I- O princípio do interesse da menor constitui, um simples princípio regulativo e, por isso, não é apto, por si só, para declarar o que, em cada caso, é e o que não é do interesse da criança, pelo que é necessário, para esse efeito, outros critérios;
II- A do conceito de interesse da criança deve operar através de critérios ou de factores, de dimensão eminentemente prospectiva, que sejam neutros em relação ao género e que, portanto, sejam, não só harmónicos com o princípio, de matriz constitucional, da igualdade dos pais, mas que a promovam, que encorajem a contratualização, por estes, da regulação, e a sua adesão consistente a esta, reduzindo a conflitualidade parental, actual e futura, que sejam atentos aos direitos da criança e à sua vontade ou preferência, que não sejam intrusivos relativamente à autonomia da família, e, por essa via, conformes com o princípio da proporcionalidade e que se mostrem exequíveis, i.e., de aplicação ágil e fácil, evitando, por exemplo, o recurso a teorias psicológicas e a avaliações e perícias psicológicas e psiquiátricas, quer sobre as diferenças da relação afectiva da criança com cada um dos pais quer sobre a capacidade educativa destes, bem como a juízos de prognose sobre o comportamento ulterior dos pais e adaptação da criança a nova forma de organização da família.
III- Dada a constelação de factores atendíveis para a decisão sobre a residência da criança é, de todo, impossível a apreciação de todos eles, o que, porém, não impede a sua sistematização em duas categorias: os relativos à criança; os respeitantes aos pais;
-Entre os primeiros contam-se, entre muitos, a idade e o grau de desenvolvimento, físico, psíquico e cultural da criança; as relações da criança com os seus progenitores e com outros parentes que sejam relevantes para ela; a permanência ou continuidade das relações afectivas da criança; as suas necessidades físicas, intelectuais e materiais; a adaptação da criança ao ambiente extra familiar de origem; os efeitos de uma eventual mudança causados por uma ruptura com este ambiente; os sentimentos e a vontade da P
criança; relativamente aos pais, são atendíveis, também além de muitos outros, a sua saúde, física e mental, a afeição de cada um deles pela criança, a sua capacidade para satisfazer as suas necessidades, o seu envolvimento e o tempo disponível para cuidar do filho, a competência prática de cada um deles para desempenhar as responsabilidades parentais, a estabilidade do ambiente que cada um deles pode proporcionar à criança, a sua aptidão para respeitar os direitos e os deveres do outro e a relação da criança com os novos cônjuges ou companheiros dos progenitores.
IV- O juiz não está inexoravelmente vinculado à preferência manifestada pela criança acerca de um qualquer ponto ou vertente da regulação das responsabilidades parentais, maxime, sobre a sua residência, impondo-se sempre a verificação da adequação ou conformidade dessa preferência com um exercício óptimo dos direitos que titula, designadamente com seu direito de conviver com ambos os pais e à participação destes, em condições de igualdade, na sua vida.
V- A vontade manifestada pela criança – desde que seja racional e genuinamente sua e se mostre conforme com o seu interesse, objectivamente apreciado – é, decerto, um factor importante, mas não o único factor a considerar.
Da avaliação efetuada e dos dados clínicos daí decorrentes, é de admitir de responder a questões genéricas e a questões específicas, dando informações sobre o seu quotidiano, sobre protagonistas, dinâmicas, interações, locais e contextos. (...) Quanto ao seu desenvolvimento emocional a examinada apresenta comportamentos regressivos e fragilidades na sua autonomização, com sintomatologia ansiosa. (...) A examinada apresenta um nível de desenvolvimento compatível com a sua idade cronológica.
Evidencia um bom nível de linguagem expressiva e compreensiva, mostrando facilidade em efetuar relatos e evocar factos com pormenor. Do ponto de vista emocional e relacional, da análise direta com a examinada, constatou-se a presença de sintomatologia ansiosa associada ao processo judicial em curso.
Pareceu que a rejeição relativamente à figura paterna está intimamente associada ao sofrimento materno. De referir que existe da parte da progenitora, uma grande ativação emocional progenitor da sua filha e uma desvalorização da componente afetiva e da importância do vínculo entre pai e filha, o que pode prejudicar o desenvolvimento socio emocional manutenção que poderá estar a fazer desta rejeição. Destaca- se também um discurso litigante e focado na conjugalidade. Recomendamos que seria importante que existisse alguma constância e adequabilidade na relação entre os progenitores, promovida através de mediação familiar, sob pena de este conflito a provocar instabilidade emocional à criança. Os vínculos afetivos são de suma importância para um adequado desenvolvimento da criança e esta tom de sentir que o afeto por cada tores não constitui um conflito ou ataque agressivo ao outro progenitor, situação que a estar atualmente a vivenciar.”
20. Do relatório de perícia psicológica forense ao progenitor BB, consta o seguinte: “(.) No que concerne ao estado mental, apresentou-se consciente e orientado no tempo e no espaço, bem como auto e alopsiquicamente, Não revelou alterações ao nível da atenção (capacidade para orientar a consciência e focar-se de modo contínuo num determinado estímulo ou atividade), perceção (processo de extração de informação, que permite à pessoa estar em contacto com o mundo exterior, perceber a realidade e associá-la a diversos significados), memória (capacidade de armazenar, reter e evocar informação), pensamento (organização da realidade relativa a nós mesmos e ao mundo) ou linguagem (capacidade para adquirir e utilizar sistemas de comunicação, resumindo o pensamento em símbolos). De um modo adaptativo, o examinado demonstra recursos cognitivos adequados (relacionados com o processamento da informação adquirida através da aprendizagem; inclui também formas de perceção e interpretação de si próprio, dos outros e dos acontecimentos), adequação social e capacidade de autorregulação (capacidade de gestão das emoções e construção de respostas adequadas ao contexto).
Em relação às capacidades parentais mínimas (competências mais básicas e suficientes para garantir a proteção e o bem-estar da criança), é de admitir que o examinado revela competências cognitivas ajustadas, capacidade de autorregulação e uma ligação afetiva à filha. (...) Não se verificam alterações nas dimensões do estado mental. No que diz respeito ao funcionamento psicológico, o examinado demonstra recursos cognitivos adequados, adequação social e capacidade de autorregulação.
Os dados clínicos sugerem que o examinado reúne as competências fundamentais para responder às necessidades da filha, ao nível dos cuidados básicos e desenvolvimento cognitivo, social e emocional.
O discurso do examinado parece traduzir uma preocupação legítima e verdadeira quanto ao futuro da sua filha e da sua relação com esta.
Como fatores protetores, destacam-se os recursos cognitivos ajustados, a sua motivação e disponibilidade para cuidar da filha, a retaguarda familiar e a ligação afetiva à menor.
Relativamente às outras áreas envolvidas nas competências para o exercício da parentalidade (que não se reduzem à natureza dos afetos manifestados), o examinado apresenta algumas dificuldades na gestão da parentalidade com o outro progenitor, devendo, a nosso entender, ser acompanhados em mediação, por entidade competente para o efeito.”
21. Em sede de esclarecimentos a Perita escreveu, entre o mais, que, “vimos esclarecer que: 1° A guarda partilhada implica que exista, tal como mencionado no relatório “constância e adequabilidade na relação entre os progenitores, promovida através de mediação familiar, sob pena de este conflito parental continuar a provocar instabilidade emocional à criança. Os vínculos afetivos são de suma importância para um adequado desenvolvimento da criança e esta tem de sentir que o afeto por cada um dos progenitores não constitui um conflito ou ataque agressivo ao outro progenitor, situação que a examinada poderá estar atualmente a vivenciar” e por este motivo se sugere a mediação entre os progenitores no sentido de ajustar a relação conflitual atual e que prejudica a criança, colocando-a num marcado conflito de lealdades.
2° Devido ao conflito entre os progenitores, deverá ser sua a responsabilidade de resolver o seu conflito através de mediação, uma vez que da observação clínica realizada junto da criança foi possível avaliar a alteração comportamental da criança diretamente relacionada com as dinâmicas conflituais entre os progenitores, o que leva a que a criança tenha de mobilizar um conjunto de recursos emocionais e cognitivos que lhe permitam gerir e lidar de forma adaptativa, uma situação extremamente complexa e exigente do ponto de vista emocional. É necessário referir que, do ponto de vista do funcionamento emocional, a CC apresenta um discurso desadequado à sua idade e que está a ser influenciado pela observação do litígio parental. A questão não é a confiança ao progenitor ou progenitora, mas sim a adequação do relacionamento entre eles, que permita que a criança se relacione com cada um de uma forma adequada e em que cada um promova a coparentalidade do outro progenitor sem o diminuir ou desvalorizar.”
22. O CAFAP na sua primeira informação fez constar, entre o mais, o seguinte: “(...) Dada a disponibilidade e recetividade manifestada por ambos os pais, a equipa realizou o momento de Avaliação da Dinâmica Familiar com o objetivo de avaliar a dinâmica e interação entre pais e filha. Nesta sessão, estiveram presentes a Sra. AA, o Sr. BB e a CC. Conforme previsto no protocolo, a Sra. AA e a filha chegaram primeiro. Enquanto esperavam pelo Sr. BB foram interagindo e conversando com a equipa. Quando o Sr. BB chegou, os pais cumprimentaram-se verbalmente e o Sr. BB sentou-se ao lado da filha e em frente à Sra. AA. A pedido da CC fizeram um puzzle e participaram todos na atividade. Ao longo do encontro, a CC mostrou-se tranquila e interagiu com ambos os pais. Após a saída da mãe, a CC manteve-se focada na realização das atividades com o pai. Do que foi possível observar, a CC tem uma boa relação com o Sr. BB, sentindo-se à vontade na sua presença, com ou sem a mãe. O Sr. BB procurou ajudar e estimular a filha enquanto faziam os jogos, por exemplo, enquanto faziam o puzzle com o mapa de Portugal fez-lhe algumas questões sobre Geografia. Quando a Sra. AA regressou a CC continuou a jogar e a Sra. AA interagiu com os presentes, na atividade que estavam a fazer.
Conforme estipulado no protocolo da avaliação, ao longo do encontro, a equipa promoveu momentos a sós com todos os intervenientes. Com a Sra. AA, a mãe referiu estar bem, que tinha sido divertido estarem a fazer um puzzle e que “estar na presença dele não me incomoda” (sic). No momento com a CC, esta referiu estar a gostar do encontro com os pais. No final, a equipa conversou com o Sr. BB que referiu ter sido bom estar com a filha.
Conclusão
Da intervenção realizada até ao momento, foi possível perceber que a CC está integrada em cada um dos contextos familiares, quer com o pai, quer com a mãe, segundo estes cumprindo o previsto na regulação das responsabilidades parentais. A equipa verificou ainda que, além do que havia sido relatado por todos os intervenientes, a CC mantém uma boa relação com ambos os pais e consegue posicionar-se ao lado de cada um de igual forma, na presença do Sr. BB e da Sra. AA.
Apesar desta evolução os pais consideram que existem dificuldades de comunicação entre eles nomeadamente nos encontros presenciais.”
