EFEITO DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
METADADOS
EFEITO À DISTÂNCIA DE NULIDADE
Sumário

I - Do juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 268/2022 não decorre qualquer nulidade ou proibição de aquisição ou valoração de prova relativamente a (meta)dados de base retidos por força da obrigação imposta pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, e a que as autoridades responsáveis pela investigação criminal tiveram legitimamente acesso antes da prolação daquele aresto.
II - De igual modo, do mesmo juízo de inconstitucionalidade não decorre qualquer «efeito à distância» que impeça a valoração de elementos probatórios recolhidos na sequência da realização de diligências de investigação (no caso concreto, buscas) desencadeadas com fundamento nos conhecimentos obtidos a partir da análise daqueles mesmos (meta)dados de base.

Texto Integral

Processo n.º: 747/20.5JGLSB.P1
Origem: Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 9)
Recorrente: Ministério Público
Referência do documento: 16892988



I
1. O Ministério Público impugna, no presente recurso, decisão proferida no Juízo Central Criminal do Porto (Juiz 9), que, prévio reconhecimento da verificação de uma proibição de valoração (diretamente, num caso, e por «efeito-à-distância», noutro) de (meta)dados apreendidos no decurso do inquérito, decorrente do juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional através do seu acórdão n.º 268/2022, «da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição», e «da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, (…) na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição», absolveu (por falta da necessária prova da prática, por sua banda, dos concretos factos que lhe eram imputados) o arguido AA «da prática de doze crimes de pornografia de menores agravados (previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal)» e «da prática de dois crimes de pornografia de menores agravados (previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 5 e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal)».
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:

1. RELATÓRIO

Em processo comum e com intervenção do Tribunal Colectivo o Ministério Público deduziu acusação contra:
AA [...];
Imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, de:
- Doze crimes de pornografia de menores agravados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal (por cada dia de acesso e upload);
- Dois crimes de pornografia de menores agravados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 5 e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal (por cada suporte informático de armazenamento, “Google Photos” e disco externo).

*****
O arguido apresentou contestação, na qual negou a prática dos factos, alegando, em síntese, que a sua conta de email ... foi bloqueada pela Google, em Setembro de 2019, pelo facto de ter sido “hackeada” (não tendo o arguido utilizado tal conta a partir dessa data), que não podia ter realizado os uploads dos dias 19 e 20 de Setembro, pois esteve em Londres nessas datas e os IPs utilizados são portugueses, que não visualizou os ficheiros descritos na acusação e não os guardou no seu computador pessoal. No que respeita ficheiros existentes no Google Photos e no disco externo, o arguido invocou o desconhecimento da existência dos mesmos.
*****
Na ausência de questões prévias ou incidentais por decidir, veio a realizar-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.
No decurso da audiência de julgamento, o arguido invocou duas questões probatórias incidentais, nos seguintes termos:
A) “A prova constante deste processo designadamente a que resulta do relatório de exame forense constante de fls. 473 e cuja análise de conteúdo se encontra a fls. 479 e segs. dos autos, resulta da análise de metadados associados aos ficheiros apreendidos em casa do arguido.
De igual modo, a obtenção do IP através do qual se chegou à identificação do arguido e que permitiu determinar de que local foram feitos os alegados dow[n]loads e uploads enquadra-se na temática dos metadados, designadamente nas definições de tráfegos de base e tráfego de dados.
Sobre esta matéria foi proferido pelo tribunal constitucional o acórdão 268/2022 que declarou inconstitucional com força obrigatória geral, entre outras, do artigo 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 julho.
A referida declaração de inconstitucionalidade encontra subsunção nos presentes autos, designadamente no que contende com a identificação do IP e a utilização dos metadados enquanto meio de prova.
Nessa medida, a obtenção do IP e a prova oriunda da análise de metadados está irremediavelmente inquinada e não podendo ser utilizada enquanto elemento de prova nos presentes autos, o que se requer.”.
B) “Na sequência das declarações prestadas pelo arguido e também como consta dos autos vem o mesmo expor e requer o seguinte:
De fls. 232 e segs dos autos consta a promoção da Srª. Procuradora na qual entre outras diligências requer as buscas à residência do arguido e da sua irmã e ainda autorização buscas aos automóveis, aos anexos, todas as dependências das residências e requer ainda especificamente que seja autorizada a pesquisa e leitura de aparelhos e sistemas informáticos a serem encontrados nesses locais.
Confrontado o despacho do Mmº. Juiz de Instrução Criminal de fls. 238 constata-se que o mesmo autoriza expressamente as buscas às residências e locais indicados, às viaturas, as eventuais revistas às pessoas que aí se encontram e, então tão só às pesquisas de objetos. O facto dos Srs inspetores no dia de busca, nomeadamente à residência do arguido AA terem não apreendido os objetos para posterior validação e posterior visionamento do eventual conteúdo, mas sim desde logo terem visto o conteúdo de todos os aparelhos informáticos cujos os autos depois de visionamento e de análise encontram-se a fls. segs, na opinião da defesa integra o conceito de prova proibida o que aí foi obtido porque não previamente autorizado nem pelo arguido, nem por um Sr. Juiz de Instrução, por uma entidade competente e porquanto integra o conceito do artº 126º, nº 3 do C. P. Penal de prova proibida estando deferida qualquer decisão na modesta opinião da defesa que sirva de base ou que utilize esses mesmos elementos de prova obtidos com a exceção e aqui se ressalva da parte obtida no Google Fotos que o arguido conscientemente ou não autorizou e, portanto não se põe em causa essa autorização quanto aí estará sanada essa nulidade. O que se requer.”.
Foi proferido despacho a determinar a oportuna abertura de vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre os referidos requerimentos e a determinar o prosseguimento da audiência por se entender que os referidos requerimentos não contendiam com a realização do julgamento.
O Ministério Público pronunciou-se sobre os referidos requerimentos da defesa, na sessão de julgamento de 31/05/2022, pugnando, em síntese, pela improcedência dos mesmos (a prova não é nula por não existir método proibido de prova, por ter sido legalmente requerida a busca pelo Ministério Público e por ter existido consentimento do arguido aquando da busca; no que respeita à declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 32/2008, o caso dos autos caberá na excepção prevista na alínea b) da decisão do Tribunal Constitucional e por outro lado, apesar do uso dos metadados, a Polícia Judiciária sempre conseguiria obter a identificação e localização do arguido sem recorrer aos metadados).
Foi proferido despacho a relegar para o (presente) acórdão a análise e decisão sobre as questões suscitadas pela defesa do arguido.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Na segunda das partes em que se estrutura a sentença penal iremos analisar as seguintes matérias:
2.1. Questões que a defesa do arguido colocou para decisão no decurso da audiência de julgamento (impossibilidade de utilização dos metadados como meio de prova e nulidade / proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos);
2.2. Enumeração dos factos provados;
2.3. Enumeração dos factos não provados;
2.4. Fundamentação da decisão de facto (factos provados e não provados), com exame crítico e indicação das provas que determinaram a convicção do tribunal;
2.5. Análise jurídica da causa.
Iniciemos, pois, a análise das referidas questões.

