art. 239º do CIRE, proferido em 24/4/2017, caso em que a solução seria determinar que a ora Recorrente entregasse ao fiduciário o valor já calculado nos autos; a segunda possibilidade seria a de reconduzir o segmento não impugnado do despacho sob recurso a um (novo) início do procedimento de exoneração, caso em que deveria ser imposta à Recorrente a cessão do rendimento disponível por 3 anos, com início no mês subsequente ao despacho recorrido; o Tribunal optou por uma solução que tanto repristina os efeitos correspondentes à primeira possibilidade como também aplica os efeitos relativos à segunda possibilidade; estamos perante um despacho ilegal, porque proferido contra legem, proferido sem qualquer suporte legal; o despacho sob recurso deverá ser reformulado, devendo determinar que a insolvente entregue à fidúcia o valor já calculado de 59.670,06 euros, correspondente ao rendimento de cessão no período de cinco anos decorrido após a prolação do despacho de 24/4/2017» - cfr. conclusões 2º a 7ª, 11ª e 13ª.
E diga-se, desde já, que lhe assiste inteira razão, embora com base em fundamentação parcialmente diferente. Concretizando.
Como supra já se referiu, a decisão recorrida contém um primeiro segmento decisório, que não foi impugnado, consistente em «dar sem efeito a cessação do incidente de exoneração».
Pensamos que este segmento decisório não suscita quaisquer dúvidas de interpretação quanto ao seu sentido: como bem refere a Insolvente/Recorrente, no recurso, a decisão recorrida «reverteu» a decisão (despacho de 26/02/2019) de declaração de cessação antecipada da exoneração do passivo restante, isto é, esta decisão deixou de produzir qualquer efeito jurídico no processo.
Tendo deixado de produzir quaisquer efeitos, isso implicou, necessária e automaticamente, uma efectiva e concreta «repristinação» do despacho inicial de exoneração do passivo restante (proferido 24/04/2017), isto é, esta decisão voltou a produzir todos os seus efeitos jurídicos, nomeadamente a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo de insolvência, rendimento esse que foi fixado no montante que exceder o valor de um salário mínimo nacional, multiplicado por doze meses.
Na verdade, se a decisão que determinava a cessação (antecipada) do incidente de exoneração do passivo restante foi dada «sem efeito» («revertida»), então este incidente deixou de estar extinto (cessado) e voltou a «vigorar» no processo, com todos os seus efeitos. E refira-se que, tendo o período de cessão (de cinco anos) se iniciado na data de 24/04/2017 [por força da conjugação do disposto nos arts. 230º/1e) e 233º/7[27] do C.I.R.E.], então o fim período de cessão ocorreu em 24/04/2022 (art. 279º/c) do C.Civil).
Portanto, ao contrário do que invocado no recurso, o segmento decisório em análise («dar sem efeito a cessação do incidente de exoneração»), não podia nem teve «dois efeitos possíveis»: teve, como efeito necessário e automático, a efectiva e concreta «repristinação» do despacho inicial de exoneração do passivo restante (proferido em 24/04/2017), conduzindo à «restauração» da vigência do período de cessão de 5 anos, de 24/04/2017 a 24/04/2022, durante o qual a Insolvente estava obrigada a entregar ao fiduciário o rendimento disponível que excedesse o valor de um salário mínimo nacional, multiplicado por doze meses.

Neste “quadro”, estando já cessado aquele período de cessão quando foi proferido o despacho recorrido (em 29/06/2022) e até apurado o montante total do rendimento disponível a ceder na globalidade do período (€ 59.670,06 relativos aos meses de Maio de 2017 a Abril de 2022 - cfr. despacho de 25/05/2022 e requerimento de 22/06/2022 -, valor que não foi impugnado pela Insolvente nem pelos Credores), e mais considerando que o teor da pretensão formulada e que originou a decisão recorrida (o pedido foi precisamente no sentido de ser dado à Insolvente um prazo para cumprir e continuar a cumprir tudo quanto foi determinado no despacho inicial, designadamente a cessão do rendimento disponível) e que um dos fundamentos da decisão recorrida foi precisamente «dar uma última oportunidade à insolvente para cumprir com as suas obrigações» (a que estava adstrita no período de cessão), então conclui-se que a única consequência lógica e legal a extrair da «repristinação» do despacho inicial de exoneração do passivo restante (primeiro segmento decisório da decisão impugnada) era fixar um prazo à Insolvente para proceder à entrega ao fiduciário da aludida quantia de € 59.670,06, correspondente ao rendimento disponível a ceder durante todo o período de cessão de 5 anos.