23. O CAFAP na sua segunda informação fez constar, entre o mais, o seguinte: “(...) Da intervenção realizada junto da Sra. AA, esta tem vindo a revelar uma evolução na comunicação entre o par parental, referindo que atualmente conseguem conversar, exemplificando que quando o pai vai buscar a filha se cumprimentam. De acordo com a Sra. AA, a primeira comunhão da CC correu muito bem, referindo que a comunicação fluiu entre os pais. Contou que a família toda da CC, quer materna, quer paterna, esteve presente. (.) Nos contactos realizados com o Sr. BB, concordou com a mãe quanto à festa da primeira comunhão da filha. Referiu que o momento correu bem e que a filha “estava toda empolgada” (sic) para este dia. No que diz respeito à comunicação entre o par parental, o Sr. BB reconhece que houve uma evolução que “agora já se consegue comunicar” (sic). Conta que a Sra. AA está mais compreensiva e flexível, nomeadamente, em relação aos horários das visitas, permitindo que a filha fique mais tempo com o pai. O Sr. BB também partilhou que quando sabe que poderá demorar mais tempo, avisa a Sra. AA com antecedência. O atendimento conjunto, realizado no dia 03.08.2021, tinha como objetivo fazer um ponto de situação junto da Sra. AA e do Sr. BB, nomeadamente, acerca dos contactos entre pai e filha e da relação e comunicação entre o par parental, sendo que ambos referiram estar tudo bem. Pretendia-se também delinear, tendo em conta o desejo manifesto pelos pais, a alteração do acordo das responsabilidades parentais. (.)
Ao longo da intervenção, ambos os pais consideram haver uma melhoria na relação entre o par parental e na comunicação entre estes, sendo que a equipa também reconhece que há um maior entendimento entre ambos. Conforme referido na informação enviada a 13.04.2021, é possível perceber que a CC se consegue posicionar de igual forma na presença de ambos os pais, conseguindo falar e trocar carinhos com cada um, o que foi possível observar no último atendimento realizado aos A equipa procurou ajudar os pais a chegar a um consenso no que diz respeito a um novo acordo das responsabilidades parentais, tendo em conta a consciência da mãe da importância da criança passar tempo com a família paterna e o pedido do pai em alargar o tempo de convívio que tem com a filha.
Apesar dos pais manifestarem o seu desejo de que o processo a decorrer em Tribunal termine, não foi possível elaborar em conjunto com os pais um novo acordo, uma vez que o pai pretende um sistema de residência alternada, situação que a mãe não concorda. A equipa considera que é importante aumentar o tempo de presença do pai na vida da CC tendo em consideração a relação próxima que existe entre os dois. A proximidade da residência dos pais, a relação de afeto entre a criança e os dois pais e a capacidade de comunicação entre o par parental poderão ser facilitadores de um sistema em que a criança possa estar mais tempo com o pai.”
24. A CC tem atualmente 11 anos e frequenta o 6° ano de escolaridade, está inserida no contexto familiar e habitacional da progenitora, desfruta de uma inserção estável, mantém um relacionamento saudável e harmonioso com esta e restantes familiares que com ela partilham na atualidade o mesmo agregado familiar.
25. Mantém, atualmente, uma regularidade de contactos com o progenitor, integra o agregado familiar e habitacional deste nos dias de quarta-feira com pernoita para o dia de quinta-feira, bem como integra o mesmo nos fins de semana de 15 em 15 dias, de sexta a segunda-feira.
26. Do agregado familiar da progenitora fazem parte, além da CC, o companheiro, o filho HH de 17 anos e o filho II de 2 anos.
27. A progenitora colabora com o cônjuge que é empresário do ramo moto, pois encontra-se desempregada.
28. O agregado familiar da progenitora reside em casa emprestada. Trata-se de uma habitação unifamiliar, a qual desfruta de condições de habitabilidade indispensáveis aos seus utentes.
29. Os rendimentos do agregado familiar da progenitora são: prestação de alimentos da menor 75,00 €, vencimento do cônjuge 760,00 €; prestação de alimentos do descendente do primeiro casamento 75,00 €; prestações sociais - abono 228,31 €; acrescem ainda, rendimentos não declarados provenientes de expedientes, designadamente transporte de mercadorias para o estrangeiro/....
30. As despesas mais significativas do agregado familiar da progenitora são: centro de Estudos 40,00 €; Água/luz/gás 180,00 €; Internet/TV/Telemóveis 62,00 €; Vestuário/Calçado 40,00 €; Alimentação 300,00 €.
31. Do agregado familiar do progenitor fazem parte a companheira, a filha desta, JJ de 8 anos, e as gémeas, de 4 anos.
32. Os rendimentos do agregado familiar do progenitor são: vencimento do progenitor 760,00 €; Prestações sociais - abonos de família 141,00 €; vencimento da companheira 760,00 €.
33. As despesas mais significativas do agregado familiar do progenitor são: empréstimo habitação 140,00€; Centro de Estudos relativos à descendente CC 40,00 €; Água/luz/gás 230,00 €; Prestação de alimentos referente à CC 75,00 €; internet/TV/Telemóveis 55,00 €; Vestuário/ Calçado 70,00 €; Alimentação 400,00 €; Infantário das menores (Gémeas) 56,00 €; Deslocação trabalho 80,00 €.
2.2. Factos não provados.
Com relevância para a decisão da causa inexistem factos não provados.
3. Fundamentos.
3.1. Recorte do âmbito objectivo do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ainda ser restringido, expressa ou tacitamente, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (art.° 635.° n.°s 2, 1.9 parte, 3 e 5 do CPC).
A sentença impugnada no recurso é a que - ao fim de mais de cinco longos anos - regulou o exercício das responsabilidades parentais relativas à criança, filha da apelante e do apelado, CC, nascida no dia .../.../2011, regulação que se decidiu pelo exercício conjunto das responsabilidades parentais no tocante às questões de particular importância para a vida da criança e determinou, sem o acordo dos pais, a residência alternada desta com cada um deles e o exercício pelo progenitor com quem a criança em cada momento reside das respectivas responsabilidades parentais relativamente aos actos da vida corrente da criança. Segundo a sentença impugnada, o exercício alternado das responsabilidades parentais é o regime que se apresenta mais conforme ao interesse da criança, CC porque lhe possibilita contactos em igual proporção com os progenitores e respetivas famílias.
A mãe, apelante, discorda. No seu ver, o modelo de regulação adequado daquelas responsabilidades é - no tocante ao aspecto crucial da custódia ou da guarda física da criança - o que se adoptou na decisão provisória daquela regulação proferida para acta da conferência de pais realizada no dia 18 de Janeiro de 2018, que lhe confiou a guarda da filha e determinou o exercício conjunto das responsabilidades parentais, mas apenas no tocante às decisões de particular importância da vida daquela. E para aquela discordância dá, desde logo, esta razão: o erro do tribunal de que provêm recurso na decisão da matéria de facto relevante. A esse erro acrescem, segundo a apelante, a violação dos princípios da proporcionalidade, da actualidade e da consensualização e, enfim, a contrariedade da decisão impugnada com a opinião expressa pela criança no acto da sua audição. Por último, a apelante, ao sustentar que a sentença violou o art. 615.°, n.° 1, c) e d), acha que a sentença impugnada se encontra ferida com o desvalor da nulidade substancial.
O descontentamento da apelante dirige-se, pois, desde logo quanto à decisão da quaestio facti. Simplesmente, tanto apelado como o Ministério Público sustentam, una voce, que no segmento em que controverte a correcção da decisão da matéria de facto, o recurso deve ser rejeitado com fundamento no incumprimento, pela impugnante, do ónus de impugnação daquela matéria a que a lei de processo terminantemente a vincula.
Maneira que, considerando os parâmetros da competência decisória ou funcional desta Relação, atrás delimitados, as questões controversas que importa resolver é a de saber se a sentença impugnada enferma do vício da nulidade substancial, e se deve ser revogada e logo substituída por outra que confie a criança à apelante e atribua a esta o exercício das respectivas responsabilidades parentais, excepto no tocante às questões de particular importância da vida da filha. A resolução destes problemas importa o exame leve, mas minimamente estruturado, das causas de nulidade substancial da sentença, representadas pela contradição intrínseca e pela omissão de pronúncia, do ónus da impugnação da matéria de facto que a apelante está adstrita e do critério de decisão da regulação das responsabilidades parentais.
3.2. Nulidade substancial da sentença impugnada.
Segundo a apelante a sentença impugnada encontra-se ferida com desvalor da nulidade substancial resultante, se bem interpretamos o seu pensamento de uma omissão de pronúncia, e de contradição intrínseca.
O valor jurídico negativo da nulidade por omissão de pronúncia resulta da abstenção de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados.
O tribunal deve, realmente, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (art.°s 130.° e 608.°, n.° 2, do CPC)[1]. O tribunal deve examinar toda a matéria de facto disponível e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. A nulidade que se examina resulta da infracção desse dever.
No caso, a omissão de pronúncia derivaria - parece - da circunstância de a sentença impugnada não ter julgados provados factos que, no ver da apelante, devem ter-se por demonstrados em face das provas pessoais produzidas na audiência final, e de não ter adquirido para o processo outros, relevantes para a decisão.
Como melhor se detalhará, os factos que, segundo a apelante, resultam daquelas provas não foram objecto de oportuna alegação no momento processualmente adequado: as alegações das partes, consequentes à conferência de pais, no qual não se obteve acordo sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais (art.° 39.°, n.° 3, do RGPTC, aprovado pela Lei n.° 141/2015, de 24 de Maio). Ergo, a sentença não estava vinculada a pronunciar-se sobre eles, declarando-os provados ou não provados; as declarações das testemunhas não suprem a insatisfação pelas partes do ónus de alegação, v.g., da causa petendi. Conclusão que permanece exacta mesmo no tocante - como é o caso da providência tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais - a processos de jurisdição voluntária caracterizados, designadamente, pelo predomínio, quando ao objecto da causa, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo - em que, portanto, o tribunal pode investigar livremente os factos, não estando limitado aos factos articulados pelas partes - dado que tal característica não dispensa as partes do ónus da alegação dos factos relevantes nem vincula o tribunal a actuar aqueles poderes inquisitórios, excepto se, de modo discricionário, considerar um qualquer facto relevante para a justa composição do litígio (art.°s 987.° do CPC, ex-vi art.° 12.° do RGPTC).
Do que decorre que a sentença apenas estava vinculada a pronunciar-se sobre os factos relativamente aos quais foi cumprido o ónus da alegação que vincula as partes e, no tocante a estes, apenas no tocante aos que considerou relevantes para a boa composição da controvérsia. Não pode, portanto, dizer- se, que a sentença se encontra ferida, com fundamento numa qualquer omissão de pronúncia, no vício da nulidade substancial.
A decisão é igualmente nula quando se encontra ferida de contradição intrínseca, i.e., quando os seus fundamentos estiverem em oposição com a parte decisória, quando os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem, logicamente, a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão (art.° 615.° c), 1.g parte, do CPC). Esta nulidade substancial está para a decisão do tribunal como a contradição entre o pedido e causa de pedir está para a ineptidão da petição inicial.
A sentença impugnada, depois de examinar os factos que julgou adquiridos para o processo concluiu que o exercício alternado das responsabilidades parentais é o regime que se apresenta mais conforme ao interesse da criança, CC porque lhe possibilita contactos em igual proporção com os progenitores e respetivas famílias. Esta decisão não colide com os fundamentos em que se apoia.
Não existe, realmente, vício lógico na construção da sentença, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduzem logicamente ao resultado expresso na decisão e não a resultado oposto. Desde que, bem ou mal, se assentou, à luz do princípio regulativo do interesse da criança, que a melhor solução seria a da residência alternada da criança, a sentença não podia, realmente, regular o exercício do cuidado parental segundo o modelo da guarda física única e, consequentemente, do exercício unilateral exclusivo das responsabilidades parentais, conatural àquela guarda. A sentença apelada também não sofre, portanto, de vício lógico que irremediavelmente a comprometa.