2.1. Questões que a defesa do arguido colocou para decisão no decurso da audiência de julgamento (impossibilidade de utilização dos metadados como meio de prova e nulidade / proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos).
Qualquer que seja a veste sob a qual as questões são invocadas pela defesa, está sempre em causa a admissibilidade ou inadmissibilidade das provas que sustentam a verificação da existência dos crimes imputados ao arguido nos presentes autos e as provas e/ou os meios da sua aquisição relacionam-se com o apuramento dos factos que são objecto de julgamento, constituindo a valoração de tais provas e/ou meios de prova questão prévia à determinação de tais factos.
De resto, acompanhando a posição de Luís Bértolo Rosa (in “Consequências Processuais das Proibições de Prova”, in RPCC, Ano 20 [2010], Nº 2, pags. 219 e ss.), o tribunal de julgamento, quando confrontado com provas proibidas na acusação ou na pronúncia, deve excluídas, proferindo uma decisão de mérito com base nas provas válidas (e não declarar nula a acusação ou a pronúncia fundada em prova proibida).
Por tal motivo, entendeu-se ser de relegar para a fase da decisão final (acórdão) o conhecimento das «questões» invocadas pela defesa do arguido, relacionadas com a prova e/ou os meios de prova introduzidos no processo na fase de inquérito.
As duas «questões» a analisar são, então, as seguintes:
2.1.1. Da impossibilidade de utilização dos metadados como meio de prova.
A) A questão em analise relaciona-se com a recente decisão do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 268/2022, de 19/04/2022, agora publicado no DR, 1ª Série, de 03/06/2022, pags. 18 e ss., complementado pelo Acórdão nº 382/2022, de 13/05/2022, publicado em www.tribunalconstitucional.pt).
A decisão do Tribunal Constitucional foi a seguinte:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6º da mesma lei, por violação do disposto nos nºs 1 e 4 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 26º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, detecção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja susceptível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no nº 1 do artigo 35º e do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º, todos da Constituição.
As normas declaradas inconstitucionais foram, assim, as normas dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17-07.
A Lei nº 32/2008, de 17-07, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (art. 1º, nº 1).
Estão em causa os denominados «metadados», usualmente definidos como “dados sobre dados”, por dizerem respeito a circunstâncias das comunicações, e não ao próprio conteúdo da comunicação.
Numa concreta comunicação é possível separar do núcleo duro da informação fornecida ou transmitida (conteúdo ou dados) um conjunto de marcos ou pontos de referência que lhe dão o respectivo suporte e que permitem circunscrever a informação sob todas as formas. Tais dados são “informações” que acrescem aos dados e que têm como objectivo informar sobre eles, em princípio, para tornar mais fácil a sua organização. Sendo “dados sobre dados” (informação sobre informação ou metadados), acabam por fornecer informação sobre a localização, tempo, tipo de conteúdo, origem e destino, entre outras, dos actos comunicacionais efectuados através de telecomunicações ou por outros meios de comunicação (cfr. Acórdãos do TC nºs 403/2015 e 420/2017, publicados em www.tribunalconstitucional.pt).
A classificação tripartida dos dados inerentes às comunicações em análise (três espécies ou tipologias de dados) tem longa tradição na doutrina, na jurisprudência e até na lei: temos os dados relativos à conexão à rede (dados de base); os dados gerados pela utilização da rede (por ex., localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência (dados de tráfego); e os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem (dados de conteúdo).
Pois bem, à luz da Lei nº 32/2008, as operadoras de comunicações electrónicas ou de uma rede pública de comunicações passaram a estar obrigadas a, independentemente da existência de qualquer processo penal e de tais elementos virem, ou não, a ser necessários para qualquer investigação criminal, proceder à conservação de todos os dados de tráfego, de base e de localização relativos aos seus clientes (regime jurídico contido nos arts. 4º a 8º da Lei 32/2008). E passaram a estar obrigadas a proceder à transmissão (facultar o acesso) de tais dados às autoridades competentes para a investigação e repressão criminal (regime jurídico contido nos arts. 9º a 11º da Lei nº 32/2008).
A conservação e a transmissão dos dados apenas poderão ter lugar para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves, sendo que a transmissão dos dados às autoridades competentes depende de despacho judicial devidamente fundamentado (art. 3º).
O art. 4º da Lei nº 32/2008 determina quais as categorias de dados que deverão ser objecto de conservação, devendo os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas conservar:
a) Dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação;
Esta categoria de dados inclui os seguintes dados (nº 2 do art. 4º):
a) No que respeita às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel:
i)O número de telefone de origem;
ii) O nome e endereço do assinante ou do utilizador registado; e
b) No que diz respeito ao acesso à Internet, ao correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet:
i) Os códigos de identificação atribuídos ao utilizador;
ii) O código de identificação do utilizador e o número de telefone atribuídos a qualquer comunicação que entre na rede telefónica pública;
iii) O nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP, o código de identificação de utilizador ou o número de telefone estavam atribuídos no momento da comunicação.
b) Os dados necessários para encontrar e identificar o destino de uma comunicação;
Esta categoria de dados inclui os seguintes dados (nº 3 do art. 4º):
a) No que respeita às comunicações telefónicas nas redes fixa e móvel, os números marcados e, em casos que envolvam serviços suplementares, como o reencaminhamento ou a transferência de chamadas, o número ou números para onde a chamada foi reencaminhada e o nome e o endereço do assinante, ou do utilizador registado; e
b) No que diz respeito ao correio electrónico através da Internet e às comunicações electrónicas através da Internet, o código de identificação do utilizador ou o número de telefone do destinatário pretendido, ou de uma comunicação telefónica através da Internet, os nomes e os endereços dos subscritores, ou dos utilizadores registados, e o código de identificação de utilizador do destinatário pretendido da comunicação.
c) Os dados necessários para identificar a data, a hora e a duração de uma comunicação;
Os dados incluídos nesta categoria são os previstos no nº 4 do art. 4º.
d) Os dados necessários para identificar o tipo de comunicação;
Os dados incluídos nesta categoria são os previstos no nº 5 do art. 4º.
e) Os dados necessários para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores, ou o que se considera ser o seu equipamento;
Os dados incluídos nesta categoria são os previstos no nº 6 do art. 4º.
f) Os dados necessários para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel.
Os dados incluídos nesta categoria são os previstos no nº 7 do art. 4º.
O art. 6º da Lei nº 32/2008 determina a obrigação de conservação dos referidos dados pelo período de um ano, a contar da data da conclusão da comunicação.
Os arts. 9º e 10º da Lei nº 32/2008 regulam a transmissão de dados, i.e., a obtenção, pelas autoridades competentes, junto do respectivo fornecedor de serviços de comunicações electrónicas ou de uma rede pública de comunicações, dos dados que foram objecto de conservação, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves.
Assim, os dados conservados só poderão ser disponibilizados às autoridades mediante despacho fundamentado do Juiz, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de algum dos crimes elencados no art. 2º, nº 1, al. g) e os dados sejam relativos ao suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido ou à vítima, mediante o respectivo consentimento (efectivo ou presumido). O despacho de autorização deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados e à protecção do segredo profissional.
A propósito da transmissão (e da preservação, que é diferente da conservação, como se verá) dos dados inerentes às comunicações electrónicas, importa referir a Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15-09), que, para além de prever condutas criminosas em que o elemento digital surge como parte integradora do tipo legal e/ou como objecto de protecção (vertente penal substantiva), prevê e regula, nos arts. 12º a 19º, diversos meios de obtenção de prova dirigidos à obtenção de prova digital (vertente processual penal).
Quer o art. 9º da Lei nº 32/2008, quer os arts. 12º a 19º da Lei do Cibercrime, regulam meios de obtenção da prova (incluindo as condições da transmissão dos dados conservados às autoridades; não olvidando que a Lei do Cibercrime prevê também o regime do acesso a dados de comunicações informáticas que não estão conservados [i.e., dados em tempo real]), havendo por isso necessidade de conjugação das mencionadas disposições (sendo habitual, de resto, referir normas de ambos os diplomas nos pedidos de acesso aos dados conservados e nos despachos que deferem tais pedidos).
Trata-se, no entanto, de questão com pouco relevo para o caso dos autos.
De qualquer modo, o art. 11º, nº 2, da Lei do Cibercrime regula a articulação dos meios de obtenção de prova digital (arts. 12º a 19º), com o disposto na Lei nº 32/2008, determinando que as disposições daqueles meios de obtenção de prova digital não prejudicam o regime da Lei nº 32/2008.
Fundamental é atentar na distinção entre conservação e transmissão de dados.
De facto, a Lei do Cibercrime não trata a matéria da conservação de dados, mas apenas da transmissão de dados.
Já a Lei nº 32/2008 trata a matéria da conservação de dados (e também da transmissão de dados).
Quer dizer, se não houver dados conservados [ou, dito doutro modo, se não houver dados conservados suscetíveis de utilização para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes] (ao abrigo do regime previsto na Lei nº 32/2008), não há dados (conservados) a transmitir (seja ao abrigo da Lei nº 32/2008, seja ao abrigo da Lei do Cibercrime).
A preservação (expedita) de dados prevista no art. 12º da Lei do Cibercrime não chega a ser uma excepção ao que acaba de ser dito, uma vez que está em causa a preservação de dados conservados ao abrigo do regime da Lei nº 32/2008 (prevê-se a emissão de uma ordem a quem tenha a disponibilidade ou o controlo de quaisquer dados informáticos específicos armazenados num sistema informático que adote as medidas necessárias para proteger esses dados de tudo o que possa alterar ou deteriorar a sua qualidade ou o seu estado actual, mantendo-os a salvo de toda e qualquer modificação, danificação ou eliminação, a fim de não comprometer a produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade material).
Ora, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022 julgou inconstitucional o regime jurídico da conservação dos dados (quanto ao seu âmbito e duração), constante da Lei nº 32/2008, e também a norma que disciplina a transmissão dos dados às autoridades competentes para a investigação, detecção e repressão de crimes graves.
Em suma, à luz da decisão do Tribunal Constitucional, não se mostra possível a obtenção de dados (pelas autoridades competentes e para investigação, detecção e repressão de crimes graves) que estavam sujeitos a conservação nos termos da Lei nº 32/2008.
Caso tais dados já estejam na posse de tais autoridades, os mesmos não podem ser usados como prova do crime em investigação.
Porque as proibições de prova se justificam proeminentemente na tutela de direitos fundamentais, a verificação da existência de provas proibidas leva a tratá-las como se não existissem.
São evidentes os efeitos (catastróficos) da decisão do Tribunal Constitucional, no que respeita à prova em causa nos presentes autos, como se verá de seguida (não cabendo ao tribunal de julgamento, em face daquela decisão, ponderar o argumento da eventual “paralisação da administração da justiça penal”).
Vejamos.
A instauração do inquérito dos presentes autos decorreu de uma comunicação (às autoridades portuguesas) proveniente do NOMEC (National Center for Missing and Exploited Children), organização norte-americana à qual a Google havia comunicado a ocorrência de 134 carregamentos (uploads) de ficheiros com conteúdo de pornografia de menores, efectuados pelo utilizador da conta da Google ... (identificado como AA), entre os dias 18 de Setembro e 3 de Outubro de 2019 (o Relatório de Análise e Investigação de Conteúdos Multimédia [incluindo a listagem ou contabilização dos ficheiros – 134 – e a sua categorização – pornografia infantil / imagens / vídeos], tendo como Fonte de Origem a comunicação do NOMEC, acima referida, consta do Apenso A dos autos).
Juntamente com essa informação, foram fornecidos os endereços IP (e respectivos grupos data/hora), com relevância para a investigação.
A Polícia Judiciária, após ter solicitado às operadoras NOS, VODAFONE e MEO/ALTICE a preservação dos dados respeitantes aos endereços IP fornecidos (uma vez que estes endereços de IP pertenciam à gama daquelas operadoras), sugeriu ao Ministério Público, com vista a prosseguir a investigação, que fosse solicitado às referidas operadoras vários dados respeitantes aos mencionados endereços IP.
Assim, a primeira diligência de inquérito realizada nos presentes autos traduziu-se, como é habitual na investigação do crime de pornografia de menores (em causa nos autos), em o Ministério Público requer ao Juiz de Instrução Criminal que ordenasse às operadoras de telecomunicações NOS, VODAFONE e MEO/ALTICE as seguintes informações (despacho de fls. 148 a 150 dos autos):
1. Identificação completa do utilizador que utilizou os endereços IP identificados a fls. 138 e 138 verso [NOS], 139 e 139 verso [VODAFONE] e 140 [MEO/ALTICE] respectivamente, observando-se escrupulosamente o fuso horário efectuando as devidas conversões;
2. A data/hora de início e a hora do fim de cada ligação;
3. A morada da instalação do equipamento;
4. A moarada da facturação
5. A descrição dos serviços contratados e dos equipamentos fornecidos para tal efeito.
Para fundamentar tal requerimento, o Ministério Público invocou os arts. 187º, nº 1, al. a), 188º, 189º e 269º, al. a), todos do CPP, os arts. 1º, nº 1, 2º, nº 1 [corrigindo-se o lapso existente no despacho], alíneas a) e g), 3º, nºs 1 e 2, 4º, 5º, nº 1, 6º, 7º, nº 1 e 9º, todos da Lei nº 32/2008, de 17-07, e ainda os arts. 11º, nº 1, al. b), 14º, nºs 1 a 4, 18º, nºs 1, al. b), 2 e 3, todos da Lei do Cibercrime.
O Juiz de Instrução Criminal determinou a solicitação dos elementos pretendidos pelo Ministério Público, com elaboração do respectivo ofício [às operadoras de telecomunicações] (despacho de fl. 152 dos autos e ofícios de fls. 153 a 155 dos autos).
A MEO / ALTICE prestou a informação que consta de fl. 159 dos autos: o endereço IP identificado no ofício corresponde ao utilizador A..., S.A. (..., ...).
A VODAFONE prestou a informação que consta de fls. 162 e 163 dos autos: os IPs (IP...) indicados no ofício, nas datas e horas indicadas, foram utilizados pelo Service ID ...52 (USER ID ...49) registado em nome de BB, com morada de facturação na Rua ..., ... ...; relativamente aos restantes IPs (IP...), a Vodafone solicitou o envio de informação complementar.
A NOS prestou a informação que consta de fls. 170 a 172 dos autos (incluindo a impressão do relatório que a NOS enviou em suporte digital – Anexo ao processo principal): referindo a mesma questão levantada pela VODAFONE (a falta de dado adicional – o port ou “porto” que liga o dispositivo intermediário ao computador alvo – para que seja possível identificar o utilizador), a NOS procedeu ao envio dos dados de todos os utilizadores coincidentemente ligados nos IPs nos grupos data/hora indicados, independentemente do dado “porto”, ou seja, não identificando univocamente um utilizador. Constata-se que os endereços IP ... e ..., nos grupos data/hora indicados, foram utilizados pelo utilizador (serviço ID) registado em nome de AA, com morada (de facturação) na Rua ..., ..., ..., ....
Ora, não temos dúvidas em afirmar que as informações / dados mencionados na solicitação do Ministério Público ao Juiz de Instrução Criminal, mencionados no despacho do Juiz de Instrução Criminal e mencionados nas respostas dadas pelas operadoras NOS, VODAFONE e MEO / ALTICE, nos termos acima assinalados, correspondem a «dados» na acepção do art. 1º, nº 1, al. a), da Lei nº 32/2008 (entende-se por «dados», os dados de tráfego e os dados de localização, bem como os dados conexos necessários para identificar o assinante ou utilizador) e, como tal, estão incluídos nas «categorias de dados a conservar» previstos no art. 4º da Lei nº 32/2008.
Quer dizer, partindo de uma informação no sentido de que o utilizador da conta Google ... (identificado como AA) efectuou 134 carregamentos (uploads) de ficheiros com conteúdo de pornografia infantil, entre os dias 18 de Setembro e 3 de Outubro de 2019, as autoridades policiais e judiciárias, com vista a prosseguir a investigação, de imediato viram necessidade de solicitar às operadoras de telecomunicações (entidades fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas – cfr. art. 4º, nº 1, da Lei nº 32/2008), acima identificadas, vários dados que estas estavam obrigadas a conservar (por força do disposto no já citado art. 4º da Lei nº 32/2008), acima também identificados.
Incluem-se nesses dados os dados de base, mas também os dados de tráfego.
A norma do art. 4º da Lei nº 32/2008, como já foi referido, abrange ambas as categorias de metadados.
É certo que o nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP estava atribuído é tipicamente um dado de base, uma vez que não pressupõe qualquer comunicação (abrangendo até uma fase prévia à comunicação), visando a identificação do utilizador do aparelho que se conexiona à rede (a identificação do computador que se conectou à rede).
Contudo, como é referido no Acórdão do TC nº 268/2022, os protocolos IP podem ser estáticos (identificando permanentemente um ponto de acesso à rede) ou dinâmicos (sendo atribuídos a certo computador apenas no momento em que se conexiona à rede e durante a sua ligação). Quer isto dizer que a identificação de um protocolo IP dinâmico envolve informação da sua utilização num determinado momento, revelando não apenas o utilizador como também o uso da Internet em certo contexto.
Neste quadro, a identificação do sujeito a que estava atribuído determinado protocolo IP dinâmico não permite, de forma tão clara, obedecer a divisão entre dados de base e dados de tráfego, pois certas circunstâncias da comunicação (a data e a hora) são inerentes à identificação do protocolo de IP dinâmico (pelo que a identificação do titular de um protocolo de IP dinâmico terá de ser enquadrada nos dados de tráfego).
Voltando ao caso dos autos.
A obtenção dos referidos dados (conservados pelas entidades fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas) tinham em vista identificar o autor dos crimes em investigação, cuja identidade era ainda desconhecida das autoridades.
Ora, a efectiva obtenção de tais dados junto das operadoras permitiu constatar que:
a) Alguns dos endereços do protocolo IP (vulgo endereços IP), concretamente, dois endereços IP associados à operadora NOS (acima identificados), por referência a determinadas datas /horas de conexão à rede (endereços IP dinâmicos, portanto) tinham como assinante ou utilizador registado AA [que veio a ser constituído arguido dos presentes autos e que se encontra a ser julgado], com a morada (de facturação) na Rua ..., ..., ..., ...;
b) Alguns dos endereços do protocolo IP (vulgo endereços IP), concretamente, endereços IP associados à operadora VODAFONE (acima identificados – IP...), por referência a determinadas datas /horas de conexão à rede (endereços IP dinâmicos, portanto) tinham como assinante ou utilizador registado BB [irmã de AA, conforme resulta do print de consulta à base de dados de identificação civil junto aos autos, que não foi constituída arguida nos presentes autos, mas tendo sido efectuada uma busca à sua residência], com a morada (de facturação) na Rua ...., ..., ..., ....
A identificação dos utilizadores registados, nos termos atrás descritos, possibilitou (à investigação) a formulação de um juízo de inferência no sentido de que um dos referidos assinantes / utilizadores registados (AA), utilizando os referidos IPs, nas datas / horas também referidas, efectuou os carregamentos (uploads) dos ficheiros com conteúdo de pornografia de menores e, como tal, é suspeito da prática do crime em investigação.
A utilização da expressão “juízo de inferência” pretende salvaguardar a hipótese de a conexão à rede, através dos referidos IPs, não ter sido efectuada pelos referidos assinantes / utilizadores registados (AA e BB), mas por terceira pessoa.
De facto, a própria investigação veio a descartar (afastando, assim, o referido “juízo de inferência”) a hipótese de a assinante / utilizadora registada BB ter efectuado o carregamento (uploads) de ficheiros com conteúdo de pornografia de menores (apesar de inicialmente ter figurado como suspeita), aceitando que o suspeito AA frequentasse a casa da irmã.