E, mais uma vez ao contrário do que se alega no recurso, não tem qualquer sentido lógico, e carece de fundamento legal, a possibilidade daquele primeiro segmento decisório da decisão impugnada conduzir ao «início de um novo procedimento de exoneração»: tendo sido «repristinando» o primitivo incidente de exoneração do passivo restante, e produzindo o despacho inicial de 24/04/2017 todos os seus efeitos jurídicos, mostra-se absolutamente incompatível «desatender» totalmente àquele incidente e «abrir» novo incidente para o mesmo fim (aliás, a decisão recorrida não contém, nem no seio da fundamentação nem no seio do decisório, qualquer expressão em tal sentido, e não foi, manifestamente, a «abertura de novo incidente» aquilo que foi peticionado pela Insolvente no seu requerimento de 22/06/2022).
Porém, como resulta do teor dos segundo e terceiro segmentos decisórios do despacho recorrido, o Tribunal a quo determinou a «renovação por mais três anos o período de cessão», o que corresponde a uma efectiva e concreta prorrogação do período de cessão, e mais determinou que a insolvente entregasse não só o montante em falta à fidúcia como os que se vierem a vencer consoante o seu rendimento mensal», o que corresponde não só à entrega do valor já apurado relativamente aos cinco anos do período de cessão (€ 59.670,06) mas também a entrega do rendimento disponível durante mais três anos.
Esta «renovação/prorrogação por mais três anos» e esta «cessão de rendimento disponível nesses mais três anos» carecem de fundamento legal.
Até à alteração que foi promovida pela Lei nº9/2022, de 11/01, o C.I.R.E. não continha qualquer preceito legal permitisse a prorrogação do período de cessão.
Tal possibilidade foi legalmente consagrada pela alteração decorrente da Lei nº9/2022, que aditou ao C.I.R.E., o art. 242ºA, o qual, sob a epígrafe «prorrogação do período cessão», estatui:
“1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado: a) Do devedor; b) De algum credor da insolvência; c) Do administrador da insolvência, se este ainda estiver em funções; ou d) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova.
3 - O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”.
Embora não o tenha referido no despacho recorrido, como resulta do despacho que proferiu em cumprimento ao disposto no art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013, o Tribunal a quo reconhece a determinação da «renovação por mais três» decorre do uso “da prerrogativa do artigo 242º-A CIRE”. Ou seja, não existem quaisquer dúvidas de que tal renovação corresponde à prorrogação prevista naquele novo normativo.
Apesar do mesmo ser imediatamente aplicável aos processos pendentes (cfr. art. 10º/1 da referida Lei nº9/2022), releva-se inequívoco, perante o teor dos nºs. 1 e 2 do art. 242ºA, que o incidente de prorrogação do período de cessão está sujeito ao impulso processual do devedor (insolvente), dos credores, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções), ou do fiduciário (caso este tenha sido incumbido pela assembleia de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor), os quais devem iniciar este incidente através da apresentação de «requerimento fundamentado», donde resulta que não pode ser oficiosamente promovido pelo Juiz (mesmo apesar de ser a este que compete a decisão de prorrogar ou não o período de cessão). Portanto, o Legislador consagrou aqui um regime de impulso processual idêntico ao do incidente (procedimento) de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
Ora, é inquestionável que, no caso em apreço, não existiu qualquer pedido, e muito menos fundamentado, formulado por algum credor da insolvência, da devedora/insolvente, de algum credor, do administrador da insolvência, ou do fiduciário, tal como se exige no nº1 do art. 242ºA do C.I.R.E. Aliás, na decisão recorrida, nada se refere neste sentido, acrescendo que, no requerimento de 17/02/2022, não requereu qualquer prorrogação (antes pelo contrário, já que peticionou precisamente o cumprimento do despacho inicial que determinou a cessão por 5 anos, e relembre-se que foi este requerimento que a decisão recorrida apreciou e decidiu), acrescendo que o fiduciário também jamais o peticionou (e não houve intervenção de qualquer credor).
Por conseguinte, o Tribunal a quo não tinha legitimidade para, oficiosamente, proferir uma decisão de prorrogação do período de cessão, como decorre, de forma expressa e inequívoca, do disposto no art 242ºA/1 do C.I.R.E.
Assim sendo, para além da manifesta falta de legitimidade, a iniciativa oficiosa do Tribunal a quo nesta matéria representa uma manifesta e inequívoca violação do princípio do dispositivo já que o legislador estatuiu que o impulso processual e a alegação dos factos no âmbito de um incidente de prorrogação do período de cessão compete exclusivamente ao Devedor/Insolvente a algum credor, ao administrador da insolvência, ou ao fiduciário.