Parece, porém, que a incoerência intrínseca da decisão resultaria, na perspectiva da apelante de a decisão ter sido proferida contra as provas produzidas na audiência final, maxime, contra as declarações da criança e com a vontade que, no seu ver, esta manifestou.
Simplesmente a colisão entre as provas e a decisão de julgar um facto provado ou não provado, constitui, não um caso de nulidade da sentença, por contradição intrínseca - mas um nítido erro de julgamento, por erro na avaliação ou apreciação da prova, o mesmo sucedendo sempre a sentença erra no juízo de integração dos factos apurados na previsão da norma ou do princípio - v.g., o do interesse da criança - aplicável no caso concreto. Trata-se, caracteristicamente, de um erro na subsunção - portanto de um puro erro de julgamento - i.e., na interpretação dos conceitos utilizados naquela previsão e na concretização dos conceitos indeterminados que se encontram nela.
Não há, pois, fundamento sério para, por também por este motivo, estigmatizar a sentença impugnada com o valor negativo da nulidade.
De resto - e como é, aliás, frequente - a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.
O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.
Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez que ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (art° 665.°, n° 1, do CPC).
No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (art°s 665.°, n° 1 e 684.°, n° 1, do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (art.° 635.°, n° 2, do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.
Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que, á míngua de outro melhor, o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal de recurso possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (art.° 130.° do CPC)[2].
A arguição da nulidade da decisão - embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento - é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal de recurso, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.
Por este lado, é, pois, clara a falta de bondade do recurso.
3.3. Ónus da impugnação da decisão da matéria de facto.
O recorrente que impugna a decisão da matéria de facto deve especificar, sob a pena grave de rejeição, nesse segmento, do recurso, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados, quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos e a decisão que, no seu ver, deve ser encontrada para os pontos factos impugnados (art.° 640.°, n.° 1, a) a c), do CPC). Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente proceder à indicação das passagens do registo fonográfico em que funda a impugnação, sem prejuízo da faculdade de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (art.° 640.°, n.° 2, a), do CPC). Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente dos factos e das provas, que no seu ver, foram mal avaliadas, e das passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer nitidamente, as provas e os troços ou os segmentos da prova pessoal registada susceptíveis de inculcar o error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe incumbe, na resposta ao recurso, indicar as provas e os depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente; o tribunal ad quem carece de o saber para poder reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (art.° 640 n.° 2, b) do CPC).
E a exigência de que a indicação seja exacta, precisa, específica, visa, nitidamente - sobretudo nos casos de depoimentos particularmente extensos - permitir, tanto à parte contrária, como ao Tribunal ad quem - uma audição, fácil e célere, das passagens do registo sonoro em que se funda a impugnação, de modo a avaliar, de forma ágil, se os troços do registo apontados pelo recorrente são ou não adequados a inculcar o erro de julgamento que invoca, sem prejuízo, todavia, da actuação, pelo tribunal ad quem dos seus poderes de investigação oficiosa, portanto, da faculdade de proceder à audição de quaisquer outros segmentos do registo, do mesmo ou de outros depoimentos.
No entanto, para que este ónus da impugnação da decisão da questão de facto se tenha por satisfeito, é suficiente que a indicação das passagens do registo seja feita na alegação, não sendo necessária, para que se tenha por cumprido, que seja repetida nas conclusões com o que o recorrente deve rematar aquela a alegação[3].
Realmente, de harmonia com a jurisprudência constante - mas discutível - do Supremo Tribunal de Justiça, há que operar um distinguo, no ónus da impugnação da matéria de facto que vincula o apelante, entre um ónus primário ou fundamental - referido à indicação dos pontos que o recorrente reputa de mal julgados, aos meios de prova que impõem decisão diversa e à decisão que deve ser proferida sobre esse as questões de factos impugnadas - e um ónus secundário - que tem por objecto a indicação exacta das passagens do registo sonoro da prova. Distinção que, relacionada com o ónus de formular conclusões, determina esta solução: a falta nas conclusões, da referência à impugnação da matéria de facto, à menção dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, e os meios de prova susceptíveis de inculcar decisão diversa daquela que foi encontrada, para aqueles pontos de facto, pela decisão da 1,9 instância, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser proferida, é fundamento de rejeição, total ou parcial, do recurso no tocante à impugnação da decisão da questão de facto (art.°s 635.°, n.°s 2 e 4, 639.° e 641.°, n.° 2, b), do CPC); para que se tenham satisfeitas as restantes exigências dessa impugnação - designadamente a indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda - é suficiente que sejam levadas ao corpo da alegação (art.° 640.°, n.° 1, b) e c), do CPC)[4].
Se bem lemos a alegação da apelante, esta não impugna, por erro de julgamento, os factos que o tribunal de 1.9 instância julgou provados ou não provados. Quanto aos factos provados, a impugnação tem por alvo, apenas, a circunstância de os factos julgados provados sob os n.°s 6 a 10 e 12 não se mostrarem temporalmente situados, ponto que que não se julga relevante, sendo certo, de resto, os factos referidos nos n°s 6 a 10.° são relativamente fáceis de localizar temporalmente, com um grau de precisão suficiente, dado que se referem ao tempo em que a apelante e o apelado viviam juntos.
Portanto, no ver da recorrente o que sucede é, de um aspecto, que existem outros factos que devem ser considerar-se demonstrados - v.g. o episódio ocorrido em Maio de 2022 ou que a criança gostar mais de estar em casa da avó paterna do que em casa do pai - mas que a decisão impugnada desconsiderou e, de outro, que esta omitiu a referência às condições de habitação do apelado e, por último, que a decisão contraria o interesse da criança, v.g., por ter decidido sem atender à vontade que esta manifestou.
Este último ponto é, seguramente, estranho á questão de facto.
A distinção entre matéria de direito e de facto é dificultada pela interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, especialmente pela sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto, dado, por um lado, que as normas ou princípios jurídicos definem determinadas consequências jurídicas para os factos adquiridos para o processo e, por outro, a delimitação da matéria de facto em um função da matéria de direito é também patente, uma vez que os factos são escolhidos entre acontecimentos naturais ou sociais, segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da causa. Apesar desta interdependência - e numa perspectiva mais gnoseológica que ontológica, o distinguo entre matéria de facto e de direito pode ser feito segundo o critério seguinte: a matéria de facto respeita à averiguação dos factos e exprime-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa, enquanto a matéria de direito se refere à aplicação de normas ou princípios jurídicos e o resultado dessa actividade poder ser avaliada segundo um critério de correcção ou justificação. São, por isso, questões de facto, v.g. quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, bem como qualquer mudança operada no mundo exterior, o estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas.
Para decidir a espinhosa questão da residência da criança o tribunal pode exigir a prova de certos factos, v.g., quem dispensou certos cuidados à criança, quem a acompanhou de modo mais assíduo, quais são as necessidades educativas ou outras da criança, etc. Mas quando o tribunal procura formar um juízo sobre qual deve ser o regime da guarda da pessoa da criança, já se não se encontra no domínio da produção da prova e da matéria de facto. Saber, realmente, se a sentença impugnada aplicou bem o critério de decisão predominante - o princípio regulativo do interesse da criança - é uma pura questão de direito, dado, evidentemente, que se refere a aplicação de uma norma ou princípio jurídico, que pode ser avaliada segundo um critério de correcção e não de harmonia com um juízo de veracidade ou falsidade.
Relativamente a questão de facto propriamente dita, o defeito que a impugnante assaca à decisão correspondente não radica num erro na apreciação das provas - mas num erro sobre o objecto da prova, visto que, no seu entender, para além dos factos que a sentença julgou demonstrados, outros existem que, em face das provas v.g. pessoais, produzidas na audiência final, se devem igualmente ter provados e, bem assim, que não estão adquiridos para o processo outros que relevam para a decisão da causa. Portanto, o problema colocado pela impugnação da decisão da matéria de facto empreendida pela apelante não releva do cumprimento ou não cumprimento do ónus, puramente formal, a que está adstrita.
Quanto a este ponto, a metódica da apelante consiste no seguinte: o facto deve ser considerado provado porque a testemunha o declarou - não porque, por exemplo, seja relevante e tenha sido objecto de oportuna alegação Não é assim. O facto só deve ser considerado se tiver sido oportunamente alegado ou se tratar de um facto meramente complementar ou probatório - e se for relevante segundo a solução de direito, ainda que só plausível, da causa (art.°s 607.°, n.° 4 do CPC).
É certo que estamos perante providência tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais que é um processo especial de jurisdição voluntária e, portanto, em que se verifica um predomínio, quanto ao objecto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo, dado que ao tribunal pode investigar livremente os factos, não estando limitado aos factos articulados pelas partes, como sucede, em regra, no processo contencioso, característica da jurisdição voluntária que deve ser vista em ligação com o critério de decisão: é porque o juiz decide segundo critérios de discricionariedade que lhe são atribuídos poderes
inquisitórios (art.° 987.° do CPC, ex-vi art.° 12.° do RGPTC). Simplesmente, por um lado, isso não alija as partes do ónus da alegação dos factos relevantes e, por outro, não vincula o tribunal a actuar aqueles poderes inquisitórios, dado que essa actuação releva de poderes discricionários, pelo que a parte não pode tribunal superior que controle se seria melhor ou não usar, no caso, daqueles poderes no tocante a este ou aquele facto, dado que o exercício ou não exercício releva do seu prudente arbítrio, consoante o que lhe parecer mais adequado para a justa composição do litígio: um tal decisão não é passível de impugnação (art.° 630.°, n.° 1, do CPC).
Consabidamente, a causa de pedir é constituída, apenas, pelos factos necessários para a individualização a pretensão material alegada pelo autor e, portanto, não é integrada por todos os factos de que depende, de harmonia com a norma substantiva aplicável, a procedência da acção. Dito doutro modo: a causa petendi não é integrada pelos factos complementares, i.e., por aqueles factos que se limitam a concretizar ou a complementar aquela causa de pedir (art.° 5.°, n.°s 1 e 2, b), do CPC). Apesar de não participarem na causa de pedir, o autor não está dispensado do ónus de os alegar, dado que, sem a sua alegação - e prova - a acção não pode ser julgada procedente, embora a omissão da sua alegação não tenha um efeito preclusivo, porque tais factos podem ser adquiridos durante a instrução e a discussão da causa (art.° 5.°, n.° 2, b), do CPC).
Simplesmente, há que conjugar este efeito não preclusivo da omissão de invocação de factos complementares com as regras a que obedece a alegação, no tribunal de recurso, de factos novos, considerando que a atribuição à Relação de poderes de julgamento da matéria de facto deve, sempre, ser vista no enquadramento geral dos recursos: o que se visa não é criar uma nova instância de julgamento da matéria de facto - mas limitadamente instituir uma instância de controlo sobre o julgamento dessa matéria pela 1.^ instância. Do modo como se mostram construídas as suas competências relativamente à matéria de facto, a Relação, no tocante a esse objecto, não é uma 2.3 1.3 instância.
Na verdade, considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[5].
No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não hajam sido formulados: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais - e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[6].
Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova - na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[7].
Serve isto para dizer que, no caso, está inteiramente excluída a possibilidade de considerar na decisão do recurso - como pretende a recorrente - quaisquer factos que não foram alegados na instância recorrida e, mais do que isso - nem sequer foram julgados nessa instância, ainda que a sua veracidade tenha sido assegurada, por exemplo, por uma testemunha. Este recurso tem apenas por finalidade controlar a decisão impugnada, nas exactas condições que foi proferida, pelo que é inadmissível a invocação de factos novos que podiam e deviam - em cumprimento pontual do ónus de alegação que vincula as partes - ter sido invocados na instância recorrida - no caso da providência, nas alegações produzidas na sequência da conferência de pais - e nela sido julgados.