De igual modo, o arguido AA pretende afastar o referido “juízo de inferência”, alegando na contestação (juntando prova documental – cópia do passaporte) que, no dia 19/09/2019, viajou para Londres, onde permaneceu até ao dia 24/09/2019, pelo que não poderia ter realizados os uploads dos dias 19 e 20 de Setembro (que lhe são imputados na acusação e com recurso a um endereço de IP português).
Em suma, a análise dos autos revela claramente que a obtenção dos dados acima mencionados (de base e de tráfego), conservados pelas entidades fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas acima também identificadas (ao abrigo do dever que lhes era imposto pela Lei nº 32/2008), permitiu à investigação chegar à identificação de AA (desconsiderando-se agora o caso da irmã do arguido BB, pelas razões atrás aduzidas) como sendo o autor dos carregamentos de ficheiro com conteúdo de pornografia de menores e, em consequência, imputar-lhe a autoria do crime em investigação.
Ora, tendo sido declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas que previam o dever de conservação e transmissão de tais dados pelas entidades fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas, importa agora analisar as consequências que o juízo de inconstitucionalidade tem nos presentes autos.
A solução não se afigura difícil.
A obtenção pelas autoridades competentes para a investigação e repressão criminal, por transmissão das operadoras de comunicações electrónicas, de dados (de base, de tráfego e de localização) conservados por tais operadoras, à margem da cobertura legal conferida pela Lei nº 32/2008, torna tais dados (que constituem meios de prova / prova) imprestáveis como suporte probatório de imputação criminosa, por clara violação dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade, ao sigilo das comunicações e à autodeterminação informativa (direitos com consagração constitucional – cfr. arts. 26º e 34º da CRP) e por imposição do disposto no art. 32º, nº 8, da CRP e no art. 126º, nº 3, do CPP (sendo certo que a ressalva do caso previsto na lei, consagrado na última das citadas normas, seria a Lei nº 32/2008, que foi julgada inconstitucional).
Concluindo, a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização), conservados pelas operadoras identificadas nos autos e enviados ao presente processo na fase de inquérito, constitui prova proibida, não podendo ser usada e, por isso, valorada em sede de fundamentação de facto da decisão a proferir nos autos.
É o que se decide.
*
B) Concluindo-se, como se concluiu, que a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização) conservados e enviados aos autos constitui prova proibida (não podendo ser usada e valorada na fundamentação de facto da decisão a proferir nos autos), impõe-se ao tribunal analisar as consequências que a proibição de valoração da mencionada prova tem em relação às eventuais provas alcançadas em razão daquela.
Concretizando:
A investigação / acusação imputa ao arguido AA uma conduta típica de importação, aquisição e acesso a imagens e vídeos com conteúdo de pornografia de menores (carregamento [upload] de ficheiros informáticos com conteúdo de pornografia de menores, visualização de tais ficheiros e guarda dos mesmos), servindo como meio de prova (fundamental) para a demonstração da autoria do arguido quanto a tal conduta os dados (de base, de tráfego e de localização) conservados pelas operadoras identificadas nos autos e enviados ao presente processo na fase de inquérito.
A investigação / acusação imputa também ao arguido AA uma conduta típica de detenção de imagens e vídeos com conteúdo de pornografia de menores (guarda ou armazenamento numa conta “Google Photos” e num disco externo de ficheiros informáticos de imagens e vídeos com conteúdo de pornografia de menores), servindo como meio de prova (fundamental) para a demonstração da autoria do arguido quanto a esta conduta a busca realizada à sua residência (com consequente apreensão / obtenção do referido material probatório).
Ora, tendo-se concluído que a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização) conservados e enviados aos autos constitui prova proibida (não podendo ser usada e valorada na fundamentação de facto da decisão a proferir nos autos), importa saber se tal proibição de valoração probatória tem influência na possibilidade de valoração da prova resultante da busca domiciliária realizada nos autos.
Estamos no âmbito da questão do efeito-à-distância em matéria de prova proibida (ou questão da extensão externa da proibição de valoração ou, em língua inglesa, doutrina dos “fruits of the poisonous tree”), que pode ser assim sintetizada: saber se pelo facto de uma prova não poder ser valorada, por ter sido adquirida para o processo através de um método de obtenção de prova proibido, essa mesma proibição de valoração, que recai sobre a prova primária, se estende à prova obtida por intermédio daquela (prova secundária), de tal forma que também esta seja afectada por aquela proibição de valoração. No fundo, trata-se de saber se existe, ou não, uma projecção da proibição de valoração que inquina a prova primária de tal sorte que afecte a prova secundária (Cláudio Lima Rodrigues, “Das Proibições de Prova no âmbito do Direito Processual Penal: escutas telefónicas e da valoração da prova proibida pro reo”, 2013, pag. 14).
O ordenamento jurídico português (bem como a doutrina e a jurisprudência) aceita hoje a existência do efeito-à-distância.
A controvérsia existe no que respeita ao seu fundamento normativo e no que respeita à maior ou menor generosidade de critérios limitadores.
No que respeita ao fundamento normativo, alinhamos com os defensores da extracção directa do efeito em causa do art. 32º, nº 8, da CRP (e do art. 126º da CRP) (cfr. Pedro Soares Albergaria, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, 2019, anotação ao artigo 126º, cuja exposição seguiremos de perto).
No que respeita aos critérios limitadores, não existindo dissenso quanto à necessidade da sua existência (i.e., em determinadas situações as provas indirectamente obtidas através de meios de prova proibidos podem ser valoradas), o mesmo não se pode dizer da identificação desses critérios.
De todo o modo, a utilização dos critérios da fonte independente e da mácula dissipada (ou limpeza da nódoa), primeiramente depurados pela jurisprudência norte-americana como limitações à doutrina da árvore venenosa, não têm levantado controvérsia.
Aspecto comum a estes dois critérios é o de postularem prova derivada que, em rigor, não está em conexão de ilicitude com a prova primária proibida (e, portanto, plenamente valorável).
A limitação da fonte independente postula um outro e efectivo processo probatório percorrido do qual resulta o apuramento dos factos que igualmente resultavam da valoração da prova proibida (i.e., existe um meio probatório autónomo do inválido e a ilegalidade cometida não foi condição sine qua non da descoberta dos factos).
A limitação da mácula dissipada ou limpeza da nódoa refere-se às hipóteses em que uma prova secundária a que as autoridades não teriam chegado sem a utilização de método proibido (prova primária) pode porém ser valorada por o nexo entre aquela e esta se ter tornado débil ao ponto de se poder dizer já inexistente ou inefectivo.
Existe ainda a limitação da descoberta inevitável (ou cursos hipotéticos de investigação), segundo a qual não é relevar o efeito remoto da proibição de valoração de certa prova proibida sempre que se puder afirmar que os factos teriam sido apurados pela valoração de outras hipotéticas provas “limpas” (o exemplo clássico desta limitação é o caso de um interrogatório ilegal do arguido, por violação de regras formais, sendo que o arguido no decorrer desse interrogatório identificou o local onde estava o cadáver da vítima, e ocorriam concomitantemente buscas nesse local onde o cadáver foi encontrado, o que seguramente fazia crer que inevitavelmente, mesmo que o interrogatório não se verificasse, o resultado de localizar o cadáver da vítima iria ser alcançado).
Voltando ao caso dos autos.
Como já foi referido, a primeira diligência de inquérito realizada nos presentes autos traduziu-se (como é habitual na investigação do crime de pornografia de menores, em causa nos autos), em o Ministério Público requer ao Juiz de Instrução Criminal que ordenasse às operadoras de telecomunicações (ou entidades fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas) NOS, VODAFONE e MEO / ALTICE a transmissão de vários “dados” / informações (que aquelas operadoras conservavam).
A obtenção dos referidos “dados” pela investigação tinha em vista identificar o autor dos crimes em investigação, cuja identidade era ainda desconhecida das autoridades.
Ocorreu a efectiva obtenção de tais dados junto das operadoras, o que permitiu identificar AA (sendo transmitidos o seu nome completo e a sua morada) como um dos assinantes / utilizadores registados dos IPs usados para, nas datas / horas em causa, efectuar os carregamentos (uploads) dos ficheiros com conteúdo de pornografia de menores, tornando-o suspeito da prática do crime em investigação.
Após a obtenção de tais dados (a prova deles decorrente) e concluindo existirem fortes indícios de o autor dos factos em investigação ter sido AA, a Polícia Judiciária sugeriu ao Ministério Público a solicitação de autorização para a realização de busca domiciliária nas residências dos identificados AA e BB, bem como nas viaturas utilizadas ou na posse dos mesmos, autorização para fazer pesquisa informática em todos os computadores encontrados nos lugares das buscas e autorização para leitura de telemóveis e cartão SIM que possam ser apreendidos ao visado aquando da busca e apreensão.
Assim, a diligência de inquérito de seguida realizada nos presentes autos (a segunda relevante diligência de inquérito) traduziu-se em o Ministério Público:
- Promover junto do Juiz de Instrução Criminal a emissão de mandados de busca domiciliária e apreensão a realizar nas residências de AA e BB;
- Autorizar a pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos (telemóveis, computadores, smartphones ou tablets) que venham a ser encontrados na posse dos visados com as buscas, com o objectivo de analisar e apreender quaisquer equipamentos informáticos que possam ter sido utilizados na recolha e partilha do conteúdo em apreço, identificar o respectivo utilizador, bem como todos os equipamentos informáticos ou audiovisuais que possam servir de suporte material ao crime em apreço;
- Determinar a realização de busca aos veículos automóveis que venham a ser encontrados na disponibilidade dos visados (despacho de fls. 232 a 234 dos autos).
O Juiz de Instrução Criminal decidiu autorizar a realização de busca na residência de AA e na residência de BB, a fim de se proceder à apreensão de todos os objectos que possam servir para esclarecer a investigação e instrução dos presentes autos, consignando que juntamente com as buscas ou durante a sua realização poderá proceder-se à revista de quem quer que se encontre nos locais onde as mesmas irão decorrer, desde que haja razões para supor que algum dos presentes oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (despacho de fls. 238 e 239 dos autos).
A busca à residência de AA foi realizada, conforme resulta do «Auto de Diligência» (fls. 260 e 261 dos autos), do «Auto de Busca e Apreensão» (fls. 264 a 266 dos autos), do «Termo de Consentimento – Autorização de Acesso a Sistema Informático» (fl. 267 dos autos) e da «Reportagem Fotográfica» (fls. 268 a 276 dos autos).
Voltando à questão em análise, importa saber se a proibição de valoração probatória da prova resultante da obtenção de dados (de base, de tráfego e de localização), decidida nos autos, tem influência na possibilidade de valoração da prova resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca), por força do efeito-à-distância (em matéria de prova proibida), nos termos acima analisados.
A resposta não pode deixar de ser positiva.
Para se afirmar o efeito-à-distância é necessário que a prova secundária esteja em relação de conexão com a prova primária proibida (ou, dito doutro modo, é necessário que o meio de prova derivado resulte do meio de prova viciado; ainda dito doutro modo, é necessário que a prova derivada esteja em conexão de ilicitude com a prova primária proibida).
Ora, no caso dos autos, atendendo ao encadeamento de actos processuais levados a cabo no inquérito realizado (maxime, a relação existente entre a obtenção de dados conservados pelas operadoras de telecomunicações [primeira diligência de inquérito] e a realização da busca domiciliária à residência do arguido AA [segunda relevante diligência de inquérito]), nos termos acima expostos, resulta evidente a relação de conexão (a conexão de ilicitude ou o nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa) entre a prova resultante da obtenção de dados (prova primária proibida) e a prova resultante da busca domiciliária (prova secundária).
Como já foi referido, após a efectiva obtenção de dados juntos das operadoras (o que permitiu identificar AA [com transmissão do seu nome completo e a sua morada] como um dos assinantes / utilizadores registados dos IPs usados para, nas datas / horas em causa, efectuar os carregamentos (uploads) dos ficheiros com conteúdo de pornografia de menores, tornando-o suspeito da prática do crime em investigação), seguiu-se a realização da busca domiciliária às residências de AA e BB (incluindo as viaturas utilizadas ou na posse dos mesmos e incluindo a realização de pesquisa informática em todos os computadores encontrados nos lugares das buscas e a realização de leitura de telemóveis e cartão SIM que possam ser apreendidos ao visado aquando da busca e apreensão), mostrando-se evidente a relação de conexão entre os dois procedimentos probatórios (e entre os respectivos resultados probatórios).
De facto, não existe na investigação realizada nos autos um outro e efectivo processo probatório (para além do processo probatório que, através da obtenção de dados das operadoras, levou à identificação do arguido AA – nome e endereço) que tenha permitido realizar a busca à residência do arguido, i.e., não se verifica a limitação da fonte independente.
Por outro lado, analisada a investigação levada a cabo nos autos (tendo em conta a natureza do crime em investigação, o modo como foi praticado e a forma como a notícia do crime chegou às autoridades), não vemos que outra actividade investigatória (não levada a cabo mas que seguramente iria ocorrer naquela situação se não fosse a descoberta verificada através de prova proibida) conduziria inevitavelmente à identificação do arguido AA e à imputação a este do crime em investigação, i.e, não se verifica a limitação da descoberta inevitável.
Por fim, a relação de conexão (conexão de ilicitude), acima evidenciada, entre a prova resultante da obtenção de dados (prova primária proibida) e a prova resultante da busca domiciliária (prova secundária), não se apresenta, no caso concreto, debilitada.
Não obstante, a propósito da limitação da mácula dissipada ou limpeza da nódoa (em cujo âmbito agora nos encontramos), importa analisar a questão que se relaciona com a subscrição pelo arguido, aquando da realização da busca domiciliária, do «Termo de Consentimento – Autorização de Acesso a Sistema Informático» (fl. 267 dos autos).
A questão que se coloca, como se antevê, é a de saber se a subscrição de tal «Termo de Consentimento» pode possibilitar a valoração da prova obtida na busca (concretamente, ficheiros armazenados na conta “Google Photos” associada ao endereço electrónico ... e ficheiros guardados no disco externo da marca SEAGATE), limitando- se o efeito-à-distância (por dissipação da mácula ou por limpeza da nódoa) da prova primária proibida sobre a prova obtida na busca (i.e., salvaguardando-se, por força daquele consentimento (reduzido a termo escrito), a totalidade ou parte da prova obtida na busca.
Ora, em nosso entender, a existência do mencionado «Termo de Consentimento» não debilita (ao ponto de a tornar inexistente ou inefectiva) a relação de conexão (conexão de ilicitude), acima evidenciada, entre a prova resultante da obtenção de dados (prova primária proibida) e a prova resultante da busca domiciliária (prova secundária).
Em primeiro lugar, o «Termo de Consentimento» tem um objecto específico, pois é um «Termo de Consentimento – Autorização de Acesso a Sistema Informático». Quer dizer, o referido «Termo» não se refere a um consentimento à busca (se tal acontecesse, poderia discutir-se a existência de afastamento do nexo de ilicitude entre a prova primária e prova secundária), mas apenas um consentimento ao acesso a sistema informático.
Em segundo lugar, o consentimento do arguido é um consentimento de alguma forma viciado, porque prestado no pressuposto de se estar perante uma busca e apreensões válidas.
Em terceiro lugar, não se pode afirmar que a subscrição do referido «Termo» pelo arguido AA tenha ocorrido de forma livre e mediante prévio esclarecimento de que a prova primária (proibida) não poderia contra ele ser valorada (sabendo-se que o paradigma da limitação da mácula dissipada ou limpeza da nódoa é constituído pelos casos em que na sequência de recolha de prova primária proibida ocorrem actos de vontade, livres e esclarecidos, do arguido ou de terceiro (por ex., testemunha) susceptíveis de “limparem” aquela “nódoa” em que se analisa aquela prova primária). Concluindo, não obstante a existência daquele «Termo de Consentimento», a relação de conexão (conexão de ilicitude), acima evidenciada, entre a prova resultante da obtenção de dados (prova primária proibida) e a prova resultante da busca domiciliária (prova secundária), mantém-se firme, obrigando à afirmação do efeito-à-distância, i.e., a proibição de valoração probatória da prova resultante da obtenção de dados (de base, de tráfego e de localização), decidida nos autos, impede a possibilidade de valoração da prova (toda a prova) resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca).
É o que se decide.
*
2.1.2. Nulidade / proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos.
A questão em analise relaciona-se com a busca realizada à residência do arguido AA e consequente apreensão, pesquisa e leitura (visionamento do conteúdo) dos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca.
Ora, tendo sido atrás decidido que a proibição de valoração probatória da prova resultante da obtenção de dados (de base, de tráfego e de localização), decidida nos autos, impede a possibilidade de valoração da prova (toda a prova) resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca), não será forçado concluir que a apreciação da questão agora em análise resulta prejudicada.
Sempre se dirá, no entanto, que, caso pudesse ser valorada a prova resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca), não assistira razão ao arguido quanto à questão agora em análise.
O Ministério Público tem competência para autorizar ou ordenar a pesquisa de dados informáticos (art. 15º da Lei do Cibercrime).
O Ministério Público tem competência para autorizar ou ordenar a apreensão de dados ou documentos informáticos (art. 16º da Lei do Cibercrime).
A apreensão de dados informáticos decorre normalmente de uma pesquisa informática.
A apreensão de dados informáticos processa-se, em regra, em três fases: (1) a obtenção dos dados, (2) a análise dos dados obtidos e (3) a apreensão propriamente dita dos dados que, após análise, se conclui terem relevância para a boa decisão da causa e/ou para a prova.
Dispõe o art. 16º, nº 3, da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009), que, no caso de serem apreendidos dados informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, esses dados ou documentos são apresentados, sob pena de nulidade, ao Juiz (cabendo essa apresentação ao MºPº), que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto, salvo quando o arguido tenha validamente consentido na realização da diligência (i.e., uma pesquisa de dados informáticos) de que resultou a apreensão de dados informáticos pessoais ou íntimos (cfr. Duarte Rodrigues Nunes, “Os Meios de Obtenção de Prova Previstos na Lei do Cibercrime”, 2021, pags. 153 e ss. e 259 e ss.).
Ora, no caso dos autos, o Ministério Público não requereu ao Juiz de Instrução (como afirma o arguido) “que seja autorizada a pesquisa e leitura de aparelhos e sistemas informáticos a serem encontrados nesses locais”.
O Ministério Público, no uso de competência que lhe é conferida pela lei (como acima já foi referido), “autorizo[u] a pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos (telemóveis, computadores, smartphones ou tablets) que venham a ser encontrados ma posse dos visados com as buscas (…) com o objectivo de analisar e apreender quaisquer equipamentos informáticos que possam ter sido utilizados na recolha e partilha do conteúdo em apreço, identificar o respectivo utilizador, bem como todos os equipamentos informáticos ou audiovisuais que possam servir de suporte material ao crime em apreço” (despacho de fls. 231 a 234 dos autos).
Quer dizer, não se verifica a apontada falta de autorização do JIC, porque a mesma não teria de existir.
Por outro lado, aquando da referida busca domiciliária, o arguido subscreveu um «Termo de Consentimento – Autorização de Acesso a Sistema Informático» (fl. 267 dos autos), não se mostrando relevante o momento da busca em que tal subscrição ocorreu, em face do procedimento legal de pesquisa e apreensão de dados informáticos (acima exposto).
Quer dizer, não se verifica a apontada falta de autorização / consentimento do arguido.
Concluindo, considera-se prejudicada a apreciação da questão da nulidade / proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos (a qual, de resto, seria julgada improcedente).
É o que se decide.

