EXECUÇÃO
PENHORA
VENCIMENTO
DESCONTO
COMINAÇÃO
ENTIDADE PATRONAL
Sumário

I - A cominação do n.3 do artigo 856 do CPC não pode ser encarada como um reconhecimento inabalável, fundado numa presunção "juris et de jure" decorrente de um cominatório pleno ou semipleno como o existente entre partes processuais.
II - A redacção da disposição citada teve apenas em mente estabelecer uma presunção "juris tantum" como sanção para o terceiro que não quis aproveitar o momento próprio para declarar que a dívida não existia.
III - Concretamente, tal presunção fica ilidida se a entidade patronal fizer prova de que o executado nunca para si trabalhou, mesmo que seja em embargos contra si movidos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

B....., SA, (anteriormente designada por Bb....., SA) instaurou execução para pagamento de quantia certa
contra

1) C..... e esposa D....., e
2) E..... e esposa F......

No decurso da referida execução foi requerida a penhora de 1/3 do vencimento da 1.ª executada D....., indicando-se como entidade patronal a sociedade “G....., Ld.ª”
O M.º Juiz deferiu o Requerido, vindo a ser notificada a referida entidade patronal para proceder aos respectivos descontos.
Como não tivesse sido feito entretanto qualquer depósito, em 14 de Novembro de 2000 foi enviada nova notificação à executada “G....., Ldª(...)” para em dez dias informar o Tribunal das razões que impediram o cumprimento do ordenado.

Como a referida G....., Ldª nada disse, foi proferido em 22 de Janeiro de 2001 um despacho condenando “G....., Ldª...” em multa e notificando a exequente para o disposto no art. 860.º-3 do CPC”, despacho que foi notificado à referida “G....., Ldª (...)” em 26 de Janeiro de 2001.
Na sequência disso, veio a Exequente instaurar execução contra a referida “G....., Ld.ª” (indigitada entidade patronal da D..... em 20 de Fevereiro de 2001), e a ser ordenada a penhora de bens da Executada (suposta entidade patronal) em 1 de Março de 2001.
Após diversas tentativas para levar a efeito a penhora de bens da Executada “G....., Ldª(...)”, designadamente em 17 de Maio de 2002 - quando o Sr. Funcionário judicial se deslocou ao local -, o sócio gerente desta declarou que não procedia aos descontos no vencimento da D..... “uma vez que esta senhora não era, nem nunca foi, sua funcionária, e que já havia prestado a mesma informação, há cerca de um mês, à GNR.”

Face ao insucesso da penhora de bens móveis, foi ordenada em 26 de Setembro de 2002 a penhora do saldo das contas bancárias que se viessem a identificar, sendo concretizada penhora de saldos no “Banco H....., SA” e no “Banco I....., SA”
Em 18 de Dezembro de 2002 foi proferido despacho, convidando a Exequente para se pronunciar sobre a declaração da Executada onde era referido que a mencionada D..... não era funcionária da empresa nem nunca lá trabalhou.
Respondendo a esse convite a Exequente veio a apresentar em 6 de Janeiro de 2003 cópia do recibo de vencimento da referida D....., para comprovar que a informação não correspondia à realidade.
Notificada a executada “G....., Ldª”, veio esta, por requerimento de 28 de Fevereiro de 2003 reiterar o que por si já fora afirmado, alegando a falsidade do recibo, e dizendo que a referida D..... é apenas filha de uma funcionária daquela.

Em 14 de Maio de 2003 vem a “G....., Ldª (...)” deduzir embargos de executado por oposição à penhora, voltando a dizer que a indicada D..... nunca foi nem é sua funcionária, conforme já por diversas vezes informou o Tribunal, pelo que inexiste qualquer obrigação de pagamento por parte da embargante.
Pediu assim que fossem os embargos julgados recebidos e procedentes e em consequência:
a) ser ordenado o levantamento da penhora das contas bancárias e dos bens da embargante penhorados nos autos;
b) ser declarada extinta a instância executiva com todas as devidas e legais consequências.

A Exequente deduziu oposição aos embargos, sustentando que a ora executada reconheceu a existência do crédito, nos termos do art. 856.º-3 do CPC pelo facto de não ter cumprido a ordem de descontos e também nada ter dito quando notificada da penhora de 1/3 do vencimento da executada D..... (no outro processo), pelo que os embargos deveriam ser julgados improcedentes.