De resto, os factos que a apelante considera que devem considerar-se provados, não devem não devem ter-se por meramente instrumentais ou complementares antes devem ter-se por essenciais, portanto, integrantes da causa de pedir que lhe compete alegar, dado que se resolvem em factores relevantes, do seu ponto de vista, para decidir da questão central objecto da controvérsia: a residência da criança. Mas nem um tal ponto de vista se considere exacto.
Como melhor se procurará mostrar, na providência de regulação do exercício das responsabilidades parentais, a apreciação de todos os factores que devem ser tidos em conta, v.g., sobre a guarda física da criança, é uma tarefa comprovadamente impossível. Portanto, mais modestamente, o único objectivo realista é considerar os tidos, comummente, por mais relevantes ou decisivos, com a noção de que a riqueza do negligenciar aqueles que, nas circunstâncias concretas, não caso concreto pode mostrar outras circunstâncias a que o tribunal deva prestar atenção, sendo-lhe lícito, por outro lado, mereçam relevância.
Tome-se, por exemplo, as questões relacionadas com as condições patrimoniais e habitacionais dos pais da criança. A mão da criança encontra-se desempregada e vive em casa emprestada - título de ocupação da casa que habita que a apelante, na sua alegação, decerto de caso pensado, omite; o pai tem emprego e vive em casa própria, cuja composição se ignora - ignorância que se explica pela circunstância de o meio de aquisição da prova representado pelo relatório social do ISS.IP, datado de 25 de Outubro de 2022, omitir essa composição.
O facto de a mãe da criança não ter qualquer rendimento do trabalho e viver numa casa emprestada, não impede que detenha a guarda física da criança desde o seu nascimento, assim como o facto de se ignorar a composição da casa do pai não tem obstaculizado a que a tenha consigo na sua casa. Portanto, qualquer destes factores não se julga relevante para decidir a espinhosa questão da residência e, consequentemente, da custódia física da criança. A apelante concordará, decerto, que seria profundamente chocante que a custódia da filha fosse transferida para o pai com o argumento de que não dispõe de condições económicas para prover à satisfação das necessidades materiais da criança e tem uma situação habitacional precária, como também feriria a sensibilidade mais embotada recusar ao pai a residência consigo da filha, sob o pretexto de que não se conhece a composição da sua casa. Portanto, se as condições financeiras e habitacionais não se mostraram relevantes para a execução durante vários da decisão provisória de regulação, não se julga que o devam passar a ser na procura de uma decisão definitiva - o que explica que a prova pericial e o meio de aquisição da prova representado pelos relatórios sociais se tenham preocupado ou se tenham focado na averiguação de outros factos - as competências dos pais para o exercício da função parental, a qualidade e a consistência dos vínculos afectivos que ligam a criança a qualquer dos pais, a capacidade destes de manterem, entre si, um comunicação ou um diálogo positivo ordenado para o bem da filha, etc. - por decerto os considerarem, no caso, infinitamente mais relevantes para a decisão sobre o projeto de vida futuro da criança.
Dito doutro modo: os factores que, no caso se devem considerar relevantes são outros que não os que decorrem dos factos que, segundo a apelante, não foram considerados na decisão da matéria de facto, sendo certo que aqueles que se mostram adquiridos para o processo permitem uma decisão conscienciosa da questão concreta - e delicada - controversa.
No que a sentença não é escorreita é no segmento em que, na exposição dos factos, reproduz extensivamente as provas susceptíveis de persuadir da respectiva realidade. Realmente, uma coisa são os factos que se julgam provados - outra, bem diversa, são as provas que convencem da respectiva veracidade. A perícia é um meio de prova e o relatório social é um meio de obtenção da prova, pelo que é de todo incorrecto que, em vez de discriminar o facto que, com base nestes meios de esclarecimento e convicção, se julga demonstrado - se reproduza, em toda a sua extensão, o meio de prova capaz de mostrar a sua veracidade (art.° 607 n.°s 3 e 4, do CPC). Mas este defeito não é causa de qualquer vício relevante da decisão daquela matéria, v.g., por erro sobre o objecto da prova, que justifique o uso, por esta Relação, dos seus poderes de correcção - ou de cassação - daquela decisão[8].
Em absoluto remate: não há fundamento para exercer sobre a decisão da matéria de facto da 1.9 instância os poderes de correcção que, relativamente, a essa matéria são reconhecidos a esta Relação e, portanto, para modificar essa decisão, pelo que os factos sobre que deve assentar a decisão do recurso são aqueles que na sentença impugnada se julgaram provados.
3.4. Critério de decisão da regulação das responsabilidades parentais.
CC, dado que ainda não perfez 18 anos de idade, é menor (art°s 122.°, 123.°, 129.° e 130.° do Código Civil).
Está, por essa razão, sujeito ao poder paternal, rectior, às responsabilidades parentais (art°s 124.° e 1877.° do Código Civil, o último na redacção do art.° 3.° da Lei n.° 61/2008, de 31 de Outubro)[9].
As responsabilidades parentais consistem num conjunto de poderes-deveres, funcionalmente afectados à prossecução do bem-estar moral e material do filho (art°s 1784.°, n.° 1, e 1878.°, n.° 1, do Código Civil).
As responsabilidades parentais não são, estruturalmente, um direito subjectivo: são antes uma situação jurídica complexa em que avultam poderes funcionais e alguns direitos, mas ao lado de puros e simples deveres.
Constituindo nítido exemplo de direito pessoal familiar, as responsabilidades parentais não são, porém, um direito a que se ajuste a noção tradicional de direito subjectivo: trata-se, antes, de um poder dever, um poder funcional, nos termos do qual incumbe, a cada um dos pais, no interesse exclusivo do filho, guardar a sua pessoa, manter com ele relações pessoais, assegurar a sua educação, sustento, representação legal e a administração dos seus bens (art.°s 1878.°, n.° 1, 1881.° e 1885.° do Código Civil)[10].
Portanto, as responsabilidades parentais não são um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre - mas de faculdades de carácter altruísta, que devem ser exercidas primariamente no interesse do menor - e não dos pais (art.° 1878.°, n.° 1, do Código Civil)[11].
O menor não é, porém, apenas um sujeito protegido pelo direito; é ele próprio, titular de direitos reconhecidos juridicamente (v.g., art°s 64.°, n.° 2, 67.°, 68.° e 69.° da Constituição da República Portuguesa - CRP)[12].
Esses direitos, sem prejuízo daqueles que devem reconhecer-se aos pais - que exercem poderes funcionais para desempenharem deveres no interesse do filho - reclamam que a função parental, seja qual for a vertente considerada, se coloque ao serviço do desenvolvimento, são e harmonioso, da personalidade da criança e do seu bem-estar moral e material[13] e da regular evolução do seu processo de socialização[14].
O desenvolvimento pleno da criança implica, na verdade, o reconhecimento e a realização de direitos sociais, culturais, económicos e civis[15]. O exercício dos direitos que a criança titula reclama responsabilidade parental, i.e., que os pais assumam os seus deveres para com o filho.
A criança tem, desde logo, um direito à protecção da sociedade e do Estado (art.° 69.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa). Trata-se, nitidamente, de um direito social, que impõe, seja ao Estado, seja á sociedade, deveres de prestação e de actividade e que supõe, por definição, um direito negativo da criança a não ser abandonada, discriminada ou oprimida (art.° 69.°, n.° 1, 2^ parte, da Constituição da República Portuguesa).
Esse direito tem por fundamento final o desenvolvimento integral da criança, noção cuja matriz constitucional deve ser aproximada da noção de desenvolvimento da personalidade, que assenta em dois pressupostos: a garantia da dignidade da pessoa humana, elemento estático mas fundamental que constitui o alicerce do direito ao desenvolvimento; a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades (art.°s 1.° e 26.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa).
A dimensão fundante da dignidade da pessoa da criança e do desenvolvimento da sua personalidade coloca o interesse da criança como parâmetro material básico das decisões que lhe digam respeito.
A Constituição da Família não reconhece direitos apenas à criança; reconhece-os também aos pais.
Desde logo, o direito e o dever dos pais - de ambos os pais - de educação e manutenção dos filhos (art.° 36.°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa). Trata-se, verdadeiramente, de um direito-dever subjectivo - e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrante das responsabilidades parentais - que se traduz na compreensão destas últimas como obrigação de cuidado parental[16].
O direito e o dever de educação têm, no contexto constitucional, um sentido mais amplo do que ensino já que abrange, designadamente, todo o processo global de socialização e aculturação, na medida em que ele é realizável dentro da família.
A garantia da não privação dos filhos é também um direito subjectivo titulado pelos pais - como, de resto, também pelos filhos (art.° 36.°, n.° 6, da Constituição da República Portuguesa). As restrições a este direito estão sujeitas a uma dupla reserva; reserva de lei - que deve estabelecer os casos em que os filhos poderão ser separados dos pais, quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais; reserva de decisão judicial - quando se trate de separação forçada, contra a vontade dos pais. Este direito constitui, de outro aspecto, dimensão ineliminável da garantia constitucional da protecção da família - que significa desde logo e em primeiro lugar, a protecção da unidade da família, ideia cuja manifestação mais relevante é o direito à convivência ou seja, o direito dos seus membros de viverem juntos ou, pelo menos, de manterem contactos pessoais entre si, direito que comporta uma dimensão negativa, como o direito de não serem impedidos de se juntarem ou, ao menos, de se contactarem, e que exige a realização das condições que permitam essa convivência (art.° 67.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa).
Por último, os pais gozam, enquanto tais, quer dizer, nas suas relações com os filhos, também do direito fundamental à protecção, i.e., ao auxílio da sociedade e do Estado no desempenho da tarefa de educar os filhos (art.° 67.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa). Este direito tem, naturalmente, como pressuposto, o direito de cuidar dos filhos, considerando-se, logo no plano constitucional, insubstituível a acção paterna e materna de criação e educação dos filhos. Neste domínio não releva já tanto a protecção da criança - mas sobretudo a protecção dos pais nos seus direitos e deveres em relação aos filhos, que vincula à proibição de princípio de separação da criança dos pais.
Do conjunto destes direitos de matriz constitucional decorrem, entre outros, no plano infraconstitucional, os princípios orientadores, representados pelo interesse superior da criança - que vincula a que se atenda prioritariamente aos interesses da criança, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos presentes no caso - pela proporcionalidade e actualidade - que impõe que a intervenção deve ser adequada a garantir os direitos da criança no momento em que a decisão é tomada, só devendo interferir na sua vida e na da sua família na medida em for estritamente necessário para garantir os seus direitos - pela responsabilidade parental - que determina que a intervenção deve ser efectuada de modo a que os pais assumam os seus deveres para com a criança - e pela audição obrigatória e participação, designadamente, da criança, nos actos e na definição do seu projecto de vida (art.°s 4, a), e), f) e J) da LPCJP, aprovada pela Lei n.° 147/99, de 1 de Setembro, ex-vi art.° 4.°, n.° 1, e 5.° do RGPTC).
A criança apresenta um conjunto de necessidades cuja satisfação é necessária ao seu bem-estar psicológico e cuja não realização compromete o seu desenvolvimento posterior e o seu ajustamento social[17]. Entre essas necessidades avultam, entre outras, os cuidados físicos e de protecção; afecto e aprovação; estimulação e ensino; disciplina e controlo consistente e desenvolvimentalmente apropriados; oportunidade e encorajamento da autonomização gradual. O conceito de necessidades e o imperativo desenvolvimental da sua satisfação cria as condições para o reconhecimento do direito que assiste à criança de as ver realizadas. As necessidades da criança convertem-se, assim, em direitos subjectivos extensivos que constituem normas educativas relativamente às quais se afere a qualidade, competência e adequação dos pais[18].
A criança conquistou já um incontornável estatuto de cidadania social, tendo deixado de ser vista como mero sujeito passivo e objecto da decisão de outrem - o seu representante legal - sem qualquer capacidade para influenciar a condução da sua vida e passou a ser vista como verdadeiro sujeito de direitos, ou seja, como sujeito dotado de progressiva autonomia no exercício dos seus direitos em função da sua idade, maturidade e grau de desenvolvimento das suas capacidades.
Por isso que falar no interesse do menor equivale hoje a falar de direitos do menor. Esses direitos, sem prejuízo daqueles que devem reconhecer-se aos pais - que exercem poderes funcionais para desempenharem deveres no interesse do filho - reclamam que a função parental, seja qual for a vertente considerada, se coloque ao serviço do desenvolvimento, são e harmonioso, da personalidade da criança e do seu bem-estar moral e material e da regular evolução do seu processo de socialização.
O exercício e a realização dos direitos que devem ser reconhecidos à criança - exigidos pelo seu desenvolvimento harmonioso e pleno - reclamam responsabilidade parental, i.e., que os pais assumam e exerçam adequadamente os seus deveres para com o filho.
Os pais têm - ou deveriam ter - necessariamente consciência de que a ruptura parental causa um sofrimento afectivo na criança e que a intensidade dos conflitos parentais constitui um factor de risco preponderante no aparecimento de perturbações psíquicas na criança, durante e depois da separação dos pais[19].
A dissociação familiar dos pais não exclui a sua coparentalidade[20]. É imprescindível ao harmónico desenvolvimento da criança a manutenção de relações afectivas de qualidade com ambos os pais e a participação activa, interessada e responsável de ambos na sua educação. A ausência de qualquer relação de vivência em comum torna, aliás, ainda mais evidente a exigência de sobrevivência da união parental, no interesse da criança, primordialmente, mas ainda no interesse e realização pessoal e afectiva de cada um dos pais.
A conflitualidade parental lesa o bem-estar psicológico do filho, sendo causa da insegurança, ansiedade e angústia sofridas por este, com prejuízo evidente para a correcta estruturação da sua personalidade e o harmonioso desenvolvimento do seu processo de socialização e de aquisição de competências pessoais e sociais.
A regulação das responsabilidades parentais exige, na sua execução, como condições essenciais, para que seja compensadora para a criança, o reconhecimento por cada um dos pais da parentalidade do outro, um grau mínimo de estima recíproca entre ambos e a inexistência de hostilidade entre eles. Basta, para tanto, que os pais assegurem entre si a comunicação e a informação acerca da filho, em especial sempre que os seus interesses essenciais sejam afectados[21], e uma atitude de concertação e cooperação recíprocas, através de um comprometimento sólido perante a regulação, e a observância do princípio de que as relações paterno-filiais se situam a um nível diferenciado das relações conjugais ou para-conjugais, prevenindo a instrumentalização da filha nos conflitos que os opõem[22].
Na situação de dissociação familiar o interesse da criança pode, numa primeira aproximação, ser identificado a partir dos fundamentos finais da função parental: o estabelecimento de condições psicológicas, materiais, sociais e morais favoráveis ao desenvolvimento harmonioso da criança e à sua progressiva autonomização. A garantia de tais condições dependerá, necessariamente, da inserção da criança num núcleo familiar estável e gratificante - do ponto de vista do seu bem-estar - da sua protecção e da sua educação, da possibilidade de relacionamento pessoal, directo e contínuo com ambos os pais e da promoção de um nível de vida suficiente ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.
Na definição judicial do regime de exercício das responsabilidades parentais, o acordo dos pais, concluído em condições de liberdade, igualdade e racionalidade, revela-se, assim, muito importante à adequação do regime à situação concreta da criança e dos pais, à promoção da sua coparentalidade e à garantia da observância e eficácia dos acordos estabelecidos. Não admira, por isso, que entre os princípios orientadores das providências tutelares cíveis se conte o da consensualização, de harmonia com o qual na regulação das responsabilidades parentais deve dar-se preferência ou prevalência a decisões negociadas ou contratualizadas pelos pais (art.°s 1905.°, n.° 1, do Código Civil, e 4.° b), do RGPTC, aprovado pela Lei n.° 141/2015, de 8 de Setembro).
O acordo dos pais quanto à regulação do cuidado parental é um acordo de vontades que assume a natureza jurídica de acto familiar quase negocial, dado que os seus efeitos, embora coincidentes com a vontade das partes, produzem-se por força de um acto - judicial ou para-judicial - de homologação, sem o qual o acordo não produz os efeitos jurídicos queridos pelas partes e será apenas um acto completo e imperfeito. A homologação - tal como o acordo - tem uma função constitutiva (art.° 37.°, n.° 2, do RGPTC)[23].
A regulação da função paternal por acordo é forma de regulação preferida pelo legislador, que, de resto, encarrega o juiz dessa missão, muitas vezes bem espinhosa, de favorecer a conclusão de acordo pelos pais[24] (art°s 1905.°, n.° 1, do Código Civil e 37.°, n.° 1, do RGPTC). E essa preferência do legislador é materialmente fundada: ela dá inteira satisfação à exigência legal de valorização e de promoção do entendimento dos pais sobre a educação dos filhos menores e a defesa dos seus interesses, privilegiando a capacidade de diálogo e de concertação, de diferenciação dos interesses relativos às relações paterno-filiais, por um lado, e as relações conjugais ou maritais, por outro, de identificação de papéis integrativos, relativos à educação dos filhos e de assunção das responsabilidades parentais, que traz implicada uma atitude de concertação e de cooperação entre eles, enquanto pais.
A regulação por decisão autónoma, ou negociada ou contratualizada, é a que oferece melhor garantia de que após o desaparecimento do sistema conjugal ou marital se mantém o subsistema parental, cuja definição de fronteiras é particularmente importante para o desenvolvimento psicoafectivo da criança. Estas considerações não prejudicam, contudo, a actuação judicial, no processo de obtenção do acordo, que deve sobretudo focalizar a intervenção na coparentalidade e operar como elemento facilitador e fomentador da parentalidade responsável e de relações intrafamiliares funcionais[25].
Todavia, a amarga verdade é a da profunda litigiosidade que acompanha a ruptura ou a dissociação familiar - característica infelizmente muito comum dos processos de regulação do exercício do cuidado parental - que obsta à obtenção de uma decisão definitiva - e não raro, também de uma decisão provisória - negociada ou contratualizada do desempenho da função parental.
Este fenómeno é disfuncional - mas não é inexplicável. O conflito familiar desenvolve-se em torno de interesses e expectativas relevantes para o direito - mas também através de fortes sentimentos e emoções que o direito não objectiva nem valora directamente. Esta realidade extrajurídica integrada por elementos da vida interior de cada um dos sujeitos nela envolvidos - sentimentos de ódio, de abandono, de insegurança, de vingança, de frustração, de receio face ao futuro, etc. - constitui uma componente essencial do conflito familiar. O contexto do conflito familiar é, assim, frequentemente, marcado por sentimentos acerca do ex- cônjuge ou ex-companheiro ou companheira, tais como amor, ódio, rancor, cólera, inveja e preocupação; sentimentos acerca da relação parental, como sejam o arrependimento, desilusão, tristeza e fracasso, e sentimentos mais gerais: fracasso, depressão, euforia, alívio, culpa e reduzida autoestima e autoconfiança[26].
O processo judicial, quer decorra em sede de jurisdição contenciosa quer em sede de jurisdição voluntária, apesar da especial natureza desta última, assenta numa lógica de contraposição dialéctica de posições antagónicas e numa perspectiva de vencedor/vencido. Esta realidade promove o confronto e reduz as possibilidades de diálogo e de entendimento entre os interessados sobre o conflito jurídico, agravando consequentemente a conflitualidade não jurídica que o envolve e lhe subjaz[27].
E esta realidade permanece, mesmo tendo em conta os espaços de auto composição de interesses existentes no contexto judicial em que se desenvolve o conflito. Não se deve questionar a extraordinária importância da actividade que cabe ao juiz enquanto auxiliar auto compositivo dos interesses em presença: a actividade de pacificação dos interessados, de elaboração de síntese das respectivas pretensões, de persuasão da adopção preferencial de soluções consensuais, de promoção e de garantia de um clima de igualdade, de liberdade e de racionalidade favorável á harmonização das várias propostas e contrapropostas de acertamento do conflito familiar parental[28]. A actividade conciliadora encontra-se, todavia, seriamente dificultada pela parcelarização artificial dos aspectos jurídicos do conflito familiar que delimitam o objecto da conciliação e pelo contexto de confronto em que assenta o processo judicial[29].
A eficácia real dos acordos estabelecidos judicialmente supõe também, inevitavelmente, a superação efectiva desses limites e dificuldades. De contrário, o acordo poderá ser aceite como solução mais rápida e estrategicamente mais conveniente - mas não certamente como o mais favorável a todos os interesses em presença.
A conflitualidade não jurídica e os factores psicológicos, como determinantes dinâmicas da superação do conflito familiar são, em regra, indiferentes para o direito. O objectivo da regulação do exercício do cuidado parental não é, por isso, o de castigar o culpado pela ruptura parental ou premiar o inocente, como não é o de permitir a apropriação da criança por qualquer dos pais; não se trata efectivamente de um ajuste de contas desencadeado pela dissociação parental; visa antes, promover, em articulação com os interesses atendíveis dos pais, os direitos da pessoa que deve constituir a sua centralidade: a criança.
As responsabilidades parentais podem ser estruturadas, quanto ao seu exercício, segundo dos modelos extremos básicos: o modelo de exercício conjunto e o modelo de exercício unilateral. Ao lado destes dois modelos extremos, perfila-se ainda o do exercício misto.
No interior do casamento, o modelo adoptado pelo legislador é o do exercício conjunto: na constância do matrimónio o poder paternal pertence a ambos os pais (art.° 1901.°, n.° 1, do Código Civil).
O exercício do poder paternal compete, pois, tanto à mãe como ao pai da criança; aqueles exercem- no conjuntamente. Correspondentemente, a guarda da criança compete, indistintamente, a ambos os pais.
A lei portuguesa adere, sem reservas, à concepção diárquica, igualitária, indiferenciada ou plenamente bilateral das responsabilidades parentais, portanto, com total eliminação do sistema das atribuições diferenciadas do pai e da mãe, que, por exemplo, constituía a marca de água da lei vigente anteriormente à Reforma de 1977 do Código Civil (art.° 1901.°, n°s 1 e 2, proémio, do Código Civil).
Trata-se, de resto, sem dúvida, da única concepção legislativa conforme, no plano do direito privado, com o princípio, entre nós de matriz constitucional, da igualdade jurídica dos cônjuges (art.° 36.°, n.° 3, da CR Portuguesa).