2.2. Matéria de facto provada.
1. Pelo menos entre os anos de 2015 e 2019, o arguido AA foi utilizador do website “GOOGLE” (na parte em que o mesmo fornece um serviço online que permite efectuar pesquisas – motor de busca).
2. O arguido usou também o serviço de correio electrónico “Gmail”, criado pela empresa Google ..., criando a conta com o endereço de correio electrónico ..., onde se identificou como “AA”.
3. O arguido usou também o serviço de correio electrónico “Hotmail” (hoje chamado “Outlook”), criado pela empresa Microsoft ..., criando, em 2010, a conta com o endereço de correio electrónico ....
4. O arguido era titular dos contactos telefónicos ...24 e ...80, associados àqueles endereços electrónicos.
*
5. Entre os dias 18 de Setembro e 3 de Outubro de 2019, através da conta com o endereço de correio electrónico ..., foram efectuados 134 (cento e trinta e quarto) carregamentos (upload’s) de ficheiros informáticos, assim elencados:
a. No dia 18 de Setembro de 2019, cerca das 16H00, (6) seis upload´s;
b. no dia 19 de Setembro de 2019, cerca das 14H16, (1) um upload;
c. no dia 19 de Setembro de 2019, cerca das 17H28, (1) um upload;
d. no dia 19 de Setembro de 2019, cerca das 17H28, (49) quarenta e nove upload´s;
e. no dia 20 de Setembro de 2019, cerca das 18H40, (1) um upload;
f. no dia 30 de Setembro de 2019, cerca das 19H31, (1) um upload;
g. no dia 30 de Setembro de 2019, cerca das 19H39, (1) um upload;
h. no dia 02 de Outubro de 2019, cerca das 15H10, (3) três upload´s;
i. no dia 02 de Outubro de 2019, cerca das 15H13, (36) trinta e seis upload´s;
j. no dia 02 de Outubro de 2019, cerca das 19H16, (16) dezasseis upload´s;
k. no dia 03 de Outubro de 2019, cerca das 18H13, (4) quatro upload´s;
l. no dia 03 de Outubro de 2019, cerca das 18H19, (15) quinze upload´s.
6. Nos ficheiros supra identificados visualizam-se intervenientes que aparentam, pela sua fisionomia, serem menores de 14 anos de idade, em práticas sexuais, como sejam actos sexuais com penetração, actos sexuais sem penetração e em poses de exposição dos seus órgãos sexuais.
7. Nesses ficheiros são visualizados menores de 14 anos a, entre outros actos, serem sujeitos a manterem relações de cópula, coito anal ou coito oral com outros indivíduos do sexo masculino em fase adulta.
8. De igual forma, são visualizadas imagens de menores de 14 anos em poses de exibição do seu corpo desnudado, com exposição dos seus órgãos genitais.
*
9. No dia 15 de Outubro de 2021, pelas 07:00 horas, foi efectuada uma busca à residência do arguido (encontrando-se este na mesma), sita na Rua ..., na Freguesia ..., no Concelho ....
*
10. Em Setembro de 2019, o arguido viu a sua conta de email ... ser bloqueada pelos serviços da Google.
11. No dia 19 de Setembro de 2019, o arguido viajou para Londres, onde permaneceu até ao dia 24 de Setembro.
*
12. O arguido é primário, não possuindo antecedentes criminais.
13. O arguido AA nasceu em .../.../1980 (tem 41 anos de idade).
O arguido AA é natural de ... (..., ...), cidade onde viveu apenas o primeiro ano de vida, mudando-se com a família para o litoral, mais precisamente para ... (estado do ...), cidade onde permaneceu até à adolescência. Aos 14 anos do arguido, o agregado familiar, constituído pelos pais e dois irmãos mais novos, regressou a ..., sediando-se na cidade .... A situação económica seria equilibrada, assegurada pela atividade profissional da figura paterna como técnico de eletricidade. As dinâmicas familiares foram descritas como coesas e pacíficas, suportadas numa organização tradicional de papeis e em valores partilhados com a sua comunidade religiosa, de raiz evangélica, assumindo esta uma função central na vida familiar, e especificamente no modo de vida e projetos do arguido.
O percurso escolar de AA pautou-se por regularidade, tendo concluído o ensino médio (equivalente ao ensino secundário português) sem retenções e frequentado cursos de ensino superior nas áreas da computação, da teologia e dos direitos humanos e cidadania. No início da idade adulta, o arguido terá sido locutor numa rádio local, assumindo mais tarde a função de monitor de informática para a prefeitura, num projeto social dirigido a jovens e idosos infoexcluídos. A sua formação e actividades profissionais no ... foram entrecortadas uma primeira vez por uma viagem para ..., onde permaneceu sensivelmente dois anos ligado a uma associação cristã entre ... e ..., viajando uma segunda vez para ... (...), na fase em que estudava direitos humanos, onde ficou por cerca de meio ano. Após esta viagem, o arguido terá ainda vivido e trabalhado cerca de dois anos em Conselheiro ... (...).
O arguido AA casou em 2007, iniciando coabitação em ... com a mulher (CC, atualmente com 42 anos) e a enteada (DD, atualmente com 25 anos). Em 2010, o arguido decidiu mudar-se com a mulher para a ... (...). A enteada ficou aos cuidados do respetivo progenitor, reintegrando o agregado em 2015. Nesse território, o núcleo familiar estava também associado a uma congregação evangélica e prestava serviços de limpeza em casas particulares e empresas, essencialmente por indicação. O arguido foi preparando a transição da família para Portugal, que acabou por se efetivar em 2019.
Em território nacional, o núcleo familiar sediou-se em ..., localidade onde a irmã do arguido já residia, arrendando um apartamento de tipologia três inserido em zona residencial de configuração suburbana não conotada com problemáticas sociais (morada dos autos). As dinâmicas familiares apresentam-se como coesas, suportativas e afectuosas, tanto no eixo conjugal como filioparental.
Nessa fase, o arguido referiu como atividade profissional principal a execução de palestras, a nível nacional e europeu, versando temas relacionados com direitos humanos e religião, promovidas maioritariamente junto de comunidades cristãs, conseguindo por essa via a obtenção de rendimentos substanciais que lhe permitiam manter um padrão de vida confortável. No entanto, os constrangimentos associados à pandemia vigente (e.g., proibição de agrupamento de pessoas, restrições das viagens) causaram a suspensão dessa atividade, passando a dedicar-se a tarefas de estafeta para conseguir continuar a participar nos rendimentos familiares. A mulher encontrou trabalho como cozinheira num restaurante e a enteada na área das limpezas, conseguindo entre todos o equivalente a três ordenados mínimos, valor que permitia custear todas as despesas fixas mensais, das quais realçou a renda da habitação (440 euros) e as despesas com serviços domésticos (na ordem dos 200 euros).
O arguido AA foi detido em 15.10.2021 e sujeito em prisão preventiva em 16.10.2021 à ordem dos presentes autos, entrando no estabelecimento prisional instalado junto à Polícia Judiciária ... no dia 28 do mesmo mês, após quarentena. Em contexto institucional, o arguido tem adotado um padrão comportamental consonante com as normas e valores institucionais, sem registo de sanções disciplinares, ocupando o seu tempo principalmente a ler e a conviver com pessoas na biblioteca e no pátio, frequentando ainda ações de formação quando disponíveis. O arguido tem sido visitado regularmente pela mulher e pela irmã, e mais ocasionalmente pela enteada e outros familiares. A sua rede informal de suporte é constituída por estes familiares e alguns amigos que vivem fora de Portugal. A situação económica atual da família, sem a participação do arguido, foi descrita como limitada, permitindo responder apenas às necessidades básicas do agregado. O seu projeto de vida em liberdade passa por reintegrar o núcleo familiar e a sua atividade laboral, de forma a reequilibrar a situação socioeconómica do agregado e restabelecer a harmonia familiar.
A família mantém apoio afetivo e económico ao arguido.

2.3. Matéria de facto não provada.
1. O arguido era titular, estando associados aos endereços electrónicos, dos contactos telefónicos: ...37, ...42 e ...00.
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2. O arguido efectuou o carregamento (uoloads) dos identificados 134 ficheiros informáticos.
3. Após ter procedido ao carregamento de tais ficheiros informáticos, o arguido visualizou-os e guardou-os no seu computador pessoal.
4. O arguido realizou os carregamentos e visualizou os mesmos através dos IP’s ... e ..., que se encontravam associados aos acessos à referida conta “Google” e pertencem à operadora de telecomunicações “NOS”, encontrando-se registados em nome do arguido, com morada sita na Rua ..., ....
5. O arguido fez ainda uso da Internet da residência da sua irmã, BB, situada na Rua ..., traseira, ..., mas utilizando o seu próprio computador.
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6. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido detinha, no seu quarto:
- um disco externo da marca “SEAGATE”, modelo backup Plus HUB de 6 TB com o n/s ..., e respectivo cabo de alimentação;
- um computador de secretaria (torre) da marca HYPER HD, sem n/s visível;
- um disco externo da marca MISAI, modelo ...40, e com respectivo cabo de alimentação;
- um computador portátil, da marca Dell, modelo latitude ..., com o n/s ... e,
- um telemóvel da marca Apple, modelo XR 128G, com o IMEI ...40 e e com o cartão SIM correspondente ao numero ...24 e cartão de dados celulares da Vodafone numero ...14.
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Acresce que,
7. O arguido era, ainda, detentor de uma conta “Google Photos” que estava associada ao endereço electronico “...”, na qual o arguido mantinha armazenados 42 (quarenta e dois ficheiros), sendo 35(trinta e cinco) imagens e 7 (sete) vídeos, os quais continham imagens vídeo e fotográficas de menores em práticas sexuais e/ou exibindo os seus órgãos genitais, assim elencados:
a) 3 (três) imagens e 4 (quatro) vídeos com menores que, pelas suas características físicas, aparentam terem entre 7 e os 13 anos de idade e que envolvem actos sexuais com penetração.
b) 14 (catorze) imagens e 3 (três) vídeos com menores que, pelas suas características físicas, aparentam terem entre 7 e os 13 anos de idade e que envolvem actos sexuais sem penetração.
c) 18 (dezoito) imagens que retratam menores entre os 7 (sete) e os 13 (treze) anos de idade, exibindo os seus órgãos genitais.
8. Nesses vídeos e imagens, entre o mais, é possível visualizar menores que, atendendo às suas características físicas, possuem idade inferior a 14 anos de idade, na prática de actos sexuais, como seja:
- menores a introduzirem o sexo genital masculino de um terceiro em idade adulta, na sua boca;
- menores a serem sujeitos a manterem relações sexuais, com copula, com indivíduos adultos do sexo masculino;
- menores a exibirem o seu corpo desnudado, com exposição dos seus órgãos genitais.
9. Duas das imagens contidas na plataforma “Google Photos” foram partilhadas em Junho e Setembro de 2015 e as restantes imagens foram partilhadas foram partilhadas em Abril, Maio, Agosto e Setembro de 2017, através da rede social “WhatsApp”.
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10. Também, no disco externo da marca SEAGATE, pertencente ao arguido, estavam guardados vários ficheiros visualizados intervenientes que aparentam, pela sua fisionomia, serem menores de 14 anos de idade, em práticas sexuais ou exibindo os seus órgãos sexuais.
11. Assim, estavam guardados 824 (oitocentos e vinte e quatro) ficheiros, sendo 788 (setecentos e oitenta e oito) vídeos e 36 (trinta e seis), com imagens e vídeos de menores em actos sexuais, assim elencados:
a) 1(uma) imagem e 23 (vinte e três) vídeos, com menores que aparentam, pela sua fisionomia, terem entre 3 e os 6 anos de idade, na prática de actos sexuais com penetração;
b) 3(três) imagens e 326 (trezentos e vinte e seis) vídeos, sendo 321(trezentos e vinte e um) vídeos únicos, com menores que aparentam, pela sua fisionomia, terem entre 7 e os 13 anos de idade, na prática de actos sexuais com penetração;
c) 17 (dezassete) vídeos, com menores que aparentam, pela sua fisionomia, terem entre 3 e os 6 anos de idade, na prática de actos sexuais sem penetração;
d) 14 (catorze) imagens e 280(duzentos e oitenta) vídeos, 271 (duzentos e setenta e um) vídeos únicos com menores que aparentam, pela sua fisionomia, terem entre 7 e os 13 anos de idade, na prática de actos sexuais sem penetração;
e) 3 (três) imagens e 4(quatro) vídeos, com menores que aparentam, pela sua fisionomia, terem entre 3 e os 6 anos de idade, na prática de actos sexuais com penetração;
f) 15(quinze) imagens e 138(cento e trinta e oito) vídeos, sendo 137 (cento e trinta e sete) vídeos únicos com menores que aparentam, pelas sua fisionomia, terem entre 7 e os 13 anos de idade, retratados desnudado;
12. Assim, nesses vídeos guardados no disco externo pertencente ao arguido foi possível visualizar, quando ao seu conteúdo:
a. Menores que aparentam ter menos de 14 anos de idade, a exibir os seus seios e/ou a sua vulva;
b. Menores que aparentam ter menos de 14 anos de idade, a serem sujeitos a sexo anal, sendo penetrados no anus através do pénis;
c. Menores que aparentam ter menos de 14 anos de idade, a serem sujeitas a relação de cópula, sendo penetradas na vagina através do pénis;
d. Menores que aparentam ter menos de 14 anos de idade, a efectuarem sexo oral a indíviduos do sexo masculino;
e. Menor que aparenta ter menos de 14 anos de idade, a masturbar-se, introduzindo os seus dedos na vagina;
f. Menor que aparenta ter menos de 14 anos de idade, a efectuar sexo oral a indivíduo, que ejacula na boca dela.
13. Estes ficheiros foram partilhados através da rede social WhatsApp no período compreendido entre Abril a Novembro de 2017, sendo que três dos ficheiros têm registo de ultima modificação nas datas de 02 e 07 de Abril de 2018, 69 ficheiros possuem a data de 29 de Agosto de 2019, 5 possuem a data de 24 de Junho e 05 de Setembro de 2020 e os restantes ficheiros possuem modificações datadas do ano de 2017.
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14. A conta de Google – ... – no período compreendido entre 19 de Dezembro de 2016 e 24 de Setembro de 2020 foi utilizada pelo arguido, pelo menos, 159 vezes.
15. A conta de Google – ... – no período compreendido entre 13 de Dezembro de 2019 e 11 de Outubro de 2021 foi utilizada pelo arguido, pelo menos, 146 vezes.
16. A conta de Google – ... – no período compreendido entre 20 de Março de 2017 e 25 de Junho de 2021 foi utilizada pelo arguido, pelo menos, 21 vezes.
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17. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de importar, adquirir e deter os aludidos vídeos, bem como aceder aos mesmos, onde eram utilizadas crianças menores de 14 anos de idade em gravações pornográficas, efectuando práticas sexuais ou exibindo os seus órgãos sexuais, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, visualizando-os, bem sabendo que a importação, aquisição e detenção de tal material, por ser de teor pornográfico, era proibida, o que quis e logrou concretizar.
18. Nas várias situações descritas, o arguido tinha perfeita consciência que em tais gravações, eram utilizadas crianças menores de 14 anos de idade, que, por esse facto, são particularmente vulneráveis e indefesas.
19. Sabia ainda o arguido que as imagens e vídeos supra descritos, com utilização de crianças, em actos/poses de cariz sexual, fomentam e promovem a exploração das mesmas para aqueles fins e, ainda, assim não se inibiu de actuar da forma descrita, importando, visualizando e guardando tais imagens e vídeos.
20. O arguido sabia que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei.