E, não podendo determinar (oficiosamente) tal prorrogação, então o Tribunal a quo também não podia «estender» a obrigação da Insolvente de entrega do rendimento disponível ao fiduciário para além do período de cessão de 5 anos fixado no despacho inicial, ou seja, não podia determinar que tal cessão abrangesse um período renovado/prorrogado de mais três anos.
Nestas circunstâncias, embora com base em fundamentação parcialmente distinta daquelas que foi aduzida no recurso, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que o Tribunal a quo não tinha legitimidade para, oficiosamente, prorrogar (fazer acrescer) por mais 3 (três) anos o período (inicial) de cessão de 5 (cinco) anos, pelo que, ao fazê-lo, violou claramente o princípio do dispositivo.
Por via disso, impõe concluir-se que o despacho recorrido é ilegal quanto ao seu segundo segmento decisório e parcialmente ilegal quanto ao seu terceiro segmento decisório, os quais devem ser revogados e alterados em conformidade, devendo o seu conteúdo passar o ser o seguinte:  “Perante a não oposição dos credores e do fiduciário e de forma a dar uma última oportunidade à insolvente, que manifesta agora vontade de cumprir com as suas obrigações, dou sem efeito a cessação do incidente da exoneração e determino que a insolvente entregue ao fiduciário, no prazo de 10 dias, o valor de € 59.670,06, correspondente à totalidade do rendimento disponível durante o período de cessão de 5 (cinco) anos”.
Frise-se que a fixação em 10 dias do prazo à Insolvente para proceder à entrega da totalidade da quantia resulta não só de ser esse o prazo processual normal (cfr. art. 149º/1 do C.P.Civil de 2013), mas também aquela requereu a fixação de um prazo para cumprir a sua obrigação e não indicou qualquer outro prazo, acrescendo que o seu pedido foi formulado em requerimento há muito apresentado em juízo (17/02/2022).
Desde modo, o recurso deve proceder quanto a esta questão.
*
4.3. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas na resolução das questões supra apreciadas, deverá julgar-se procedente o recurso interposto pela Insolvente/Recorrente.
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4.4. Da Responsabilidade quanto a Custas

Procedendo o recurso, não tendo havido contra-alegações, e tendo sido o Tribunal a quo a suscitar uma questão para a qual não tinha legitimidade, não deverá o presente recurso ser objecto de tributação.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Insolvente/Recorrente AA e, em consequência, revoga-se parcialmente o despacho recorrido, determinando-se que o seu conteúdo passa a ser o seguinte:“Perante a não oposição dos credores e do fiduciário e de forma a dar uma última oportunidade à insolvente, que manifesta agora vontade de cumprir com as suas obrigações, dou sem efeito a cessação do incidente da exoneração e determino que a insolvente entregue ao fiduciário, no prazo de 10 dias, o valor de € 59.670,06, correspondente à totalidade do rendimento disponível durante o período de cessão de 5 (cinco) anos”.
Sem custas.
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Guimarães, 11 de Maio de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Juiz Desembargador José Moreira Dias, proc. nº1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[4]Preceito que se mostra aplicável ao processo de insolvência ex vi do art. 17º do C.I.R.E.
[5]In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 172/173
[6]In Coimbra Editora, 2ªedição, 1985, p. 687.
[7]In Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 140.
[8]In Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 194.
[9]In Estudos sobre o Processo Civil, p. 221.
[10]In Da Sentença Cível, p. 39.
[11]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº835/15.0T8LRA.C3.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[12]Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[13]Juiz Desembargador Vieira e Cunha, proc. nº1887/04-1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[14]Juíza Desembargador Ana Cristina Duarte, proc. nº1/08.0TJVNF-EK.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[15]In Manual de Processo Civil, 2ªedição, p. 693.
[16]In Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto, 3ªedição, p. 667.
[17]Juiz Conselheiro Nuno Pinto Oliveira, proc. nº69/11.2TBPPS.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[18]In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de código, Ministério da Justiça, Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, p. 89.
[19]Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, in Revista “Themis ”, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167.
[20]In Direito da Insolvência, 3ªedição, Almedina, 2011, p. 322.
[21]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº152/10.1TBBRG-E.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[22]Juíza Desembargadora Maria João Matos, proc. nº4576/20.8T8GME.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[23]In Direito da Insolvência, p. 324.
[24]In Direito da Insolvência, Almedina, 8ª edição, p. 375.
[25]Ac. da RC de 07/04/2016, Juíza Desembargadora Sílvia Pires, proc. nº31128T8GME.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[26]Cfr. António Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 138.
[27]Este preceito, embora tenha sido introduzido pela Dec.Lei nº79/2017, de 30/06, por força do disposto na norma transitória constante do referido Dec.-Lei (art. 6º), é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, data este que ocorreu em 01/07/2017 (art. 8º do mesmo Dec.-Lei).