Da direcção colegial da autoridade dos pais, resultante do princípio da igualdade - que no nosso direito não conhece qualquer derrogação - deriva que não poderá, em qualquer circunstância, admitir-se a supremacia de qualquer um dos pais sobre o outro. Questão relevante, num contexto de exercício conjunto do cuidado parental, é a de saber se os pais são titulares, dentro da relação jurídico paterno-filial, de dois direitos subjectivos distintos - ou de dois complexos distintos de direitos - apenas unidos pela circunstância de terem de ser exercidos em comum, ou se, bem pelo contrário, eles são somente contitulares do mesmo direito ou do mesmo complexo de direitos. Várias soluções da lei - como por exemplo, a de o exercício das responsabilidades parentais poder competir a um dos pais e a de a inibição do exercício das responsabilidades parentais poder atingir só um deles - conjugam-se melhor com a perspectiva da dualidade de direitos - ou do complexo de direitos - em regime de contitularidade, sem embargo da regra da necessidade do exercício comum de tais direitos (art.°s 1906.°, n.° 2 e 7, e 1915, n.°s 1 e 2, do Código Civil)[30].
O instrumento normal do exercício em comum dos direitos de cada um dos progenitores é o acordo - de vontades - entre os pais, visto que o filho não pode ficar exposto a decisões discordantes dos pais sobre a regência da sua pessoa e a gestão dos seus bens. É no comum acordo dos pais - resultante do princípio da direcção conjunta - que se deve procurar o regime de todos os actos relativos à vida da criança que não tenham regime especial[31].
É este o sentido profundo da regra de que os pais exercem o poder paternal em comum acordo, melhor se diria, por intermédio de sucessivos acordos - declarações concordantes de vontade pelos sujeitos da relação paterno-filial ou declarações de um só deles com o presuntivo consenso do outro, sobre aspectos respeitantes à vida do filho. Esses acordos, ainda que meramente tácitos, podem referir-se a actos da mais variada natureza: acto isolado ou uma conduta duradoura. Entre esses assuntos conta-se, naturalmente, o da residência do filho.
No modelo de exercício unilateral - que corresponde ao modelo da guarda física única - os poderes- deveres em que juridicamente se analisam as responsabilidades parentais são exercidos pelo progenitor a quem a criança foi confiada (art.° 1906.°, n.° 2, do Código Civil). Esse progenitor detém o direito de fixar a residência da criança e de coabitar com esta e assume o conjunto essencial das responsabilidades educativas e de protecção, física e moral, do filho; a posição jurídica do progenitor sem guarda é integrada, no seu núcleo fundamental, por dois direitos: o de visita, de acesso ou de contacto - que consiste no direito de manter relações pessoais com o filho - e o de vigilância - que se resolve no direito de controlar o modo como o filho é educado pelo progenitor que detém a sua guarda (art°. 1906.° n.°s 2, 3 e 7 do Código Civil).
No modelo misto de exercício das responsabilidades parentais estas são exercidas pelo progenitor sob cuja guarda a criança fica colocada, mas certos assuntos relativos à vida da criança devem ser decididos por ambos i.e., as responsabilidades parentais, nesse segmento, são exercidas conjuntamente (art.° 1906 n° 3 do CC).
É evidente que o modelo de exercício unilateral do poder paternal, conatural ao sistema de guarda única, não é neutro nem asséptico do ponto de vista das suas consequências psicológicas e sociológicas, tanto para a criança e para cada um dos pais isoladamente considerado, como para as relações entre estes.
Para a criança, porque lhe recusa o contacto diário com o progenitor que não detém a sua guarda - que corresponde a metade do seu parentesco - e, por consequência, com a sua mundividência e sistema de valores, etc.: a criança e esse progenitor não dispõem de efectiva oportunidade de desenvolver uma relação de grande proximidade, dado que o padrão tradicional da visita cria entre eles uma relação formal e rígida, sem a naturalidade que caracteriza a relação de contacto quotidiano; viver num lar monoparental, liga-se, por vezes, a deficiências cognitivas e de aprendizagem e a problemas de identificação sexual.
O progenitor que não detém a guarda sente-se desqualificado e excluído da vida do filho e sofre sentimentos de perda e de luto que, na forma mais aguda, conduzem, em regra, à diminuição da periodicidade das visitas ou, na sua forma menos benigna, à sua completa supressão; o progenitor sob cuja guarda a criança foi colocada é sobrecarregado económica, física e psiquicamente com cuidado do filho.
O exercício unilateral das responsabilidades parentais, ínsito na guarda única, pressupõe um conflito de soma zero em que aquilo que um dos pais ganha é exactamente igual ao que o outro perde. Este sistema de winner take al, coloca os pais em posições extremas, numa lógica de vencedor e vencido, agudiza a sua conflitualidade e promove a hostilidade da sua relação e a instrumentalização da criança no conflito que os separa: o dano que de isto tudo decorre para a saúde emocional do filho é meramente consequencial.
A insatisfação relativa às sequelas da guarda única e do correspondente modelo de exercício unilateral do cuidado parental, aliada, designadamente, a nova cultura acerca da protecção da personalidade da criança no caso de dissociação parental e ao novo redimensionamento e densificação do seu direito de se relacionar com ambos os pais, criou o ambiente propício ao aparecimento de novas formas de guarda e, correspondentemente, de novos modelos de exercício da função parental - e que deu lugar a um movimento, universal e consistente, no sentido da parentalidade conjunta e, portanto, de partilha das responsabilidades entre ambos os progenitores e de estímulo da participação dos dois na vida do filho.
O movimento começou pela afirmação da partilha do exercício das responsabilidades parentais, estimulando os progenitores a procurarem o acordo acerca das decisões sobre a vida da criança, ao menos nos casos de particular importância - embora sem alterar o regime tradicional sobre a guarda física, i.e., sobre a residência da criança. De seguida, evoluiu-se para partilha da convivência com o filho, através da guarda conjunta física: visava-se estimular a presença física da criança com os dois progenitores, obstando a que um fosse qualificado como guardador principal e outro como guardador secundário. A par do desaparecimento da ideia de um progenitor com um papel principal, o plano terminológico, assistiu-se ao abandono das palavras guarda e direito de visita, que exprimiam uma escolha, em favor das palavras residência e contacto.
Entre nós, só com a Lei n.° 61/2008, de 31 de Outubro, se estabeleceu, injuntivamente, o princípio de que os dois progenitores exercem conjuntamente as responsabilidades parentais, depois da dissolução da união parental, quanto aos assuntos de particular importância (art.° 1906.°, n.° 1 do Código Civil). Finalmente, sempre ordenada pelo objectivo de assegurar a participação de ambos os progenitores na vida do filho e colocando definitivamente fim a resistências e dúvidas que a propósito se suscitaram - e de repercutir o menos possível os efeitos da ruptura parental sobre as relações da criança com os pais - permitiu- se ao juiz, sem o acordo dos pais, determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores[32]
(art.° 1906.°, n.° 2, do Código Civil, na redacção que lhe foi impressa pela da Lei 65/2020, de 4 de Novembro). Negativamente, a residência alternada consiste no abandono da residência única da criança em que, portanto, o filho convivia habitualmente apenas com um dos titulares das responsabilidades parentais, garantindo-se ao outro um direito de visita ou de acesso ao filho; pela positiva, residência alternada é, assim, a expressão visível e acabada desta finalidade conspícua: a partilha das responsabilidades parentais que decorre da guarda física alternada da criança, i.e., da sua residência alternada com cada um dos pais, dando corpo á tendência contemporânea, resultante de um movimento global e consistente, de manter ambos os progenitores em relação próxima com o filho, através da partilha de responsabilidades entre ambos[33].
Como já se sublinhou se faz notar a decisão sobre a regulação do desempenho da função parental deve ser actuada sobre o signo estrito do princípio do interesse da criança3 (art°s 1906.° n.° 7, do Código Civil, 40.° n.° 1 do RGPTC, e 4 a) da LPCJP, aprovada pela Lei n.° 147/99, de 1 de Setembro ex-vi art.° 4.° do último daqueles diplomas legais).
Desse princípio, juridicamente consagrado, pode-se inferir um determinado conceito. Mas o conceito extraído do princípio é, por natureza, indeterminado. Dada a fluidez que informa o princípio jurídico, não é possível, através dele confeccionar um conceito rigidamente determinado, mas tão só um conceito de contornos, com um interior em aberto. Por tudo isto, pode-se dizer que, no Direito dos Menores, em particular, como de resto, no Direito da Família, em geral, reina uma indeterminação conceptual[34] [35].
O interesse da criança, enquanto princípio regulativo ou critério essencial de decisão, é, assim um conceito indeterminado, i.e., um conceito cujo conteúdo e extensão são, em larga medida, incertos, e carece, portanto, de um preenchimento valorativo[36]. Apesar da densificação do interesse da criança não se traduzir num juízo silogístico-formal de subsunção, mas antes numa valoração de critérios jurídicos de decisão, deve acentuar-se que se trata de actividade juridicamente vinculada que constitui estruturalmente aplicação do direito, não estando, por isso, na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae, de uma discricionariedade livre ou desvinculada. Consequentemente, essa valoração deve ser reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo.
O princípio do interesse da menor constitui, porém, um simples princípio regulativo e, por isso, não é apto, por si só, para declarar o que, em cada caso, é e o que não é do interesse da criança. Para esse efeito, outros critérios são necessários.
In veritas, a densificação do conceito de interesse da criança deve operar através de critérios ou de factores, de dimensão eminentemente prospectiva, que sejam neutros em relação ao género e que, portanto, sejam, não só harmónicos com o princípio, de matriz constitucional, da igualdade dos pais, mas que a promovam, que encorajem a contratualização, por estes, da regulação, e a sua adesão consistente a esta, reduzindo a conflitualidade parental, actual e futura, que sejam atentos aos direitos da criança e à sua vontade ou preferência, que não sejam intrusivos relativamente à autonomia da família, e, por essa via, conformes com o princípio da proporcionalidade e que se mostrem exequíveis, i.e., de aplicação ágil e fácil, evitando, por exemplo, o recurso a teorias psicológicas e a avaliações e perícias psicológicas e psiquiátricas, quer sobre as diferenças da relação afectiva da criança com cada um dos pais quer sobre a capacidade educativa destes, bem como a juízos de prognose sobre o comportamento ulterior dos pais e adaptação da criança a nova forma de organização da família.
Dada a constelação de factores atendíveis para a decisão sobre a residência da criança é, de todo, impossível a apreciação de todos eles. Mas não isso não impede a sua sistematização em duas categorias: os relativos à criança; os respeitantes aos pais.
Entre os primeiros contam-se, entre muitos, a idade e o grau de desenvolvimento, físico, psíquico e cultural da criança; as relações da criança com os seus progenitores e com outros parentes que sejam relevantes para ela; a permanência ou continuidade das relações afectivas da criança; as suas necessidades físicas, intelectuais e materiais; a adaptação da criança ao ambiente extra familiar de origem; os efeitos de uma eventual mudança causados por uma ruptura com este ambiente; os sentimentos e a vontade da criança; relativamente aos pais, são atendíveis, também além de muitos outros, a sua saúde, física e mental, a afeição de cada um deles pela criança, a sua capacidade para satisfazer as suas necessidades, o seu envolvimento e o tempo disponível para cuidar do filho, a competência prática de cada um deles para desempenhar as responsabilidades parentais, a estabilidade do ambiente que cada um deles pode proporcionar à criança, a sua aptidão para respeitar os direitos e os deveres do outro e a relação da criança com os novos cônjuges ou companheiros dos progenitores.
Como resulta desta formulação, de um aspecto, a enumeração dos factores atendíveis está longe de ser esgotante ou exaustiva e, de outro, a nenhum deve forçosamente atribuir-se qualquer privilégio sobre os demais: a boa solução deve ser encontrada depois de ponderadas todas as circunstâncias, sem que um qualquer factor deva ser encarado como privilegiado, que excluiu os outros.
Esta constatação decorre da circunstância de a lei se limitar a disponibilizar proposições indeterminadas que apenas se materializam no caso concreto. A indeterminação é de resto dupla: ela resulta quer da possibilidade de introduzir, na aplicação, novos factores atendíveis quer da intermutabilidade dos especificados na lei, cujo peso relativo, também se não encontra determinado. Existe, portanto, uma ilimitada variedade dos factores relevantes para o processo de decisão, a que soma a ausência de explicitação do seu peso relativo, tudo apontando para uma valoração casuística infindável, que vinca, também por esta via, a natureza móvel ou aberta do sistema.
Referência especial merece, como critério de decisão, a doutrina, oriunda dos Estados Unidos da América, do cuidador principal (primary caretaker presumptiorí) - surgido na sequência da doutrina da tenra idade (tender years) - de harmonia com a qual o factor de preferência deixou de ser a mera condição de mãe - que desvalorizava o papel do pai no desenvolvimento do filho e, do mesmo passo, sobrevalorizava as tarefas da mãe - para passar a ser a demonstração do cuidado prestado ao filho, quer pelo pai, quer pela mãe. Dado que o critério do cuidador principal tem implícito um sistema de escolha binário - ou um pai ou um outro - tendencialmente orientado para a exclusividade das relações do filho com o cuidador principal, portanto, contrário ao envolvimento de ambos os progenitores, seguiu-se-lhe a regra da aproximação ou do cuidado anterior, (past caretaking standard) segundo a qual a guarda física do filho devia continuar a prática do casal anterior à ruptura parental: o tempo do contacto do filho com cada progenitor devia reproduzir o tempo que cada um dos progenitores tinha dedicado ao filho durante a vigência da união parental, rejeitando-se assim paradigma da busca do cuidador principal, orientada para garantir um contacto tendencialmente exclusivo com cada um dos pais, permitindo um contacto maior da criança com os dois progenitores. Seja qual for em definitivo o mérito ou valor que actualmente se deva atribuir a uma e a outra doutrina, uma coisa se tem por certa: que na determinação do interesse da criança, não se pode aceitar a mobilização de uma circunstância, seja ela qual for, para encontrar a decisão, com desvalorização de todas as outras, pelo que não se pode atribuir ao cuidador principal um papel privilegiado relativamente a outros factores. Isto não significa que as relações privilegiadas da criança com dos progenitores não deva ser tida em consideração - mas apenas que o deve ser numa ponderação mais vasta de todos os factores que tendem para a inclusão do papel dos pais, em vez de se contentar com a fixação da guarda exclusiva e o exercício exclusivo das responsabilidades que lhe andava associado.
Conclusão que vale, por inteiro, para o elemento de ponderação do interesse da criança representado pela vontade que, eventualmente, tenha manifestado.
Á criança é, indiscutivelmente, reconhecido um direito de audiência e, portanto, o direito de participar constitutivamente na conformação das decisões que lhe digam respeito e, portanto, na definição da sua situação jurídica futura (art.° s 4.°, n.° 1, c), e 5.° n.° 1, do RGPTC). Todavia, uma coisa é o direito da criança a ser ouvida - outra bem diversa, é a vinculação mecânica, irreflectida, acrítica ou imotivada, do juiz à preferência manifestada pela criança acerca de um qualquer ponto ou vertente da regulação das responsabilidades parentais, maxime, sobre a sua residência[37]. Aceitando-se que a criança dispõe do grau de maturidade necessário para compreender o alcance do seu ponto de vista e o exprimiu de modo espontâneo - i.e., de que opinião que expressou é genuinamente sua, não tendo sido predeterminada ou condicionada por uma influência nociva ou indesejável de qualquer dos pais - há sempre que verificar se aquele ponto de vista, ainda que não seja puramente caprichoso, corresponde, objectivamente ao seu interesse, se é adequado ou conforme com um exercício óptimo dos direitos que titula, se a solução que preconiza é harmónica, além do mais, ao seu direito de conviver com ambos os pais e à participação destes, em condições de igualdade, na sua vida. Atitude contrária outra coisa não seria que o alijamento na criança - pelos pais e pelo tribunal - do encargo ou da responsabilidade, que lhe não compete por inteiro, de decidir sobre o seu projecto de vida, sujeitando-a, eventualmente, a um conflito de lealdade, de todo indesejável, relativamente a um ou a ambos os pais. De resto, num sistema, com o nosso, em que apenas se enuncia o grande objectivo de satisfazer o interesse da criança, a que se acrescentam depois factores que a lei quis acentuar, com o propósito de facilitar a sua entrada na ponderação final - o interesse do menor manter uma relação de grande proximidade com ambos os pais, a promoção da oportunidade de contacto entre ambos e a partilha, por aqueles, das responsabilidades parentais seria, no mínimo, desrazoável que a vontade do filho tivesse preferência sobre todos os outros factores. Essa vontade - desde que se mostre conforme com o seu interesse, objectivamente apreciado - é, decerto, um factor importante, mas, também por certo, não é o único factor a considerar. Isto é tanto mais exato quanto é certo que a preferência expressa pela criança, é muitas vezes, um simples acto de solidarização com o progenitor que, no seu ver, foi vitimizado pela ruptura parental.
Por razões que se explicam por si, a intervenção tutelar cível não tem uma feição retrospectiva, mas sim um carácter prospectivo, pelo que se compreende com facilidade que o modelo concreto da regulação das responsabilidades parentais deva corresponder à situação concreta, da criança e dos pais, existente no momento do encerramento da discussão em 1.9 instância (art.° 611.°. n.° 1, do CPC).
A regulação do cuidado parental deve, portanto, decorrer sob o signo estrito do princípio da actualidade (art.° 4.°, e), da LPCJP, ex-vi art.° 4.°, n.° 1, do RGPTC). Dado que se trata de decidir o futuro da criança - e não de julgar o passado dos pais - a regulação deve atender à situação da criança e dos pais o mais actualizada possível. Mas isso, não obsta, evidentemente, antes vivamente aconselha, a uma análise diacrónica daquela situação, aliás, exigida por alguns factores de ponderação, como por exemplo, o do cuidador principal ou da regra da aproximação ou do cuidado anterior regra da aproximação ou do cuidado anterior. Em qualquer caso, valem aqui as palavras do P. António Vieira: se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro.
A decisão de regulação do cuidado parental, nas várias dimensões em que se desdobra, deve também ser subordinada ao princípio da proporcionalidade (art.° 4.°, e), da LPCJP, exvi art.° 4.°, n.° 1, do RGPTC). Deve, por isso, interferir o mínimo possível, na vida da criança e dos pais, portanto, no direito à autodeterminação de uma e de outros. Mas se regulação, por decisão heterónoma deve ser, por força do princípio da proporcionalidade, a menos intrusiva possível na liberdade de determinação da criança e da sua família, em contrapartida, deve revestir a intensidade necessária para assegurar, em toda a sua extensão, os direitos e interesses que a criança titula. Convém recordar, de um aspecto, que estamos num sector em que prevalecem interesses públicos - a defesa do interesse da criança - sobre o livre jogo dos interesses particulares, não raro puramente unilaterais e egoísticos e, de outro, que a decisão heterónoma da regulação do cuidado parental é consequência da impossibilidade dessa regulação autónoma, i.e., por decisão negociada ou contratualizada dos pais.
Este viaticum habilita-nos, com suficiência, à resolução da questão concreta controversa, objecto do recurso.
3.4. Concretização.
A apelante queixa-se, desde logo, da violação pela sentença impugnada do princípio da consensualização. Cremos que, neste ponto, a recorrente deve queixar-se, desde logo - dela própria.
A providência foi decidida mais de cinco anos depois de ter sido instaurada. Abstraindo da circunstância de esta duração da sua pendência ser, de todo, desrazoável - e de desconsiderar que em todas das intervenções na situação jurídica de crianças o tempo é uma variável determinante ou uma dimensão crucial da análise dessas intervenções - seguro é que os pais dispuseram de um larguíssimo período de tempo para regular o exercício do cuidado parental relativo à filha por decisão negociada ou contratualizada, tendo, porém, optado pelo arrastamento do conflito parental, focando-se mais nas causas da ruptura parental e menos nas consequências da dissolução familiar. Isto é claro, justamente, no tocante à apelante, como decorre dos relatórios de perícia psicológica forense, em que precisamente se assinala que a recorrente mantém um discurso litigante e focado na parentalidade e uma centração na conjugalidade. É, portanto, manifesta, a conflitualidade da apelante, muito centrada, de resto, na etiologia da ruptura da sua relação, pelo que conflito em torno da criança reflecte mais as relações de poder de ambos os pais e as suas divergências do que uma preocupação real e séria com o interesse da filha, pelo que é notória a sua incapacidade de consensualizar soluções no tocante ao desempenho do cuidado parental. A única saída possível é, assim, a da regulação das responsabilidades parentais por decisão heterónoma.
De resto, o arrastamento e a intolerável dilação na decisão da providência - a que não é alheia uma complacência desrazoável do tribunal - só serve os interesses da recorrente, dado que permitiu a manutenção execução de uma decisão provisória de regulação que lhe atribuiu a guarda física única da criança quando esta tinha cerca de 7 anos de idade - mas não seguramente os da filha, não lhe sendo, decerto alheio, o propósito de conformar ou preordenar a decisão judicial, considerando a relevância do principio da continuidade que, no limite, dado certo condicionalismo pode impedir, em nome do interesse da criança, a sua colocação num contexto familiar alternativo ou, ao menos, diferente.
A regulação por decisão autónoma, ou negociada ou contratualizada é - notou-se já - a que oferece melhor garantia de que após o desaparecimento do sistema conjugal ou marital se mantém o subsistema parental. Mas e se os pais - por intransigência de um ou de ambos - não conseguirem uma solução negociada ou contratualizada da regulação, arrasta-se a providência até que, quanto mais não seja moídos pelo cansaço, cheguem a acordo? Espera-se que a criança atinha a maioridade para se extinguir a instância da providência por inutilidade superveniente da lide, ainda que restrita aos aspectos ou as dimensões pessoais da regulação, que não no tocante à obrigação patrimonial de alimentos?
A falta de bondade, por este lado, do recurso, é patente.
Como também se julga infundada a alegação de que a sentença contestada ofende o princípio da actualidade. A criança, como ser em crescimento, é uma realidade dinâmica, portanto, em contínua mutação; é desejável, porém, que a decisão de regulação atenda à situação concreta da criança - e dos pais - o mais actualizada possível.
A matéria de facto adquirida para o processo espelha, com a suficiência exigível, a situação actual da criança e dos pais, o estado dos seus vínculos e a dinâmica das suas relações, e as competências dos últimos para o exercício da função parental e, portanto, constitui uma base consistente para decidir, maxime, da residência da criança. O que, decididamente, fere o princípio da actualidade é a manutenção de uma decisão provisória de regulação do cuidado parental, de resto, claramente insuficiente para ordenar todas as vertentes das responsabilidades parentais proferida - em Janeiro de 2018! De resto, também aqui, a apelante deve também queixar-se - dela mesma.
A sentença deve corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão e julgamento da causa (art.° 611.°, n.° 1, do CPC). Por tal motivo, há que considerar os factos - objectiva ou subjectivamente supervenientes - até ao encerramento da discussão, i.e., até ao termo das alegações orais realizadas na audiência final (art.°s 588.°, n.°s 1, 2 e 4, e 604.°, n.° 3, c), do CPC). Mas tais factos constitutivos, modificativos ou extintivos só podem ser considerados pelo tribunal - sem prejuízo da actuação por este dos seus poderes inquisitórios - se forem alegados por uma das partes no respectivo articulado superveniente (art° 611.°, n.° 1, do CPC). Portanto, se apelante achava que importava considerar quaisquer factos supervenientes, estava indicado que produzisse o respectivo articulado superveniente, para o que dispôs, aliás, de muito tempo, dado os vagares de oriental com que a providência foi tramitada.