2.4. Motivação da decisão de facto.
No caso dos presentes autos, o processo de formação da convicção do tribunal foi (fortemente) condicionado pela decisão acima proferida sob o título «da impossibilidade de utilização dos metadados como meio de prova».
Tal decisão traduziu-se na afirmação da inadmissibilidade das provas que sustentavam a existência dos crimes imputados ao arguido nos presentes autos
De facto, aí se concluiu que a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização), conservados pelas operadoras identificadas nos autos e enviados ao presente processo na fase de inquérito, constitui prova proibida, não podendo ser usada e, por isso, valorada em sede de fundamentação de facto da decisão a proferir nos autos.
E também se concluiu que a proibição de valoração probatória da prova resultante da obtenção de dados (de base, de tráfego e de localização), decidida nos autos, impede a possibilidade de valoração da prova (toda a prova) resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca).
Como já foi referido, o tribunal de julgamento, quando confrontado com provas proibidas na acusação, deve excluídas, proferindo uma decisão de mérito com base nas provas válidas.
Neste cenário, inexistindo outros elementos de prova susceptíveis de sustentar a verificação das condutas criminosas imputadas ao arguido na acusação, impôs-se o trânsito da esmagadora maioria dos factos aí alegados para a categoria dos factos não provados.
Os (poucos) factos dados como provados resultaram das declarações prestadas pelo arguido em julgamento (o arguido, refutando a prática dos factos, confirmou ter sido ou ser utilizador do website Google e dos serviços de correio electrónico “Gmail” e “Hotmail”, com as contas de email referidas nos factos provados, e confirmou ser titular de dois dos contactos telefónicos referidos na acusação, i.e., os contactos telefónicos dados como provados).
No que respeita ao carregamento (uploads) de ficheiros informáticos e descrição do conteúdo de tais ficheiros, o tribunal valorou a prova documental junta aos autos (o Relatório de Análise e Investigação de Conteúdos Multimédia [incluindo a listagem ou contabilização dos ficheiros – 134 – e a sua categorização – pornografia infantil / imagens / vídeos], tendo como Fonte de Origem a comunicação do NOMEC (National Center for Missing and Exploited Children), consta do Apenso A dos autos).
No que respeita à realização da busca domiciliária, o tribunal valorou a análise dos autos, bem como as declarações do arguido e das testemunhas de acusação EE e FF.
No que respeita ao bloqueio da conta Google, o tribunal valorou as declarações do arguido e o depoimento da testemunha EE.
No que respeita à viagem do arguido para Londres, o tribunal valorou as declarações do arguido e o teor do documento junto aos autos com a contestação (requerimento de 21/04/2022).
No que respeita aos factos respeitantes às condições pessoais, sociais e económicas do arguido, o tribunal valorou o teor do relatório social junto aos autos e os depoimentos de testemunhas de defesa.
No que respeita aos antecedentes criminais do arguido (ausência), o tribunal valorou o teor do CRC junto aos autos.

3. DIREITO
Do enquadramento jurídico da conduta.
O arguido encontra-se acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e concurso efectivo, dos seguintes crimes:
- Doze crimes de pornografia de menores agravados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal (por cada dia de acesso e upload);
- Dois crimes de pornografia de menores agravados, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 5 e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal (por cada suporte informático de armazenamento, “Google Photos” e disco externo).
O crime de pornografia de menores alcançou autonomização (art. 176º do Código Penal) aquando da Reforma Penal de 2007 (Lei nº 59/2007, de 04-09), tipificando condutas que, até aí, integravam o tipo legal de abuso sexual de crianças e criando novas condutas típicas (ocorrendo também um aumento das penas previstas).
A ampliação deste tipo legal de crime, patente na sucessão legislativa, decorre, em boa parte, dos compromissos assumidos pelo Estado português perante a comunidade europeia e internacional, mas sempre se justificando pela necessidade de resposta à facilidade e rapidez de acesso e difusão de material pornográfico de menores na internet (salientando-se a recente alteração deste tipo legal de crime, introduzida pela Lei nº 40/2020, de 18-08).
O artigo 176º estabelece várias modalidades de realização do tipo legal de crime de pornografia de menores (havendo que designe tais formas por crimes distintos, o que, em nosso entender, se reconduz a uma mera questão semântica).
Está em causa nos presentes autos, em primeiro lugar, a modalidade de «produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior» (art. 176º, nº 1, al. c) [na redacção da Lei nº 103/2015, de 24-08, antes da alteração introduzida pela Lei nº 40/2020, de 18-08]).
Os «materiais previstos na alínea anterior» são as fotografias, os filmes ou as gravações pornográficos, independentemente do seu suporte.
Como já foi referido, a modalidade de crime em análise (alínea c) do nº 1), sofreu alteração com a Lei nº 40/2020, de 18-08, traduzindo-se tal alteração na introdução, no elenco das condutas típicas, da conduta constituída por «disponibilizar» (os materiais pornográficos).
Contudo, como referem José Mouraz Lopes / Tiago Caiado Milheiro (“Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual”, 3ª Edição, 2021, pag. 255), “disponibilizar” já seria possível de se subsumir na conduta daquele que “distribui, exporta, divulga ou cede”, já que, todas essas modalidades “colocam” material pornográfico na disponibilização do utilizador (o legislador pretendeu, assim, acentuar a punição de todo o tipo de disseminação, abarcando quaisquer meios pelos quais o material pornográfico fica disponível para ser usado).
Salienta-se, ainda, no âmbito da alteração legal atrás citada, a inserção no nº 8 do artigo 176º de uma definição de material pornográfico, para efeito do artigo em análise («para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo»).
A modalidade de realização do tipo legal de pornografia de menores agora em análise (art. 176º, nº 1, al. c)) caracteriza-se pela existência de uma utilização indirecta de menores, aceitando-se que a violação do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual de um menor não ocorre de forma directa, mas antes indirecta.
Contudo, para além de uma tutela indirecta da liberdade e autodeterminação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência de material pornográfico, também se procura através da incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm. Existe uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do seu direito a ser acautelado o seu bem-estar físico e psíquico (e todas as actuações descritas na modalidade típica em análise são susceptíveis de causar tais danos, pela expansão do conhecimento de tal material pornográfico) (cfr. José Mouraz Lopes / Tiago Caiado Milheiro, ob. cit., pag. 255).
A modalidade de realização do tipo legal em análise (art. 176º, nº 1, al. c)), cuja punição é de prisão de 1 a 5 anos, pretende cobrir todo o tipo de disseminação, sem contrapartidas, dos materiais pornográficos, seja qual for o meio de comunicação utilizado para a divulgação (incluindo, portanto, a divulgação por meios digitais, v.g., internet).
No que respeita ao tipo subjectivo, é admissível qualquer forma de dolo.
Está em causa nos presentes autos, em segundo lugar, a modalidade de «intencionalmente adquirir, deter, aceder, obter ou facilitar o acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1» (art. 176º, nº 5).
Os «materiais previstos na alínea b) do nº 1» são as fotografias, os filmes ou as gravações pornográficos, independentemente do seu suporte.
No caso da detenção de material pedo-pornográfico, dificilmente pode aceitar-se estar em causa a protecção da autodeterminação sexual do menor de 18 anos (protecção subjacente aos crimes sexuais da Secção onde se inclui o art. 176º), sendo antes tutelada a dignidade humana entendida de modo supra-individual, i.e., referida à humanidade em conjunto ou a uma categoria de pessoas (in casu, aos infantes e jovens menores) e não a qualquer concreta pessoa (menor).
O bem jurídico protegido seria, assim, a “dignidade humana” dos menores, na esfera sexual, merecedores “no seu conjunto” de reconhecimento e respeito face á circulação de imagens e estímulos que os exponham a relações de mercantilização e aproveitamento.
Esta concepção, que sufragamos, tem reflexo no problema do concurso de crimes, porque, em rigor, não estaremos perante um bem estritamente pessoal, não havendo tantos crimes como o número de vítimas.
Cumpre referir que a «detenção de materiais pornográficos» não inclui a mera consulta de tais materiais, mas inclui o download dos mesmos (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, ob. cit., pag. 488).
No que respeita ao tipo subjectivo, é admissível qualquer forma de dolo.
A agravação criminal em função da idade é uma característica comum aos crimes sexuais, como já foi referido, e o crime de pornografia de menores não foge a essa regra.
Assim, no caso do nº 1 do art. 176º, a pena aí prevista (prisão de um a cinco anos) é agravada de metade, nos seus limites mínimo e máximo (art. 177º, nº 7, do CP), não havendo que chamar à colação, neste caso, a agravação (de um terço, nos seus limites mínimo e máximo) prevista na alínea c) do nº 1 do art. 176º (a vítima ser pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez).
No caso do nº 5 do art. 176º, a pena aí prevista (prisão até 2 anos) é agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima ser pessoa particularmente vulnerável, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez (art. 177º, nº 1, al. c), do CP).
Passando para o caso dos autos.
Como foi referido na fundamentação da decisão de facto, a decisão que se traduziu na afirmação da inadmissibilidade das provas que sustentavam a existência dos factos respeitantes às condutas criminosas imputadas ao arguido na acusação fez com que a esmagadora maioria dos factos alegados na acusação transitassem para a categoria dos factos não provados e os (poucos) factos dados como provados não são suficientes para a condenação do arguido pela prática dos crimes de que estava acusado.
Em suma, impõe-se a absolvição do arguido da prática da totalidade dos crimes de que estava acusado nos autos.

4. DECISÃO
Em face de tudo o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal do Porto em proferir a seguinte decisão:
a) Por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 4º, conjugada com o artigo 6º, e da norma do artigo 9º, todas da Lei nº 32/2008, de 17-07 (Acórdão do TC nº 268/2022, de 19/04/2022), declara-se que a prova resultante dos dados (de base, de tráfego e de localização), conservados pelas operadoras de comunicações electrónicas identificadas nos autos e enviados ao presente processo na fase de inquérito, constitui prova proibida, não podendo ser usada e, por isso, valorada em sede de fundamentação de facto da decisão a proferir nos autos;
b) Por verificação do efeito-à-distância, declara-se que a proibição de valoração probatória da prova resultante da obtenção de dados (de base, de tráfego e de localização), decidida nos autos, impede a possibilidade de valoração da prova (toda a prova) resultante da busca domiciliária realizada nos autos (incluindo a apreensão, pesquisa e leitura nos aparelhos e sistemas informáticos encontrados na posse do visado com a busca);
c) Por força do atrás decidido, considera-se prejudicada a apreciação da questão da nulidade / proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos;
d) Absolve-se o arguido AA da prática de doze crimes de pornografia de menores agravados (previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal);
e) Absolve-se o arguido AA da prática de dois crimes de pornografia de menores agravados (previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 5 e 177º, nº 1, al. c), ambos do Código Penal);
Sem custas. Proceda a depósito.
*
Medida de coacção (extinção da prisão preventiva):
Em face do teor da decisão proferida nos autos (absolvição do arguido AA), ao abrigo do disposto no art. 214º, nº 1, al. d), do CPP, determina-se a imediata extinção da prisão preventiva (com consequente imediata libertação do arguido, caso a sua detenção não interesse a outro processo [informação a colher junto do estabelecimento prisional]).
[...]».


3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«a) i.) O presente recurso questiona a absolvição do arguido [...], por virtude da má apreciação fáctica da situação em causa, relacionada com a recolha de prova para identificação deste arguido e posterior incriminação do mesmo, como integrativa da norma do artigo 4º, conjugada com o artigo 6º, e da norma do artigo 9º, todas da Lei nº 32/2008, de 17-07, dispositivos estes considerados como inconstitucionais, por virtude do acórdão do TC nº 268/2022, de 19/04/2022, com força obrigatória geral;
b) ii.) Tal como e nesta sequencia, por não ter sido apreciada a invocada e inexistente nulidade, invocada em audiência de julgamento pelo arguido, referente à proibição de prova decorrente da falta de autorização prévia do JIC, para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos.
c) [...];
d) Em síntese, o Tribunal considerou a Lei nº32/2008, de 17/7 que regula a conservação e transmissão dos dados de trafego e de localização relativo a pessoas singulares e coletivas, bem como dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes (artigo1º, nº1), denominados “metadados”, ou “dados sobre dados”, determinados no artigo 4º alíneas a) a f) por categorias;
e) Bem como o artigo 4º da mesma lei (Lei nº32/2008) com a obrigação de conservação dos mesmos pelo período de 1 ano, a contar da data da conclusão da comunicação e os artigos 9º e 10º deste diploma, que regulamenta a transmissão de dados, i.e., a obtenção de dados, pelas autoridades competentes, junto do respetivo fornecedor de serviços de comunicações eletrónicas, dos dados que foram objeto de comunicações e de conservação para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves, sendo certo que os dados só poderão ser disponibilizados às autoridades mediante despacho fundamentado de Juiz, se houver razão para crer que a diligencia é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova o seria;
f) Mais considerou que a transmissão (a preservação é diferente), sendo os dados inerentes às comunicações eletrónicas na Lei do Cibercrime (Lei nº109/2009, de 15/9) para além de prever condutas criminosas em que o elemento digital surge como parte integradora do tipo legal ou como objeto de proteção, previstos e regulados nos artigos 12º a 19º, sobre os diversos meios de obtenção de prova digital; tal como o artigo 9º da Lei nº32/2008, que regula os meios de prova (incluindo as condições da transmissão dos dados conservados às autoridades);
g) [...];
h) Daí que viessem a absolver o arguido, por virtude da decretada inconstitucionalidade decorrente e em relação a estas normas legais, não chegando sequer a apreciar a aludida também invocada pela defesa nulidade de proibição de prova, decorrente da falta de autorização prévia do JIC ou do arguido, para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos, por prejudicada a anterior decisão;
i) Ora perante a prova dada como provada pelo Tribunal e aqui reproduzida, por brevidade, nos itens 2.2 1.a 13 e a matéria dada como não provada, igualmente aqui reproduzida, nos itens 2.3 1ª 20, como salientado, cujo processo de formação da convicção do Tribunal foi fortemente condicionado pela decisão “…da impossibilidade de utilização dos metadados como meio de prova”(sic);
j) Impossibilitndo a imputação destes crimes ao arguido, designadamente, em termos do elemento subjetivo!
k) Da má avaliação da essencialidade dos mencionados dispositivos (vulgo metadados), como meio de obtenção de prova para a identificação do arguido AA, em relação à valoração e apreciação da prova ou melhor, dos meios de obtenção de prova, utilizados pela autoridade judiciaria, preceitos legais, vulgarmente denominados por metadados, que vieram a ser declarados como inconstitucionais, em sede própria;
l) O que determinou a absolvição deste arguido, impossibilitando-os de melhor apreciarem a matéria fáctica trazida a julgamento!
m) Da análise e seguindo estudo de Rui Cardoso e Carlos Pinho de 24/5/2022, in SIMPTEMÁTICOS, ao acórdão do TC nº248/2022 que na sua alínea a) declarou a inconstitucionalidade dos supra citados preceitos legais – artigos 4º da Lei nº32/2008, conjugado com o artigo6º da citada lei –, por violação dos dispostos nos nºs 1e4 do artigo 35 e nº1 do artigo 26 em conjugação com o nº2 do 18º da lei fundamental escalpelizando-a, diremos:
n) No seu nº4da Lei nº32/2008, prevê-se a categoria de dados conservados e no artigo 6º o período de conservação (1 ano);
o) Já nos termos dos artigos 35º nº1 e4, 26º nº1 e 18º nº2 da CRP, salvaguarda-se a questão da proporcionalidade;
p) Os dados do artigo 4º referem-se a dados de base e de IP (da fonte de comunicação). Ora, porque a lei não prescreve a obrigatoriedade de os dados serem conservados em território da EU e em relação aos “dados de trafego e de localização”, devido à universalidade da medida (todos os utilizadores e assinantes), afigura-se-nos que o TC não chega a apreciar se o prazo de um ano é excessivo.
q) Já na alínea b) do citado acórdão do TC, visam-se os artigos 20º nº1 da CRP, como de proteção para todos no acesso ao direito, mesmo para o cidadão com insuficiência de meios, sendo que o RGPDP/regulamento UE2016/679 do PE e do Conselho de 27 de abril, relativo à proteção de dados pessoais e à livre circulação desses dados, revoga a Diretiva 9546/CE estabelecendo o artigo 15º nº1 alínea c), o direito de acesso do titular dos dados, sendo o responsável por esse tratamento a ISP, ou seja, a Operadora.
r) Por sua vez, no artigo 23º nº1 al. d) desse diploma, dispõe-se sobre a responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia e a Lei nº58/2019, de 8 de agosto, assegura a execução na ordem jurídica nacional, do Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento e do Conselho de 27 de abril, relativo à proteção das pessoas singulares no tratamento de dados pessoais;
s) Já no artigo 37º nº1 al. i) se preveem as contraordenações muito graves e no artigo 3º se dispõe sobre a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNAD), cabendo-lhe o controle e fiscalização deste Regulamento, no seu artigo 4º nº2; e, no seu artigo 6º nº1 al. b), menciona-se as atribuições do RGPD e da CNPD;
t) No nosso caso, os regimes que subsistem e os normativos convocáveis aplicáveis nesta situação, refiram-se e salientem-se a aplicação dos artigos 189º nº2 e 167º do Código de Processo Penal, a Lei nº41/2004, no seu artigo6º, a Lei nº5/2004 (Lei das Comunicações Electrónicas), no seu artigo 48º nº7 e a Lei do Cibercrime, no seu artigo 14º nº3;
u) Assim, no 189º do CPP, sob titulo “Extensão”, cuja redação de 2007 não teve revogação expressa e se o entendimento for de revogação tácita após a lei nº32/2008, seja repristinado do regime legal, tendo em atenção o disposto no seu nº2;
v) Ora e continuando-se a citar o supra referido estudo, diremos que a obtenção e junção aos autos de dados armazenados (artigo 189º nº1 CPP e 18º da LCC) se referem aos elementos sobre a localização celular (localização da célula BTS), utilizada pelo aparelho durante a comunicação; de registos de realização de conversações (“faturas detalhadas”- “dados de tráfego”; em qualquer fase do processo e por decisão do Juiz; em crimes de catálogo do artigo 187ºnº1 do CPP e sendo visados o catálogo do artigo 187º nº4 com relevância probatória e como mera necessidade para a prova ( juízo de proporcionalidade do artigo 18º nº2 da CRP;
w) Ou seja, desde que quem armazena os dados o faça licitamente! No artigo 167º do CPPnº1 se extrai que a conservação dos metadados não poderá ser criminalmente ilícita.
x) Neste sentido, a Lei nº41/2004, de 18/8 referente ao tratamento de dados pessoais e de proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, dá-nos as definições no seu artigo2º, como sejam os “dados de tráfego”, sendo certo que, se forem tratados para efeitos de envio da comunicação, possam ser guardados e no seu artigo7º nº1” Dados de Localização”, onde se refere textualmente “para além dos dados de tráfego”, quis compreender outros dados de comunicação que não os necessários ao envio da comunicação;
y) Salientem-se nesta Lei nº41/2004, sobre o tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, o artigo 4º nº2, os nºs 1 e 2 do artigo 6º nºs 1,2,3 e 7, não sendo obrigatório os 6 meses fixados no artigo 10º nº1 da Lei nº23/96 (que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos para proteger o utente de serviços públicos essenciais), sobre a prescrição e caducidade prevista no seu nº1, fixado o prazo no seu nº4;
z) Ora, o regime deste diploma é aplicável aos serviços de comunicações eletrónicas - ex vi artigo1º nº2 al. d)- e fixado o prazo no seu nº4 e no artigo1º da Lei nº41/2004 (diploma que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº2002/58/CE PEC, de 12 julho), relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas, no seu nº4, que indica as exceções, o que significa que há outras exceções (aos limites de conservação definidos nesta lei) previstas em legislação especial (exceções que têm como fundamento exclusivo a segurança pública, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção, investigação e repressão de infrações penais) e não o interesse dos ISP´s;
aa) A Lei nº 5/2004, no seu artigo 48º nº7 menciona o período de vigência do contrato e no artigo 14º da Lei do Cibercrime referem-se à injunção para apresentação ou concessão do acesso aos dados, no seu nº1 e 4, sendo que naquele não se refere apenas aos crimes de catálogo, mas, antes, ao artigo 11º nº1 da LCC, a entidade judiciaria competente se refere ao MP e neste ultimo numero se refere a fornecedores de serviço;
bb) Também se não deve confundir a situação do artigo 252-A CPP (localização celular) e o artigo 18º da LCC (interceção de dados informáticos) ou seja, preserva-se /interceta-se apenas para o futuro- não há acesso a dados de comunicações passadas(armazenadas); importando referir que o artigo 12º da LCC (Lei do Cibercrime) preservação expedita de dados, que a lei apenas nos permite preservar os dados legitimamente conservados;
cc) Em suma e conclusão: no caso concreto não sendo este meio de produção de prova, solicitados pela entidade policial (PJ), com cobertura da competente entidade judiciaria, não essencial para conseguir obter os dados de subscritor do aqui arguido;
dd) Porquanto, tais elementos sempre poderiam ter sido obtidos com fundamento também na Lei nº 41/2004, acima citada e da qual as competentes entidades investigatórias vêm fazendo uso e privilegiam, para obter tal informação de dados de conexão;
ee) Desde que tais dados de tráfego e de localização obtidos se refiram a crimes de catálogo e aos visados 187º nºs 1 e 2 do CPP;
ff) Como o caso dos autos!
gg) Citando-se Adão Carvalho, na obra supra citada, “...o que importa é que existiam concomitantemente com a referida Lei outros dispositivos legais que permitiam o acesso, como sejam o artigo 14º, da Lei do Cibercrime e o artigo 189º do Código de Processo Penal, conjugado com a Lei 41/2004”;
hh) Saliente-se que a busca ordenada pelo Mº JIC (contrariamente ao promovido pelo MP), foi dimanada de forma ampla, apenas, nos termos do Código de Processo Penal, mais propriamente de acordo com as citadas disposições conjugadas dos artigos 174º nºs1e3, 177º nº1, 178º nº1 e 269º nº1 al. c), todos do Código de Processo Penal, e não já no âmbito dos outros diploma legais.
ii) Já quanto à segunda (falsa) questão também invocada pelo arguido – como questão prévia ou incidental-, acerca da levantada nulidade por proibição da prova decorrente da falta de autorização do JIC ou do arguido para o visionamento, no decurso da busca, do conteúdo dos aparelhos informáticos apreendidos, a mesma nem chegou a ser considerada, por estar prejudicada pela primeira decidida questão da declarada inconstitucionalidade;
jj) Porém convém salientar e o Tribunal a ela se referiu e acabou por considerar- e bem-, que a mesma não ocorreu com o recurso a prova proibidas e, daí nulas, mas, antes, devidamente consentidas e autorizadas pelo próprio arguido, que voluntaria, consciente e deliberadamente, assinou e deu o seu aval, à entidade policial, no âmbito de uma diligencia de busca domiciliária, devida e judicialmente validada pelo Mº JIC;
kk) Como, aliás, o próprio Juiz assim o considerou.
ll) Nesta conformidade existiu uma insuficiência no apuramento e apreciação da matéria de facto provada, nos termos do art.410º nº2, al. a) e 426º, ambos do CPP, designadamente ao ter (mal) considerado a recolha de prova para a identificação do arguido, nos termos dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei nº32/2008, de 17-7, dispositivos estes julgados inconstitucionais, por força do ac. do TC nº268/2022, de 19/4, com força obrigatória geral, como essencial, para a descoberta e identificação daquele agente, autoria dos 12 crimes de pornografia de menores agravado ( p. e p. pelos 176º nº1 al. c) e 177º nº1 al. c), do C. Penal e 2 crimes de pornografia de menores agravados ( p. e p. pelos artigos 176º nº5 e 177º nº1 al. c), do C. Penal);
mm) Desta forma, qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art.410º nº1 al. a) e 426º, do CPP;
nn) Aliás, ao não ter apreciado esta essencialidade dos meios de produção de prova, neste caso, vulgo “metadados”, e o modo como se poderia obtê-los de uma outra forma que não fosse com recurso àqueles preceitos legais, ora invocados, o acórdão de que se recorre, deverá ser considerado nulo, por inobservância do disposto no nº2 do artigo 374º do C.P.P.;
oo) A douta sentença recorrida, não só carece de insuficiência para a decisão, de matéria de facto provada, como ainda, enferma de erro notório na apreciação da prova realizada;
pp) Deste modo e por violação do artigo 410º nº2 do C.P.P., o douto Tribunal violou as normas dos artigos 6º da Lei nº41/2004, de 18/8, 48º nº7 da Lei nº5/2004, do artigo 14º nº3, da Lei do Cibercrime, artigo 10º nº1, da Lei nº23/96, dos artigos 187º nº1 e nº4, 189º nº2 e 167º, 178º nº1 e 269º nº1 al. c), 374ºnº2, do Código de Processo Penal e do próprio acórdão do T. C. nº268/2022, de 19/4/2022, artigos 176º nº1 al. c), nº5 e 177º nº1 al. c), ambos do Código Penal;
qq) Que, no caso concreto, afetará e enfermará a douta sentença de um vício a que se refere o disposto no art.410º nº2 al. a) e c), do C. P. Penal, o que, em nosso entender, implicará, necessariamente, o reenvio do processo para outro julgamento, conf. art.426ºnº1 do C.P.P.»


4. A isto respondeu o recorrido, sem formular conclusões, defendendo que «deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Publico por não lhe assistir qualquer razão».
5. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
«[...]
Cremos que o recurso está bem estruturado e fundamentado e que assiste razão ao Ministério Público.
Ao motivado somente acrescentamos a nota informativa emitida pelo Gabinete do Cibercrime da Procuradoria Geral de República – P.G.R. de 17/05/2022 que dá uma visão global do assunto e que passamos a transcrever:
“1. O Acórdão nº 268/20221 do Tribunal Constitucional, de 19 de abril de 2022, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos artigos 4º e 6º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho. Até agora, tais disposições obrigavam os operadores de comunicações a guardar, de forma sistemática, dados referentes a comunicações, para que os mesmos (embora sob muitas condições e limitações) pudessem vir a ser utilizados na investigação da prática de crimes.
Como efeito desta declaração de inconstitucionalidade os operadores deixam de estar sujeitos a tal obrigação passando, pelo contrário, a ter a geral imposição, com as exceções que se referem abaixo, de eliminar os dados, ou de torná-los anónimos, quando deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação (artigo 6º, nº 1, da Lei nº 41/2004, de 18 de agosto).
2. Em consequência deste acórdão, tem que considerar-se agora que os pedidos de informação que no passado foram remetidos a operadores de comunicações, no âmbito da Lei nº 32/2008, foram efetuados ao abrigo de uma norma declarada inconstitucional. Esta declaração de inconstitucionalidade tem efeito a partir da entrada em vigor da lei (salvaguardadas as situações de caso julgado – artigo 282º da Constituição da República), como foi reforçado pelo Acórdão nº 382/2022, do Tribunal Constitucional, de 13 de junho.
3. Importa, pois, em cumprimento desta jurisprudência obrigatória, que o Ministério Público afira, em cada concreto processo, não transitado em julgado, em que tais dados tenham sido solicitados, a validade probatória deste tipo de informação. Esta verificação é ainda mais premente nos casos em que os dados facultados por operadores de comunicações tenham sido relevantes na aplicação de medidas de coação.
4. A indisponibilidade de dados de tráfego impossibilita investigar a generalidade dos crimes praticados em ambiente digital. O endereço do protocolo IP de uma determinada comunicação é essencial em milhares de investigações. Sem este tipo de informação é inviável dar início a muitíssimos inquéritos: os dados comunicacionais são fundamentais para que se consigam identificar os autores de crimes online. Independentemente da dimensão das consequências do acórdão de 19 de abril, afigura-se que, à luz da jurisprudência constitucional, apenas uma iniciativa legislativa, alinhada com os limites da doutrina do Tribunal Constitucional, pode clarificar as dúvidas e incertezas que o Acórdão trouxe ao atual quadro normativo. Somente uma nova lei pode superar a fragilidade em que caiu a investigação criminal, ao ser legalmente impedida de aceder a dados de tráfego.
5. Não obstante, o Tribunal Constitucional reconheceu, especificamente quanto aos endereços de IP utilizados para estabelecer uma determinada comunicação, a sua essencialidade na investigação criminal moderna e a conformidade da sua retenção com a Constituição (pelo menos em termos de lege ferenda, embora sujeitasse a validade constitucional de uma futura lei à observação de dois requisitos que diz não estarem atualmente consagrados na lei: a expressa obrigação de os dados serem conservados em território da União Europeia e a previsão de notificação ao titular dos dados, quando os mesmos forem fornecidos às autoridades públicas).
6. O artigo 6º da Lei nº 41/2004 permite aos operadores de comunicações conservar alguns dados de tráfego, sendo tal conservação uma opção que os operadores de comunicações exercem ou não (portanto, a conservação de dados não constitui uma obrigação). Porém, apenas é “permitido o tratamento de dados de tráfego necessários à faturação dos assinantes e ao pagamento de interligações”, sendo tal tratamento apenas “lícito até final do período durante o qual a fatura pode ser legalmente contestada ou o pagamento reclamado”. Está, portanto, em vigor no quadro normativo, uma outra possibilidade de conservação de alguns dados (neste caso, por um período de seis meses – pela conjugação do artigo 6º, nº 3, da Lei 41/2004 com o artigo 10º, nºs 1 e 4, da Lei 23/96, de 26 de julho, diploma legal que define regras respeitantes à prestação de serviços públicos essenciais). Trata-se, naturalmente, de um conjunto muito reduzido de dados cuja recolha, pela sua natureza, não colide com interesses ou direitos fundamentais, como a privacidade, o sigilo de comunicações ou a autodeterminação informacional.
A declaração de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional não abrangeu este nicho normativo, nem incidiu sobre a específica conservação de endereços do protocolo IP usados em comunicações concretas. Não questionou a vigência da Lei nº 41/2004, nem pôs em causa a prática corrente, neste contexto, de pedido de informações aos operadores de comunicações pelo Ministério Público.
7. Por outro lado, noutro lugar da lei, mantém-se em vigor a possibilidade conferida ao Ministério Público, pelo artigo 14º da Lei do Cibercrime, de solicitar a fornecedores de serviço “dados relativos aos seus clientes ou assinantes, neles se incluindo qualquer informação diferente dos dados relativos ao tráfego ou ao conteúdo, contida sob a forma de dados informáticos ou sob qualquer outra forma, detida pelo fornecedor de serviços, e que permita determinar”. Tais dados relativos aos clientes incluem, entre outros, “a identidade, a morada postal ou geográfica e o número de telefone do assinante, e qualquer outro número de acesso” – artigo 14º, nº 4, alínea b) da Lei do Cibercrime.
É pacificamente entendido que esta última disposição (“número de acesso”), confere legitimidade ao Ministério Público para solicitar a operadores de comunicações informações sobre a identificação de concretos utilizadores de endereços de protocolo I.P.”.
Assim, aderimos á motivação e é nosso parecer que o recurso merece provimento.»