Saneado e condensado o processo, vieram oportunamente Embargante e Embargadoa a apresentar provas, tendo a Embargante requerido, designadamente, - que fosse notificada a executada D..... para apresentar o original do recibo de vencimento junto como documento pela Embargada,
- e, se procedesse a prova pericial de três documentos apresentados como recibos de vencimento, para certificação da sua autenticidade ou falsidade.

O M.º Juiz admitiu a prova testemunhal, mas indeferiu a prova pericial, dizendo não ter sido cumprido o disposto no art. 577.º do CPC que obrigava, sob pena de rejeição, a que tivesse sido indicado o objecto da perícia, enunciando-se as questões de facto que se pretendiam ver esclarecidas através da diligência.

A Embargante não se conformou com a parte da decisão que indeferiu a perícia, tendo então interposto recurso, que foi admitido como de agravo, com subida diferida (a subir com o recurso que depois dele interposto houvesse de subir imediatamente) e efeito devolutivo.

Seguiram os autos para a audiência de discussão e julgamento, vindo a ser dadas respostas aos quesitos da base instrutória e depois proferida sentença.
Esta veio a julgar os embargos totalmente procedentes e, em consequência, julgou extinta a acção executiva.
A Exequente-Embargada não se conformou com a sentença, tendo interposto recurso dela.
Este recurso foi admitido como de apelação e com efeito devolutivo.

Remetidos os autos a este Tribunal foram os recursos aceites sem alteração na sua adjectivação.
Correram os vistos legais.

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II. Âmbito dos recursos

De acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC são as conclusões apresentadas nas alegações de recurso dos recorrentes que vêm a delimitar o respectivo âmbito, demarcando-se aí as questões que se pretendem ver reanalisadas.
Refere-nos no entanto o art. 710.º-1 do CPC que “A apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição; mas os agravos interpostos pelo apelado que interessem à decisão da causa só são apreciados se a sentença não for confirmada.”

Tendo em conta que o agravo fora interposto pelo Apelado-Embargante, haverá então que começar o nosso trabalho pela análise da apelação, pois só no caso de a sentença não ser confirmada é que, nos termos do citado art. 710.º-1 do CPC. haverá que conhecer daquele.

II-A) Recurso de apelação

Nas alegações de recurso da sentença, apresentou o Apelante-Embargado as seguintes conclusões:
I) A Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida que julgou procedentes os embargos de executado deduzidos pela ora Recorrida.
II) O despacho determinativo da penhora do vencimento de fls..... constitui título executivo, nos termos do art. 860.º-3 do CPC, devido ao silêncio da Recorrida perante as várias notificações que lhe foram feitas.
III) A consequência do silêncio da Recorrida é o reconhecimento da dívida dos autos e a possibilidade da Exequente, aqui recorrente, instaurar contra ela uma execução nos termos do art. 863.º-3 do CPC.
IV) A lei não distingue, nem atribui consequências diferentes ao silêncio do devedor , além de que dos autos nãos constam as razões que motivaram o silêncio da recorrida.
V) O silêncio do devedor, inocente ou não, a lei não distingue, impõe uma sanção que é do reconhecimento da existência do crédito e a atribuição de força executiva ao despacho determinativo da penhora.
VI) Os embargos de executado, não podem ser admitidos com o fundamento do art. 813.º-a) do CPC, porquanto título executivo nos autos – despacho determinativo da penhora de fls.... – existe e é exequível.
VII) Aliás, em execução intentada nos termos do art. 860.º-3 do CPC, o Executado devedor, só deveria opor-se pelos meios previstos no art. 813.º do CPC, e neste preceito não cabe o da inexistência do título executivo.
VIII) A douta sentença recorrida violou, entre outras, as disposições constantes dos arts. 813.º-a), 856.º-2 e 860.º-3 do CPC. Como tal,
IX) Deverá ser substituída por douto Acórdão que julgue os embargos de executado totalmente improcentes, por falta de fundamento legal.
Nestes termos (...) deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, substituída a sentença recorrida, por (...) Acórdão que julgue os embargos de executado improcedentes, por falta de fundamento legal.”
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Da leitura destas conclusões vemos que as questões suscitadas, sobre as quais a apelante pretende que nos pronunciemos são as seguintes:
a) efeitos da inacção ou do silêncio de terceiro, indicado como entidade patronal de um executado, para efectuar descontos de vencimento em pessoa indicada como sua funcionária, quando os não faça nem justifique a sua inacção;
b) possibilidade ou não de defesa por embargos, quando só em momento posterior se vem indicar que a razão pela qual não foram feitos descontos residiu no facto de a primitiva Executada não ser nem nunca ter sido sua empregada.
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III. Fundamentação