Improcedente é igualmente o argumento que a apelante faz derivar do princípio da proporcionalidade. Pela natureza das coisas, a regulação heterónoma das responsabilidades parentais - sobretudo num contexto de conflitualidade continuada e persistente dos pais - não pode deixar de se sobrepor, em maior ou menor extensão, à autonomia de decisão dos pais e de interferir na organização da família e nos papéis que devem ser desempenhados pelos seus elementos. Mas essa intrusão ou intervenção é aqui inteiramente justificada pelo princípio reitor do interesse da criança e pela impossibilidade de os pais exercerem a sua autonomia de decisão em responsabilidade, i.e., conformidade com aquele princípio.
Resta, enfim, o fundamento da impugnação representado pela desatenção ou desconsideração, pela sentença impugnada, da vontade manifestada pela criança, maxime nas declarações que prestou no contexto da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 21 de Fevereiro de 2022 - na presença apenas da Sra. Juíza de Direito e da Sra. Magistrada do Ministério Público.
Mas não vale a pena gastar muitas palavras para explicar a improcedência do argumento.
Como já se adiantou, uma coisa é a audição injuntiva da criança, outra bem diversa é a vinculação necessária ou irrecusável do juiz à vontade ou preferência manifestada pela criança, dado que essa vontade apenas se deve ter por atendível se se mostrar conforme com o seu interesse objectivo, designadamente com o seu direito à coparentalidade e à presença, o mais continua e assídua possível, de ambos os pais na sua vida. Depois, a expressão de uma qualquer preferência pela criança tem implícita uma escolha e esta exige um conhecimento claro e preciso das várias alternativas possíveis, o que não se julga que esteja completamente ao alcance de uma criança de 10 anos, sendo certo que como decorre da audição do registo das declarações da criança, aquela não foi - correctamente - confrontada com a sua colocação num contexto alternativo, designadamente, com a residência alternada com cada um dos progenitores. A opção por um ou outro contexto familiar exige todo um conjunto de valorações racionais complexas, a ponderação de uma multiplicidade insistematizável de factores e a formulação de juízos, sempre difíceis, de prognose, para as quais, comprovadamente, a criança, dada a sua idade, não dispõe das competências e dos conhecimentos exigíveis, pelo que uma qualquer escolha sua não seria conscienciosa ou sequer informada.
De seguida, sempre importaria proceder à aferição da genuinidade da vontade da criança, i.e., que não formada por sugestão ou influência de qualquer dos pais, maxime, da recorrente que detém a sua custódia física desde a separação dos pais - ou que não decorre, simplesmente, da solidariedade com o progenitor que julga vitimizado com a separação parental ou do mero desejo de não lhe desagradar. Acentua-se este ponto, dado que, como decorre do relatório da perícia psicológica forense feita à pessoa da criança, a rejeição da figura paterna está intimamente ligada ao sofrimento materno.
De resto, não seria justo ou sequer adequado sujeitar a criança ao sofrimento - a mais este sofrimento - ou à tensão de uma escolha[38]. Convém recordar a ambos os pais que como decorre das perícias psicológicas a criança apresenta uma sintomatologia ansiosa associada ao processo judicial, alterações comportamentais directamente relacionada com as dinâmicas conflituais entre os progenitores, um discurso desadequado à idade, influenciado pela observação do litigio parental e, no tocante ao desenvolvimento emocional, comportamentos regressivos e fragilidades na sua autonomização. O conflito parental - e a desrazoável dilação na decisão da providência - tem, pois, custos pesados ou severos para a pessoa que é inteiramente alheia à dissolução da união parental, à situação conflitual consequente e à demora na definição, tendencialmente definitiva, da sua situação jurídico-familiar: a criança.
Os factos adquiridos para o processo - designadamente através do meio de aquisição da prova representado pelos relatórios sociais - mostram, indubitavelmente, que a criança mantém com ambos os pais uma boa relação e que qualquer deles dispõe das competências pessoais para o exercício, adequado e gratificante, das responsabilidades parentais. Aqueles mesmos factos inculcam também que a comunicação entre os pais registou - mesmo nos contactos presenciais sempre propícios para a reactivação do conflito parental - uma melhoria ou uma evolução positiva.
Consideram-se, por isso, reunidas as condições para garantir uma maior presença física da criança com o pai, designadamente, dada a idade daquela, a capacidade para tolerar mudanças e beneficiar delas, e, assim, construir os alicerces da sua autonomia num contexto de convivência mais igualitária com os progenitores, sendo que das diferenças impostas pelas residências separadas dos pais não decorrem constrangimentos contrários ao interesse da criança nem obstaculam à manutenção de uma relação sadia, duradoura e reconfortante com ambos os pais. A residência alternada não divide a criança - mas apenas o tempo da criança - e subtrai-a ao risco de apropriação da sua pessoa por um qualquer dos pais.
CC não é apenas um encargo - mas uma fonte de satisfação, alegria e bem-estar e o seu desenvolvimento harmónico depende, necessariamente, de ambos os pais - não podendo nenhum deles substituir-se ao outro - e da possibilidade de um relacionamento pessoal e directo com ambos o mais estreito possível, justificado não pela formalidade da relação jurídica do parentesco - mas legitimado pelo vínculo vivo da afeição[39].
A requerente e o requerido colocaram a filha no centro do conflito parental. A regulação do cuidado parental a ela relativo procura devolver-lhe o seu lugar de criança, sem que tenha de renunciar a relações harmoniosas com qualquer dos pais, de modo a que a separação parental lhe seja mais fácil de suportar. Isto permitir-lhe-á crescer sob a protecção de ambos os pais, contanto que estes aceitem agir como adultos responsáveis. A função parental só é possível na triangulação da relação, da qual cada um dos protagonistas é parte integrante e activa. A actuação de um e de outro dos pais não deve ser oposta, mas sim complementar e insubstituível na sua especificidade respectiva. Não há razão que explique ou justifique que a ruptura do vínculo entre a requerente e o requerido ameace o vínculo que une a criança a cada um deles e que a menor CC experimente um sentimento de perda de referenciais afectivos.
A execução da decisão de regulação, sob o signo estrito da boa fé, segundo uma atitude de concertação e cooperação, garantirá, a nosso ver, à criança laços afectivos estáveis e profundos com cada um dos pais, evitando a desqualificação, a desautorização e a secundarização efectiva de qualquer deles, perante a criança, e permitindo, simultaneamente, a realização pessoal e afectiva de cada um deles. De resto, só assim a requerente e o requerido serão, verdadeiramente - pais[40].
A decisão impugnada é, apesar de tardia, correcta. Cumpre, em estrita coerência, desamparar o recurso.
De todos estes argumentos extraem-se, como proposições conclusivas mais relevantes, as seguintes:
- A circunstância de a providência tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais constituir um processo especial de jurisdição voluntária e, portanto, em que se verifica um predomínio, quanto ao objecto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo, dado que ao tribunal pode investigar livremente os factos, não estando limitado aos factos articulados pelas partes, não alija as partes do ónus da alegação dos factos relevantes nem vincula o tribunal a actuar aqueles poderes inquisitórios, dado que essa actuação releva de poderes discricionários, pelo que a parte não pode tribunal superior que controle se seria melhor ou não usar, no caso, daqueles poderes no tocante a este ou aquele facto, dado que o exercício ou não exercício releva do seu prudente arbítrio, consoante o que lhe parecer mais adequado para a justa composição do litígio;
- A nova cultura acerca da protecção da personalidade da criança no caso de dissociação parental e ao novo redimensionamento e densificação do seu direito de se relacionar com ambos os pais, criou o ambiente propício ao aparecimento de novas formas de guarda e, correspondentemente, de novos modelos de exercício da função parental - e que deu lugar a um movimento, universal e consistente, no sentido da parentalidade conjunta e, portanto, de partilha das responsabilidades entre ambos os progenitores e de estímulo da participação dos dois na vida do filho.
- O princípio do interesse da menor constitui, porém, um simples princípio regulativo e, por isso, não é apto, por si só, para declarar o que, em cada caso, é e o que não é do interesse da criança, pelo que é necessário, para esse efeito, outros critérios;
- A do conceito de interesse da criança deve operar através de critérios ou de factores, de dimensão eminentemente prospectiva, que sejam neutros em relação ao género e que, portanto, sejam, não só harmónicos com o princípio, de matriz constitucional, da igualdade dos pais, mas que a promovam, que encorajem a contratualização, por estes, da regulação, e a sua adesão consistente a esta, reduzindo a conflitualidade parental, actual e futura, que sejam atentos aos direitos da criança e à sua vontade ou preferência, que não sejam intrusivos relativamente à autonomia da família, e, por essa via, conformes com o princípio da proporcionalidade e que se mostrem exequíveis, i.e., de aplicação ágil e fácil, evitando, por exemplo, o recurso a teorias psicológicas e a avaliações e perícias psicológicas e psiquiátricas, quer sobre as diferenças da relação afectiva da criança com cada um dos pais quer sobre a capacidade educativa destes, bem como a juízos de prognose sobre o comportamento ulterior dos pais e adaptação da criança a nova forma de organização da família.
- Dada a constelação de factores atendíveis para a decisão sobre a residência da criança é, de todo, impossível a apreciação de todos eles, o que, porém, não impede a sua sistematização em duas categorias: os relativos à criança; os respeitantes aos pais;
- Entre os primeiros contam-se, entre muitos, a idade e o grau de desenvolvimento, físico, psíquico e cultural da criança; as relações da criança com os seus progenitores e com outros parentes que sejam relevantes para ela; a permanência ou continuidade das relações afectivas da criança; as suas necessidades físicas, intelectuais e materiais; a adaptação da criança ao ambiente extra familiar de origem; os efeitos de uma eventual mudança causados por uma ruptura com este ambiente; os sentimentos e a vontade da criança; relativamente aos pais, são atendíveis, também além de muitos outros, a sua saúde, física e mental, a afeição de cada um deles pela criança, a sua capacidade para satisfazer as suas necessidades, o seu envolvimento e o tempo disponível para cuidar do filho, a competência prática de cada um deles para desempenhar as responsabilidades parentais, a estabilidade do ambiente que cada um deles pode proporcionar à criança, a sua aptidão para respeitar os direitos e os deveres do outro e a relação da criança com os novos cônjuges ou companheiros dos progenitores.
- Qualquer enumeração dos factores atendíveis não se deve ter esgotante ou exaustiva e, de outro, a nenhum deve forçosamente atribuir-se qualquer privilégio sobre os demais, pelo que a boa solução deve ser encontrada depois de ponderadas todas as circunstâncias, sem que um qualquer factor deva ser encarado como privilegiado, excludente de outro ou outros;
- O juiz não está inexoravelmente vinculado à preferência manifestada pela criança acerca de um qualquer ponto ou vertente da regulação das responsabilidades parentais, maxime, sobre a sua residência, impondo-se sempre a verificação da adequação ou conformidade dessa preferência com um exercício óptimo dos direitos que titula, designadamente com seu direito de conviver com ambos os pais e à participação destes, em condições de igualdade, na sua vida.
- A vontade manifestada pela criança - desde que seja racional e genuinamente sua e se mostre conforme com o seu interesse, objectivamente apreciado - é, decerto, um factor importante, mas não o único factor a considerar.
A apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pelas respectivas custas (art.° 527.°, n.°s 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela apelante.
2023.04.12