6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.

II
7.O presente recurso merece provimento.
8. 1. Do juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 268/2022, de 19/04/2022, não decorre (retroativamente) qualquer nulidade insanável, ex vi do preceituado no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ou proibição de aquisição de prova relativamente às situações em que as autoridades responsáveis pela investigação criminal tivessem já, legitimamente, acedido a dados retidos por força da obrigação imposta pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, agora tida por contrária à Lei Fundamental (talvez melhor, ao complexo normativo em que aquele aresto fundou o resultado a que chegou).
9. Conforme decorre do preceituado no artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, apenas Constituição), «[a] declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado» (n.º 1), não colocando, contudo, em causa «os casos julgados» (n.º 3; isto, naturalmente, sem prejuízo das exceções previstas tanto nesta norma como no subsequente n.º 4).
10. Pese embora seja questão longe de pacífica (cf., para uma síntese das posições em confronto, Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, págs. 620 e segs.: Id., em anotação ao artigo 282.º da Constituição, em Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. III, 2.ª ed., págs. 731 e segs., especialmente 738 e segs.), propendemos, por razões de salvaguarda da estabilidade das decisões judiciais (ainda que «interlocutórias») e correspondente unidade e harmonia do próprio procedimento criminal, bem como de segurança jurídica, a considerar que também quanto a atos processuais cujos efeitos se mostram já inteiramente esgotados anteriormente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma que habilitou (ou, como no caso vertente, «contribuiu» para) a sua prática (portanto, relativamente a situações jusprocessuais já estabilizadas), se aplica o limite constitucionalmente previsto à eficácia retroativa dessa mesma declaração, sobretudo quando, como aqui, ela não abrange a legitimidade de acesso e utilização de quaisquer (meta)dados para efeitos de investigação criminal, per se, mas tão-só um regime legal especial de conservação desses mesmos (meta)dados, meramente ancilar – ou assim concebido – da atividade investigatória das autoridades policiais.
11. Até porque, a legislação «repristinada» pela declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional (ou que passa a poder ser convocada – pela supressão, do ordenamento jurídico, das normas de natureza especial declaradas inconstitucionais – para permitir o acesso e utilização de (meta)dados, consoante o enquadramento teórico que se pretenda conceder à questão), admite, em abstrato, o acesso, ocorrido nos autos, a (meta)dados referentes às comunicações (uploads) aqui denunciadas (cf. artigos 187.º, n.ºs 1, alínea a), e 4, alínea a), e 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e 11, n.º 1, alínea c), e 13, n.ºs 1 e 4, alínea b), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro), não se colocando, por isso, qualquer questão quanto à legitimidade do mesmo, tanto à luz da legislação declarada inconstitucional, como, atualmente, à luz da legislação (plenamente) em vigor, o que significa, assim, que não ouve obtenção de prova mediante intromissão na vida privada e nas telecomunicações fora «[d]os casos previstos na lei», e, portanto, de modo por esta não admitida (vd., a propósito, o preceituado no artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
12. Não se olvida, como é evidente, que a decisão de inconstitucionalidade que vimos apreciando eliminou o título legal que previa (e, consequentemente, legitimava) a conservação dos meta(dados) apreendidos nos autos, pelo que a sua retenção, no momento em que ocorreu essa apreensão, violaria já (pelo efeito retroativo daquela decisão) a Constituição; mas nesse momento, que não pode deixar de ter-se por decisivo para efeitos de apreciação da regularidade da atuação das autoridades policiais no âmbito deste processo, nenhuma inconstitucionalidade havia ainda sido decretada, ou era imediatamente aparente, pelo que só a ulterior atuação do Tribunal Constitucional veio modificar a situação, numa altura em que a apreensão dos (meta)dados em causa nos autos já havia sido (legitimamente) ordenada e concretizada.
13. Ora – como, aliás, este caso bem demonstra – a atuação dos diferentes sujeitos no âmbito do processo criminal é guiada, em princípio, também pelas opções que legalmente lhes são disponibilizadas pelas regras (substantivas e) processuais aplicáveis em cada momento, pelo que o efeito da sua respetiva alteração (dir-se-ia que «a meio do jogo») pode, para lançar mão de uma sugestiva expressão utilizada na decisão recorrida, ser «catastrófico», seja para os interesses da comunidade (como sucede neste caso), seja – é bom lembrá-lo também –para os interesses dos próprios suspeitos da prática dos crimes, que naturalmente importará sempre acautelar, garantindo a fairness do processo penal relativamente a todos aqueles que nele participam.
14. A necessidade de manter a unidade e harmonia do procedimento criminal e de salvaguardar a segurança jurídica dos nele envolvidos (valor que justifica, por exemplo, e precisamente, a disciplina consagrada no artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), já para não falar do prestígio e autoridade do sistema de administração da justiça (criminal), justifica, portanto, que não se bula em situações processuais que se encontrem estabilizadas, como sucede em situações como a aqui em causa.
15. 2. Do juízo de inconstitucionalidade que recaiu sobre o n.º 1 do artigo 4.º, conjugado com o artigo 6.º, bem como o artigo 9.º (estes nas dimensões identificadas pelo Tribunal Constitucional), todos da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, também não decorre uma proibição de valoração dos (meta)dados apreendidos nos autos.
16. a) Questão diversa da discutida no ponto anterior é a de saber que utilização pode ser dada, no âmbito dos presentes autos, aos (meta)dados apreendidos no quadro do regime previsto na Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, sendo certo que uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma norma processualmente relevante pode sempre, em teoria até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao processo criminal (e, em casos mais limitados, até depois do seu termo, através do recurso de revisão: cf. artigo 449.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal), ser ainda tomada em consideração, onde se justifique, permitindo salvaguardar adequadamente quaisquer interesses merecedores de tutela e observar integralmente a disciplina constitucional tal como explanada pelo Tribunal competente para a determinar.
17. Não se ignora, como é evidente, que a valoração, pelo. Tribunal, de elementos probatórios obtidos precedendo uma violação de direitos constitucionalmente protegidos (ainda quando ela não resulte diretamente da concreta atuação empreendida pelos diferentes atores com intervenção no processo penal, em especial as autoridades responsáveis pela investigação e perseguição penal) pode, obviamente, implicar uma renovada (e/ou aprofundada) agressão a esses mesmos direitos (como salienta, v. g., Klaus Rogall, Gegenwärtiger Stand und Entwicklungstendenzen der Lehre von den strafprozessualen Beweisverboten, ZStW 91 (1979), pág. 21, com referência à pertinente jurisprudência, à data, do Tribunal Constitucional alemão a este respeito).
18. Ainda assim, no entanto, daqui não tem necessariamente que decorrer que toda e qualquer conduta que, no âmbito do processo penal, possa atingir direitos constitucionalmente protegidos deva implicar uma proibição absoluta de valoração dos elementos probatórios através dela obtidos (assim, também, Klaus Rogall, cit., pág. 21 e segs., vd., ainda, Darvin Decker, Systematik der Beweisverwertung, págs. 39 e segs., passim, especialmente os autores pelo mesmo referidos na pág. 39, nota 60, bem como as decisões da jurisprudência ordinária e constitucional alemãs – que mantêm há muito o entendimento exposto – aí também citadas, na nota 59, bem como nas páginas e notas de rodapé seguintes; entre nós, vd. Jorge de Figueiredo Dias, Revisitação de algumas ideias-mestras da teoria das proibições de prova em processo penal (também à luz da jurisprudência constitucional portuguesa), na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 146.º, n.º 4000, 2016, especialmente págs. 11 e segs.).
19. Que «[t]he criminal is to go free because the constable has blundered» – como criticamente caracterizou Benjamin Cardozo, então juiz no Court of Appeals do Estado de Nova Iorque, na sua opinion no caso People v. Defore (242 N.Y. 13, 21 (1926), a relativamente recente (à data) exclusionary rule definitivamente estabelecida pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos com a sua decisão no caso Weeks v. U. S. (232 U. S. 383 (1914)) – é, aliás, consequência que se vai crescentemente reconhecendo, mesmo nos Estados Unidos, não dever ser inexorável, mas dever ficar dependente, em larga medida, das circunstâncias do caso concreto (vd., v. g., o sintético conspecto da evolução e do estado atual do tratamento da exclusionary rule, e da teoria do fruit of the poisonous tree, na jurisprudência norte-americana, de Mark E. Cammack, The United States: The Rise and Fall of the Constitutional Exclusionary Rule, em S. C. Thaman (ed.), Exclusionary Rules in Comparative Law, pág. 3 e segs., especialmente págs. 8 e segs.).
20. Não há neste entendimento das coisas – ao contrário do que pensam autores como Hans-Heiner Kühne (Strafprozessrecht, 9.ª ed., n. m. 907.4, pág. 583) – qualquer «paradoxo ético», quando se tem em consideração, como vem sublinhando o Tribunal Constitucional alemão (logo na sua «Beschluß» de 19/07/1972, BVerfGE 33, 367 (383), mas desde então, também quanto ao resultado, em várias outras decisões: cf. Darvin Decker, ob. e loc. cit.), que a ideia de Justiça é também componente essencial do princípio do estado de direito, de onde decorre a exigência de que o Estado assegure uma administração de justiça eficaz, sem a qual não é possível a realização da Justiça; que o interesse comunitário na perseguição eficaz dos criminosos e no apuramento da verdade no âmbito do processo criminal, da forma mais completa possível, também assume relevância constitucional; e que a investigação (e perseguição), sobretudo dos crimes mais graves, constitui obrigação essencial de uma comunidade constituída em estado-de-direito.
21. Por isso, e como sugere Figueiredo Dias (cit., pág. 11), não há razão para que «no mais democrático dos sistemas, ele [um direito, liberdade ou garantia individual violado] haja sempre de ser apreciado como dominante perante o direito, liberdade ou garantia de todas as outras pessoas constituídas em Estado, perante o interesse da comunidade num processo penal justo e eficaz»; face ao conflito entre o interesse do cidadão cujos direitos possam ter sido beliscados no decurso do processo penal e os interesses da comunidade numa perseguição penal eficaz, exige-se uma ponderação que, tomando em consideração todas as circunstâncias da situação concreta, permita alcançar, tanto quanto possível, uma concordância prática entre os valores e interesses em confronto (como também sublinha o mesmo autor).
22. É claro que a verificação, na aquisição de determinados elementos probatórios, de uma violação de direitos constitucionalmente (e legalmente) protegidos dos cidadãos, constituirá indício muito forte de que a ulterior valoração de tais elementos não deverá ser permitida (de novo nas palavras de Figueiredo Dias, porque a violação em questão «pode afetar irremediavelmente a consistência e a credibilidade da prova» de forma inadmissível numa sociedade democrática); o que daqui não pode é concluir-se, sem mais, que essa mesma valoração nunca deverá ser permitida, em todos os casos, por mais insignificante que seja a violação ocorrida, ou por mais importante que seja o interesse comunitário na perseguição do crime concretamente em causa, sobretudo em casos em que a concordância prática entre os interesses em conflito permite uma solução ainda suportável à luz dos princípios do estado-de-direito.
23. b) No caso concreto, e do que precede, crê-se que a possibilidade de valoração dos (meta)dados apreendidos nos autos não deve ser negada.
24. Da perspetiva dos interesses da comunidade no combate à criminalidade, afigura-se-nos que a natureza e gravidade dos crimes em causa nos presentes autos – que tutelam a autodeterminação sexual de menores, os quais, precisamente pela sua idade, e como infelizmente se vem verificando com especial agudeza, se mostram particularmente vulneráveis a situações de abuso sexual e de exploração – justifica plenamente a eventual compressão dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa (que o Tribunal Constitucional identificou como fundamento para o juízo de inconstitucionalidade a que chegou), sempre que tal se mostrar indispensável para efeitos de investigação criminal.
25. Sendo assim, o acesso aos (meta)dados em causa nos presentes autos (e a sua utilização como prova os factos sob apreciação no processo) não violaria, em abstrato e por si, desde que observados os demais requisitos legal e constitucionalmente predispostos para tanto – como, aliás, ocorreu na hipótese vertente – as garantias oferecidas aos cidadãos pelos direitos fundamentais aludidos.
26. Existe, portanto, interesse premente na utilização e valoração dos (meta)dados em causa nos autos, sendo agora de questionar se os demais interesses aqui em jogo o devem sobrelevar, justificando a afirmação da verificação, no caso, de uma proibição de valoração, tal como o faz a decisão recorrida.
27. Não cremos que assim se deva entender.
28. Em primeiro lugar, como decorre com clareza dos autos, o acesso das autoridades policiais, no decurso do inquérito que deu origem ao presente processo, a (meta)dados retidos no âmbito da obrigação estabelecida pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, foi autorizado, e processou-se inteiramente, de acordo com as normas legais (à data) aplicáveis, não violando, pois, diretamente, qualquer norma legal (ordinária ou constitucional).
29. Não se verificou, portanto, por parte dos órgãos de investigação criminal pertinente, qualquer atividade dolosa ou grosseiramente negligente dirigida à violação dos requisitos legalmente previstos para o acesso aos (meta)dados aludidos, que possa justificar, por si só, a não valoração dos elementos probatórios assim recolhidos.
30. Em segundo lugar, a atuação das autoridades policiais dirigiu-se apenas à obtenção e análise dos (meta)dados indispensáveis à identificação dos potenciais autores dos uploads em causa nos autos, ou seja, à identificação de pessoas em relação às quais havia já uma suspeita – que podemos dizer fundada – de terem praticado atos ilícitos criminais graves, o que significa que não houve, consequentemente, um acesso genérico e indiscriminado a (meta)dados respeitantes a comunicações realizadas por cidadãos em relação aos quais nenhuma suspeição existia de participação na prática de crimes.
31. Em terceiro lugar, é ademais importante notar que os (meta)dados aqui em causa são dados de base, que servem (ou pelo menos, no caso concreto, serviram) apenas para apurar a identidade do, ou dos autores dos uploads denunciados nos autos, e sempre com vista a permitir a sua ulterior investigação.
32. Trata-se de uma categoria de dados (e de um conjunto de informações) cuja retenção (e utilização), nos moldes e para os fins de investigação previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, o próprio Tribunal Constitucional, no seu aludido acórdão n.º 268/2022 (acompanhando, aliás, o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia, tal como primeiramente expressado logo no seu acórdão La Quadrature du Net, de 06/10/2020, processos apensos C-511/18, C-512/18 e C-520/18, parágrafos 157-159), reconheceu que, em princípio, não violaria a Constituição (ou o direito da União Europeia: cf. o parágrafo 17 do citado acórdão n.º 268/2022).
33. A inconstitucionalidade identificada pelo Tribunal Constitucional no tocante à retenção dos referidos dados de base fundou-se assim, exclusivamente, na circunstância de «o legislador não [ter] prescr[ito] a necessidade de o armazenamento dos dados ocorrer no território da União Europeia, pondo em causa a efetividade dos direitos avalizados pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da Constituição, interpretados em conformidade com o disposto nos artigos 7.º e 8.º da CDFUE» (vd. o parágrafo 16 do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022).
34. No entanto, no caso vertente não se suscitou, nem suscita, em concreto, qualquer problema quanto à efetividade da tutela dos direitos em questão, porquanto o acesso aos dados de base aqui em causa foi efetuado por órgão de polícia criminal português, junto de operadoras de telecomunicações nacionais, inteiramente subordinados à legislação do país (em sentido lato, incluindo também as normas aplicáveis do direito da União Europeia), após autorização judicial e nos estritos limites do necessário para apurar a identidade do, ou dos autores dos uploads aqui em causa.
35. O mesmo se diga, aliás, e em quarto lugar, da inconstitucionalidade que o Tribunal Constitucional identificou no regime (de acesso aos (meta)dados objeto de retenção nos termos do diploma) previsto no artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho. Considerou-se, a este propósito, e em síntese, que esta norma, ao não prever a notificação (quando tal já não puder prejudicar a investigação criminal em curso), aos eventuais visados, de que os seus dados foram acedidos, restringe de modo desproporcionado o direito à autodeterminação informativa e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (de novo acompanhando ainda o Tribunal de Justiça da União Europeia, a partir do seu acórdão Tele 2, de 21/12/2016, processos apensos C‑203/15 e C‑698/15, parágrafos 115-121).
36. Contudo, é preciso não olvidar que os (meta)dados (de base) apreendidos nos presentes autos se destinaram, ab initio, à identificação do, ou dos eventuais autores dos uploads denunciados às autoridades nacionais e em causa neste processo, sempre necessariamente com vista à realização posterior de diligências destinadas a confirmar (ou infirmar) a efetiva responsabilidade daqueles suspeitos na atividade ilícita aqui sob investigação.
37. Isto significa, assim, que, na sequência das diligências de investigação desenvolvidas pelas autoridades policiais, sempre as pessoas cujos elementos de identificação fossem obtidos a partir da base de dados prevista na Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, teriam de ser informados (ou, pelo menos, não deixariam de ter conhecimento), no âmbito do processo penal e em cumprimento das respetivas normas (cf. artigos 58.º, em especial n.º 1, alínea a), 61.º, em especial o n.º 1, alíneas b), c) e g, 141.º, em especial n.º 1, alínea e), 143.º, n.º 2, e 144.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal) do acesso a tais elementos.
38. Dito, porventura, de outro modo, da concatenação das várias normas aplicáveis, e para casos como o vertente, o regime legal aplicável não ignorava a garantia que o Tribunal Constitucional entendeu necessária para garantir a solvência constitucional do artigo 9.º daquele primeiro diploma legal.
39. c) Em suma, pois: não obstante a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional, o certo é que os (meta)dados apreendidos nos presentes autos o foram através de um procedimento que não sofreu propriamente das enfermidades constitucionais que justificaram aquela mesma declaração
40. Parece, assim, não ser desproporcionado deixar prevalecer, no caso concreto, os interesses da comunidade na perseguição dos crimes em causa nos presentes autos, ao, na prática, ter sido mínima, para não dizer praticamente inexistente, a eventual lesão (em todo o caso, meramente formal) dos direitos que o Tribunal Constitucional convocou para justificar o juízo de inconstitucionalidade que formulou a propósitos dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da aludida Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (relativamente ao tipo de (meta)dados em causa nestes autos).
41. Nestas circunstâncias, e como se referiu já anteriormente, contrariamente ao que se considerou na decisão recorrida, não estava o Tribunal a quo impedido de valorar, por força da decisão várias vezes aludida do Tribunal Constitucional, os (meta)dados apreendidos nos presentes autos pelas autoridades policiais.
42. 3. Ainda que não se acompanhe o entendimento exposto nos pontos anteriores, da afirmação de uma eventual proibição de aquisição ou valoração dos (meta)dados apreendidos nos autos não resultaria, por «efeito-à-distância», a impossibilidade de valorar o resultado das diligências investigatórias dirigidas contra o arguido nos autos (e sua irmã) e desenvolvidas pelas autoridades policiais com base nos conhecimentos obtidos através do acesso àqueles mesmos (meta)dados.
43. a) O raciocínio que se desenvolveu no ponto anterior a propósito da necessidade de assegurar uma adequada concordância prática entre os diferentes interesses em conflito no processo penal tem plena aplicação (mutatis mutandis), também, no tocante à delimitação do «efeito-à-distância» (ou, na sugestiva formulação da doutrina espanhola, ao «efeito dominó») que deva ser reconhecido à verificação de uma eventual proibição de aquisição, ou de valoração, de prova recolhida com eventual violação de direitos constitucionalmente protegidos (nesse sentido, cf. as considerações de Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 14 e segs.).
44. Destarte, pelas razões atrás aduzidas, que agora se não repetirão, também aqui entendemos que a prevalência deve ser conferida ao interesse da comunidade na valoração, para efeitos de descoberta da verdade e combate à criminalidade mais grave, da prova obtida na sequência da análise dos (meta)dados retidos nos moldes previstos na Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, e aqui em causa.
45. Prova, diga-se, que foi obtida também com pleno respeito pelos requisitos legalmente previstos, precedendo a necessária autorização judicial, e, portanto, mediante diligência que, em si mesma, não representou qualquer agressão ilegítima aos direitos fundamentais do aqui arguido (e sua irmã), sendo que este consentiu mesmo no acesso, por parte das autoridades policiais, ao conteúdo do seu computador (cf. fls. 267 dos autos), onde acabaram por ser apreendidos elementos probatórios relevantes para a decisão deste pleito.
46. b) Este entendimento encontra conforto – agora numa nota comparatística – também na jurisprudência norte-americana, um dos ordenamentos jurídicos onde porventura mais formalmente, e, por consequência, mais estritamente, se afirmou e impôs uma exclusionary rule relativamente a toda e qualquer prova ilicitamente obtida pelas autoridades policiais, bem como dos seus respetivos «frutos» (por precisamente serem, na conhecida expressão da jurisprudência norte-americana, fruits of the poisonous tree).
47. Aí, com efeito, enunciou-se (inicialmente no caso United States v. Leon (468 U.S. 897 (1984)) e vem-se desenvolvendo uma good faith exception à aplicação da exclusionary rule, precisamente por se considerar, além do mais, que «a aplicação inflexível da sanção de exclusão para impor ideais de retidão governamental impediria, de forma inadmissível as funções de averiguação da verdade que recaem sobre juiz e o júri» (United States v. Leon, cit., pág. 907, citando o caso United States v. Payner, 447 U. S. 727, 734 (1980)), o que poderá justificar (se não mesmo impor) uma ponderação entre os benefícios dessa exclusão em termos de dissuasão de comportamentos ilícitos por parte das autoridades responsáveis pela investigação criminal e os custos decorrentes da perda da prova que assim é excluída.
48. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos concluiu, assim, que «quando os agentes policiais tenham objetivamente atuado de boa fé ou os seus erros tenham sido mínimos, a magnitude do benefício concedido a (…) arguidos [na sequência da exclusão das provas obtidas ilegitimamente] ofende conceitos básicos do sistema de justiça criminal» (United States v. Leon, cit., pág. 908), não permitindo quaisquer ganhos no tocante ao efeito dissuasor que se espera da aplicação estrita da exclusionary rule; por isso, não se justificaria a exclusão das provas obtidas na sequência do cumprimento de mandado de busca regularmente emitido, mas posteriormente considerado inválido (em parte devido a erro inadvertidamente cometido pelo juiz que o subscreveu), mas em cuja validade as autoridades policiais não tinham tido motivos objetivos para não confiar (vd., em especial, as considerações desenvolvidas no aresto supra referido a partir da pág. 918 e segs., e 922, e segs.).
49. Posteriormente – e é este o desenvolvimento que aqui nos interessa em especial –, seguindo a mesma linha de raciocínio, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, no seu acórdão no caso Illinois v. Krull (480 U.S. 340 (1987)), concluiu que a good faith exception impedia igualmente a exclusão de provas obtidas na sequência de buscas determinadas com base em legislação posteriormente declarada inconstitucional, sempre que a confiança na constitucionalidade de tal legislação por parte das autoridades policiais se mostrasse «objetivamente razoável».
50. Recordou, a este propósito, o mesmo Tribunal, que «[s]alvo quando uma lei é claramente inconstitucional, não é de esperar que um agente ponha em causa a decisão do parlamento que aprovou a lei» (Illinois v. Krull, cit., págs. 349-350); por outro lado, «se a lei é posteriormente declarada inconstitucional, excluir provas obtidas com base nela antes dessa declaração judicial ocorrer não dissuadirá futuras violações da IV Emenda [que regula a matéria das “searches and seizures”] por parte de um agente que simplesmente cumpriu com a sua responsabilidade de aplicar a lei tal como escrita. (…) “Penalizar o agente pelo erro [do parlamento], e não por um erro seu, não pode logicamente contribuir para impedir violações da IV Emenda”» (id., pág. 350, citando uma das considerações tecidas na decisão do aludido caso United States v. Leon).
51. Por outro lado, e relativamente à conduta dos legisladores que aprovaram a lei declarada inconstitucional – e na ausência de qualquer indício de que era sua intenção eliminar as garantias consagradas na IV Emenda à constituição norte-americana – o Supremo Tribunal dos Estados Unidos considerou que o melhor remédio para evitar «a aprovação de leis inconstitucionais por um parlamento é o poder dos tribunais para invalidar essas leis» (Illinois v. Krull, cit., pág. 350), não a exclusão das provas obtidas na sequência da sua regular aplicação por parte das autoridades disso responsáveis.
52. A lógica subjacente às decisões sinteticamente apresentadas tem, cremos, plena aplicação no caso vertente (ainda que sem prejuízo dos diferentes fundamentos político-criminais e normativos seja da doutrina da exclusionary rule, seja da teoria das proibições de prova: sobre isto, Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, págs.133 e segs.): ainda que os (meta)dados apreendidos no âmbito dos presentes autos, e com base nos quais se chegou à identidade do arguido, integrassem uma base de dados cuja existência, legalmente imposta, foi considerada constitucionalmente ilegítima, o certo é que o comportamento das autoridades responsáveis pela investigação dos factos aqui em causa não merece qualquer censura, porquanto se limitaram a lançar mão dos meios previstos na legislação então plenamente em vigor para conduzirem a investigação que lhes competia efetuar; por outro lado, o nosso legislador procurou (como se salienta na declaração de voto que o Conselheiro Lino Ribeiro apôs ao citado acórdão n.º 268/2022) adotar uma disciplina que evitasse incorrer nos vícios de inconstitucionalidade que, alfim, o Tribunal Constitucional acabou por entender existirem na lei, o que significa que não seria razoável exigir, das autoridades de investigação criminal, qualquer comportamento diverso daquele que adotaram, nem censurar o legislador pelos seus esforços (alfim infrutíferos, é certo) para satisfazer o juiz constitucional (e da União Europeia).
53. 4. Não ocorrendo, no caso, qualquer nulidade ou proibição de aquisição e/ou valoração seja dos (meta)dados originariamente apreendidos nos autos, seja (por força de suposto efeito-à-distância) da prova recolhida no decurso da busca domiciliária a que foi sujeito o arguido nos autos, mostra-se necessária a prolação de nova decisão, pelo Tribunal a quo, que tome em consideração os elementos probatórios em apreço.
54. Com efeito, e pese embora o Tribunal recorrido tenha optado por tratar da questão da admissibilidade de valoração dos (meta)dados apreendidos nos autos, bem como dos elementos probatórios recolhidos no decurso da busca domiciliária a que foi sujeito o arguido no processo, no acórdão que proferiu (porventura indevidamente, dado que desse modo se permitiu a produção, em audiência, de prova que, a final, se considerou não poder ser tomada em consideração pelos membros do Coletivo que procedeu ao julgamento no processo), certo é que não perdeu essa mesma questão, por tal forma de proceder, o seu respetivo caráter prévio e autónomo relativamente à decisão que ao mesmo Tribunal cabia proferir sobre o mérito do presente pleito.
55. Nestas circunstâncias, havendo que revogar a decisão recorrida no tocante à resposta que deu à questão em referência, daí decorre a necessidade de o Tribunal a quo proferir novo acórdão, no qual pondere, como lhe competia ter feito, os elementos probatórios que decidiu (incorretamente) não dever valorar na formação da sua convicção, daí retirando as conclusões que se imponham para a decisão do caso.
56. Isso, portanto, o que haverá agora que determinar, com prejuízo do conhecimento das demais questões que são suscitadas no recurso sob apreciação.
57. 3. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

III
58. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente, embora por distintos fundamentos, o presente recurso:

a) Revogar a decisão recorrida na parte em que julgou não serem valoráveis, para efeitos de formação da convicção do Tribunal no tocante à matéria de facto relevante para a decisão do pleito, (meta)dados obtidos mediante a consulta à base de dados criada pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, concretizada antes da prolação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, bem como a prova recolhida na busca realizada no domicílio do aqui arguido, após a sua identificação por recurso àqueles mesmos (meta)dados;

b) Consequentemente, determinar a baixa dos autos à 1.ª instância para que aí seja proferido, pelo Coletivo que procedeu ao julgamento, novo acórdão não incompatível com a presente decisão;

59. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).


Porto, 24 de maio de 2023.
Pedro M. Menezes
Donas Botto
Paula Guerreiro
(acórdão assinado eletronicamente).