A matéria de facto considerada assente e provada na sentença não foi objecto de impugnação.
Não se vê nela, por outro lado qualquer deficiência, obscuridade ou contradição, que conduza à necessidade de alterar a matéria de facto.
Assim, nos termos do art. 713.º-6 do CPC, limitamo-nos a remeter com a devida vénia para os termos da sentença da 1.ª instância que decidiu aquela matéria, e que aqui damos por definitivamente fixada

Entremos então na análise das questões colocadas no recurso:

Como é sabido, a penhora de vencimentos insere-se na penhora de direitos de crédito.
De acordo com o disposto no art. 856.º-1 esta consiste na notificação ao devedor de que o crédito fica à ordem do Tribunal da execução.
Assim, se o crédito que se pretende penhorar é de salários, essa penhora consuma-se com a notificação à entidade patronal de que o crédito do trabalhador pelos salários que tenha a receber (e de quem a entidade patronal é (ou será) devedora), fica á ordem do Tribunal de execução.

Pois bem.

Refere-se no art. 856.º-2 que uma vez efectuada a notificação, “Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence, e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução.”
Assim, a pessoa indicada como entidade patronal de um executado seu trabalhador tem o dever de, logo que notificada para iniciar os descontos decorrentes da penhora de um crédito sobre o salário ou vencimento desse seu empregado, dar cumprimento a essas obrigações que sobre si pendem nos termos do n.º 2 do citado artigo, sob pena de contra si se virar a cominação prevista no n.º 3, ou seja, “de se vir a entender” “que o devedor reconhece a existência da obrigação nos termos estabelecidos na nomeação do crédito á penhora.” [Repare-se na força das expressões, atinentes aos RR., entre os efeito cominatório pleno do art. 784.º “se o R. não contestar é ele condenado no pedido” e do cominatório semipleno do art. 484.º “se o R. não contestar (...) consideram-se confessados os factos articulados pelo A.”, e compare-se, por fim, a fórmula muito menos forte utilizada na outra espécie de cominação que é utilizada no art. 856.º-3 a respeito no inadimplemento da notificação do terceiro de quem o Executado é credor: “Na falta de declaração entende-se que o devedor reconhece a existência do crédito”].

Este reconhecimento, no entanto, não pode ser encarado como um reconhecimento inabalável, fundado numa presunção “juris et de jure” decorrente de um cominatório pleno ou semipleno como o existente entre partes processuais, pois é bastante diferente da inacção de quem, sendo parte na causa, e estando citado para a acção, pura e simplesmente se não quis defender de factos que lhes eram directamente imputáveis.
Na cominação entre as partes, o sujeito cominado conhecia a causa de pedir e o pedido contra ele era formulado, e poderia logo equacionar as consequências dessa omissão comportamental em toda a sua extensão, havendo assim uma relação de conhecimento directo, que justifica a proporcionalidade entre a falta de acção e as consequências.

Aqui, pelo contrário, estamos perante uma sanção imposta a quem é estranho à causa, que não conhece os exactos termos dela.

Donde, ser razoável entender que a redacção do art. 856.º-3 do CPC. tivesse tido apenas em mente estabelecer uma presunção “juris tantum” como sanção para o terceiro (suposto credor do Executado) que não quis aproveitar o momento próprio para declarar que a dívida não existia (....), quando notificado para proceder aos descontos na indicada funcionária, no processo executivo movido contra esta.

Estabelece-se assim uma notável distinção entre condutas e resultados, num e noutro caso, na medida em que, sem deixar de sancionar o terceiro (indicado credor do Executado) por incumprimento da notificação no tempo e lugar próprio (ou seja, no prazo de dez dias a contar da notificação movida pelo Exequente contra a Executada), lhe concede no entanto o direito de poder emendar, em momento posterior, essa falta de colaboração, penalizando-o, no entanto, com o ónus da prova da inexistência do suposto crédito da Executada (da execução primitiva) sobre ele (Executado, na qualidade de terceiro credor da Executada primitiva, inadimplente da notificação naquele processo).
O título executivo em que assenta a execução contra o terceiro devedor (credor do Executado na execução primitiva) assenta, portanto, numa presunção juris tantum de existência de dívida, passível de elisão por prova em contrário, em sede de embargos.

Esta solução, ainda que avessa ao entendimento jurisprudencial dominante antes da actual redacção do art. 860.º do CPC, (dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março), já era defendida por grande parte da doutrina.
O art. 860.º-4 do CPC na sua redacção actual veio no entanto a consagrar essa doutrina:
Assim, o reconhecimento da dívida resultante da inacção do terceiro devedor do Executado (aqui suposta entidade patronal) nos termos do art. 856.º-3 (penhora de vencimentos do executado) assenta numa presunção ilidível em sede de oposição à execução, vindo a traduzir-se na inversão do ónus da prova.
Ora, como na sua actual redacção, o n.º 4, 1.ª parte, do art. 860.º do CPC, nada mais adianta àquilo que correspondia já a uma solução doutrinal anteriormente defendida, pode ser trazida aqui à colação esse segmento de norma, como de cariz interpretativa, não havendo consequentemente razões para continuar a ser seguido o entendimento jurisprudencial até há pouco prevalecente.
Assim o parece ter feito a Sentença recorrida, ao construir a sua fundamentação em diversos ensinamentos de Teixeira de Sousa [Teixeira de Sousa, Acção Executiva, pg. 269], Remédio Marques [Remédio Marques, A penhora e a reforma do processo civil, pg. 63; e], Lebre de Freitas [O silêncio do terceiro devedor, ROA, ano 62, II, 2002, pgs. 383 e ss.], Paula Costa e Silva [As garantias do Executado, RFDUNL, ano IV, n.º7, 2003, pg. 200], Januário Gomes [Penhora de direitos de crédito, Breves notas, RFDUNL, ano IV, n.º7-2003, pag. 110], e com o qual nos sentimos sintonizados.

À laia de conclusão hermenêutica dir-se-á, então o seguinte:

Se o actual Executado (devedor da Executada na primitiva execução, e na qual era terceiro) não conseguir, em sede de embargos, ilidir a presunção de dívida, decorrente do seu silêncio, responde patrimonialmente pela dívida desta para com o Exequente.
Caso consiga ilidir a presunção de dívida decorrente do título, o terceiro inadimplente à notificação do art. 856.º-3 do CPC sujeita-se apenas a responder pelos danos causados ao Exequente, nos termos gerais, liquidando-se a sua responsabilidade na própria oposição, quando este faça valer na contestação (aos embargos) o direito á indemnização.

Dito isto, havendo a Embargante (suposta entidade patronal da Executada na execução primitiva) vindo a defender-se, logo após a notificação do despacho determinativo de bens próprios, dizendo que a dívida dele para com a Executada D..... não existia, porque ela Executada não era nem havia sido sua empregada, agiu dentro dos normativos legais que lhe permitiam que o fizesse ainda neste momento.(em sede de embargos)
E como conseguiu provar que efectivamente assim o era, ficou ilidida a presunção decorrente do título executivo, nos termos dos arts. 813.º-1-a) do CPC em conjugação com o art. 856.º-3.
Nestes termos, há que concluir que não pode reconhecer-se razão a Apelante nas críticas que tece à Sentença recorrida, que aplicou correctamente o Direito.

A apelação deve, consequentemente, improceder.
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Tendo em conta a improcedência da apelação, não há sequer necessidade de conhecer do agravo, pois prejudicado fica, nos termos do art.710.º-1 do CPC.
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IV. Deliberação

Na improcedência da apelação, confirma-se a douta Sentença recorrida, ficando prejudicada a apreciação do agravo do Apelado.
Custas pela Apelante.
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Porto, 01 de Março de 2005
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes